José Duarte

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TodosOs Nomes » nm # 868 » entrevista Que vida é esta, fora do baralho, que é a sua? É a vida que me dá prazer. Viver fora do ba- ralho dá-me prazer. E não tenho trunfos. Sou um jogador pobre. E sou um jogador contra. Contra a música dominante, contra o sistema dominante. Tenho três grandes mágoas na vida: uma é ser do clube de fute- bol que (quase) nunca ganha campeonatos [Sporting], outra é gostar dessa música de que ninguém gosta... ...se calhar já foi mais assim do que é agora. O público do jazz cresceu, ou não? Hoje é a mesma coisa, só que mascarado. E a terceira mágoa? É ter uma ideologia que nunca esteve no po- der. Sou um falhado, portanto. A que ideologia se refere? Sou um estudioso de Marx. É uma utopia. Que como todas as utopias é atraente. E que vou levar para a cova. Estas três frentes têm-no acompanhado a vi- da toda? As três desgraças, sim, a vida toda. Frentes desgraçadas. Sim, são-no. Inaugurei o estádio do Sporting a fazer ginástica (o outro, o primeiro Alvala- de). Era um bom ginasta na [ginástica] apli- cada. Já o jazz deu comigo, e eu com ele, há cinquenta anos. E a política anda pelo mes- mo meio século. Quando se atenta na informação biográfica so- bre si, que se pode por exemplo encontrar na in- ternet, tem-se a impressão de que se trata (a sua vida) de um vasto conjunto de circunstân- cias, e de imponderáveis, reunidos ao longo de décadas para o erguer a si. Eu nunca procurei nada. Tudo me tem sido oferecido, de programas de rádio a progra- mas de televisão. Antes do jazz, quem era o José Duarte? Antes do jazz não existe nada [risos]. O jazz é «a música» do século XX. Antes do jazz eu an- dava pelas músicas dominantes: pela músi- ca latino-americana, que era muito popular, os boleros, pela dança e pelo cinema. Desde puto que me interessei pelo cinema, não apenas como espectador, passivo, mas aber- to à informação, conhecendo a filmografia dos meus favoritos, os grandes italianos, os grandes franceses, os grandes americanos. Fui filho de famílias humildes, sem acesso às classes cultas. Em 1958 fiz o meu primeiro programa, na Rádio Universidade, que era então na Praça das Flores, em Lisboa. O pro- grama chamava-se O Jazz, Esse Desconheci- do. Ainda hoje, se me convidassem para fa- zer outro programa de rádio, poderia cha- má-lo assim, O Jazz, Esse Desconhecido. Porque o jazz não é conhecido em Portugal, a não ser as vedetas e as salas. Há públicos para o jazz no CCB, na Casa da Música, na Culturgest, nos Coliseus, públicos que não se confundem. Cada sala tem o seu. Sim, as pessoas vão porque pensam que o que o CCB propõe é sempre bom, ou porque pensam que o que a Casa da Música propõe é sempre bom, etc. O que não é verdade. Por- que as pessoas vão pelos artistas, pelo peso dos seus nomes, e para estarem na socieda- de, o que é altamente recriminável. De que público falamos quando falamos do pú- blico do jazz ? A rádio é muito importante. Se for informa- tiva tanto melhor. A última grande conquis- ta do jazz na rádio portuguesa é uma hora por dia na RDP Antena 2, o Jazz com Brancas. Uma conquista porque a Antena 2 era o ca- 28 » noticiasmagazine 11.JAN.2009 José Duarte Há 42 anos que fala sobre jazz nas rádios deste país.Recentemente,uma emissora deu-lhe uma hora inteirinha para divulgar esta música que é a sua paixão.E conseguiu levar o jazz para a universidade,neste caso a deAveiro,onde lecciona e à qual doou já o seu acervo musical. ENTREVISTA Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Paulo Alexandrino

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Sarah Adamopoulos entrevista o divulgador de jazz José Duarte

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TodosOsNomes»nm# 868»entrevista

