Jornal do Teatro #06

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06 A Casa da LenhaA vida de Lopes-Graça em palco Vermelho TransparenteUm “thriller” psicológico onde a verdade está longe de ser simples A Confissão de LeontinaLygia Fagundes Telles no Teatro Nacional Ana e HannaUm retrato dos dias de hoje

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O Jornal do Teatro surgiu da vontade de experimentar, criar e dar espaços, a quem partilha o gosto pelo teatro. Das reflexões clássicas, à problemática da contemporaneidade, o Jornal do Teatro, do Teatro Nacional D. Maria II teve como principal alvo a reflexão sobre os tempos, que se mudam e evoluem e que, em última instância, são testemunhos ricos de cada época. De 2006, 2007 e 2008, período em que foi publicado, fez-se o retrato breve de uma ‘casa da cultura’ que é, antes de mais, uma casa aberta à sociedade e ao mundo.

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“A Casa da Lenha” A vida de Lopes-Graça em palco

“Vermelho Transparente” Um “thriller” psicológico onde a verdade está longe de ser simples

“A Confissão de Leontina” Lygia Fagundes Telles no Teatro Nacional

“Ana e Hanna” Um retrato dos dias de hoje

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António Ramos Rosa recebe Medalha de Mérito Cultural

Aproveitando a festa de aniversário dos 82 anos de António Ramos Rosa, que teve lugar no Salão Nobre no dia 17 de Outubro, a Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, condeco-rou o poeta com a Medalha de Mérito Cultural. A homenagem, que contou com a presença de cerca de trezentas pessoas das mais variadas idades, foi prestada por vários escritores e críticos literários amigos do poeta. João Rui de Sousa, Pedro Mexia, Urbano Tavares Ro-drigues, Casimiro de Brito e Gastão Cruz partilharam o seu testemunho sobre o homem e o escritor. “Generosidade” foi a palavra mais ouvida ao longo da sessão para caracterizar António Ramos Rosa, autor de poemas como “O Funcionário Cansado” ou”Estou Vivo e Escrevo Sol”. O poeta, que cativou a assistência, manifestou-se contra a “ditadura da ba-nalidade”, encarando a escrita como um privilégio. Com mais de 50 anos de vida literária, António Ramos Rosa, que se destaca no nosso panorama cultural como um dos maiores poetas contemporâneos, tradutor e ensaísta, foi recentemente galardoado com o Prémio do Pen Clube. À pergunta do poeta “como é que um velho pode nascer?”, responde o re-conhecimento de uma vida feita de palavras.

TNDM II no Salão Internacional do Livro de TeatroA Livraria do Teatro Nacional D. Maria II esteve no VII Salão Internacional do Livro de

Teatro, que se realizou no Círculo de Belas-Artes de Madrid. Foi a primeira vez que o TNDM II se fez representar naquele salão, integrando a delegação portuguesa chefiada pela APAD – Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos.

Novidades editoriais na Livraria do TeatroJá estão disponíveis na Livraria do Teatro três importantes revistas de teatro editadas

em língua espanhola: “Art Teatral”, “Primer Acto”, “Paso de Gato” (México). Também dis-ponível está o último número da revista ADE – Associação dos Directores de Cena.

“A Casa da Lenha” estreia dia 16 “A Casa da Lenha”, uma co-produção do Teatro Nacional D. Maria II e da Comuna – Tea-

tro de Pesquisa, da autoria de António Torrado, com encenação de João Mota, desenho de luz de Paulo Graça e direcção musical de António Sousa, vai contar com a participação do coro da Associação Coral de Lisboa Cantat, dirigido pelo Maestro Jorge Alves, do pianista Nuno Barroso, da cantora lírica Verena Barroso e da cantora lírica Veren Barroso. Uma produção que implica a participação de um elenco constituído por 29 actores.

Mais desenvolvimentos nas páginas de 3 a 7.

Concertos da Antena 2 Novembro>21 Francisco Franco (Guitarra), 22 > Tiago Mileu (Piano)Dezembro>12 Projecto DAFHTET, 13> Samuel Lercher e Anne Kaasa

Editorial

02 > TNDMII > 06

Um Palco Plural

Este jornal apresenta uma dupla vertente: apresenta ao público as próximas produ-ções do Teatro Nacional e, ao mesmo tempo, inclui um suplemento onde se expõe a programação que propomos até finais de 2007.

Comecemos pelos quatro novos espectáculos que temos para mostrar até ao final de Novembro, produções que, na sua diversidade, representam de forma bastante sig-nificativa os eixos da programação que queremos desenvolver a médio prazo.

Antes de mais, há a estreia de “A Casa da Lenha”, um espectáculo que evoca vida e obra de Fernando Lopes-Graça, enquanto nos fala deste país e do que aqui se passou entre os anos 30 e a Revolução de Abril. Uma história que, a muitos de nós, fará recor-dar momentos significativos das nossas vidas. Para os mais novos, os que não viveram esta época e têm dificuldade em imaginar certas realidades, poderá funcionar como um abanão nas consciências e um alerta para estes tempos em que a facilidade parece ter tomado conta de tudo.

Depois, não podemos deixar de falar em “Vermelho Transparente”, uma produção estreada fora de Lisboa e que nos mostra como é possível escrever boas histórias em português quando os dramaturgos se disponibilizam a trabalhar em equipa com os encenadores e a escutar a respiração dos seus textos em cena. Foi o que fizeram Jorge Guimarães e Rui Mendes, num espectáculo que tem uma interpretação notável de He-lena Laureano, extremamente bem acompanhada por Luís Esparteiro. Da nossa parte, parabéns a toda a equipa.

Do Brasil, chega-nos “A Confissão de Leontina”, nas palavras da nossa Lygia Fagun-des Telles. Recomendamos que não percam esta oportunidade de ouvir, em cena, um conto de uma das maiores escritoras de língua portuguesa de sempre.

