Jornal de ciências sociais 8

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Ciências Jornal de Curso de Ciências Sociais - Centro Universitário Fundação Santo André - Ano III - N° 8 Bloco Eureca Mini-cursos A luta armada Cinema e as Ciências Sociais Bloco EURECA empolgou os alunos e professores da Fafil, tocando e cantando o tema “Eureca pela verdade antes que o mundo acabe”. Página 2 Durante a Semana de Ciências Sociais da Fundação Santo An- dré quatro mini-cursos foram ministrados abordando temas relativos à ditadura militar e suas consequências. Páginas 3 e 4 O combate armado durante o período da ditadura militar é algo que merece atenção. As atua- ções dos combatentes armados da ditadura, que lutaram pela democracia no país, foi o tema debatido pelo ex-militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Manoel Cirilo. Página 5 Cine AbertaMente amplia o debate e o acesso ao cinema, promovendo atividades voltadas ao público em geral. Página 11 Sociais Racismo enquanto categoria econômica Realismo Fantástico Informação que não se vende Recuperar as análises de Eric Williams, especialmente de sua mais original contri - buição – identificar os nexos causais entre a formação do capitalismo na Europa e a escravização em massa dos africanos nas Américas –, tem relevante importância para o entendimento do período de acumulação primeira do capital. Página 13 O realismo fantástico brasileiro na obra de José Jacinto Veiga nos coloca frente a frente com as proibi- ções impostas pelo capital. Página 14 1964: 50 ANOS DEPOIS Semana de Ciências Sociais da Fundação Santo André abordou a ditadura militar brasileira 50 anos depois e contou com diversos palestrantes. P.2 - 11 Ex-presidente da UNE, Honestino Guimarães, que foi preso, torturado e assassinado pela didatura militar

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A 8ª edição do Jornal de Ciências Sociais já está sendo distribuída e apresenta os assuntos debatidos na Semana de Ciências Sociais 2014, ocorrida entre 22 e 27 de setembro, cujo tema foi “1964 - 50 anos depois - Novas e Velhas Lutas”.

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Curso de Ciências Sociais - Centro Universitário Fundação Santo André - Ano III - N° 8

Bloco Eureca

Mini-cursos

A luta armada

Cinema e as Ciências Sociais

Bloco EURECA empolgou os alunos e professores da Fafil, tocando e cantando o tema “Eureca pela verdade antes que o mundo acabe”. Página 2

Durante a Semana de Ciências Sociais da Fundação Santo An-dré quatro mini-cursos foram ministrados abordando temas relativos à ditadura militar e suas consequências. Páginas 3 e 4

O combate armado durante o período da ditadura militar é algo que merece atenção. As atua-ções dos combatentes armados da ditadura, que lutaram pela democracia no país, foi o tema debatido pelo ex-militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Manoel Cirilo. Página 5

Cine AbertaMente amplia o debate e o acesso ao cinema, promovendo atividades voltadas ao público em geral. Página 11

SociaisRacismo enquanto categoria econômica

Realismo Fantástico

Informação que não se vende

Recuperar as análises de Eric Williams, especialmente de sua mais original contri-buição – identificar os nexos causais entre a formação do capitalismo na Europa e a escravização em massa dos africanos nas Américas –, tem relevante importância para o entendimento do período de acumulação primeira do capital. Página 13

O realismo fantástico brasileiro na obra de José Jacinto Veiga nos coloca

frente a frente com as proibi-ções impostas pelo capital.

Página 14

1964: 50 ANOS DEPOISSemana de Ciências Sociais da Fundação Santo André abordou a ditadura militar brasileira 50 anos depois e contou com diversos palestrantes. P.2 - 11

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 20142 www.colegiadosociais.com

EditorialA 8ª edição do Jornal de

Ciências Sociais apresenta os assuntos debatidos na Semana de Ciências Sociais 2014, ocorrida entre 22 e 27 de setembro, cujo tema foi “1964 - 50 anos depois - No-vas e Velhas Lutas”.Não poderia tal evento

ocorrer em momento mais propício, e esta publicação, por sua vez, não poderia vir em ocasião mais providen-cial: após o pleito que deter-minou a reeleição de Dilma Rousseff (PT) como presi-dente do Brasil. A disputa ocorreu contra Aécio Neves (PSDB), que se mostrou um péssimo perdedor. Ao mesmo tempo em que este editorial é escrito, milhares de pessoas ocupam a Aveni-da Paulista (SP) pedindo o impeachment da presidente eleita, recontagem dos vo-tos e, mais aterrorizante, a intervenção militar. O retrocesso patente so-

mente encontra justificativa na ignorância dos indivídu-os envolvidos, de um lado, e os interesses nefastos de uma classe social dominan-te - em virtude de seu poder econômico e detenção capi-tal dos meios de produção - de outro.É evidente que uma par-

cela dos que justificam seu repúdio ao Brasil atual no medo do que chamam - e acreditam saber do que se trata - comunismo, se baseia unicamente na desinforma-ção. Pedem por democracia, sem perceber que a despem de significado com o teor da alternativa que propõem. São a mais pura massa de manobra. Outros “ismos” também tomam os gritos de ordem dos que bradam pela “mudança”, sem saber o que realmente buscam mudar e em favor de quem - nem se percebem na posição de prejudicados, pensam, antes, serem parte da elite que deveriam combater. (Esses outros “ismos”, pelo deslocamento anacrônico do discurso, nem merecem menção neste espaço).É em razão desta esqui-

zofrenia social que se faz necessária uma publicação como o Jornal de Ciências Sociais. É imperativo que as classes prejudicadas, na figura de seus integran-tes, se reconheçam como tal e repudiem os grilhões impostos pela estrutura ca-pitalista - e não adorem as correntes que as limitam e, ainda por cima, nomeiem isso como liberdade.

Abrindo a Semana de Ciências Sociais 2014, o Bloco EURECA em-

polgou os alunos e professores da Fafil, tocando e cantando o tema “Eureca pela verdade antes que o mundo acabe”.

Objetivando pensar maneiras de atender crianças e adolescen-tes em situação de risco social, o Projeto Meninos e Meninas de Rua, que nasceu em 1983, reali-za seus atendimentos de forma comunitária e participativa em meio aberto, focado na defesa dos direitos da criança e do ado-lescente e denunciando as varias formas de repressão e violação de direitos que, apesar de todos os avanços que ocorreram com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8069/90), ainda estão longe de cessar. Vi-sando garantir o protagonismo de crianças e adolescentes em todos os espaços de decisão e aliando a necessidade de se pensar novas formas de divulgar o ECA e denunciar as violações de direitos, nasceu em 1991 o Bloco EURECA (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Ado-lescente), que há 23 anos realiza suas manifestações através de atividades lúdicas, formações políticas e eventos sociais e sai às ruas de São Bernardo para dar o primeiro grito de carnaval, es-tendendo-se hoje ao litoral (São Vicente), Campinas, Guarulhos e São Paulo (Sapopemba). Des-de o inicio de suas atividades, o Bloco procura sensibilizar a comunidade local sobre a pro-blemática da infância e adoles-cência no Brasil, promovendo encontros de formação sobre um tema especifico que é eleito entre os educadores(as), crianças e adolescentes. “EURECA pela verdade antes que o mundo acabe” foi o tema eleito para o carnaval de 2013, que vinculava o surgimento da Comissão Na-

Música e engajamento na Semana de Ciências SociaisFabiola de Carvalho Pereira Silva e Mônica Silva Dias Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Bloco EURECA empolgou os alunos e professores da Fafil

Semana de Ciências Sociais Abertura

cional da Verdade à questão das diversas formas de violências cometidas contra crianças e adolescentes durante a ditadura militar até os dias atuais. A tortu-ra foi indiscriminadamente apli-cada no Brasil, não diferenciava idade ou sexo, condições físicas ou psicológicas das pessoas suspeitas de atividades revol-tosas. Não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em conflito consigo mesma e pronunciar o discurso que, ao favorecer o desempenho do sis-tema repressivo, sig¬nificasse sua sentença condenatória. Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentam sobre relações efetivas de parentesco. Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, mulheres sofreram para incriminar seus companheiros. Pouco se fala dos meninos e meninas que ainda crianças conheceram o cárcere, foram fichados como terroristas, enquadrados pelo DOPS como “elementos subversivos solici-tados para resgates”, “perigosos à segurança nacional” e banidos do Brasil durante o regime militar. Muitos cresceram com

prejuízos a sua participação pública e, mesmo submetidos a sucessivos tratamentos médi-cos, não conseguiram superar o transtorno diagnosticado como fobia social, a exemplo de Car-los Alexandre Azevedo que, com apenas 1 ano e 8 meses de idade, sofreu na pele a violência deste regime e aos 39 anos (no dia 18 de fevereiro de 2013), com uma overdose de medica-mentos, se suicidou. Este é um caso emblemático, mas não é o único. Ainda nos dias atuais, crianças e adolescentes sofrem a repressão policial nas periferias, são agredidos e torturados den-tro das delegacias e “fundações casa”. Seus direitos violados das mais diversas formas, que acabam sendo naturalizadas, por meio de ausência da edu-cação publica de qualidade, alimentação, moradia e direitos básicos que constam no Eca e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

A Semana de Ciências Sociais foi encerrada ao som de Chico Buarque, Sérgio Sampaio, Caeta-no Veloso, entre outros. Rosana e Los Torinos apresentaram o show intitulado A MPB na ditadura, ba-seado em canções que marcaram e embalaram os sonhos de uma geração que não se curvou ao golpe militar. Uma geração que ousou lutar, ousou sonhar e ousou vencer!

Colaboraram nesta edição:

Fabiola de Carvalho Pereira SilvaMônica Silva Dias Talita Moura Paulino Mábia Oliveira Hosana Meira da Silva Tiago Candeias Braga Euller Felix da Silva Matheus H. Bonifácio Giulia Gonçalves SpadaNicolas Gonçalves Victor Monteiro dos Santos Ricardo A. de Melo Fernanda Jeane Leonel Ricardo A. de Melo Mábia Oliveira Lívia Xavier Francisco Quinteiro Pires

Fundação Santo AndréAv. Príncipe de Gales, 821, bairro Príncipe de GalesSanto André - SP - CEP: 09060-870Tel.: (11) [email protected]

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Ciências

Jor

nal

de

Sociais

Tiragem: 5.000 exemplaresO Jornal de Ciências Sociais é uma publicação do Colegiado de Ciências Sociais da Fundação Santo André, distribuído gratuitamente.

