Jornada de coragem na luta - ClipQuick€¦ · mente honradas na Revolução de 25 de Abril de...

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Jornada de coragem na luta pela liberdade e pela democracia A Revolta dos Marinheiros, em 8 de Setembro de 1936, ocorre num período de consolidação do fascismo. Um período marcado por inúmeras lutas, envolvendo sectores diversos e com expressão e amplitude várias. Nesse contexto, Salazar, exaltando a vocação marítima do povo português, inau- gura um processo de revigoramento da Marinha com a aqui- sição de novos navios, e, procurando reforçar a sua influência num ramo que lhe era claramente hostil, faz acompanhar tal processo de uma acção de charme junto dos oficiais da Mari- nha. A realidade, porém, é que, apesar de navios novos, as condições a que os praças eram sujeitos geravam mal-estar e consequentes acções de protesto. Contexto político c militar pré-rev olta Num período de intensa actividade do Partido na clandestinidade são cria- das várias organizações partidárias e unitárias animadas por comunistas. E neste contexto que surge, em 1930, a Organização Revolucionária da Armada (ORA), uma organização ligada ao PCP que rapidamente se desenvolve. E tanto assim é que Bento Gonçalves, Secretá- rio-Geral do PCR no VII Congresso da Internacional Comunista (Julho-Agosto de 1935) dá nota que «cerca de 20% dos efectivos do Partido são marinheiros da marinha de guerra». Na sequência da criação da ORA, aparece, em 1934, 0 Marinheiro Ver- melho, jornal que introduz um prepon- derante elemento de consciencialização política e de elevação da compreensão sobre o regime, a sua natureza, objecti- vos e consequências, assumindo também o papel de elemento de ligação e de enquadramento não dos marinheiros organizados, mas deste sector em geral. E ainda Bento Gonçalves que salienta a importância e a influência deste jornal, informando o referido Congresso que o jornal «é distribuído em 1000 exempla- res, sendo que 700 são integralmente pagos», realçando que «é preciso ter em conta que a marinha é constituída por um total de 5000 homens». Ou seja, 20% do efectivo recebia directamente 0 Marinheiro Vermelho. Apesar da maior facilidade em ter- mos de convivência, de relacionamento e cumplicidade que a vida nos navios propicia, o alargamento da ORA e da sua influência, mesmo nas unidades cm terra, faz com que o regime aumentasse a sua vigilância e que acabassem por ocorrer, em 1935, alguns golpes (pri- sões) nesta organização. Embora mais enfraquecida do ponto de vista de direcção em resultado das prisões efectuadas, a ORA recompôs-se. Contudo, a sua ligação à estrutura par- tidária fica mais débil com a prisão do Secretariado do Partido, em Novembro de 1935, pouco depois do regresso de Bento Gonçalves do Vil Congresso da IC. Para verdadeiramente se compreen- der o 8 de Setembro de 1936, «é antes de mais indispensável considerar a situação nacional existente no primeiro semestre desse ano», palavras de Álvaro Cunhal, em Almada, por ocasião da ses- são comemorativa do 60. 0 aniversário da Revolta dos Marinheiros. Vivia-se uma situação marcada pelo processo de consolidação da ditadura de Salazar, de perigosa evolução inter- nacional com os acelerados preparativos da Segunda Guerra Mundial por parte do nazi-fascismo, com o qual Salazar se identificava, uma situação que determi- nou que as orientações do VII Congresso da IC apontassem «como objectivo cen- "A Revolta dos Marinheiros, apesar de derretada, permanece como una jornada histórica de abnegação, coragerr e determinação na luta pela liberdade e pela democracia" Rui Fernandes Membro da Comissão Política do Comité Central doPCP

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Jornada de coragem na luta

pela liberdade e pela democracia

A Revolta dos Marinheiros, em 8 de Setembro de 1936,ocorre num período de consolidação do fascismo.

Um período marcado por inúmeras lutas, envolvendo sectores

diversos e com expressão e amplitude várias. Nesse contexto,Salazar, exaltando a vocação marítima do povo português, inau-

gura um processo de revigoramento da Marinha com a aqui-sição de novos navios, e, procurando reforçar a sua influência

num ramo que lhe era claramente hostil, faz acompanhar tal

processo de uma acção de charme junto dos oficiais da Mari-nha. A realidade, porém, é que, apesar de navios novos, as

condições a que os praças eram sujeitos geravam mal-estar e

consequentes acções de protesto.