Finalmente, um tema que nos vai acompanhar durante muito tempo: o do diálogo/confronto de culturas num mundo cada vez mais intercultural. “Ana e Hanna” é uma história forte e o espectáculo é-nos servido por uma equipa artística de luxo, liderada por António Feio. Uma produção que confrontará o público mais jovem com uma reali-dade que muitos têm de enfrentar diariamente.

Por tudo isto, vale a pena voltar a vir ao Teatro Nacional.

Carlos FragateiroJosé Manuel Castanheira

DIRECÇÃO> Carlos Fragateiro

e José Manuel Castanheira

COORDENAÇÃO> Pedro Mendonça

COORDENAÇÃO EDITORIAL> A. Ribeiro dos Santos

REDACÇÃO> A. Ribeiro dos Santos,

Margarida Gil dos Reis, Ricardo Paulouro

COLABORAÇÃO> Baptista-Bastos

DOCUMENTAÇÃO> André Camecelha

GRAFISMO> Nuno Patrício

FOTOGRAFIA> Margarida Dias

PROPRIEDADE> TNDM II, SA

IMPRESSÃO> Mirandela Artes Gráficas

Ficha Técnica

www.teatro-dmaria.pt

RESERVAS>[email protected]> 21 325 08 35Informações> 21 325 08 27

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Recordar um homem que lutou pela Liberdade

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Entrevista > João Mota >

Fernando Lopes-Graça era natural de To-mar. Assim como o encenador João Mota e o maestro António Sousa. No ano em que se assinala o centenário de nascimento do grande compositor português, os dois últi-mos decidiram homenagear o seu conter-râneo mais-do-que ilustre e desenharam as linhas daquele que seria um espectácu-

lo-homenagem para apresentar, quase em regime caseiro, aos fins-de-semana, entre Tomar e a Comuna.Mas o resultado saiu-lhes melhor do que a encomenda. Ao saber do projecto, o secre-tário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho, desafiou-os a tentar uma co-pro-dução com o Teatro Nacional, e o espectá-culo ganhou contornos de mega-produção.

Encomendou-se um texto – ao escritor An-tónio Torrado –, contrataram-se os actores – entre os do TNDM II, os da Comuna e con-vidados – e o resultado chegará em breve à Sala Garrett. João Mota diz que Carlos Paulo esteve sempre na sua cabeça como “escolha óbvia” para dar cara e corpo a Lo-pes Graça. Não tanto pelas semelhanças fí-

sicas, que as há, entre os dois, mas porque precisava de um actor de grande fôlego.“Quando se pediu ao António (Torrado) que escrevesse a peça, foi desde logo com esta premissa: que fosse sempre o mesmo ac-tor a fazer de Lopes-Graça. Era importante que fosse o próprio a contar a sua história, senão perdia-se a narrativa...”, explica o encenador. “E precisávamos de um grande

actor, porque este papel é muito difícil de fazer. Trabalho com o Carlos Paulo há 36 anos e sei perfeitamente do que é capaz: tem uma interioridade, uma compreensão das coisas, um sentido crítico e uma iro-nia... Ao mesmo tempo, um ar de rebeldia que o Lopes-Graça também tinha. A esco-lha, para mim, era evidente”, conclui.

Ao jeito de BrechtEm termos formais, a peça, de contornos nitidamente brechtianos, que António Tor-rado escreveu, inicia-se com um Lopes-Graça já velho, a compor ao piano (a célebre canção “A Minha Terra”) e termina exacta-mente da mesma forma: o compositor ao piano, enquanto se ouve um excerto do seu “Requiem”. Pelo meio, há uma sucessão de

memórias que vão desfilando pelo palco, como que projecções da cabeça do músico, enquanto se ouvem, evidentemente, outros trechos musicais. A escolha da banda so-nora recaiu sobre António Sousa sublinha que este não é – nem pretende ser – um espectáculo de música. Antes um espectá-culo de teatro com música.“É importante que o público fique com uma visão completa da obra do Fernando Lopes-Graça, que é uma obra monumental. Ele abordou todos os géneros musicais, com excepção da ópera, e é preciso passar por todos eles. Mas sem massacrar ninguém. Este não é um espectáculo para melóma-nos, é um espectáculo para todo o público”, explica o maestro.No cenário de José Manuel Castanheira ha-verá também lugar para as projecções: um filme mudo como aqueles que Lopes-Graça acompanhava ao piano, ainda adolescente, e imagens de 1926, aquando da chegada ao poder do Estado Novo. “Haveria mais pro-jecções a fazer, mas resultaria num espec-táculo de três horas e ninguém quer isso”, remata João Mota.

João Mota diz que Carlos Paulo esteve sempre na sua cabeça como “escolha óbvia” para dar cara e corpo ao compositor. Não tanto pelas semelhanças físicas, que as há, entre os dois, mas porque precisava de um actor de grande fôlego

No ano em que se assinala o centenário de nascimento de Fernando Lopes-Graça, o Teatro Nacional e a Comuna apresentam um espectáculo de homenagem que evocará a vida e obra deste grande compositor A. Ribeiro dos Santos

A história de “A Casa da Lenha”“A Casa da Lenha” traça o percurso biográfico de Fernando Lopes-Graça, com especial incidência em alguns dos momentos marcantes deste que foi um dos maiores compositores, musi-cólogos e intelectuais do século XX. Apresentando-nos de início um Lopes-Graça de idade avançada, a peça recua no tempo, como se se tratassem de flashes de memória e apresenta-nos o universo do compositor, desde a sua infância até à idade adulta. Uma extensa galeria de personagens com quem Lopes-Graça privou na infância, passando pelos companheiros universi-tários em Coimbra ou, em 1937, o exílio em Paris contribuem para o retrato do artista mas, sobretudo, do homem. A mãe, o pai, a tia Helena, o irmão, o amigo João José Cochofel, Júlio Dantas, o director do Conservatório, o Tenente Aboim, os companheiros de tertúlia, António Ferro, Pedro Prado, Vieira da Silva e Arpad Szènes, Béla Bartók são algumas das personagens que constituem esta que é, antes de mais, uma homenagem ao mestre que compôs músicas como “Acordai” ou “O Menino de sua Mãe”. MGR

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CARLOS PAULO > FERNANDO LOPES-GRAÇANasceu em Tomar, a 17 de Dezembro de 1906 e foi uma das figuras mais emblemáticas do séc. XX português. A actividade cultural, ar-tística, pedagógica e cívica de Lopes-Graça foi ainda complementada pela composição mu-sical. Uma obra extensa que abrange quase todos os géneros musicais. A sua militância cívica e política na oposição ao Estado Novo valeu-lhe perseguições, prisões e um exílio temporário em Paris (1937-1939). Morreu a 27 de Novembro de 1994, na Parede.