Jornalista ResponsávelEduardo Kaze - MTB: 62857

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3www.fsa.br Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 2014

Mini-cursoSemana de Ciências Sociais

Sob a orientação do prof. Carlos Gasparini (UNIB), o mini-curso realizado no

dia 24 de setembro destacou o pensamento de Caio Prado Jr., sua atuação política e a repercussão de suas ideias e análises contidas, sobretudo, no livro A Revolução Brasileira, publicado em 1966.

Caio Prado Jr. foi essencialmente um crítico da linha teórica defen-dida e aplicada pela maioria da esquerda brasileira no período, especialmente o PCB (Partido Comunista Brasileiro). No tocante a esta questão devemos assinalar que nem a esquerda nacional, nem a internacional conheciam de fato a realidade brasileira; tanto a situ-ação econômica, como a questão social e política eram ignoradas pelo Comitê Central em Moscou. As orientações levadas a cabo pelo PCB, baseadas em análises gene-ralizantes e homogeneizadoras, resultavam de uma interpretação equivocada da realidade, impor-tada de uma URSS stalinizada, e aplicadas sem quaisquer questiona-mentos por organizações que des-conheciam os processos constituin-tes da sociedade que pretendiam modificar. Mas, como transformar a realidade se a entendemos de maneira equivocada? Toda teoria equivocada leva naturalmente a uma prática equivocada. Afinal qual é a origem desse equívoco? As orientações de Moscou eram forjadas numa Terceira Interna-cional Comunista sufocada pela atmosfera stalinista que impunha a teoria etapista (a qual determina que toda transformação social obedeça a certas etapas de desen-volvimento). Dessa teoria resulta o seguinte quadro: uma vez que no desenvolvimento histórico dos países europeus ocorreu respecti-vamente o primitivismo, o escra-vismo, o feudalismo, o capitalismo e posteriormente, em alguns países, o socialismo (ou pelo menos ten-tativas de alcançá-lo), esse mesmo processo deveria acontecer em outras nações, inclusive no Brasil, respeitando fielmente essas etapas.

Caio Prado Jr. e os equívocos da esquerda no pré-64

Mábia Oliveira Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Segundo essa teoria mecanicista dos processos históricos, no Brasil encontravam-se restos do modo de produção feudal, carecendo, portanto de uma revolução burgue-sa, para a partir daí lutar por uma sociedade socialista. A própria es-querda nacional concebia o Brasil, e portanto suas tarefas, dessa ma-neira. Caio Prado Júnior combateu firmemente essa interpretação, e apesar de sua militância no PCB suas análises nunca reverberaram internamente no partido, só resso-ando na esquerda, principalmente entre grupos dissidentes do Parti-dão após o golpe militar de 1964.

Caio Prado Jr. argumentou insis-tentemente que no Brasil jamais houve qualquer rastro de feuda-lismo, e que as relações de traba-lho no campo não eram e nunca foram feudais. Estas eram nada mais, nada menos que relações capitalistas de produção, uma vez que havia compra e venda da força de trabalho (assalariamen-to). As formas não plenamente capitaistas de tais relações eram resquícios do período escravista próprio do Brasil, jamais de um passado feudal. A mão de obra era composta por trabalhadores rurais que trabalhavam para um capitalista latifundiário de origem colonial, e não servos que reali-zavam trabalhos para senhores de origem feudal.

Nosso autor critica, sobretudo, a posição tomada por uma esquerda que, segundo ele, parte de uma análise, de uma teoria equivocada, ao invés de partir das relações reais

e concretas da realidade brasileira. Nesse sentido, Caio Prado mostra que a esquerda pré-64 ficou a reboque da burguesia nacional, esperando que esta fosse um setor progressista que levaria a cabo sua própria revolução de forma inde-pendente em relação ao imperia-lismo. A esquerda esperava travar uma luta ao lado da burguesia contra os “latifúndios de origem feudal”. Uma leitura equivocada da realidade que vai custar caro, e dificultar posteriormente a reação ao golpe e ao estado repressor.

Caio Prado foi um dos poucos a caracterizar a burguesia nacional como reacionária e subordinada ao capital internacional. Esse atrelamento, segundo nosso autor, acompanha a burguesia brasileira desde seu nascimen-to, inexistindo, portanto, uma burguesia que se contrapunha ao imperialismo. Considerar o contrário significaria cometer um grande equivoco teórico que iria comprometer toda ação pos-terior dos grupos que resistiram à ditadura militar. Caio Prado foi um crítico feroz da linha teórica assumida por grande parte da esquerda, que ele caracterizava como uma “esquerda de cúpula”, que não fazia trabalho de base, ou o fazia de maneira totalmente insuficiente, e reboquista (sobre-tudo da burguesia nacional).

Para Ler:Prado Júnior, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2000.

Caio Prado Jr. afirmou que jamais houve qualquer rastro de feudalismo no Brasil

Durante a Semana de Ciên-cias Sociais 2014 - 1964: 50 anos depois novas e velhas lutas, realizou-se o mini-curso Os Intérpretes do Brasil e a di-tadura militar, durante o qual pesquisadores abordaram as concepções de Clóvis Moura, Octavo Ianni, Fernando Hen-rique Cardoso e Caio Prado Júnior em relação à ditadura bonapartista que resultou do golpe de 1964.

O mini-curso foi aberto com uma exposição sobre o pensa-mento do intelectual e militan-te Clóvis Moura, ministrada pelo pesquisador Weber Lopes Goes, historiador formado pela FSA e mestrando Ciên-cias Sociais pela Unesp.

O curso teve como finalidade abordar as análises centrais alcançadas pelo autor acerca da formação social do Brasil e da objetivação do racismo no pensamento conservador bra-sileiro. Em sua obra, Clóvis Moura refuta de modo geral a ideologia racista difundida por teóricos defensores de um pro-jeto de nação no qual o negro recém “liberto” causava pâ-nico à burguesia latifundiária brasileira forjada na estrutura escravista colonial, e deveria ser exterminado.

Entre os teóricos racistas refutados por Moura encon-

Clóvis Moura e o combate a racismoTalita Moura Paulino Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

tramos Nina Rodrigues,que, adepto da frenologia, estudou diversos crânios, entre eles o de Antonio Conselheiro, a fim de comprovar sua tese irracio-nal que entende o negro como hereditariamente propenso ao crime, ao vicio e à vadia-gem; Oliveira Viana, defensor da imigração européia, pois acreditava que através dela o Brasil poderia se arianizar; e Silvio Romero, que teorizou sobre a miscigenação do brasi-leiro com o imigrante europeu que garantiria o embranqueci-mento da nação.

Ademais de combater tais concepções, Moura se ocupou em estudar as particularidades da formação social brasileira, concatenando o modo particu-lar como se objetivou o modo de produção capitalista no país e o desenvolvimento do pen-samento conservador expresso no racismo, demonstrando que a ideologia racista está a ser-viço da exploração de classe.

Para Ler:Moura, Clóvis. Brasil: As raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983.___________ Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.___________ Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita, 1994.

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 20144 www.colegiadosociais.com

Semana de Ciências Sociais Mini-curso

No dia 26/09 foi realizada a última aula do mini--curso da Semana de

Ciências Sociais. A professora convidada, Maria Goreti J. So-brinho, expôs o posicionamento teórico e político de Fernando Henrique Cardoso sobre a di-tatura civil-militar brasileira. O presente artigo, longe de esgotar o assunto, buscará muito mais introduzir e reavivar o debate iniciado no mini-curso sobre o suposto abandono do passado de esquerda de FHC ao assumir a presidência e mostrar que suas concepções, dentro do arco da teoria da dependência, são con-cepções politicistas.

Fernando Henrique Cardoso, seja na presidência ou nas suas dezenas de livros e artigos publi-cados, nunca viu na perspectiva do trabalho uma alternativa para o país. Para o sociólogo, a as-sociação com o capital externo era o caminho por onde o país deveria passar inexoravelmente. Em seu trabalho de livre-docência Empresário industrial e desenvol-vimento econômico no Brasil, Cardoso vê a burguesia nacional no período de Juscelino Kubits-chek e João Goulart, devido à incipiente formação social do setor industrial, como uma força político-social não hegemônica frente aos segmentos tradicionais e que, indisposta a unir forças com as classes trabalhadoras, irá optar por associar-se ao capital internacional. Apesar desse posi-cionamento e frente ao contexto político-social do pré-64, a prof. Maria Goretti adverte que FHC ainda nutria algumas expectativas de inflexões levadas a cabo pelas massas urbanas; isto fica muito claro no fim de seu livro, quando o autor indaga sobre a capacida-de dessas massas de “levar mais adiante a modernização política e o processo de desenvolvimento econômico do país. No limite a pergunta será então, subcapita-

No dia 25/09, no mini-curso Interpretes do Brasil e o golpe de 64, o prof. Rodrigo Chagas (ex-aluno do curso de Ciências Sociais da FSA e professor da UFRR) abordou o sociólogo paulista Octávio Ianni e suas reflexões sobre o tema ditadura e Amazônia.

Octávio Ianni (1926-2004) foi um dos sociólogos mais inf luentes do Brasi l ; fez parte da chamada “Escola Paul is ta de Socio logia” , cuja principal referência é Florestan Fernandes. Sua in-tervenção se inicia nos anos 50, atravessa toda a ditadura militar e o lento processo de transição do projeto imposto pelo golpe de 1964 aos go-vernos civis.

Tanto suas análises feitas sobre a di tadura mil i tar, quanto suas pesquisas so-bre a Amazônia, devem ser contex tua l izadas em um quadrante mais amplo: a transformação do capitalis-mo brasileiro, cujos parâ-metros principais de análise são a produção econômica e o poder político. Para Ianni, o estado foi sequestrado pelo capital monopolista, fato que ele evidencia ao analisar a in-tervenção da ditadura militar na região amazônica. O soci-ólogo se detém na análise do município de Conceição do Araguaia, mas suas análises abarcam 80 anos de história da luta pela terra; ao favore-cer um recorte temporal mais amplo, Ianni retoma a fase na qual a Amazônia passa por seu maior surto econômico, a borracha (1840-1910).