Que vida é esta, fora do baralho, que é a sua?É a vida que me dá prazer. Viver fora do ba-ralho dá-me prazer. E não tenho trunfos.Sou um jogador pobre. E sou um jogadorcontra. Contra a música dominante, contrao sistema dominante. Tenho três grandesmágoas na vida: uma é ser do clube de fute-bol que (quase) nunca ganha campeonatos[Sporting], outra é gostar dessa música deque ninguém gosta... ...se calhar já foi mais assim do que é agora. O público do jazz cresceu, ou não? Hoje é a mesma coisa, só que mascarado. E a terceira mágoa?É ter uma ideologia que nunca esteve no po-der. Sou um falhado, portanto.A que ideologia se refere?Sou um estudioso de Marx. É uma utopia.Que como todas as utopias é atraente. E quevou levar para a cova.Estas três frentes têm-no acompanhado a vi-da toda?As três desgraças, sim, a vida toda.Frentes desgraçadas.Sim, são-no. Inaugurei o estádio do Sportinga fazer ginástica (o outro, o primeiro Alvala-

de). Era um bom ginasta na [ginástica] apli-cada. Já o jazz deu comigo, e eu com ele, hácinquenta anos. E a política anda pelo mes-mo meio século. Quando se atenta na informação biográfica so-bre si, que se pode por exemplo encontrar na in-ternet, tem-se a impressão de que se trata (asua vida) de um vasto conjunto de circunstân-cias, e de imponderáveis, reunidos ao longo dedécadas para o erguer a si. Eu nunca procurei nada. Tudo me tem sidooferecido, de programas de rádio a progra-mas de televisão.Antes do jazz, quem era o José Duarte?Antes do jazz não existe nada [risos]. O jazz é«a música» do século XX. Antes do jazzeu an-dava pelas músicas dominantes: pela músi-ca latino-americana, que era muito popular,os boleros, pela dança e pelo cinema. Desdeputo que me interessei pelo cinema, nãoapenas como espectador, passivo, mas aber-to à informação, conhecendo a filmografiados meus favoritos, os grandes italianos, osgrandes franceses, os grandes americanos.Fui filho de famílias humildes, sem acesso àsclasses cultas. Em 1958 fiz o meu primeiro

programa, na Rádio Universidade, que eraentão na Praça das Flores, em Lisboa. O pro-grama chamava-se O Jazz, Esse Desconheci-do. Ainda hoje, se me convidassem para fa-zer outro programa de rádio, poderia cha-má-lo assim, O Jazz, Esse Desconhecido.Porque o jazz não é conhecido em Portugal,a não ser as vedetas e as salas. Há públicospara o jazz no CCB, na Casa da Música, naCulturgest, nos Coliseus, públicos que nãose confundem. Cada sala tem o seu.Sim, as pessoas vão porque pensam que oque o CCB propõe é sempre bom, ou porquepensam que o que a Casa da Música propõeé sempre bom, etc. O que não é verdade. Por-que as pessoas vão pelos artistas, pelo pesodos seus nomes, e para estarem na socieda-de, o que é altamente recriminável. De que público falamos quando falamos do pú-blico do jazz ?A rádio é muito importante. Se for informa-tiva tanto melhor. A última grande conquis-ta do jazz na rádio portuguesa é uma horapor dia na RDP Antena 2, oJazz com Brancas.Uma conquista porque a Antena 2 era o ca-

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José DuarteHá 42 anos que fala sobre jazz nas rádios deste país.Recentemente,umaemissora deu-lhe uma hora inteirinha para divulgar estamúsica que é a sua paixão.E conseguiu levar o jazz para a universidade,neste caso a de Aveiro,onde lecciona e à qual doou já o seu acervo musical.ENTREVISTA Sarah Adamopoulos¬ FOTOGRAFIA Paulo Alexandrino

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guesas, a Renascença, depois a Comercial, ea RDP, desde os anos noventa.Fez também parte da equipa do famoso pro-grama de rádio Pão com Manteiga.Foi uma coisa inédita na rádio em Portugal.Só depois disso é que apareceu o Herman,mais pobre, mais vulgar, penso eu, com gra-ças mais pesadas. Foi na Rádio Comercial, aodomingo de manhã. Começámos em 1980. O Artur Couto e Santos, o Mário Zambujal, oCarlos Cruz (que fazia monumentalmente aapresentação, porque sempre foi um craquenisso), o Bernardo Brito e Cunha, que fazia arubrica O Rock e a Amiga. Foi uma experiên-cia inesquecível, que revelou as capacidadesque a rádio tem e que não são usadas, e tam-bém o sentido de humor que o povo portu-guês tem. Nós conseguíamos fazer uma rá-