SARA BELO > MÃEÉ caracterizada ao longo de várias etapas da sua vida e será, tal como Fernando, a primeira e a última personagem a surgir nesta peça.

JOÃO GROSSO > PAISurge em várias fases da sua vida. Dono de uma pensão familiar.

JORGE ANDRADE > JOSÉ GRAÇAIrmão de Fernando Lopes-Graça.

TÂNIA ALVES > TIA HELENAMulher muito religiosa.

ANTÓNIO BANHA > ELISIÁRIOVelho Elisiário, é hóspede da pensão dos Graça.

> AGENTEAgente da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado).

JOÃO TEMPERA > TENENTE ABOIMHóspede dos Graça. Sugere que seja o irmão de Fernando, José, a ter aulas de piano.

> ANTÓNIO FONSECA CARTAXOSurge inicialmente de capa e batina, estudan-te e posteriormente como membro da Repú-blica Coimbrã.

JOSÉ NEVES > AUGUSTO TAMAGNINIMembro da República Coimbrã. Acabará por ser um médico de renome.

HUGO FRANCO > ANTUNES DA SILVAEscreverá o poema “Vinde ver a Primavera” que servirá de inspiração a Lopes-Graça a uma das suas famosas Canções Heróicas.

MANUEL COELHO > AUGUSTO ALVES HENRIQUESEmpregado do comércio, pertencente à célula comunista de Tomar.

VICTOR RIBEIRO> DIRECTOR (Júlio Dantas)Escritor e político, foi uma das figuras mais proeminentes na vida cultural do seu tempo. Foi presidente da Academia das Ciências de Lisboa e surge aqui como professor e director do Conservatório Nacional.

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Elenco > A Casa da Lenha

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Elenco > A Casa da Lenha >

AUGUSTO PORTELA > PROFESSOR (admite-se que seja Luís de Freitas Branco)Nascido a 12 de Outubro de 1890 em Lisboa. Estudou composição e metodologia da história da música em Berlim e, em Paris, conheceu Claude Debussy e a estética do Impressionis-mo. Foi nomeado professor no Conservatório de Lisboa e seu director entre 1919 e 1924.A sua obra antecipou outras correntes van-guardistas.

> CAMISA AZULMembro do grupo de extrema direita (Nacio-nal-Sindicalista) de Rolão Preto.

> AGENTEAgente da PVDE (Polícia de Vigilância e Defe-sa do Estado).

JÚLIO MARTIN > JORGE CRONER DE VASCONCELOSPianista, compositor e pedagogo foi respon-sável pela cadeira de História da Música da Academia de Amadores de Música. Leccionou Composição, Canto e História da Música no Conservatório Nacional de Lisboa.

> BÉLA BARTÓKCompositor húngaro, pianista e colecciona-dor de música folclórica, é um dos maiores compositores do século XX. Foi um dos fun-dadores da etnomusicologia, da antropologia e etnografia da música.

> (FERNANDO) Nini FerreiraFarmacêutico, foi uma presença constante na vida de Tomar e do compositor.

LUÍS GASPAR > PEDRO PRADOPublicou, em 1929, com Lopes-Graça, no Conservatório de Lisboa, a revista «Música». Membro da equipa da Emissora Nacional.

FILIPE PETRONILHO > ARMANDO JOSÉ FERNANDESCompositor e pianista. Professor na Academia de Amadores de Música, foi depois docente do Conservatório Nacional durante mais de vinte anos. Trabalhou como compositor, na Emis-sora Nacional.

> ARPAD SZÈNESPintor de origem húngara nasceu em Buda-peste. Fixa-se em Paris, em 1925, onde co-nhece Maria Helena Vieira da Silva, com quem casará em 1930.

PAULA MORA> MARIA ALBINAMãe de João José Cochofel. Aristocrata culta.

RUI QUINTAS> JUIZCúmplice do sistema.

LÚCIA MARIA> HELENA VIEIRA DA SILVANasceu em Lisboa, em 1908, e morreu em Pa-ris, em 1992. Estudou Anatomia na Faculdade de Medicina em Lisboa e aos 18 anos partiu para Paris inscrevendo-se nas academias La Grande Chaumière e Scandinave. Abandonou a escultura para se dedicar à pintura e à gravura.

JOÃO RICARDO> ANTÓNIO FERROComissário-geral da representação portu-guesa na Exposição Internacional de Paris de 1937 e Director do Secretariado de Propagan-da Nacional. Intelectual que marcou a cultura da primeira metade do século XX.

MARIA AMÉLIA MATTA> MARIA DA GRAÇA AMADO DA CUNHAUma das intérpretes favoritas de Lopes-Gra-ça, que conheceu enquanto aluna e pianista num concerto no Teatro Éden, em Lisboa. A sua amizade duraria mais de 50 anos.