A questão para o autor se articula através da subordi-nação do campo a cidade, um dos processos centrais da transformação capitalista; os principais atingidos por esta transformação, que resulta

O politicismo em Fernando Henrique Cardoso

A ditadura militar e a Amazônia

Tiago Candeias Braga Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Hosana Meira da Silva Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Fernando Henrique Cardoso nunca viu na perspectiva do trabalho uma alternativa para o país

Octávio Ianni

lismo ou socialismo?”A viabilidade de superação de-

saparece das páginas de Cardoso nas publicações posteriores a 1964, como o livro Dependência e desenvolvimento na América Latina. Partindo de um pressu-posto weberiano, Cardoso atribui à esfera política uma relativa au-tonomia da estrutura dependente da América Latina. Cardoso ressalta que, mesmo em situação de dependência, os países latino--americanos não estavam fadados a um estagnacionismo, pois em algum momento – exemplifican-do com o Brasil no governo JK e na ditadura militar – os interesses internos podem coincidir com os do capital externo. Instaura-se nesse quadro um desenvolvimen-to dependente associado. O “jogo de poder” permite, para Cardoso, a utilização das condições eco-nômicas de diferentes formas. Longe de negar a exclusão social, Fernando Henrique a coloca como algo natural na situação de dependência, entendendo que a contrapartida dessa exclusão é a modernização e desenvolvi-mento, dependendo apenas da lapidação e aperfeiçoamento do modelo político para garantir a devida distribuição desse desen-volvimento para os diferentes

grupos políticos. Como foi colocado no início

deste artigo, a transformação pela perspectiva do trabalho nunca foi considerada por Fernando Hen-rique Cardoso, muito pelo con-trário, o autor enxerga na política as vias de superação. Em outras palavras, vemos a política em seus escritos não como uma força so-cial usurpada,mas sim como parte constitutiva do ser social.

O suposto abandono de seu passado de esquerda se mostra aqui uma farsa, sendo que este autor nunca fez parte da esquerda e construiu sua teoria e práxis atra-vés de uma ótica liberal-burguesa.

Para Ler:Cardoso, Fernando Henrique e Faleto, Enzo. Dependência e de-senvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.Chasin, José. “A sucessão na crise e a crise na esquerda”. In A miséria brasileira – 1964 -1994: Do golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000.Cotrim, Ivan. O capitalis-mo dependente em Fernando Henrique Cardoso. Dissertação de Mestrado, Unicamp, 2001 (disponível em: http://www.bi-bliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000228738)

na concentração de terras em prol do capital monopolista, são os posseiros e os índios, que são literalmente mas-sacrados. Ianni apresenta o processo de contrarreforma agrária, orientado pela dita-dura; esta, ainda que tenha criado um Estatuto da Terra (lei 4.504/1964) que previa uma reforma agrária e a colo-nização, realiza de fato ape-nas a última. A concentração da produção na agroindústria e na mineração pesada foi um dos pontos de apoio princi-pais da política econômica a partir de 1964, ao lado do en-dividamento externo. Como Ianni demonstra, a partir da ditadura não é possível tratar o capitalismo no Brasil sem abordar a Amazônia.

Para Ler:Ianni, Octavio. Ditadura

e Agricultura. O desenvol-vimento do capitalismo na Amazônia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

A ditadura do Grande Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira,1981. O r i g e n s Agrárias do Estado Brasi-leiro. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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5www.fsa.br Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 2014

Pré-requisitos fundamentaisCapacidade de investigação cien-

tífico-social – observação, pesquisa e análise dos fenômenos sociais (políticos e econômicos) e o interesse pela renovação da sociedade. São esses os atributos de que necessita o Cientista Social, profissional que lida diariamente com os desafios do mundo contemporâneo, seus mean-dros históricos e as perspectivas de sua transformação.

Demanda em altaConforme um estudo do economista

Naercio Menezes Filho, do Insper, nos últimos anos a carreira de Ci-ências Sociais registrou aumento de

CONHECER E TRANSFORMAR O MUNDO. PARTICIPE DESSE DESAFIO

Num mundo em que as transformações econômicas, políticas e culturais têm sido tão constantes e profundas, são as Ciências Sociais que oferecem os meios mais ade-quados para a compreensão teórica das novas condi¬ções humano societárias, sua complexidade e instru-mental teórico para a intervenção transformadora.

salários, enquanto os salários pagos em carreiras com grande número de formados caíram (cf. o jornal Folha de São Paulo, em 08/09/2014, dis-ponível em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/09/1512447)

Além da já consolidada carreira de pesquisador e docente, uma ampla gama de atividades de planejamen-to, consultoria e pesquisas sociais são do universo do profissional de Ciências Sociais: Sociólogo (pro-fissão reconhecida pela Lei 6.888, de 10/12/1980), Cientista Político ou Antropólogo. Há um crescente aumento das oportunidades de em-prego para o profissional da área de Ciências sociais no ramo de projetos

na educação, saúde, transporte e na popularização das iniciativas de de-senvolvimento sustentável.

O curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André prepara o es-tudante para exercer essas atividades, oferecendo o bacharelado integrado à licenciatura, necessária para atuar como professor no ensino médio e fundamental.

Bolsas de estudo na FSAA Fundação Santo André oferece as

seguintes bolsas de estudo: Programa de Extensão Científica

Sabina: 162 bolsas - R$ 750,90 cada.Iniciação Científica/FSA: 40 bol-

sas - R$ 263,00 cada.

PIBID/CAPES - Programa Ins-titucional de Bolsa de Iniciação à Docência: 360 bolsas - R$ 400,00 cada.

IBIC/CNPq - Programa Insti-tucional de Bolsa para Iniciação Científica: 3 bolsas - R$ 360,00 cada.

Monitoria: 237 bolsas Monitoria, no valor de R$ 12,30/hora.

Programa Ciência sem Frontei-ra/CAPES/CNPq: 3 bolsas para estudo em cursos de graduação no exterior (EUA, Europa e Ásia).

FIES – Fundo de Financiamento Estudantil

Campo de TrabalhoPesquisa acadêmica e docência no

ensino superior. Docência no ensino médio e fun-

damental.Análises sociais para órgãos públi-

cos e privados, sindicatos, partidos e ONG’s.

Assessoria política em ONGs, sindicatos, partidos, associações, movimentos sociais, institutos de cultura e memória e meios de co-municação.

Planejamento urbano e desenvol-vimento social.

Pesquisas em institutos privados e públicos como SEADE, DIEESE, IBGE e outros.

Pesquisas de mercado para empre-sas e agências publicitárias.

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 20146 www.colegiadosociais.com

Palestra

A tortura no Brasil não acabou, continua viva e salvaguardada nas

entranhas da legislação do Esta-do. Esta foi a questão discutida na palestra de Felipe Toledo Magane (Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania), intitu-lada “Democracia, impunidade e tortura: Estado democrático de direito ‘abrasileirado’”.

O Brasil não acertou as contas com o passado, portanto não é em vão que é assombrado por ele. Entre tantas coisas penden-tes em nossa historia, temos a tortura enraizada nas ações pu-nitivas do Estado, desde o golpe de 1964 até a sua dissolução, dando entrada formalmente a um Estado democrático de di-reitos, no qual se discursa que a tortura foi varrida do Estado. Mas só para começar a mostrar falácia desse discurso, sequer ocorreu um acerto de contas com aqueles agentes que tortu-raram e os que permitiram que a tortura acontecesse.

Na época da ditadura militar (1964 a 1984) a tortura tinha como parâmetro para seus alvos a questão ideológica, e no âmbito da ideologia não há um estereóti-po físico exato do inimigo. O ini-migo do Estado era todo aquele que se contrapunha aos interesses governamentais-empresariais. Nos tempos atuais, com o su-posto fim da repressão política, os alvos do Estado burguês têm um perfil físico muito claro, a população negra e mulata, que é, na sua grande maioria, moradora da periferia.

Portanto a ideia do inimigo interno, concepção adotada no período da ditadura, está presen-te até os dias de hoje. Ora, somos o único país do mundo que não aboliu a polícia militar, que é a policia da ditadura. Portanto, é preciso ter em mente, como

O professor Wanderson Fábio de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF), compôs a mesa de abertura da Semana de Ciências Sociais 2014, que ocorreu dentre os dias 22 e 27 de setembro e teve como centro discussões acerca dos 50 anos da ditadura instaurada no Brasil em 1964. Tratando das rela-ções entre ditadura e modernização excludente Wanderson destacou que o tão glorificado desenvol-vimento econômico ocorrido no período ditatorial significou para as classes trabalhadoras do campo e da cidade a tragédia do arrocho salarial, da liberação de preços para elevação dos lucros e do agravamento da miséria, enquanto, por outro lado, aumentava consi-deravelmente a concentração da renda e propriedade nas mãos de pouquíssimos grandes proprie-tários, representantes do grande capital nacional e internacional. Sem a imposição de um regime ditatorial, num país que clamava por reformas econômico-sociais e políticas de base visando uma transformação, era pouco prová-vel que a política econômica da ditadura fosse realizada, em razão da resistência popular que lutava por alternativas democráticas para o desenvolvimento do país. Sob o pretexto de que a democracia estaria ameaçada pelo avanço do comunismo, com o qual as for-ças da direita estigmatizavam as propostas das reformas de base, o golpe foi extremamente funcional e adequado aos interesses do grande capital e das oligarquias estaduais que governavam o país e exigiam, para o seu triunfo, a ausência da política, o silenciar de qualquer oposição valendo-se da repressão violenta, da censura e consecutiva perseguição, do exílio, das prisões, do desaparecimento e da morte dos opositores, em especial dos que recorreram à luta armada contra o regime. Em suma, a ditadura empresarial-militar consolidou ainda mais nossa trágica herança colonial e escravista, ao promover

Impunidade e tortura no Brasil contemporâneo

Ditadura, Economia e Modernização Excludente

Matheus H. Bonifácio Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Mônica Silva Dias Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania, Felipe Toledo Magane

Felipe Magane nos mostrou, que a agressão policial à população negra pobre não é simplesmente uma questão de racismo, mas vai além disso, já que essa po-pulação é parte constituinte da classe trabalhadora; a polícia militar tem uma postura de ação “higienizadora” em relação às populações periféricas, já que é treinada para perseguir e re-primir aqueles que representam uma ameaça aos interesses econômicos e políticos empre-sariais.