dio a cores, unicamente com os nossos tex-tos. Nas praias reuniam-se grupos de pessoasa ouvir o programa. E nós passávamos aque-las três horas em directo, não gravávamosnada. Os telefonemas dos ouvintes rebenta-vam com os PBX. Era a imaginação à solta.Fui muito feliz a trabalhar com essa equipa.Publicámos dois livros, com os textos do pro-grama, e também revistas. Foi um grande su-cesso, sim.O seu percurso passa também pela televisão.Fiz dois programas para a televisão, ambosna RTP2, que é o canal chique, das pessoasque pensam, o canal das minorias. Um deleschamava-se Outras Músicas. Divulguei artis-tas que só hoje são conhecidos e ritmos e mú-sicas de que não se falava. Isto foi entre 1990e 1993. Recordo alguns convidados memorá-veis, a Olga Roriz, por exemplo, ou a Irene Li-ma, violoncelista. A Olga Roriz dançou emestúdio sem música, dançou no silêncio e es-se foi um momento sublime. Com a Irene Li-ma perguntei-lhe se não era feio para umamulher abrir as pernas para pôr o violonceloentre elas, e ela respondeu que não tinha ver-gonha nenhuma, porque possuía o amor quetinha ao violoncelo como se possui um ho-mem com as pernas. Com a Amália tambémfoi muito bonito, ela era uma mulher muitobela, e eu gostava muito dela. Como é que o país recebeu o seu amor, assimtornado público, pelo jazz?O país reagiu muito mal aos Cinco Minutosde Jazz, nos anos sessenta. Tenho no meuacervo, que está em Aveiro [José Duartedoou o seu acervo à Universidade de Avei-ro], cartas sem assinatura, cobardes, a ofen-derem-me, a chamarem-me racista e aman-te de pretos e de pretas e de batuques. Tudopor causa de cinco minutos apenas, de mú-sica de herança africana, negra. Mas o pro-grama tornou-se muito popular, pela rique-za e a estranheza da música. Eu não repitodiscos, o jazz é uma música muito rica, em

que cada autor tem o seu estilo, eu até costu-mo dizer que não há um jazz,há tantos jazzescomo músicos de jazz. Cada um tem o seu es-tilo e o seu discurso. Eu sabia que a Políciacontrolava os textos, e a Igreja também. Umdia tive a confirmação. Convidei o musicólo-go Luís de Freitas Branco para ir falar sobreMiles Davis. Ninguém conhecia nem o Mi-les nem o Freitas Branco, mas o meu deverera cumprir, e aquilo era o cumprimento dodever. Acontece que o Freitas Branco faltou,e o João Martins disse logo que a rádio eraassim mesmo, e desafiou-me a improvisar. E eu, nervoso, traduzi, li o que estava escritona contracapa de um disco do John Coltra-ne, que para além de um grande músico dejazz era filho de um padre, e que tinha co-nhecido Miles Davis – ambos negros e so-pradores. No dia seguinte tinha um recadode um senhor que governava a Renascençaa pedir para eu ir falar com ele e ele disse-meque eu tinha de compreender que os padresnão tinham filhos. E eu disse que talvez de-vesse ter dito que o pai do John Coltrane eraum preacher, um pregador, e não um padretal como nós os conhecemos. E depois elepediu-me para lhe mandar os textos antesde os ler na rádio.E fez isso?Sim, era assim a Igreja da época, o país eraassim. Hoje é praticamente a mesma coisa,embora pareça outra. Nessa altura não ha-via concertos, e por isso não havia contactocom a opinião do público. Não havia revis-tas, não havia clubes, os concertos de jazzchamavam-se concertos de música de dan-ça, porque jazzera uma palavra consideradaobscena. Era outro mundo. Hoje há mais es-colas, mas o jazz não se aprende nas escolas.É uma música que sai de dentro, não se ensi-na, aprende-se. Há muito público, mas quesabe pouco de jazz, que apenas se vai diver-tir, a partir das escolhas das salas. Há maismúsicos do que há quarenta anos, e bons,