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06 > TNDMII > 06 < A Casa da Lenha < 16>NOVEMBRO>30>DEZEMBRO Crónica sobre > Fernando Lopes-Graça

Texto de Baptista Bastos*

«O Lopes-Graça é daqueles criadores que, por si só,

são a marca incomparável de uma cultura e confe-

rem a uma época a sua fisionomia muito própria»

José Gomes Ferreira

Num dos admiráveis desenhos de João Abel Manta vê-se Fernando Lopes-Graça e o Coro que dirigia, perseguidos pela polícia política. É um daqueles testemunhos éticos e estéticos a que o grande artista plástico (arquitecto, pintor, desenhador, cartoonista, retratista, ilustrador) modestamente cha-ma «caricaturas», e que fornecem o retrato terrível de uma sociedade esquecida da cle-mência e ignorante da tolerância. João Abel explica, naquele desenho, o que é a firmeza de carácter, a convicção, a integridade moral, o sentido cívico de um homem que tinha a di-mensão do século.

Lopes-Graça não é, somente, o maior compositor português do século XX, mas um dos mais importantes e originais de sempre. Foi, também, um prosador enorme, de estilo

moderno com um forte pendor clássico, sem alienar a pedagogia e a altercação que ela comporta e explica. A «Caça aos Coelhos», um violentíssimo e sarcástico ataque a Ruy Coelho, compositor afecto ao salazarismo, pertence ao historial da polémica portugue-sa. Aliás, ele nunca dissociou a literatura da música, considerando-as complementares uma à outra. Assim como só compreendeu a universalidade da música através das raízes nacionais, das específicas expressões das tribos de que o mundo é formado: relação e inter-relação.

O Graça não era para graças. A austerida-de e o rigor que a si próprio devia, exigia-os aos outros. E a grandeza que o aureolava ja-mais alterou a sua modéstia exemplar. Gos-tava de comer, de beber e de fumar. Partia os cigarros ao meio, enganosamente julgando que os fumava em menor número. E bebia em pequenos goles, som alegria e imenso prazer. Sabia de vinhos, de poesia, de música, bem entendido!, e de mãos! «Já viu a beleza das mãos da Olga Prats? Só mãos daquelas podem dar música ao mundo». Não me es-

queço destas frases. Mais: aprendi a olhar para as mãos das pessoas a fim de tentar adivinhar que música interior elas detêm.

A lista de amigos de Lopes-Graça era vul-tosa. E àqueles de nós para quem a música não era, propriamente, uma precedência, ela avisava: «Não se pode viver sem música como não se pode viver sem ideias!» A marca impositiva do seu ânimo tornava-o, ocasio-nalmente, agressivo. «Tudo garganta, tudo garganta!» para lembrar António Cartaxo: «O Graça foi um grande coração em estado de efervescência». Enfrentar e convencer, es-clarecer e fazer amar, ensinar a ouvir para se aprender a respeitar. Ou: conhecimento, paixão e vontade.

A luta contra o fascismo encontra nele um criador vigilante e sem tréguas. As «Herói-cas» pertencem ao património da Resistên-cia. E pouca gente sabe que muitas dessas canções, inspiradas nos maiores poetas por-tugueses, foram apropriadas pela resistência grega, cantadas pelos antifascistas espa-nhóis e pelos Jograis de São Paulo. Foi pre-so, perseguido e humilhado. Um corpo frágil

numa alma de mármore. Não abjurou, não traiu, não capitulou. Viveu em casas modes-tas. Foi frugal em tudo menos na amplitude das amizades.

Embalo muitas memórias do Maestro e amigo. Já o escrevi; repito-o agora. A gran-deza do seu comportamento assumiu, em diversas ocasiões da vida nacional, a exem-plaridade de um compromisso e de uma outra moral, a que se associava uma inco-mum coragem física e intelectual. E, agora, permitam-me esta memória pessoal: pelos começos dos anos de 40, com 5 ou 6 anos, caminhava, levado pela mão do meu pai, pelo Aterro (Avenida 24 de Julho) acima. O Velho Bastos apresentava a cidade ao filho, costu-me que lhe era próprio, ao mesmo tempo que me advertia dos perigos e das ciladas que me esperavam pela vida adiante. Eis senão quando se ouve um ruído cavo, que aumen-tava e se tornava cada vez mais nítido. Cen-tenas e centenas de operários da Parceria dos Vapores desciam o Aterro, a caminho do Terreiro do Paço. A curta distância, filas de polícias fardados e à paisana, legionários e

CASA ONDE NASCEU FERNANDO LOPES-GRAÇAFotografia cedida pela Câmara Municipal de Tomar© Carlos Alves

LOPES-GRAÇA A DIRIGIR O CORO DA ACADEMIA DE AMADORES DE MÚSICA. Data indeterminadaFotografia cedida pela Câmara Muncipal de Tomar© Carlos Alves

LOPES-GRAÇA COM CERCA DE OITO ANOS, em TomarFotografia cedida pela Câmara Municipal de Tomar

LOPES-GRAÇA EM COIMBRALopes-Graça com José Régio, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões e Albano Nogueira. Coimbra, 1933Fotografia cedida pela Câmara Municipal de Tomar

LOPES-GRAÇA COM A PROFESSORA DE PIANOLopes-Graça com a professora Rita Lemos e a colega Inês BentoTomar. Data indeterminadaFotografia cedida pela Câmara Municipal de Tomar

O JOVEM LOPES-GRAÇA AO PIANO, Tomar, 1921.Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

LOPES-GRAÇA A LER.Local desconhecido. Anos setentaFotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

Um homem para um século

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16>NOVEMBRO30>DEZEMBRO > A Casa da Lenha > 06 > TNDMII > 07

Crónica sobre > Fernando Lopes-Graça >

outro pessoal de má catadura. O embate era inevitável.

O meu pai pegou-me ao colo e resguar-dou-me na entrada de um prédio, mesmo ao lado da escadaria do Conde Barão. Nunca mais me esqueci. Com o alvoroço da curio-sidade vi, através da janelita gradeada da porta, homens de fato-de-ganga caminhando com a altivez e o destemor de quem está na posse da razão. À frente, na primeira linha do protesto, um pequeno grupo de homens vestidos à civil. O meu pai apontou para um deles, baixo, de óculos, rosto alevantado: «É o Lopes-Graça! É o Lopes-Graça! Olha bem, olha bem, e não te esqueças deste nome!»