Como prova disso, basta observarmos quem está na lista negra das autoridades, como os integrantes do MST (Movimen-to dos Trabalhadores Rurais sem Terra), do MTST (Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto) e muitos outros. Todos esses movimentos vão contra os prin-

cípios da constituição burguesa, como por exemplo o MTST, que reivindica o direito justo à mora-dia, e como meio para conquistá--lo ocupam propriedades ociosas no meio urbano. Tem algo mais grave para nossa justiça burguesa que a profanação da santa pro-priedade privada? E, acoplado a isso, a maioria dos militantes desses movimentos é negra. Em suma, a perseguição policial a estas populações é uma perse-guição política e ideológica, e não somente racial.

Para Ler:Magane, Felipe T. “Democracia, impunidade e tortura: o estado democrático de direito ‘abrasilei-rado’”. In Verinotio, nº 17, 2013. Disponível em http://verinotio.org/Verinotio_revistas/n17/magane.pdf

Semana de Ciências Sociais

mais uma rodada da modernização econômica excludente e extrema-mente predatória e ao aperfeiçoar, em sincronia com aquela, a auto-cracia que caracteriza nosso estado republicano, herdeiro da cultura política da Casa Grande. Este tipo de regime bonapartista deixa marcas profundas nas sociedades, extremando as dificuldades para serem superadas, tanto mais quanto a ditadura não foi derrubada, mas passou por um processo de auto--reforma que não transformou as bases sobre as quais se ergueu. Cinquenta anos após o golpe empresarial-militar e quase 30 anos depois do fim da ditadura, a super-exploração do trabalho ainda não foi superada, continua a prática de impunidade aos torturadores, cumplices e seus mandantes, e ainda persiste a obscuridade acerca do “desaparecimento” de centenas de pessoas e das circunstâncias em que foram mortas, sob tortura, cen-tenas de outras pessoas. A tortura, que não foi um mecanismo inven-tado pela ditadura bonapartista estabelecida com o golpe de 1964, mas que se tornou, no período, um recurso institucional promovido pelo próprio Estado, embora não mais institucionalizada, mas sim combatida e contestada sob o amparo da lei nacional e por con-venções internacionais, continua sendo largamente praticada contra pessoas “resguardas” pelo Estado em delegacias e presídios do país. Boa parte da classe política e da sociedade defende bravamente a repressão e a criminalização aos movimentos sociais, assim como a pena de morte e a tortura, com o aporte da grande mídia do país.

Para Ler:Melo, Wanderson F. Institucio-nalização e Modernização: O debate no Senado federal entre Fernando Henrique Cardoso e Roberto Campos. Tese de douto-rado – PUC-SP, 2009. Disponível em http://livros01.livrosgratis.com.br/cp121579.pdf

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7www.fsa.br Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 2014

Palestra

O tema “Operações en-cobertas de Estados na América Latina durante

as ditaduras militares” foi tratado com excelência pela doutoranda da PUC Jussaramar da Silva. As “operações encobertas” caracteri-zam um conjunto de operações se-cretas realizadas durante o período militar e, principalmente, além da já conhecida política de repressão violenta à mobilização subversiva dos trabalhadores frente às injus-tiças desse período, a prática de “importações e exportações” dessa violência. Isso se deu com base no fato de as ditaduras militares na América Latina terem se articulado de tal maneira a unir seu poder para repelir qualquer tipo de ameaça ao plano político econômico vinda dos movimentos dos trabalhadores.

Tornar essas operações objeto de estudo possibilita compreen-der, mesmo sem o acesso pleno à documentação para a pesquisa de forma mais detalhada, como se organizou o aparelho repressivo do Estado, suas alianças e articula-ções internacionais que impediam qualquer tipo de avanço social que não compactuasse com o modelo político ditatorial.

Usando medidas violentas de cassação e trocas clandestinas de prisioneiros e de forças armadas, operações como as intituladas Operação Condor ou a Opera-ção Cristal deixam evidente a organização dos Estados com o objetivo de desenvolver o capital e alavancar a economia valendo--se de meios terríveis através de tais órgãos de repressão.

No dia 22 de setembro, a profes-sora Lúcia Aparecida Valadares Sartório (UFRRJ), compareceu ao CUFSA para enriquecer o debate preparado por professores e alunos sobre a ditadura militar no Brasil.

Com o tema “O projeto educa-cional da ditadura e seus desdo-bramentos”, a professora desen-volveu caloroso debate, causando esclarecimento de pontos-chaves e inquietações na plateia ali presente. Antes de entrar nos pormenores do momento calo-roso devo ressaltar a desfunção política educacional que cumpriu o governo militar no Brasil, posi-tivisticamente separando o homo faber do homo sapiens. Ressalta-do categoricamente a dicotomia entre o fazer e o pensar do projeto educacional militar, a professora recordou a LDB de 1961, que nas suas palavras, “muitos criticam como liberal, mas garante a edu-cação”, e foi negligenciada pelo governo militar. Este retirou da grade curricular matérias ligadas às ciências humanas e acrescen-tou, no lugar delas, matérias que viriam para formar o homem novo, o homem para a indústria - ou seja, o não-homem, a exten-são da máquina. Os militares se basearam no teórico da educação John Dewey. Dewey utilizou categorias marxianas, como a práxis, para reforçar seu pensa-mento.Utilizou? Não, distorceu.

E o projeto dos militares foi vi-torioso, pois mesmo após a queda do regime a LDB de 1990 ainda se baseou no projeto dos milita-res para a educação, ou seja, nas distorções de Dewey.

Obviamente a professora não deixou de refutar tal projeto em momento algum de sua fala, defendeu a necessidade de supe-ração dos resquícios da ditadura na educação. Porém, defendeu uma transformação social pela

Operações encobertas de Estados na AméricaLatina durante as ditaduras militares

Educação e ditadura militar

Giulia Gonçalves Spada e Nicolas Gonçalves Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Victor Monteiro dos Santos Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Jussaramar da Silva, doutoranda da PUC

Lúcia Aparecida Valadares Sartório (UFRRJ)

A Operação Condor consistia no pacto criminal de coordena-ção entre ditaduras e da direita, uma operação elitista de contra--insurgência. Ela integrava vários países da América do Sul, alguns da América Central e tem grande participação dos Estados Unidos, através de órgãos como a CIA e o FBI. Um dos casos mais im-portantes da Operação Condor no Brasil foi o seqüestro de uma família brasileira, com partici-pação de agentes brasileiros e uruguaios. Além disso, operações como esta focavam diretamente na atuação da classe trabalha-dora: através de associações de segurança brasileira em países

fronteiriços, os trabalhadores tinham seus antecedentes revis-tados e toda sua movimentação observada.

Estas operações evidenciam como característica comum o caráter de expressão de uma organização que é própria do Estado capitalista.

Para ver:Condor (Brasil, 2007). Dir.: Ro-berto Mader.Exposição de fotografias: Opera-ção Condor, de João Pina – de 23 de setembro a 7 de dezembro de 2014, no Paço das Artes (Av. da Universidade, 1, Cidade Universi-tária, São Paulo)

Semana de Ciências Sociais

educação que aparentemente se esqueceu que uma transformação social não depende apenas da educação.

O debate esquentou quando a palestrante defendeu a “edu-cação de tempo integral”. Um estudante de arquitetura passou a discutir a disposição e moldes dos prédios escolares que mais se assemelham à prisões/fábricas. Foi questionado se uma socie-dade capitalista pode produzir uma educação para além do capital. Por fim o debate não nos deu tempo para respostas claras. Deixo para o leitor continuar o debate no seu cotidiano repetindo a epígrafe do livro Para Além do Capital, de István Mészáros: “La libertad política política no estará asegurada, mientras no se asegura la libertad espiritual [...] La escuela y el hogar son las dos formidables cárceles del hombre.”

Para Ler:Sartório , Lúcia Ap. V. A trajetória do anti-humanismo pragmatista na educação brasileira. Tese de Doutorado – UFSCAR, 2010. Disponível em http://www.bdtd.ufscar.br/htdocs/tedeSimplificado/tde_arquivos/8/TDE-2010-06-21T144836Z-3111/Publi-co/3048.pdf

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 20148 www.colegiadosociais.com

As fábricas foram um grande motor para atingir os trabalhado-

res e despertar a luta”, disse a profª Fabiana Scoleso (PUC), que tratou das formas de luta dos trabalhadores no período da ditadura militar, esclarecendo que, além das fábricas que ser-viram de motor para despertar a luta dos trabalhadores, houve outras formas de manifestarem seus interesses na luta social, tal como o jornal A Tribuna, que foi o maior meio de comunicação entre sindicatos.

Fabiana Scoleso relacionou as greves do ABC dos anos 1978-1980 com o chamado “milagre brasileiro” e com o papel da mídia, enfatizando os modos de reorganização do movimento dos trabalhadores para a greve.

Durante a ditadura, houve investimentos na infraestrutura do país a fim de retornar ao tipo de desenvolvimento que havia sido posto em cheque pelos movimentos populares durante o governo de João Goulart, e combater a inflação, abrindo as portas para a entrada de capitais externos, especialmente nas indústrias de bens de consumo duráveis. A “injeção salvadora” foi na indústria pesada, como na siderurgia, construção naval, petroquímica e hidrelétrica. Como resultado, houve um crescente aumento na produção e consumo de bens duráveis no Brasil chegando a 23,6% a.a, e de capital chegou a 18,1%, proporcionando, também, um crescimento considerável das empresas estatais; ou seja, o ca-pital investido nessas áreas e nas indústrias de bens de consumo duráveis obteve grandes lucros.

Mas qual classe social foi a maior beneficiária desse cresci-mento, se ainda hoje temos, por exemplo, a notícia de que a rede

As greves do ABC de 1978-80: marcos na luta contra a ditaduraFernanda Jeane Leonel Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Movimento grevista, ainda liderado por Lula, levou à paralisação de 150 a 200 mil trabalhadores

responsável pelo tratamento e distribuição de água de São Paulo usava o lucro para investir na Bolsa de Valores de Nova York e não se preocupou em investir em melhorias da rede, o que contri-buiu para a crise de água atual?

Com o dito “milagre econômi-co”, a pobreza não recuou, e nem poderia, já que a acumulação de capital foi obtida com a ampliação do arrocho salarial. Pelo contrário, a miséria aumentou consideravel-mente. Foi essa a causa central das mobilizações e greves iniciadas no ABC em 1978. A forte estrutura re-pressiva, que havia desmantelado a anterior organização operária e continuava perseguindo, torturan-do e matando os que se opunham à ditadura, não impediu que as greves fossem retomadas.