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nal da clássica. Dada a idade avançada quetenho, também na rádio, decidi que a músi-ca falaria por si. Basta ouvir para ensinar coi-sas às pessoas. Até porque as paixões não seensinam. Sou objectivo, refiro os nomes dosmúsicos, os instrumentos que tocam, os te-mas, conto uma ou outra história que vivicom eles e divulgo os discos. E faz uma escolha criteriosíssima.Pois claro, é um programa de autor. Comeceia fazer o Jazz com Brancas em Janeiro de 2007,vai fazer dois anos. Uma hora por dia. Paraquem começou com cinco minutos... [risos].Nunca tinha acontecido, haver um programade jazz na rádio portuguesa de uma hora pordia?Nunca. Nem a mim nem a ninguém. É tam-bém preciso explicar que não há nenhuma

rádio portuguesa que tenha um disco dejazz. Nós, os divulgadores, levamos a nossamúsica, os nossos CD, que depois levamosde volta para casa. O que é uma coisa de umpaís terceiro-mundista, uma vergonha. Háexcepções, mas que justificam precisamen-te esta triste regra. Se houver alguma rádioque tenha alguns discos serão apenas al-guns, o que não dá para fazer um programacomo A Menina Dança?, que é um programade música especializada, vizinha do jazz.Cinco Minutos de jazz é o seu programa de rá-dio mais conhecido. É também o mais duradou-ro de sempre (mais de quarenta anos).Foi em 21 de Fevereiro de 1966 que o desapa-recido João Martins (um radialista funda-mental na história da rádio em Portugal, al-guém que adivinhava o futuro) me desafiou

para fazer um programa de jazz diário na Rá-dio Renascença. Que era uma rubrica inse-rida num programa que se chamava 23.ª Ho-ra e que tinha uma audição tremenda – opaís parava para ouvir esse programa da Re-nascença. Que por acaso era a 24.ª hora enão a 23.ª, porque era das 11 à meia-noite.Mas ficou para a história como a 23.ª Hora.Inventei aquele indicativo («Um, dois, três,quatro, cinco minutos de jazz»), cantandocom a percussão, antes de entrarem os so-pros, e foi um sucesso. Mas o meu contribu-to para o jazz saiu talvez pela porta ao ladoporque eu só ensinei as pessoas a contar atécinco [risos]! Esse programa vai fazer 42anos. Esteve parado no PREC (como tudona Renascença, aliás), mas depois retomoue corri com ele as três grandes rádios portu-

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Discos «Nãohá nenhuma rádio

portuguesa quetenha um disco de

jazz.Nós,divulgado-res,levamos e

trazemos a música.O que é terceiro-

-mundista.»

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E criámos, eles e eu, o Centro de Estudos deJazz. É uma área muito bonita, moderna(como tudo é na Universidade de Aveiro),com uma pequenina sala de concertos euma galeria para exposições, e a sala de au-la, claro. Depois propuseram-me que fossepara lá ensinar jazz. Isto foi em 2002. Souprofessor convidado, porque aos setentaanos já não se pode ensinar, o que é uma ca-racterística deste nosso país, onde a expe-riência é desvalorizada. Ensinei História doJazz e tive também uma cadeira de AudiçãoMusical Comentada (Ear Training). Foi umaexperiência inesquecível. A maioria dos alu-nos eram de Musicologia e de Instrumentoe não sabiam nada de jazz. Sim, é uma coisainédita, até então o jazz nunca tinha entradona universidade. Agora dou Iniciação aoJazz, num curso público. O que significa quepode aparecer um carpinteiro de Viseu, umtrolha do Porto, um advogado de Aveiro,qualquer pessoa. Cruzou-se ao longo da vida com uma quantida-de impressionante de enormes nomes do jazz.

Tenho uma parte do meu currículo a quechamei «Vivências», seguindo a sugestão deum amigo. E isso ninguém me tira e apenaseu posso contar (o Google nem sempre).Convivi com o Armstrong, por exemplo, queprotagoniza a história do jazz mais impor-tante da minha vida. Quando ele esteve emPortugal, em 1961, eu fui esperá-lo ao aero-porto. Como trabalhava na TAP, tinha aces-so ao avião, e fui esperá-lo à escada do avião.E quando ele foi embora fiz a mesma coisa,fui com ele até à escada do avião e ofereci-lheuma garrafinha de Vinho do Porto. O Arm-strong convidou-me nessa altura para ir vivercom ele para Nova Iorque. Eu era filho único,puto, tinha 23 anos na altura, e não tinha bar-ba. Tive medo e não fui. Mas não estou arre-pendido, porque fiz mais pelo jazz no meupaís do que se tivesse ido para os EstadosUnidos viver. Medo de quê? De Nova Iorque,onde nunca tinha ido. Era puto, não quis dei-xar os meus pais, estava apenas há um ano naTAP, e o Armstrong era uma sumidade. Tivemedo de defraudar as expectativas dele em