A aprendizagem das coisas da vida com-preende a fixação de nomes como este, e de episódios que tais. Pelos anos de 60, já re-dactor de «O Século», e numa mansa madru-gada, pedi ao arquivista do jornal, de nome Afonso Costa e detentor de uma memória inacreditável, que me trouxesse fotos das greves da Parceria. «O Século» dispunha de um arquivo invulgar, cujo destino desconhe-ço. E lá estava, num conjunto de fotografias, o

Fernando Lopes-Graça, lá estava ele, à fren-te, sempre à frente do que lhe parecia jus-to. Várias fotos obtidas por Ismael Ferreira, a testemunharem a magnitude da liberdade contra a brutalidade da opressão.

Conservo muitas lembranças deste gran-

de português, deste artista extraordinário que, amiúde, foi a representação da pátria no silêncio e na dor, e a expressão da liber-dade nas masmorras e nas perseguições. A música do Graça demonstrava uma clara evi-dência estética e a enunciação de que resistir

é combater. Andou pelo país, de um para o outro lado, dirigindo, tocando, comentando, regendo o Coro da Academia dos Amadores de Música, afinal o Coro do Lopes-Graça, que entoava. «Não fiques para trás ó companhei-ro!» – a bandeira de todas as esperanças, a

salvaguarda dos nossos sonhos.Mas são as «Sonatinas Recuperadas»,

as «Sonatas para Piano», de que aconselho o CD editado pela Câmara Municipal de Ma-tosinhos, «Integral das Sonatas para Piano», tocadas pelo exímio pianista António Rosado.

Mas é o «Canto de Amor e de Morte», o «Con-certo da Camera Col Violoncelo Obbligato», peça encomendada por Rostropovich, que o interpretou pela primeira vez em Moscovo; o levantamento da música popular realizado em colaboração com Michel Giacometti; o «Requiem para as Vítimas do Fascismo em Portugal» ou as «Sete Predicações de ‘Os Lusíadas’» – um caudal impressionante de trabalho e de génio.

Creio que as extremas dificuldades en-frentadas por Fernando Lopes-Graça, duran-te o período salazarista, só as resolveu por a si próprio ter imposto rudes horários de com-posição e de estudo. Durante longos anos os únicos proventos conseguidos para subsistir provinham dos magros direitos de autor. E, não o esqueçamos nunca, dessa admirá-vel cadeia de amizades que sempre rodeou e atendeu com afectividade este homem de espantoso talento, de rara probidade – e o nosso companheiro Fernando Lopes-Graça.

*Jornalista

FERNANDO LOPES-GRAÇA EM TOMAR, A DIRIGIR O CORO DA ACADEMIA DE AMADORES DE MÚSICATomar, 5 de Março de 1977Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

FERNANDO LOPES-GRAÇA A DIRIGIR O CORO DA ACADEMIA DE AMADORES DE MÚSICATomar, 5 de Março de 1977Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

FERNANDO LOPES-GRAÇA A DIRIGIR O CORO DA ACADEMIA DE AMADORES DE MÚSICA NUM RECITAL ORGANIZADO PELO CINE-CLUB DO PORTOPorto, 9 de Dezembro de 1962Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Tomar

FERNANDO LOPES-GRAÇA COM OLGA PRATS DURANTE UM RECITAL/CONFERÊNCIA NA CASA DA CULTURA DAS CALDAS DA RAÍNHA, EM COMEMORAÇÃO DO 1.º CENTENÁRIO DE BÉLA BARTÓKCaldas da Rainha, Outubro de 1981Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

FERNANDO LOPES-GRAÇA COM CARLOS ALELUIA NUM PASSEIO NA RIA DE AVEIRORia de Aveiro, 22 de Março de 1952Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

FERNANDO LOPES-GRAÇA COM DULCE CABRITA E MICHEL GIACOMETTI À PORTA DO TEATRO DE PONTA DELGADAPonta Delgada, 1966Fotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

LOPES-GRAÇALocal e data desconhecidosFotografia cedida pelo Museu da Música Portuguesa, Cascais

Fonte: fotos retiradas do site WWW.LOPES-GRACA.COM

«Foi preso, perseguido e humilhado. Um corpofrágil numa alma de mármore. Não abjurou, não traiu, não capitulou»

Um homem para um século

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08 > TNDMII > 06 < Vermelho Transparente < 7>NOVEMBRO>23>DEZEMBRO Entrevista > Jorge Guimarães

A história de “Vermelho Transparente”Mercedes, de 38 anos, procura um psicanalista para lhe falar do sonho recorrente que tem com um vestido vermelho. No sonho, vê o marido, António, fazer amor com a irmã gémea, Dora.É a primeira de uma série de sessões em que a arquitecta vai revelando, gradualmente, os seus traumas: uma infância atormentada pela indiferença do pai, um juiz pouco dado à fidelidade; uma adolescência afligida pelos ciúmes da irmã (a preferida do progenitor); um casamento perturbado pelo fantasma da traição.Numa das sessões, Mercedes relata um episódio estranho que acaba de lhe acontecer: numa visita a uma torre em que está a trabalhar, António perde o equilíbrio e julga estar a ser alvo de uma tentativa de assassinato por parte da mulher. O psicanalista tenta escalpelizar o momento, mas Mercedes esquiva-se e acabará por não voltar às sessões de terapia.Quem vem ao consultório é Dora, a gémea, que anuncia o pior: António morreu em circunstâncias misteriosas. Teria sido obra de Mercedes, sua mulher? Teria sido Dora, sua cunhada e amante?A verdade, porém, está longe de ser simples... ARS

Qual é a sensação de voltar ao palco do Teatro Nacional, quase dez anos de-pois de cá ter visto a sua primeira peça, “Cenas de uma Tarde de Verão”?

JORGE GUIMARÃES É uma sensação boa, so-bretudo porque me sinto bem recebido. E é sempre um privilégio ter um texto na casa de Garrett.