Em 1978, mais de 3 mil trabalha-dores paralisaram a produção na Saab-Scania, fábrica de caminhões em São Bernardo do Campo, rei-vindicando reposição e aumento salarial, reivindicação que não se restringiu a esta fábrica, levando a greve para Ford, Mercedes-Benz e Volkswagen. Apesar de não

alcançarem os índices de reajuste reivindicados, foram conquistados aumentos salariais superiores aos que os empregadores inicialmente ofereceram.

No ano seguinte, em 1979, as gre-ves metalúrgicas atingiram 170.000 em todo o estado de São Paulo. A repressão foi intensa e muito violenta, e o governo decretou a intervenção nos sindicatos. A con-dução do processo pela liderança sindical, com destaque para Lula, levou à recuperação dos sindicatos e conquistas salariais.

Em 1980, o movimento grevista, ainda liderado por Lula, levou à paralisação de 150 a 200 mil tra-balhadores. E novamente houve repressão violenta, com cavalaria e tropa de choque, intervenção nos sindicatos e prisão das lideranças sindicais.

O assim denominado “novo sin-dicalismo” se caracterizou por uma organização mais independente, de tal modo que, como afirmou Fabiana Scoleso, os trabalhadores passaram a sentir-se parte do mo-vimento que crescia e se fortalecia cada vez mais. Como resultado,

ao invés de haver um único líder, cada trabalhador envolvido se sentia um líder. Assim, a prisão de uma liderança não estrangulava o movimento. Além das conquistas salariais, a organização dos traba-lhadores culminou no surgimento da CUT e do PT.

Hoje a ditadura acabou, mas como explicar a continuidade da tortura, as agressões e outros abusos de poder principalmente nas zonas periféricas das cidades, nas quais há maior concentração de trabalhadores pobres e de negros? E a polícia violenta e corrupta que continua infringindo os direitos humanos com a desculpa de com-bater a criminalidade e garantir “nossa segurança”? A história dos movimentos sindicais e da reação dos governos militares nos dá pistas para entender as razões da militarização da polícia e da continuidade da tortura e repressão, praticadas principalmente contra a classe trabalhadora.

Precisamos refletir em nossa or-ganização enquanto trabalhadores na luta por nossos direitos, pois a burguesia está muito bem esclare-

cida, unida e preparada para agir contra qualquer tipo de ato contra seu governo. Basta tomar como exemplo operações realizadas no Rio de Janeiro com os preparativos da Copa, as manifestações que ocorreram recentemente, desde junho de 2013, as desocupações de imóveis ocupados por movimentos de moradia etc.

Apesar de estarmos fragmenta-dos, o que nos enfraquece na luta, recuperar a memória das lutas da classe trabalhadora, estar em alerta e comunicar-se já é uma forma de resistir.

Para saber mais:O ABC da Greve (Brasil, 1979). Dir.: Leon HirszmanEles não usam Black-tie (Brasil, 1981). Dir.: Leon HirszmanScoleso, F. “As formas políticas e organizacionais do ABC pau-lista 36 anos depois das primeiras manifestações: rememorar nunca é demais”. In Projeto História, São Paulo, n. 46, 2013. Disponí-vel em http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFi-le/17145/13754

PalestraSemana de Ciências Sociais

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9www.fsa.br Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 2014

PalestraSemana de Ciências Sociais

Na última sexta feira de setembro desse ano tivemos o privilégio

de receber a ex-aluna da Fun-dação Santo André Aline de Vasconcelos para ministrar uma palestra cujo tema foi “João Goulart e as Reformas de Base” na Semana de Ciências Sociais que acontece anualmente nessa instituição.

Aline com desenvoltura es-clareceu os pontos centrais da política de Reforma de Base de João Goulart, desmistificando a ideia de que tais reformas tivessem caráter comunista, ideia difundida pela oposição de direita, composta principalmen-te por latifundiários e burgueses ligados ao capital estrangeiro.

Em uma breve explanação Ali-ne resume a carreira política de João Goulart. Jango, como foi conhecido João Goulart, entrou na política convidado pelo seu conterrâneo e amigo Getúlio Vargas; membro do PTB (Par-tido Trabalhista Brasileiro), assumiu a presidência de 1961 a 1964 após a renúncia do então presidente Jânio Quadros.

O que marcou o governo de João Goulart foi o que ficou conhecido como as Reformas de Base. Embora adotasse algumas medidas de política econômica conservadoras, as Reformas de Base, ao contrário, buscavam dar continuidade, radicalizando-o, ao projeto varguista, enfatizando a preo-cupação principalmente com a classe trabalhadora e configu-rando algo como um getulismo de massas.

Para a maior parte da população brasileira à época (que alcançava cerca de 80 milhões), as propos-tas de Jango eram bem aceitas; contudo, a menor parte da po-pulação (a oposição, constituída por latifundários e pela burguesia

Reformas Fora da Pauta: Jango e a continuidade do projeto de Getúlio VargasRicardo A. de Melo Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

João Goulart entrou na política convidado pelo seu conterrâneo e amigo Getúlio Vargas

industrial, nacional e estrangeira) afirmava que as reformas eram demagógicas e, numa tentativa de desqualificar o projeto de Jango, difunde que se tratava de uma improvisação de última hora, como condição de se man-ter no poder. Todavia quando se analisa historicamente a carreira de Jango, como demonstrou a palestrante, percebe-se que esse viés reformador, voltado para a classe trabalhadora, está presente desde o início de sua trajetória, sendo fruto da ideologia do PTB.

A palestrante esclareceu, assim, que, ao analisar sua carreira política , fica evidente que as Reformas de Base já estavam nos planos de João Goulart desde a época em que foi ministro do Trabalho do então presidente Getúlio Vargas; não se tratava, portato, de uma aventura política, era um plano já amadurecido.

Para Jango as Reformas de Base eram necessárias como meio de

eliminar a miséria, de reduzir a desigualdade social e gerar justiça social, no intuito de garantir a paz social. João Goulart acreditava que os movimentos sociais, como as Ligas Camponesas, o movimento sindical etc., que estavam em as-censão no período pré-64, seriam amenizados com a realização das Reformas de Base, que atendiam exatamente os responsáveis pelos movimentos, a classe trabalhadora.

Jango defendia as Reformas de Base também como uma neces-sidade técnica econômica no de-senvolvimento brasileiro. Para ele, incluir economicamente a massa trabalhadora fortaleceria a indústria nacional. Jango estava trabalhando para reverter a já acentuada su-bordinação do desenvolvimento brasileiro ao capital estrangeiro, o que gerava uma concentração de renda, construída no governo de Juscelino Kubitscheck . Diminuir a desigualdade social através de uma melhor distribuição de renda

e manter a paz social era um dos sonhos de João Goulart.

Entre as Reformas de Base, as principais eram a eleitoral, que consistia em estender o sufrágio para todos os cidadãos brasileiros maiores de dezoito anos (incluindo analfabetos e sargentos), e a Refor-ma Agrária, a que mais repercutiu em seu governo.

Jango pretendia realizá-la dentro da lei, o que exigia a aprovação de uma emenda constitucional que permitisse a desapropriação de terras com pagamento em títulos da dívida pública (e não pagamento prévio em dinheiro). Além disso, a reforma seria baseada nas necessi-dades nacionais específicas, com o intuito de aumentar a produtivida-de agrícola e consequentemente fortalecer a indústria nacional.

Essa proposta não só gerou muita polêmica, como uma série de acu-sações infundadas, entre as quais a de que Jango desrespeitaria a constituição.

Por fim, a Reforma Agraria foi barrada por um legislativo conser-vador e pela burguesia.

O plano de Reformas de Base de João Goulart, tão ausente hoje nas discussões políticas em época de eleições, faz falta na pauta do dia. A discussão a respeito das circunstân-cias da morte de Jango, levantada nos últimos dias pela sua família, que pediu a exumação de seu cor-po, poderia ser uma oportunidade para trazer à tona novamente o de-bate sobre aquelas reformas. Jango de fato morreu, mas as Reformas de Base devem ressuscitar o mais breve possível.

Para saber mais:Jango (Brasil, 1984). Dir.: Sílvio Tendler.Silva, Aline V. O Projeto Nacio-nalista de João Goulart: Análise dos Discursos de 1961 a 1964. Dissertação de Mestrado – PUC--SP, 2012. Disponível em http://www.sapientia.pucsp.br

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 201410 www.colegiadosociais.com

Semana de Ciências Sociais

Na penúltima conferência da semana de Ciências Sociais de 2014, o jurista

Rodolfo Costa Machado discorreu acerca da participação das figuras do direito no golpe civil-militar de 1964, em especial aquelas ligadas ao Largo São Francisco (faculdade de Direito da USP) que atuavam no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), em especial o juris-ta Alfredo Buzaid, que continua sendo amplamente estudado nas diversas faculdades de direito e considerado como grande teórico do código de processo civil; no entanto, participou ativamente tanto na preparação do golpe militar quanto durante a ditadura, chegando a ser ministro da Justiça durante o governo Médici.

Os juristas do Largo São Fran-cisco já apareciam de forma ativa na conspiração direitista anterior ao golpe. Eles se juntam ao Ipes no ano mesmo de seu surgimento, 1961. Rodolfo chamou a atenção para a descoberta de um curso de pós-graduação no Direito da USP, chamado Marxismo e Cris-tianismo, ministrado em 1962, que buscava criticar o marxismo, expondo todo o itinerário marxiano de forma vulgarizada, colocando-o como um amálgama de Hegel e Feuerbach para explicar seu ateís-mo. Em janeiro de 1963 ocorre um congresso, patrocinado pelo jornal Folha de São Paulo, do qual sai uma lista de apontamentos contra as reformas de base. Esses aponta-mentos são enviados ao Congresso Nacional, em uma tentativa de blo-quear a aprovação dessas reformas. A participação dos juristas do Ipes e do Largo São Francisco é ativa.

Com a vitória do golpe militar, são basicamente os juristas do complexo Ipes e Ibad que irão dar a formatação legal deste golpe. Neste primeiro momento da ditadura, com Castelo Branco à frente, os juristas que ficaram encarregados de dar a roupagem legal ao golpe foram dois mineiros: Francisco Campos e seu secretário Carlos Medeiro Silva. Com a ascensão

O entendimento do golpe mi-litar de 1964 no Brasil não pode prescindir do conhecimento dos ideólogos que participaram de sua preparação e sustentação. Entre eles, destaca-se Golbery do Couto e Silva, tema da palestra “Golbery, ideólogo do bonapar-tismo: modernização excludente e segurança nacional”, da profª. Vânia Noeli F. Assunção, gradua-da em Ciências Sociais pela FSA e atualmente professora da UFF.