relação a mim. Hoje em dia sou, por exem-plo, amigo da Diana Krall. Fui medalhá-la aum centro comercial a primeira vez que elaveio cá, a pedido de uma empresa de discos,e estabelecemos uma relação de amizade. Que outras músicas hoje, que outras leituras,que outra vida para além do jazz?Gosto muito de fado, nasci no Bairro Alto.Ensinei a Maria da Fé a ter swing (sou amigodela e seu admirador). A outra música de quegosto muito é o flamenco. O flamenco mata--me. Gosto da alma que eles põem naquilo,da força daquilo. Falando de fado, gosto daAna Moura. Gosto da Aldina Duarte. E gos-to de contradições, sou amigo do João Bra-ga e do Carlos do Carmo, e gosto do que elesfazem no fado também. Leituras? A Agusti-na, embora no passado embirrasse com asposições políticas dela. É uma escritora úni-ca. Com uma escrita como a que o Aquilinotinha, que constantemente requer dicioná-rio, é uma maravilha. Fui formado com osmestres José Cardoso Pires, Roger Vaillant,e com os franceses libidinosos, claro.«

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com outras dificuldades, porque na altura osmúsicos de jazz eram aqueles que tocavamnos teatros de revista, e que depois iam aoHot Clube fazer umas jam sessions. O jazz tem hoje um outro estatuto.Tem um estatuto enganador. Eu sou um ho-mem desconfiado. Penso que as pessoas quebatem palmas nos concertos no tempo for-te, e que pedem encores em todos os concer-tos, não sabem nada de jazz. Hoje não hácensura, há liberdade, que é uma realidadeque não pode ser esquecida, e há mais gostopela oferta cultural, mais curiosidade, sim,mas apenas porque há mais quantidade. E o circuito dos festivais de jazz? Não enrique-cem o panorama?Hoje há músicos de jazz profissionais, e bons,e que têm trabalho, mas Portugal é um paísestranho, como sempre foi, pelo menos des-de os tempos do imperialismo português.Porque é um país que tem mais festivais dejazzpor metro quadrado do que qualquer ou-tro da Europa. Este ano, por exemplo, houvecinquenta e tal festivais. Agora multipliquepor cada festival uma média de três concer-tos, e junte-lhes os concertos promovidos pe-las salas, e isso dá uma enormidade. Mas essesconcertos existem porque são pagos, porquesão subsidiados pelo Estado, pelas autarquias.Um tipo particular não manda vir o genialtrompetista Wynton Marsalis porque é caro...O que vale realmente a pena?É fácil: vale a pena ir ao Estoril em Junho, aoSeixal em Outubro e a Guimarães em No-vembro. De resto, um concerto aqui e outroacolá. Bem escolhido.E o Jazz em Agosto, promovido anualmente pe-la Gulbenkian? Que opinião lhe merece?

O Jazz em Agosto é um risco. Este ano su-portei, é a palavra, apenas dois concertos. O primeiro e o último. E suportei amarradoao lugar. Porque são músicos desconheci-dos, mas não é por isso, porque são músicosarrojados, mas não é por isso, porque sãoapostas falíveis, é por isso. Um homem coma minha idade e com a minha experiênciasabe que um saxofonista aos berros não temfuturo. As pessoas não ouvem música que asincomoda. Por isso é que o jazz foi muito po-pular na década de trinta do século passado.Porque era dançável, sendo arrojado esteti-camente. Sugiram as big bands, os solos, ojazz não parava, aliás o jazz é uma música degrande velocidade, que evoluiu mais nestesquase cem anos de história do que a músicaescrita. Desde a improvisação colectiva deNew Orleans até ao free jazz. Outra coisa queacontece com os festivais é que eles carre-gam o nome de fulano ou de sicrano, o do or-ganizador, pessoas cujo gosto não está mui-tas vezes definido. Pessoas que apanharam ocomboio em andamento e que desconhe-cem mais de metade da história do jazz. E is-so reflecte-se nas escolhas. Como vê o lugar do jazz na actual indústria dis-cográfica?Está uma miséria. Mas há movimentos interessantes, caso daMaria Schneider, que passou a vender os seusdiscos unicamente através da internet, paracombater as lógicas de uma indústria cheia deintermediários, que a economia digital reveloudesnecessários.A Maria Schneider encabeça um movimen-to que se insurge contra os exageros da in-dústria. Ela grava, edita, paga, vende, recebe,