Contexto políticoc militar pré-rev olta

Num período de intensa actividadedo Partido na clandestinidade são cria-das várias organizações partidárias e

unitárias animadas por comunistas.E neste contexto que surge, em 1930, a

Organização Revolucionária da Armada

(ORA), uma organização ligada ao PCP

que rapidamente se desenvolve. E tantoassim é que Bento Gonçalves, Secretá-

rio-Geral do PCR no VII Congresso da

Internacional Comunista (Julho-Agostode 1935) dá nota que «cerca de 20%dos efectivos do Partido são marinheiros

da marinha de guerra».Na sequência da criação da ORA,

aparece, em 1934, 0 Marinheiro Ver-

melho, jornal que introduz um prepon-derante elemento de consciencialização

política e de elevação da compreensãosobre o regime, a sua natureza, objecti-vos e consequências, assumindo também

o papel de elemento de ligação e de

enquadramento não só dos marinheiros

organizados, mas deste sector em geral.E ainda Bento Gonçalves que salienta

a importância e a influência deste jornal,

informando o referido Congresso que o

jornal «é distribuído em 1000 exempla-

res, sendo que 700 são integralmente

pagos», realçando que «é preciso ter

em conta que a marinha é constituída

por um total de 5000 homens». Ou seja,20% do efectivo recebia directamente0 Marinheiro Vermelho.

Apesar da maior facilidade em ter-mos de convivência, de relacionamento

e cumplicidade que a vida nos navios

propicia, o alargamento da ORA e da

sua influência, mesmo nas unidades cm

terra, faz com que o regime aumentasse

a sua vigilância e que acabassem por

ocorrer, em 1935, alguns golpes (pri-sões) nesta organização.

Embora mais enfraquecida do pontode vista de direcção em resultado das

prisões efectuadas, a ORA recompôs-se.Contudo, a sua ligação à estrutura par-tidária fica mais débil com a prisão do

Secretariado do Partido, em Novembro

de 1935, pouco depois do regresso de

Bento Gonçalves do Vil Congresso da

IC.Para verdadeiramente se compreen-

der o 8 de Setembro de 1936, «é antesde mais indispensável considerar a

situação nacional existente no primeirosemestre desse ano», palavras de Álvaro

Cunhal, em Almada, por ocasião da ses-

são comemorativa do 60. 0 aniversário

da Revolta dos Marinheiros.

Vivia-se uma situação marcada pelo

processo de consolidação da ditadurade Salazar, de perigosa evolução inter-nacional com os acelerados preparativosda Segunda Guerra Mundial por partedo nazi-fascismo, com o qual Salazar se

identificava, uma situação que determi-

nou que as orientações do VII Congressoda IC apontassem «como objectivo cen-

"A Revolta dos

Marinheiros, apesarde derretada, permanececomo una jornadahistórica de abnegação,

coragerr e determinaçãona luta pela liberdade

e pela democracia"

Rui FernandesMembroda Comissão Política

do Comité Central

doPCP

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trai do movimento comunista e de todas as forças democráticas

a luta contra o fascismo».

A Revolta

Com o eclodir da Guerra Civil de Espanha em 18 de Julho

de 1936, o regime fascista de Salazar intensifica as medidas

repressivas sobre os trabalhadores e o povo em geral, e sobre

a ORA e o Partido em particular.Vários marinheiros, alguns dos quais

pertencentes à ORA, são expulsos da

Marinha. A organização sente-se cada

vez mais ameaçada e isso faz com quefosse ganhando força a ideia da necessi-

dade de uma revolta que pusesse termo

ao próprio regime. 0 objectivo era queos navios Afonso de Albuquerque. Dão,

Bartolomeu Dias, Pedro Nunes e GdEanes se sublevassem fora da barra do

Tejo para ficarem fora do alcance de fogo

de terra e, na sequência, os marinheiros

intimassem o Governo a reintegrar os

camaradas expulsos.Sendo esta a questão determinante e

que funcionava como factor mobilizador

junto da generalidade dos marinheiros,

havia a consciência, por parte dos ele-

mentos mais responsáveis da ORA, de que os golpes repres-sivos acabariam por debilitar a estrutura retirando a prazo

qualquer viabilidade de levar a cabo tal acção. [Neste contexto,

o mais acertado seria dar um passo atrás, reforçar as medidas

de defesa e prosseguir a intervenção em novas condições. Só

que se insistiu em dar um passo em frente. Perspectiva queÁlvaro Cunhal havia desaconselhado, num encontro de que íoi

incumbido de realizar com dirigentes da ORA, e que teve lugarno Verão de 1936, antes da sua partida para Espanha.