Rezam as crónicas que a estreia de “Vermelho Transparente”, no Cartaxo, foi muito aclamada. Foi um momento tão exaltante como se diz?

J.G. Foi. Foi um espectáculo com uma vi-bração interior fantástica, em que a Helena Laureano teve uma ‘performance’ extre-mamente sentida. Ela tomou a persona-gem até aos ossos e apresentou-a de for-ma inexorável. Apoiada sempre pelo Luís Esparteiro, claro. Sem o dueto, a peça não se sustentaria.

Falemos da génese da peça. Lembra-se em que circunstâncias a escreveu?

J.G. Lembro-me muito bem e até não sei

se deveria revelar isto... Um dia, estava a jantar com uma amiga e passou-me pela cabeça, através de coisas que me dizia, que ela eventualmente podia estar a pen-sar matar o marido. Deixou de ser a minha amiga para passar a ser uma personagem atingida pelos demónios shakespearia-nos que, a breve trecho, a transformariam numa heroína de tragédia. Fui para casa e escrevi dois actos, na altura julgando que tinha a peça concluída.

E não tinha?J.G. Não. Quando, pouco mais tarde, fui a

Inglaterra, assistir à estreia da minha peça “All for Nothing”, em Londres, fiquei doen-te. Em Londres ou se apanham mulheres bonitas ou gripes feias. Fui à cama e, no meio de um estado febril, surgiu-me o ter-ceiro acto, que escrevi de uma assentada.

A peça gira em torno do mundo da psi-canálise. De que modo é que se relaciona com esse universo?

J.G. Julgo que, de um modo geral, todo

meu teatro, de forma mais ou menos deli-berada, trata da loucura.

A peça “Vermelho Transparente” tem um enredo cinematográfico e há quem diga que faz lembrar um filme de Hitchco-ck. Concorda com isso, ou não?

J.G. Todos nós somos o somatório de todo esse mundo palpitante que nos cerca e que nos envia constantemente mensagens. Sou uma pessoa sensível ao mundo hitchco-ckiano, evidentemente. E na peça que apre-sentei em Londres houve alguma crítica que me associou à temática bergmaniana, o que também estará certo. É impossível que a minha obra seja isenta de influências de tudo aquilo de que gosto.

Em que medida é que a proposta de encenação do Rui Mendes correspondeu às suas expectativas?

J.G. O Rui Mendes fez uma abordagem bastante literal à peça. Ele queria que a peça tivesse determinada duração, o que me obrigou a fazer cortes, quer pontuais

quer de cenas inteiras. De acordo com os pressupostos que me pôs, arranjei o texto para encurtar o espectáculo e para facilitar o trabalho aos actores.

O Teatro Nacional está a preparar a edição da sua peça. Que versão será? A inicial ou a cortada para o espectáculo?

J.G. A versão cortada, que me deu traba-lho a compor. E como a peça foi apresenta-da nesta versão, talvez a apresente assim mesmo.

A senhora em quem se inspirou para es-crever a peça vai assistir ao espectáculo?

J.G. Vai.

E vai reconhecer-se?J.G. Não sei, mas suspeito que não. O juízo

que as pessoas fazem de si próprias nunca corresponde àquilo que os outros pensam delas...

“Todo o meu teatro trata de loucura”

Entrevista conduzida por A. Ribeiro dos Santos

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7>19>NOVEMBRO < A Confissão de Leontina < 06 > TNDMII > 09

Entrevista > Kelzy Ecard >

Como caracterizaria esta mulher, mais uma da galeria de mulheres de Lygia Fagundes Tel-les, que interpreta durante 60 minutos?

KELZY ECARD Leontina é uma mulher sim-ples, sem nada de especial, a não ser a sua extraordinária fé na vida e a sua vontade de sobreviver. A sua pureza de alma, a sua crença nas pessoas conferem-lhe uma hu-manidade comovente.

O que tem esta mulher em comum com a realidade brasileira?

K.E. Ela é o retrato de milhares de mulhe-res brasileiras: sem instrução, sem pers-pectiva, sem família, contando apenas com a nossa incrível capacidade de resistência. Ela é uma mulher do interior – tal como eu – e embora a sua história seja radicalmen-te diferente da minha, eu conheci muitas Leontinas e tudo o que esta personagem narra sobre as suas memórias é-me muito familiar. Talvez tenha sido o motivo primei-ro que me seduziu neste texto.

Como é que construi esta personagem?K.E. A composição de Leontina partiu de

uma tentativa de nos aproximarmos o má-ximo possível da humanidade dessa per-sonagem; todo o gestual, a apropriação do texto foi marcada para dar suporte a esta narrativa. Eu uso um pouco o meu sotaque de infância para deslocar esta mulher do falar urbano quotidiano.

Como analisa a “culpa” e o “crime” associa-dos a Leontina?

K.E. A Leontina é tão ingénua que nem sequer teve noção do crime cometido. Não vou dizer que a culpa não é dela, mas do sistema, porque é corriqueiro usar esta ex-plicação num país com tantos miseráveis como o nosso, mas é um facto que ela se defende. Como a sua dor é grande, a inten-sidade desta reacção é que acaba por tor-ná-la autora deste crime.

Quais os riscos da adaptação de um texto literário a uma peça de teatro?

K.E. Hoje no Brasil há inúmeras experiên-cias com esta linguagem. O risco é sempre grande, na medida em que muitos textos li-terários não contêm drama nem acção su-ficientes para a tradução cénica. Leontina foge um pouco deste risco, na medida em que é uma confissão em primeira pessoa e construída com mestria pela autora, Lygia Fagundes Telles. Este conto – embora não catalogado desta maneira – é verdadeira-mente um monólogo.

Esta proposta de encenação de “A Con-fissão de Leontina” partiu de um desafio que fez a António Guedes. Porquê a escolha deste texto?