quebrando essa cadeia de intermediários.Hoje em dia, pede-se o preço de um concer-to de um músico a uma produtora, e eles pe-dem-nos um minuto para dar a resposta,porque vão falar com o músico, que pede porhipótese cem, e a produtora responde quequer duzentos. Por isso é que os concertosestão cheios de falsos produtores. Como é que os discos de jazz (os dos circuitostradicionais dos mercados de discos) existeme subsistem neste mercado tão difícil?Existem à custa de grandes etiquetas norte--americanas, como a Blue Note, histórica,ou a Verve e a ECM, europeia. Há depoiseditoras pequenas, que não têm o podernem a capacidade das grandes, mas que têmcatálogos com jovens que produzem jazz di-ferente. As grandes editoras dedicam-se es-sencialmente às reedições. Reedições dasreedições... Há discos que já saíram três ve-zes em CD e que começaram por ser LP...Fale-me do José Duarte conferencista.Isso é uma actividade já muito antiga. Lem-bro-me de ir com os meus 78 LP, de carro,pelas estradas do país, de norte a sul, nosanos sessenta, sem cobrar nada, pelo amor àpátria. E ainda hoje faço isso. Gosto muito derádio, a TV assusta-me, e a conferência, porestar face a face com o público, é uma das mi-nhas perdições. Percebo quando as pessoasestão fartas de mim, percebo quando preci-sam de fazer perguntas, percebo a altura deme ir embora, percebo se a conferência estáa murchar e eu tenho de contar uma graça...Improvisa muito?Sempre. Sou um artista de teatro. Toca algum instrumento?Sou um percussionista de primeira água. E também sou vaidoso... [risos]. Apesar de o jazz não se ensinar, ligou-se en-tretanto à Universidade de Aveiro, precisamen-te para ensinar jazz. Decidi que todo o meu acervo de discos, re-vistas, posters, livros, não fazem cá nadaquando eu morrer. Tenho duas filhas músi-cas, uma pianista e outra flautista (que vi-vem nos EUA), e tive de negociar com elas,e com a mãe delas também, e convenci-as aserem deserdadas. Comecei por me apaixo-nar por bibliotecas, a primeira foi a de Gui-marães, que me propuseram ficar com omeu acervo. Mas eu pensei que não seria boaideia, porque os autarcas mudam e tudo mu-da. Depois apaixonei-me pelo Seixal, e tam-bém ali poderia pôr o meu acervo, e tinha avantagem de ser apenas preciso atravessar orio para os reencontrar. Mas um dia fui visi-tar a Universidade de Aveiro e gostei muitodo que vi. É um campus de inspiração norte--americana, as faculdades chamam-se cen-tros de estudos, seguindo a filosofia norte--americana. É para além disso uma univer-sidade muito bonita, tem uma biblioteca de-senhada pelo Siza, e eu fiquei apaixonadopor aquilo, e pensei que talvez fosse aqueleo lugar ideal para depositar o meu acervo.

JAZZ COM BRANCASTem uma vida cheia. De jazz sobretudo, de que é um divulgador excepcional,desde que em 1958 lançou na Rádio Universidade o programa O Jazz, EsseDesconhecido. É um homem da rádio, tendo «corrido» a totalidade das grandesemissoras com os seus discos debaixo do braço. Foi autor ou co-autor deprogramas paradigmáticos da rádio portuguesa – Cinco Minutos de Jazz, Pão com Manteiga, À Volta da Meia-Noite, Abandajazz, A Menina Dança?e o novíssimo Jazz com Brancas. Conquista inédita (dele e do jazz), que deu à música que lhe importa uma hora de emissão diária na RDP Antena 2, Jazzcom Brancas é um programa de poucas palavras, em que José Duarte passaalguma da melhor música de jazz,aqui e ali pontuada por pequeninos blocos de texto informativos ou nos quais JazZé (assim gosta de ser chamado) contaas histórias do jazz que só ele sabe. Um programa-manifesto, feito contra as correntes estéticas dominantes, incluindo as da realização radiofónica,habitualmente avessas às «brancas» enquanto «espaços de tempo» entre a música e a palavra. Jazz com Brancas. Uma hora de jazz com a assinatura de José Duarte.RDP Antena 2, de segunda a sexta-feira, às 20h00.Emissões online: http://ww1.rtp.pt/multimedia/?prog=2177.