Do conjunto de navios que estava previsto participar só

o Dão e o Afonso de Albuquerque avançam entre percalços

que atrasam todo o desenvolvimento da revolta e fazem

oiti que as forças do regime accionem as baterias do

Forte de Almada e do Alto do Duque.A revolta é rechaçada e são presos

quase todos os marinheiros. Em vários

pontos da região de Lisboa forças do

regime posicionam-se para prevenirqualquer efeito de contágio.

0 fracasso da revolta confirmou

os alertas atempadamente feitos pela

direcção do Partido quanto ao previsível

grau de insucesso que lhe estava desti-

nada. Em artigo saído um ano depois, o

Avante! sublinha: «sob o ponto de vista

táctico, essa jornada forneceu-nos mais

uma prova de que devemos condenar

o putschismo como meio de luta e quea única forma de derrubar o lascismo

é a preparação e a mobilização das

massas em volla de uma poderosaFrente Popular». João Faria Borda, um

dos destacados participantes, afirmaria

muito mais tarde: «podemos hoje dizer

que foi mais urna explosão de revolta

do que uma acção verdadeiramenterevolucionária» (').

Na verdade, todo o quadro polí-tico, social e ideológico que conduziu

à decisão da direcção da ORA em

avançar, era recheado de profundas

contradições. Repare-se, por exem-

plo, no jornal 0 Marinheiro Vermelho

n." 7, de Dezembro de 1934, cujo título

era «Reviralho e Revolução» e tinha

como subtítulo: «A Revolução não se

faz, organiza-se» (Lénine). Neste é

dito, entre tantas outras importantescoisas, «o reviralho não vem pôr as

massas em movimento, mas vem paraevitar a revolução. A ditadura só cairá

com um movimento de massas...».E neste mesmo número é aberta uma

nova secção com o título «Façamos

"Num período de intensa

actividade do Partido

na clandestinidade

são criadas várias

organizações partidáriase unitárias animadas

por comunistas. E neste

contexto que surge, em

1930, a OrganizaçãoRevolucionária da

Armada (ORA)"

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a nossa auto-crítica», onde se diz:

«camaradas há que, por fazerem parte

da Organização e pagarem a sua quota,

julgam cumpridos os seus deveres

de revolucionários. Nota-se também

que alguns camaradas quando convo-

cados para reuniões, raro aparecem,

alegando afazeres (...). Uns e outros,

é necessário que se compenetrem

que fazem parte de uma organização

revolucionária, e não de um grupo

desportivo» .

0 salde da fracassada revolta é

ilustrado nas penas aplicadas, que atin-

giram, em vários casos, 17, 19 e 20

anos de prisão. Foram presos e demi-

tidos 208 marinheiros, dos quais 82

condenades: 48 foram enviados para

a Fortaleza de Angra e 34 foram para o

Tarrafal no dia seguinte ao julgamento

(engrossando o contingente de 150

outros presos que inauguraram aquele

que ficou c onhecido como o Campo da

Morte Ler ta). Se somarmos os cinco

marinheiros que viriam a ser assassina-

dos no Tarrafal às 12 mortes ocorridas

no momeno da revolta, dá um total de

17 mortos.

A acção ideológicae repressiva do fascismo

0 desfecho do 8 de Setembro de

1936 foi aproveitado pelo fascismo para

a intensificação da acção arilicomunista

e o reforço de medidas repressivas.Desde logo, pretendendo ligar o Par-

tido à revolta: «Você diga que isto foi

mandado selo Partido que se safa com

uma pena pequena (...)» (2 ). Depois,

procurando desvirtuar os objectivos da

revolta e fazendo passar a ideia de que

a intenção era a inserção dos navios no

apoio à Frente Popular na Guerra Civil de

Espanha, ou seja, um acto de «traição à

pátria». É neste sentido que O Diário da

Manhã de 10 de Setembro escreve: «está

definitivamente apurado que a intenção

dos marujos sublevados era saírem a

barra e navegar com dois magníficos bar-

cos de guerra (...) onde seriam postos às

ordens dos marxistas espanhóis». Para-

lelamente é desenvolvida a tese de que

esta acção era parte de um movimento

comunista internacional que influiu «no

espírito de simples marujos por insistente

acção de desnacionalizados de todos os

povos (...)»('). No comunicado «Lição

dos Factos» Salazar vinca que «se a

honra da Nação desaparece da formação

moral e intelectual do soldado, o Exército

fica sem regra e sem finalidade. Quem

é contra a Nação não pode ser militar».