K.E. A história desta personagem como-veu-me muito. Como já disse, eu conheci muitas Leontinas na minha infância, e de alguma maneira quis dar voz a esta mulher tão representativa da nossa nacionalidade.

Assim que li o conto, as imagens que ela descreve formaram-se todas na minha ca-beça, como se fossem minhas. Outro moti-vo, privado: eu tinha acabado de ter o meu filho, Pedro, e foi uma maneira de produzir um trabalho possível no meio das fraldas e das mamadeiras.

“Uma voz para um palco”. Quais são as exi-gências do estar sozinha em cena durante uma hora?

K.E. Muitas. Não foi só a preparação física e vocal, é também o facto de que estou todo o tempo a respirar pela personagem. É a minha sensibilidade que está ao serviço da Leontina, a minha atenção constantemente alerta. É um desafio maravilhoso.

A história de “A Confissão de Leontina”Leontina Pontes dos Santos foi acusada de assassínio e roubo. “A Confissão de Leontina” é um longo monólogo ao longo do qual a prota-gonista passa em retrospectiva a sua vida, os seus momentos de felicidade, os amores, as traições, os instantes de solidão e as desilusões. Reconhecendo-se mais uma habitante da grande cidade, sujeita às injustiças da vida, Leontina reconstitui o seu percurso, desde os tempos de infância em que vivia numa pacata povoação – Olho d’Água. Uma infância árdua e pobre que a obrigou a trabalhar desde pequena, mas mais feliz do que os tempos que se seguiriam. Leontina habitava uma casa velha nas redondezas da vila com a mãe, que lavava roupa na Lagoa para sobreviver, com a irmã Lúcia, deficiente, e o primo Pedro, o único a prosseguir nos estudos e por quem Leontina guardava uma especial admiração. Com a morte da mãe, Leontina viu-se responsável por uma casa aos 12 anos. Pouco tempo depois, a irmã morre afogada na Lagoa e Pedro arranja um emprego na cidade. Leontina vê-se só e transforma-se numa sobrevivente, fazendo trabalho doméstico noutras casas que lhe permitisse ir um dia para a cidade. A chegada à cidade é conturbada e, até certo ponto, uma desilusão. Entre algumas aventuras amorosas, momentos de desespero e até mesmo de tentativa de suicídio, Leontina encontra emprego num salão de baile. Certo dia, admi-rando um belo vestido na montra de uma loja, Leontina é surpreendida por um estranho que lho oferece. Um aventura que determinou a vida de Leontina que, no meio de agressões corporais de que acaba por ser vítima, atinge e mata o homem em legítima defesa. Leontina é presa. A sua história, semelhante a tantas outras, mas contada pela voz da protagonista, é uma reposição da verdade, da sua história aos olhos do mundo, mas sobretudo um reviver íntimo e muito pessoal. MGR

A actriz brasileira Kelzy Ecard dá voz a Leontina, mais uma das personagens femininas que se soma a todas as outras da galeria da escritora Lygia Fagundes Telles. O “retrato de milhares de mulheres brasileiras” é, nesta peça, incarnado pela intérprete que confessa comover-se ao dar corpo à personagem, respirando através dela Entrevista conduzida por Margarida Gil dos Reis

“A Confissão de Leontina” ou a luta pela sobrevivência

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10 > TNDMII > 06 < Ana e Hanna < 1>DEZEMBRO>27>MARÇO 07

Conversa > António Feio

Contando já com um extenso caminho en-quanto actor e encenador, António Feio não tem dificuldade em admitir que a encenação se afigura cada vez mais como um projecto de vida. Apesar de ainda lhe ser difícil recu-sar o prazer da representação, a encenação “é uma área muito mais consistente”, afir-ma. “Ana e Hanna”, de John Retallack, em cena a partir de 1 de Dezembro na Sala Gar-rett, interpretado por Rita Calçada Bastos e Vânia, é mais um dos desafios que se soma à longa lista de trabalhos de António Feio.

Cruzou-se por acaso com o teatro, talvez por influência da mãe que fazia na época teatro amador: “Numa altura qualquer ela [a mãe] estava a fazer um espectáculo no Experimental de Cascais, numa peça dirigi-da pela Carlos Avilez. ‘A Casa de Bernarda Alba’, de Lorca. Eu às vezes ia aos ensaios, até que surgiu a hipótese de fazer um es-

pectáculo infantil encenado pela Glicínia Quartin. A partir daí houve outro convite do Avilez para fazer o ‘Mar’, do Miguel Torga, e desde então nunca mais parei”.

Uma carreira de sucesso, dizemos nós, onde o cómico e o dramático se cruzaram. Hoje, António Feio reconhece que foi natu-ralmente “empurrado para uma área mais ligada ao humor”. Apesar de se sentir atra-ído pela comédia, sobretudo por razões de produção, António Feio define-se como “um actor e encenador que se sente bem a fazer qualquer tipo de trabalho dramático”.

“Ana e Hanna” promete, aliás, ser uma agradável surpresa, sobretudo para o público mais jovem. “O facto de ter duas actrizes jo-vens, de ter uma forte componente musical, a história em si, que retrata a adolescência, são os principais factores para este espec-táculo poder atrair muita gente, sobretudo o

público adolescente”. Mas esta história tem ainda a potencialidade, no entender de Antó-nio Feio, de “fazer a ponte com a plateia atra-vés da música e do texto. Trata-se da história de duas raparigas, uma portuguesa e outra kosovar que, no fundo, se acabam por enten-der através da música. Mesmo tendo vidas, percursos e experiências completamente di-ferentes, aquilo que as acaba por unir, para além de uma amizade que cresce, é, essen-cialmente, a música.”

Adaptada a partir do texto do drama-turgo inglês, John Retallack, esta história começa em Tavira. “No fundo – explica An-tónio Feio - acabamos por falar de pessoas que em vez de estarem em Inglaterra estão aqui em Portugal, onde os problemas de in-tegração são idênticos. É sempre mais in-teressante centrar as personagens e a pró-pria história na nossa sociedade, mesmo

porque cria uma empatia mais forte com o público”. Essa empatia será potenciada pela música, quase uma terceira protago-nista. Música que é, aliás, uma das paixões de António Feio.