Golbery do Couto e Silva foi ge-neral e colaborou com a demissão do ministro João Goulart. Escre-veu o manifesto dos coronéis e propôs a solução parlamentarista na crise de 1961, ou seja, teve intensa participação na reorga-nização da política no Brasil, bem como da auto-reforma do regime ditatorial, tendo sido o braço direito de Ernesto Geisel nesse processo.

Além da colaboração prática com a burguesia brasileira, Gol-bery construiu uma ideologia conservadora voltada a apreender e responder aos problemas brasi-leiros. Uma característica central de sua ideologia conservadora é o anticomunismo.

Golbery acreditava que a de-mocracia estava em declínio e que não tinha mais capacidade de inovação. Considera que o libe-ralismo apático e falido não está mais adequado à nossa época e a um país subdesenvolvido, mas também rejeitava o totalitarismo, defendendo uma democracia menos concessora de direitos, menos partidária e mais “parti-cipativa”.

Importante ressaltar aqui que, com esse termo, Golbery se refere aos partidos e não aos movimentos sociais. Ele consi-derava que os partidos deveriam participar no Congresso e discutir seus interesses. Era uma questão de legitimidade, de comprometi-mento com o sistema.

A professora deixou claro que a principal preocupação de Gol-bery era com a segurança e o bem-estar, mantendo a segurança

Alfredo Buzaid e a negação da tortura

Golbery do Couto e Silva, ideólogo do bonapartismo

Ricardo A. de Melo Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Fernanda Jeane Leonel Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Foi Alfredo Buzaid quem delegou a feitura do código civil para Miguel Reale em 1970

da linha dura, os juristas que a compõem são todos do Largo São Francisco, com destaque para Gama e Silva (primo de Costa e Silva), que irá chamar o jurista Alfredo Buzaid para realizar uma varredura no emaranhado legisla-tivo existente naquele momento. É importante ressaltar que foi Alfre-do Buzaid quem delegou a feitura do código civil para Miguel Reale em 1970, sendo que este código entrou em vigor apenas em 2002, ressalta Rodolfo.

Em outubro de 1969, durante o governo ditatorial de Emílio Gar-rastazu Médici, Alfredo Buzaid é nomeado ministro da Justiça e lá fica até 1974. Logo ao assumir o cargo já começa a negar a exis-tência de tortura. Fato exposto por Rodolfo ao citar a capa da revista Veja, na qual Alfredo Buzaid declarava que o então presidente Médici não seria conivente com tortura de nenhuma natureza. E este “desmentido oficial” será encabeçado por Buzaid durante todo o período em que esteve à frente do ministério da Justiça, indo a todos os meios de comunicação nacionais e internacionais negar a existência de torturas no Brasil.

Em 1970 é publicado, a partir das denúncias de torturas dos exilados, o livro negro da ditadura, tanto no exterior quanto, de forma clandestina, no Brasil. Neste livro foram descritos os principais casos de tortura até então registrados na ditadura civil-militar brasileira. Em um ato de contrainformação, Buzaid monta o livro branco da

ditadura negando as acusações de tortura, prisões políticas etc., e iden-tificando as ações realizadas contra a ditadura como ações terroristas. Entretanto, este “livro branco” nunca foi publicado. Por decisão do Itamaraty e do ministério da Justiça, foi arquivado por chamar muita atenção às denuncias contra a ditadura.

Era por esses caminhos que pas-sava o negacionismo oficial da ditadura militar, de que Alfredo Buzaid foi um ativo porta-voz. Ele presidiu, ainda, o Conselho de Defesa de Direitos da Pessoa Humana, criado em março de 1964 por sugestão da ONU; nele Buzaid arquiva várias denuncias feitas contra a ditadura, dentre as quais se destacam o encerramento da in-vestigação do genocídio indígena, o caso Rubens Paiva e a investigação do Esquadrão da Morte.

Por fim, é valido ressaltar a im-portância da escavação histórica dos personagens ocultos da dita-dura militar, cuja face civil fica mais evidente a cada nova inves-tigação. Mais especificamente, evidencia-se a participação do empresariado e de intelectuais vinculados a este, que não só apoiaram as barbáries cometi-das durante esse período como também participaram de forma ativa na contrainformação, na contra-inteligência e no nega-cionismo oficial.

Para Ler:Arns, Paulo Evaristo. Brasil: Nun-ca Mais. São Paulo: Vozes.

Palestra

em primeiro lugar, de tal maneira que houvesse equilíbrio entre ambos.

Num panorama geral, Golbery pretendia defender os objetivos nacionais, entendendo que a nação é o Estado, e o povo é a nação. A segurança seria a porta de entrada para o desenvolvimento; sem ela, nenhum desenvolvimento seria possível. Daí ter tomado como principal alvo de críticas o libera-lismo que, para ele, não propor-cionava mais desenvolvimento al-gum. Segundo ele, o vínculo com os EUA seria uma ponte para o desenvolvimento brasileiro; mes-mo com tal vínculo, seria possível manter a autonomia do país, já que a iniciativa da união teria sido do Brasil. Apesar de defender tal vin-culação, não lhe faltavam críticas a este império por não reconhecer a capacidade brasileira. A seu ver, o Brasil era capaz de ajudar os EUA. Participando da mesa com a profª. Vânia, o ex-combatente da ALN Manoel Ciryllo relata que foi Gol-bery quem inaugurou a concepção geopolítica que defendia que o Brasil deveria tirar proveito de sua situação geográfica politicamente privilegiada, usando-a para promo-ver aquela aliança com os EUA de sorte a garantir o desenvolvimento do país. Ciryllo destaca ainda que, em 1963, Golbery afastou-se do exército para se dedicar a uma organização que tinha como meta difundir suas ideias, contribuindo para a preparação para o golpe que se desencadeou em 1964.

Retomando o anticomunis-mo presente no pensamento de Golbery, Ciryllo mostra que o pretexto de “ameaça comunista”, apresentado para o golpe, é falso, tendo sido sempre utilizado em diferentes momentos.

Para Ler:Assunção, Vânia Noeli F. O Satânico Doutor Go: A ideologia bonapartista de Golbery do Couto e Silva. Dissertação de Mestrado – PUC, 1999. Disponível em http://www.verinotio.org/di/di17_gol-bery.pdf

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O combate armado du-rante o período da di-tadura militar é algo

que merece atenção. As atua-ções dos combatentes armados da ditadura, que lutaram pela democracia no país, foi o tema debatido pelo ex-militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Manoel Cirilo, que dei-xou como legado para todos que assistiram sua palestra inúmeras histórias e diversos fatos que muitos desconhe-ciam, dentre estes a partici-pação do próprio palestrante na célebre ação de captura do embaixador americano Char-les Burke Elbrick.

A luta armada é uma ques-tão que sempre gera debates no âmbito da esquerda, tanto nacional quanto internacio-nal, debate que nos leva à seguinte indagação: é pos-sível construir uma nova sociedade por via pacífica? Houve (e até hoje há) na esquerda aqueles que acham que sim, por exemplo, duran-te a ditadura militar, o Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro. Porém, há tam-bém aqueles que acreditam que não é possível chegar a uma nova sociedade por vias pacíficas, que só seria possível construir essa nova sociedade por meio de uma

A luta armada no combate à ditadura militarEuller Felix da Silva Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Presos políticos libertados em troca do embaixador americano Charles Elbrick (1969)

Voltado ao aprimoramento da formação de cientistas sociais e profissionais vinculados a áreas correlatas, o curso visa a atender demandas relativas às atividades de pesquisa, docência e outras formas de atuação social e política, aprofundan-do o conhecimento dos dilemas contemporâneos da existência humano-societária e ampliando a capacidade de discernir alternativas. O curso conta com professores doutores em diferentes campos (sociologia, política, antropologia, história,

filosofia, letras), oriundos tanto do Centro Universitário Fundação Santo André quanto de outras universidades.

Mais informações em www.fsa.br

Pós-Graduação: Ciências SociaisEconomia-mundo, Arte e Sociedade

luta armada travada contra a burguesia, contras as classes dominantes da sociedade; exemplos de organizações que assumiram essa perspec-tiva são a Aliança Libertadora Nacional, o Movimento Re-volucionário 8 de outubro, e também a Vanguarda Popular Revolucionária, grupos que, durante a ditadura militar brasileira, optaram pela luta armada para combatê-la e assim conseguir a democracia para o país.

A luta armada era consti-tuída por assaltos a quartéis para conseguir as armas e também a bancos para con-

seguir dinheiro tanto para a subsistência dos combatentes quanto para conseguir mais armas; é necessário entender-mos isto, pois muitas ideias a respeito da luta armada no Brasil são ainda bastante dis-torcidas, como, por exemplo, a suposição, difundida pela própria ditadura, de que a luta armada era financiada por países socialistas, como Cuba e a União Soviética, quando na verdade os mili-tantes dependiam de sua pró-pria ação para conseguir os meios necessários à sua luta.

O fato de algumas organi-zações da esquerda brasileira

terem optado por este modo de luta levou os comandan-tes da ditadura a intensificar a repressão, com a instau-ração do Ato Institucional nº. 5, que tirou dos cidadãos brasileiros seus direitos civis e políticos, levando muitos combatentes, armados ou não, aos porões da ditadura para serem torturados e mor-tos pelos militares.

Tor turas e assass ina tos cujos autores materiais e intelectuais até hoje ainda não foram julgados e muito menos punidos pelas atroci-dades que cometeram, graças à Lei da Anistia, promulgada

durante o período de transi-ção da ditadura militar para a democracia, a qual eximeos torturadores de seus crimes. Esta lei é considerada por muitos nos dias de hoje como algo que foi bom tanto para os militares quanto para os militantes e organizações que optaram pela luta ar-mada; aqueles que adotam tal avaliação confundem (conscientemente ou não) a violência do opressor com a resistência do oprimido.

Hoje mais do que nunca precisamos estudar e conhe-cer realmente o que foi o período da ditadura militar. Hoje mais do que nunca a frase “lembrar é resistir”, que está cravada nas paredes do Memorial da Resistência, mostra toda a sua importân-cia. Num momento em que as grandes mídias e os gover-nantes fecham os olhos para o passado, um dos nossos atos mais revolucionários é lembrar e fazer vir à tona o passado sombrio deste país.