A mentira da tese da traição à pátria é

dada pelos próprios autos de acusação

de José Barata: «tomou parte na rebelião

(...) com o fim de pelo menos atentarem

contra o Governo (...)» e que tinha «entre

os seus fins o de ser vingado o castigo

dado a alguns marinheiros...».

Nas semanas posteriores sai legisla-

ção dando plenos poderes às chefias da

administração pública para procederem

disciplinarmente sobre quem professar

Faria Borda discursando no acto de trasladado dos corpos dos presos assassinados no Tarrafai

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Álvaro Cunhal com Miguel Kusscle Faria Borda na visita à exposição sobreo Tarrafal

doutrinas subversivas, sob pena de serem os próprios demitidos.É criada a Legião Portuguesa (*) e a PVDE reforça a sua teia.

Apesar de fracassada, a Revolta do Marinheiros não travouo prosseguimento da acção do PCP dentro das fileiras das

Forças Armadas.Tanto assim queÁlvaro Cunhal,no trabalhoO Caminho parao Derrubamentodo Fascismo ('),dedica algumaanálise aoambiente exis-tente no seu seio

e aos diferentescírculos que os

animavam e envolviam: «Há grupos de oficiais de alta patenteque visam a realização dum golpe de Estado por cima; há gru-pos de oficiais de patentes inferiores ou de oficiais reformados

que pretendem a sublevação de quartéis dominando a possívelresistência dos comandos; (...) há ainda grupos de militares,estreitamente ligados a este ou àquele agrupamento político,sonhando planos de sublevação com assaltos a quartéis porgrupos civis (...)». E acrescenta: «Enquanto uns pretendemlevar ao Poder uma «Junta Militar» fora dos partidos «parainstaurar a Democracia», outros pretendem dar o golpe e

entregar o Poder «aos políticos». Uma característica comum atodos estes agrupamentos é que não desenvolvem um trabalhoregular de organização, mas apenas o aliciamenln intensivopara a preparação dum putsch (...)», que logo se evapora«quando as ilusões se diluem».

Não se ficando pela análise ao quadro da situação, adiantaa posição do Partido e faz uma advertência. Quanto à posiçãoafirma que «se oficiais honrados, representando os sentimentosdemocráticos das forças armadas, tivessem a coragem e a força

para se levantar vitoriosamente contrao fascismo, conceder as liberdadesdemocráticas fundamentais e dar a voz

ao povo português, o nosso Partido nãofaria mais que apoiá-los nessa políticademocrática». Quanto à advertência é

referida a manobra de diversão e os tre-mendos prejuízos c ineficácia que cons-tituem uma acção com visla à construçãopermanente de golpes, de datas para o

putsch e as desilusões, divisões e agas-tamentos subsequentes e a necessidadedum trabalho de organização regular ealheio à ideia dum «próximo golpe».

Afirmações e orientações inteira-mente honradas na Revolução de 25 de

Abril de 1974.A Revolta dos Marinheiros, apesar

de derrotada, permanece como uma jor-nada histórica de abnegação, corageme determinação na luta pela liberdadee pela democracia. Jornada que deixouraízes na consciência de muitos milita-res que, nas novas condições, prosse-guiram dentro dos quartéis e navios a

intervenção antifascista. Jornada queprosseguiu com a luta dos trabalhadoresdas fábricas e dos campos e uma cres-cente dinamização das lutas estudantis.Jornada que teve na Revolução de Abrile nas conquistas com ela alcançadas a

sua mais justa homenagem. 5à

Notas

I 1)A Revolta das Marinheiros, colecção episó-

dios da resistência antifascista. Erligões Sociais,Lisboa. 1974, p. 23.

(2

I Entrevista a João Faria Borda, m Aranle! cie6 de Setembro de 1974.

C 1) Comunicado, «Lição dos ràetos», de OliveiraSalazar.

(') A Legião Portuguesa é criada pelo Decreto-lein." 27058 de 30 de Setembro de 1936.

O Álvaro Cunhal. Obras Escolhidas, Tomo f,Edições «Avante!», Lisboa. 2007, pp. 477-478.

«Posso testemunhar que, antes de partir clandestina-mente para Espanha em Julho de 1936 em missão do Par-tido, ainda antes do golpe militar fascista de Franco, antesda Guerra Civil Espanhola, tive, por indicação do Partido,um encontro com dirigentes da ORA para examinar a situa-ção então existente, a orientação a decidir e as acções aempreender.»

Álvaro CunhalDuas Intervenções numa Reunião de Quadros,

Edições «Avante!», Lisboa, 1996, p. 87