Esta história faz-nos reflectir sobre o facto de vivermos numa sociedade onde cada vez mais a diferença é a palavra-cha-ve. Hanna é obrigada a sair do seu país e a recomeçar um projecto de vida noutro local. “A questão central é que há uma for-te pressão por parte dos países de acolhi-mento que, por vezes, rejeitam a inclusão de novas pessoas. É isso que nos acontece actualmente”, afirma António Feio. “Temos muita gente a vir de fora, de várias zonas como o Brasil ou os países de Leste, e a in-tegração é difícil, por questões económicas e culturais. É este também o retrato que nos pinta este espectáculo”.

O texto é de John Retallack e a encenação de António Feio, que dirige uma história de vida e de luta contra a exclusão social. Um espectáculo que é um retrato do nosso tempo e que se destina especialmente a um público mais jovem Ricardo Paulouro

A diferença como palavrachave

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Ciclo do Conheciment NOVEMBRO>DEZEMBRO > 06 > TNDMII > 11

Gianluigi Tosto>

“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles (...)”. O primeiro verso da “Ilíada”, considerado pela crítica o primeiro livro da literatura euro-peia, consegue ser lido nos nossos dias sem perder a sua capacidade de nos (co)mover. Gianluigi Tosto contribui para a valorização desta herança da cultura ocidental. O actor italiano dá voz e corpo aos três textos fun-dadores do género épico – “Ilíada”, “Eneida” e “Odisseia” - sem precisar de recorrer a

grandes artifícios.Um actor para um palco onde, no caso

do primeiro texto, se conta a história da guerra de Tróia. Qualquer um dos três textos deixa-nos perplexos face ao relato pormenorizado de cada morte ou de cada golpe de lança. Mas em qualquer um deles respira-se poesia.

Gianluigi Tosto, aproveitará a ocasião da sua estadia em Portugal para conduzir um

workshop sobre «o corpo do actor». Ao lon-go destas sessões de trabalho, Tosto dará especial atenção ao treino do corpo e da voz do actor, bem como à interacção entre o corpo e a mente. A voz e o seu controlo, bem como a consciência de alguns elemen-tos fundamentais no corpo humano, como a articulação dos membros, ou simplesmente o alinhamento da coluna vertebral, serão al-guns dos tópicos de trabalho.

As inscrições para actores, a serem en-tregues no Teatro Nacional D. Maria II até dia 17 de Novembro, deverão ser feitas median-te a apresentação do CV, com foto, e o pre-enchimento da ficha disponível para o efeito nas instalações do teatro. O workshop, com um custo de 50 euro, decorrerá nos dias 27 e 28 de Novembro e 4, 5, 11 e 12 de Dezembro entre as 15h e as 19h.

Gianluigi Tosto regressa ao Teatro

Nacional com a interpretação dos

textos fundadores da literatura europeia, “Ilíada”, “Eneida”e

“Odisseia”. Uma herança que nos

mostra como as civilizações mudam

mas a obra fica Ricardo Paulouro

Gianluigi TostoComovente e Perturbador

Calendário

SALA GARRETT

SALA ESTÚDIO

SALÃO NOBRE

ÁTRIO

OFICINA TNDM II

OFICINA TNDM II

SALA GARRETT

SALA GARRETT

SALA ESTÚDIO

SALÃO NOBRE

ÁTRIO

OFICINA TNDM II

OFICINA TNDM II

CASA DA LENHA

VERMELHO TRANSPARENTE

CONCERTO ANTENA 2

NOVEMBRO

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DEZEMBRO

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A CASA DA LENHA

A CASA DA LENHA

ANA E HANNA

VERMELHO TRANSPARENTE

A CONFISSÃO DE LEONTINA ILÍADA

ODISSEIA ENEIDA

WORKSHOP TEATRO DE PAPEL

WORKSHOP TEATRO DE PAPEL

CONCERTO ANTENA 2

WORKSHOP

WORKSHOP CORPO DO ACTOR

A CASA DA LENHA 3.ª a Sáb. 21H30, Dom., 16H00

VERMELHO TRANSPARENTE 4.ª a Sáb. 21H45 Dom., 16H15

A CONFISSÃO DE LEONTINA 4.ª a Dom., 19H00

ANA E HANNA 3.ª a 6.ª e Dom., 11H00, Sábados e feriados 15H30

ILÍDA ODISSEIA ENEIDA 5.ª a Dom. 19h.

ANTENA 2 CONCERTOS 19h

TEATRO PAPEL WORKSHOP 2.ª a 6.ª 10h30, 14h30 (sob maração) Sáb. 14h30

CORPO DO ACTOR WORKSHOP 2.ª e 3.ª entre as 15h 19h

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7 Nov. a 23 Dez. SALA ESTÚDIO

“Vermelho Transparente” De Jorge GuimarãesPRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II Encenação RUI MENDES

8 a 19 Novembro SALÃO NOBRE

“A Confissão de Leontina” De Lygia Fagundes Telles PRODUÇÃO Dudu Sandroni Encenação ANTÓNIO GUEDES

16 Nov. a 30 Dez. SALA GARRETT

“A Casa da Lenha”De António TorradoCO-PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II e Comuna - Teatro de PesquisaEncenação JOÃO MOTA “Ilíada” de Homero 23 a 25 Nov. e 14 Dez.

“Odisseia” de Homero30 Nov. e 2, 3 e 15 Dez.

“Eneida”de Vírgilo 7 a 9 e 16 Dez.Direcção GIANLUIGI TOSTO SALÃO NOBRE 19h

1 Dez. a 27 Mar. SALA GARRETT

“Ana e Hanna” De John Retallack PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II Encenação ANTÓNIO FEIO

ESPLANADA COM VISTA PARA O ROSSIO DE 3.ª A DOMINGO