Para Ler:Chasin, J. A miséria brasilei-ra: 1964 – 1994 - Do golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominen, 2001.Gorender, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Expres-são Popular.

Semana de Ciências Sociais Palestra

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 201412 www.colegiadosociais.com

O CINEMA E AS CIENCIAS SOCIAISMábia Oliveira Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André

Buscando ampliar o debate e o acesso ao cinema, além de promover atividades de extensão e uma maior interação entre o

espaço acadêmico e o público externo, os profes-sores e estudantes do curso de Ciências Sociais promoveram, no primeiro semestre de 2014, o Cine AbertaMente – exibição de filmes seguida de debates conduzidos por pesquisadores. A pro-gramação abarcou o Cinema e a Luta de Classes na América Latina, priorizando fatos históricos que perpassaram as décadas de 60 e 70 em países como o Uruguai, Cuba e Chile, esboçando, assim, o contexto histórico em que foi perpetrado o golpe militar de 1964 no Brasil, tema debatido no se-gundo semestre, na Semana de Ciências Sociais.

Continua >>>

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13www.fsa.br Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 2014

Inaugurando o Cine Aberta-Mente, foi exibido em 29/03 A Batalha do Chile, Parte II – O Golpe de Estado (Chile, 1975, dir.: Patrício Guzmán).

A debatedora, profª. Vera Lúcia Vieira, da PUC, traçou um perfil da ditadura chilena com base neste documentário político, considerado um dos melhores e mais completos do mundo, trazendo para a discussão toda problemática exposta por Patrício Guzmán, acrescida com detalhes de fatos que permearam a histó-ria do país durante a década de 1970. A partir dos esforços do presidente democraticamente eleito, Salvador Allende, em levar a bom termo a primeira tentativa de transição democrática para o socialismo na América Latina, a oposição, nucleada pela extrema--direita, ganha corpo e se organiza (respaldada pelo governo norte--americano), preparando uma reação violenta e promovendo as brutais consequências do golpe de estado que, em setembro de 1973, instaurou a ditadura militar do general Augusto Pinochet. Nas ruas o povo sofre com racio-namento de energia e alimentos, fruto dos boicotes promovido pelos setores de direita ao go-verno, e milhares saem às ruas aos gritos de “Allende, Allende o povo te defende”. Uma greve de transportes promovida pelos setores reacionários paralisa o país e abre caminho para a violên-cia. Tentando assumir o controle da situação, em 11 de setembro de 1973 Allende convoca um plebiscito para o ano seguinte. Nesse mesmo dia, o Palácio de la

Moneda é bombardeado. Em 26/04, foi a vez da exibi-

ção de Estado de Sítio (Fran-ça/Alemanha/Itália, 1972, dir.: Costa-Gavras). O debatedor, prof. Carlos César Almendra (FSA), começou desenhando o cenário político do Uruguai e as suces-sões presidenciais até Mujica em 2009 (ex-Tupamaro), com destaque para os partidos que se desenvolveram simultaneamente ao próprio país: o Partido Co-lorado e o Partido Nacional (ou Blanco). A narrativa do filme, a partir do sequestro e execução pelos Tupamaros (Movimento de Liberação Nacional), em 10

de agosto de 1970, do agente americano Dan Mitrione, mentor e difusor da tortura nos órgãos mi-litares, e do embaixador brasileiro, vai entrelaçar as diversas situações desencadeadas após o episódio, e as ações praticadas tanto pela es-querda como pela direita (governo do Uruguai com apoio do governo estadunidense), num dos períodos mais tumultuados da história dos países sul-americanos. Também foram destaques no debate a posi-ção do governo uruguaio frente à necessidade de manter o controle sobre os grupos de resistência, os movimentos clandestinos que se organizavam, a guerra polí-

tica travada no parlamento e o surgimento do Movimento 26 de Março (26M), considerado o “braço político dos Tupamaros”, organização que atuou no Uru-guai entre os anos de 1960 a 1970. Cabe aqui salientar que, a partir do aumento da adesão ao 26M por amplos setores da população, a direção dos Tupamaros toma a decisão de criar um movimento político que se expressasse den-tro da legalidade. Importante ressaltar também que o nome Tupamaros foi uma homenagem ao inca Túpac Amaru II, líder da última grande rebelião indígena, executado pelos espanhóis em 1781.

O filme de Costa-Gavras se desenvolve como uma fotogra-fia das ditaduras implantadas na América Latina, seu modus operandi, a posição dos Estados Unidos como peça essencial no fornecimento de recursos financeiros e bélicos, e a reação de grupos que lutavam contra o Estado militarizado.

Che (EUA/Espanha, 2008, dir.: Steven Soderbergh), filme exibido em maio, mostra a as-censão de Ernesto Che Guevara na Revolução Cubana, colocando na tela os episódios narrados em seus diários, abarcando o período que vai do primeiro encontro com Fidel Castro (1955) até a queda do ditador Fulgêncio Batista (1959).

O debatedor, prof. Guilherme Sávio Marchi, traçou breve his-

tórico das condições enfrentadas por Cuba naquele período (de colônia espanhola a colônia es-tadunidense), destacando a fraca atividade econômica baseada primordialmente na produção sazonal de açúcar e tabaco, além do níquel, mas só em tempo de guerra. Nesse contexto de explo-ração e subjugação, a Emenda Platt, que em termos gerais servia como um dispositivo legal para que os EUA interviessem na ilha sempre que seus interesses econômicos e políticos na região fossem ameaçados, selou a total dependência da ilha ao governo norte-americano, o mesmo que subsidiou o golpe militar que co-locou Fulgêncio Batista no poder em 1952. Do lado da resistência, o Movimento 26 de Julho (M-26--J), fundado em 1954 por Fidel Castro e seus companheiros, foi um instrumento importante na luta contra o regime que passou a vigorar em Cuba após 1952.

Destacando o humanismo de Guevara, como um “humanis-mo de perspectiva da classe operária”, o debatedor concluiu afirmando que após a conquista do poder foram realizadas ba-sicamente as reformas agrária, urbana e nas áreas de educação e saúde. As nacionalizações e estatizações, abarcando mais de 90% das indústrias, criaram um monopólio estatal, mas era ne-cessário industrializar Cuba, uma sociedade ainda deficitária tanto nas questões materiais como nas subjetivas. E naturalmente o novo homem preconizado pelos revolu-cionários de fato nunca chegou a florir, apesar das oposições e críti-cas de Che Guevara às orientações contidas no Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS stalinizada, rechaçando a tese do etapismo (segundo a qual toda transformação social obedece a certas etapas de desenvolvimen-to) e do comunismo como um fim inevitável. Marchi concluiu que a Revolução Cubana foi parcial, inconclusa, já que, embora tenha desenvolvido relações de trabalho mais humanas, não aboliu a divi-são social do trabalho, e assim não alcançou a emancipação.

Para Ler:Castro, Fidel. A história me absolverá. São Paulo: Expres-são Popular. Cunha, Luiz Cláudio. Opera-ção Condor: O Sequestro dos Uruguaios. São Paulo: L&PM.

Estado de Sítio (França/Alemanha/Itália, 1972, dir.: Costa-Gavras)

Milhares saem às ruas aos gritos de “Allende, Allende o povo te defende”

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Numa manhã, ao desper-tar de sonhos inquietan-tes, Gregor Samsa deu

por si na cama transformado num gigantesco inseto”. Por conta desta frase do livro A

Realismo Fantástico no Brasil nas obras de José Jacinto VeigaLívia Xavier Socióloga formada pela Fundação Santo André

metamorfose, de Franz Kafka, o colombiano Gabriel Garcia Marques (1928-2014) decidiu que seria um escritor. Ficou bo-quiaberto com a possibilidade de transmutação do que poderia fazer com suas personagens.

Porém, a maior influência literária que obteve

foram as histórias contadas por seus grandes mestres: seus avós ma-ternos. Tome-

- s e c o m o e x e m p l o : O coronel M á r q u e z apresentou o gelo para G a r c i a M á r q u e z quando era

p e q u e n o , tal como José

Arcadio Buen-dia faz com seu filho Aureliano, parte marcante da primeira fase do

romance Cem anos de Solidão (1967).

O romance narra a história

dos Buendia em sete gerações – “a estirpe de solitários para a qual não será dada uma segunda oportunidade sobre a terra”. O coronel era marido de Tranqui-lina, a avó que encheu o neto Gabriel das mais belas histórias. Musa inspiradora da mais solitá-ria das personagens do referido livro: Úrsula. Gabriel costuma-va dizer que todo grande escritor sempre está a escrever o mesmo livro. Perguntaram-lhe “qual seria o seu?” A resposta foi “O livro da solidão”.Gabriel Garcia Marquez foi um dos mestres fundadores do realismo fantástico na América Latina, movimento literário no qual coexistem fantasia e realidade, cujos textos pos-suem elementos inverossímeis, imaginários, distantes da rea-lidade dos homens. O escritor argentino Jorge Luis Borges defende que “há uma causalida-de de caráter mágico ligando os acontecimentos no decorrer de uma narrativa deste tipo”. Este movimento literário apresenta uma capacidade de apreensão do real muito significativa. Os elementos sobrenaturais seriam uma estratégia para driblar a censura, institucionalizada ou

não, que certos temas so-friam à época que suas

obras foram escri-tas. O segredo

do realismo fantásti-

co,

de acordo com João de Melo, “reside em uma prática ficcio-nal simples e simultaneamente deslumbrada, recorrendo aos grandes temas sociais, sem dúvida, mas envolvendo as re-alidades descritas numa auréola de sonhos, crenças e rituais len-dários que bem podem estar na origem de uma nova mitologia literária”.Esta nova vanguarda literária obteve reconhecimento em todo o globo. Aqui no Brasil não foi diferente. O primeiro livro fan-tástico em terras tupiniquins foi o Ex Mágico de Murilo Rubião; após doze anos José Jacinto Vei-ga estreia no circulo literário em 1959 com seu livro de contos Os Cavalinhos de Platiplanto. Os primeiros romances de J.J. Veiga – A Hora dos Ruminantes e A Sombra dos Reis Barbudos (escritos nos anos de chumbo da ditadura militar) demonstraram como aparecem de forma cons-tante as relações de poder entre os personagens, bem como o ab-surdo instaurado ou decorrente dessas relações. Sua literatura nos traz elementos vivos da problemática das ditaduras e do estupro do capital sofrido pelos países latino-americanos, compondo o insólito político de Veiga. “De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, turvos, quebrados, descendo, subindo dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, se-parando amigos, tapando vistas,

escurecendo, abafando. Até hoje não sabemos se eles

foram construídos aí mesmo nos luga-res ou trazidos de

longe já prontos fincados aí”.

Pensando na história do Brasil e no percurso

político que atravessava o país, Veiga nos coloca frente a frente com as proibições impostas pelo capital. Por termos de viver como manda as companhias, com regras de convivência imposta por elas. O absurdo instaurado em sua narrativa, como a presença dos muros, a domesticação dos urubus, até mesmo a proibição do riso, são para demostrar como nos-sa realidade é fantástica. Em entrevista concedida ao estu-dioso Dantas, Veiga diz que “o lado que nos coube habitar da perspectiva europeia, parece mesmo fantástico (...) E para eles esse nosso lado do mundo é uma surpresa porque eles já se esqueceram o que se passou por lá em outras épocas. Aqui temos leprosos e leprosários, lá eles só existem nas histórias do passado (...) por isso nos olham e pensam que vivemos em um mundo fantástico. A literatura possui este papel de desmistificar as relações transformando-as em “causos” concretos – apesar do movi-mento literário tratado acima trabalhar com elementos oní-ricos, não deixa de apresentar “o lado que nos coube habitar”. Além disso, é uma arte que tem como pressuposto guardar as histórias da humanidade, para a humanidade. As belezas da palavra. Que nos encantam, e muitas vezes nos revoltam. Para que todas as gentes possam conhecê-las e se apropriarem da história dos seus. Mesmo que seja os seus do outro lado do mundo.

Para Ler:Marquez, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão. Rio de Janeiro: Record, 2014.Veiga, José J. A Hora dos Rumi-nantes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

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15www.fsa.br Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 2014

Em 1938 Eric Williams, nascido na colônia britâ-nica de Trinidad e Tobago,

obteve seu doutorado pela Uni-versidade de Oxford, com a tese intitulada The economic aspecto of the abolition of West Indian slave trade and slavery (O aspecto econômico da abolição do tráfico de escravos e da escravidão nas Índias Ocidentais). No mesmo ano em que Williams defendeu sua tese foi publicada a obra de C. L. R. James, Os jacobinos negros, em Londres. Tal obra estimulou o jovem historiador, como aponta Marquese no prefácio da edição publicada no Brasil em 2012, a rever seu projeto, acrescentando três novos eixos: primeiro, o racis-mo como produto da escravidão e não o contrário, estando o racismo a serviço da exploração de classe; segundo, o com-plexo escravista atlântico como elemento central para o acúmulo de ca-pitais que possibilitou a formação do capitalismo industrial na Inglaterra; terceiro, a contribuição da resistência dos escra-vizados para a derrubada da escravidão.

A tese de doutorado defendida em 1938 em Oxford, após a revisão inspirada pela obra de C. L. R. Ja-mes publicada no mesmo ano, re-sultou em um dos mais fundamen-tais estudos sobre a escravidão nas Américas. Nessa obra o historiador trinidadiano realiza um estudo eco-nômico da Inglaterra no período de acumulação primeira do capital, e busca nesse processo determinar qual foi a contribuição do com-plexo escravista moderno para o desenvolvimento do capitalismo britânico, assim como o papel do capitalismo industrial maduro na destruição do sistema escravista. E concluirá que a Revolução Indus-trial na Grã-Bretanha foi financiada com os grandes lucros oriundos do trabalho compulsório no “novo

O racismo enquanto categoria econômica, segundo Eric WilliamsTalita Moura Paulino Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André

mundo”. Isto é, o trabalho escravo na colônia sustentou o avanço do trabalho “livre” na metrópole. De modo que o comércio escra-vista colonial forneceu, além das matérias-primas das manufaturas e refinarias inglesas do período mer-cantilista, também o mercado onde as bugigangas manufaturadas eram trocadas com alta margem de lucro na costa africana por pessoas, que, por sua vez, eram trocadas com mais lucros nas grandes uni-dades produtivas monocultoras do continente americano por mais matérias-primas.

E o triângulo comercial se repe-tiu por séculos, garantindo altos lucros aos senhores do comércio ultramarino. Porém, com o avanço das capacidades produtivas esti-muladas pelo comercio colonial,

surge a necessidade da ampliação dos mercados por onde esses pro-dutos possam escoar. Se até então a produção estava subordinada ao comércio, agora ocorre exata-mente o contrário, e o monopólio colonial – que possibilitara que fi-guras ilustres da nobreza, do clero, do parlamento e demais setores das classes dominantes europeias do período acumulassem fortunas – já não atende as necessi-dades consequentes da Revolução Industrial. O livre comércio se põe na ordem do dia e a Inglaterra, com a mesma garra e perversidade com que defendeu o mo-nopólio do tráfico de

humanos, passa a defender agora a abertura de novos e amplos mer-cados para o livre comércio de sua produção industrial. Para a caríssi-ma e arriscada produção escravista não resta mais lugar e não tarda a ser superada, fazendo com que mesmo as burguesias mais retrógradas, a exemplo da bur-guesia latifundiária brasileira, desistam de resistir e deem lugar ao trabalho assalariado.

Desse modo, recuperar as aná-lises de Williams, especialmente de sua mais original contribuição – identificar os nexos causais entre a formação do capitalismo na Europa e a escravização em massa dos africanos nas Améri-cas –, tem relevante importância para o entendimento do período de acumulação primeira do capital,

assim como para a com-preensão da consolida-ção da ideologia racista na modernidade. Ofere-ce, assim, elementos es-senciais para a apreensão das particularidades da gênese do proletariado das ex-colônias euro-peias nas Américas.

Para Ler:Williams, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.James, C.L.R. Os Jacobinos Negros. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.Moura, Clovis.Rebeliões da senzala. São Paulo: Ciências Humanas, 1981. Fanon, Frantz. Em defesa da revolução africa-na. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980.

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Jornal de Ciências Sociais - nº 8 novembro de 201416 www.colegiadosociais.com

Como a miséria criou Hunter ThompsonHunter S. Thompson era

um repórter desconhe-cido quando iniciou sua

viagem de um ano por oito países da América do Sul, em maio de 1962. Com 12 dólares no bolso, entrevistou contrabandistas de La Guajira, na Colômbia, sem falar espanhol. Era sua “última chance de fazer algo grandioso e incômo-do, além de ter contato direto com um lugar incivilizado”. O destino anterior às terras colombianas havia sido Aruba, de onde saíra a bordo de um saveiro com uma carga ilegal de uísque. Ao fim de maio de 1963, após testemunhar a realidade sul-americana para o semanário National Observer, tornou-se ácido e pessimista.

A viagem de Thompson desa-pareceu de sua biografia, e por sua própria culpa, segundo Brian Kevin, autor de The Footloose American: Following the Hunter S. Thompson Trail Across South

Francisco Quinteiro Pires - Edição: Eduardo KazeNo portal Carta Capital (www.cartacapital.com.br)

America (Broadway Books). Morto em 2005, o inventor do chamado jornalismo gonzo, par-tícipe das ações que descrevia, metamorfoseou-se em “caricatura da contracultura” para se manter em evidência. “No imaginário po-pular, seu nome e a marca conhe-cida como gonzo são associados ao consumo excessivo de drogas e às palhaçadas que obscureceram a sua reputação de escritor”, afirma Kevin a CartaCapital.

A indiferença explica por quê, quase dez anos depois de Thomp-son ter cometido suicídio, seu acervo permanece fora de uma universidade, indisponível. “O meio acadêmico americano ab-sorve com reticência autores con-temporâneos, sobretudo se têm características evidentes da cultura pop, como no caso de Thompson”, diz Kevin.

Para escrever The Footloose American, Kevin viajou por seis

meses pela América do Sul e encontrou países afetados por ditaduras encarniçadas, aquelas cujas agruras socioeconômicas haviam contribuído para aumentar a ansiedade do escritor. Quando Thompson deixou a Colômbia, percebeu que, com apoio militar, as elites sufocavam qualquer transformação. Os índios eram os mais atingidos.

Em Lima, no Peru, Thompson visualizou-se como um abolicio-nista no Sul dos Estados Unidos. Em agosto de 1962, testemunhou os efeitos de um golpe nas terras peruanas.

A última parada da travessia foi o Rio de Janeiro. Em Reino do Medo, ele registrou as primeiras impressões. “O Rio de Janeiro está bem perto de ser o melhor lugar do mundo para ficar perdido eternamente, depois de o mundo finalmente vir abaixo”, afirmou sob o pavor alimentado pela Crise

dos Mísseis de Cuba em 1962. Mas o deslumbramento com a cidade durou pouco. “É a maldita reali-dade daqui que não consigo evitar. Esses pobres coitados, acossados, assediados, pisoteados do nascer ao pôr do sol sem nenhuma razão satisfatória. Eu não os culparia se eles se revoltassem contra quase tudo e em nome de qualquer par-tido ou ismo que oferecesse as con-dições para a revolta”, declarou.

Cinco das quatro reportagens sobre o Rio de Janeiro para o Na-tional Observer tratavam da insta-bilidade político-econômica brasi-leira. Em janeiro de 1963, um ano e dois meses antes do golpe apoiado pelo governo dos EUA, Thompson especulou sobre a deposição do presidente João Goulart. “Uma revolução, mesmo uma sem armas, provavelmente viria de dentro das Forças Armadas”, previu. “Além disso, ela seria bem-sucedida. O presidente não tem a maioria dos

militares a seu lado para sobreviver a um confronto.” Para ele, o Brasil seguia a trajetória histórica dos pa-íses da região. “Onde a autoridade civil é fraca e corrupta, os militares tomam o poder automaticamente”.

Enquanto viajava, Kevin buscou interpretar o significado desta frase escrita por Thompson no Rio de Janeiro: “Após um ano perambu-lando por aqui, sei por que os EUA nunca vão ser o que poderiam ter sido ou pelo menos tentaram ser”. Os países sul-americanos serviram como lições para o autor de Hell’s Angels (1966). “Ele percebeu que as maiores ameaças à promessa norte-americana de igualdade de oportunidades, como o sectarismo político, o poder oligárquico ou a racionalização da pobreza, não poderiam ser relegadas a um está-gio passado de desenvolvimento”, diz Kevin. Os EUA, pondera, tornaram-se mais parecidos com a América do Sul do que o contrário.