José Pacheco e a Escola da Ponte

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Jos Pacheco e a Escola da PonteO educador portugus conta como a Escola da Ponte, em que no h turmas, e diz que quem quer inovar deve ter mais interrogaes que certezasCristiane Marangon ([email protected]) Compartilhe

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Jos Pacheco no o primeiro - e nem ser o ltimo - a desejar uma escola que fuja do modelo tradicional. Ao contrrio de muitos, no entanto, o educador portugus pode se orgulhar por ter transformado seu sonho em realidade. H 28 anos ele coordena a Escola da Ponte. Apesar de fazer parte da rede pblica portuguesa, a escola de ensino bsico, localizada a 30 quilmetros da cidade do Porto, em nada se parece com as demais. A Ponte no segue um sistema baseado em seriao ou ciclos e seus professores no so responsveis por uma disciplina ou por uma turma especficas. As crianas e os adolescentes que l estudam - muitos deles violentos, transferidos de outras instituies - definem quais so suas reas de interesse e desenvolvem projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais. A cada ano, as crianas e os jovens criam as regras de convivncia que sero seguidas inclusive por educadores e familiares. fcil prever que problemas de adaptao acontecem. H professores que vo embora e alunos que estranham tanta liberdade. Nada, no entanto, que faa a equipe desanimar. O sistema tem se mostrado vivel por pelo menos dois motivos: primeiro, porque os educadores esto abertos a mudanas; segundo, porque as famlias dos alunos apiam e defendem a escola idealizada por Pacheco. Quando jovem, esse educador de fala mansa no pensava em lecionar. Queria ser engenheiro eletrnico. Mas uma questo o inquietava: por que a escola ainda reproduzia um modelo criado h 200 anos? Na busca por uma resposta, se apaixonou pelo magistrio. "Percebi que na engenharia teria menos a descobrir, enquanto na educao ainda estava tudo por fazer." Desse "tudo" de que tem se incumbido o professor Z, como gosta de ser chamado, que trata a entrevista a seguir, concedida NOVA ESCOLA em So Paulo.

A Escola da Ponte bem diferente das tradicionais. Como ela funciona?JOS PACHECO L no h sries, ciclos, turmas, anos, manuais, testes e aulas. Os alunos se

agrupam de acordo com os interesses comuns para desenvolver projetos de pesquisa. H tambm os estudos individuais, depois compartilhados com os colegas. Os estudantes podem recorrer a qualquer professor para solicitar suas respostas. Se eles no conseguem responder, os encaminham a um especialista.

Existem salas de aula?PACHECO No h salas de aula, e sim lugares onde cada aluno procura pessoas, ferramentas e

solues, testa seus conhecimentos e convive com os outros. So os espaos educativos. Hoje, eles esto designados por rea. Na humanstica, por exemplo, estuda-se Histria e Geografia; no

pavilho das cincias fica o material sobre Matemtica; e o central abriga a Educao Artstica e a Tecnolgica.

A arquitetura mudou para acompanhar o sistema de ensino?PACHECO No. Alis, isso um problema. Nosso sonho um prdio com outro conceito de

espao. Temos uma maquete feita por 12 arquitetos, ex-alunos que conhecem bem a proposta da escola. Esse projeto inclui uma rea que chamo de centro da descoberta, onde compartilharemos o que sabemos. H tambm pequenos nichos hexagonais, destinados aos pequenos grupos e s tarefas individuais. Esto previstas ainda amplas avenidas e alguns cursos d'gua, onde se possa mergulhar os ps para conversar, alm de um lugar para cochilar. As novas tecnologias da informao devem estar espalhadas por todos os lados para ser democraticamente utilizadas pela comunidade, o que j conseguimos.

Os professores precisam de formao especfica para lecionar l?PACHECO No. Eles tm a mesma formao que os de outras instituies. O diferencial que

sentem uma inquietao quanto educao e admitem existir outras lgicas. Nossa escola a nica no pas que pode escolher o corpo docente. Os candidatos aparecem geralmente como visitantes e perguntam o que preciso para dar aulas l. Digo apenas para deixarem o nome. No fim de cada ano fazemos contato. Hoje somos 27, cada um com suas especializaes.

Como os novos professores se adaptam proposta da escola?PACHECO H profissionais que estiveram sozinhos em sala durante anos e quando chegam

constatam que sua formao e experincia servem para nada. De cada dez que entram, um no agenta. Outros desertam e regressam depois. Mas ns tambm, por vezes, temos que nos adaptar. H dois anos recebemos muitas crianas e professores novos, no familiarizados com a nossa proposta. Apenas a quinta parte do corpo docente j estava l quando isso aconteceu. Passamos a conviver com mestres que sabiam dar aula e estudantes que sabiam fazer cpias. Foi necessrio dar dois ou trs passos para trs para que depois caminhssemos todos juntos. Precisamos aceitar o que os outros trazem e esperar que eles acreditem em nossas idias. Essa a terceira vez que passamos por isso.

Qual o perfil dos alunos atendidos pela Escola da Ponte?PACHECO Eles tm entre 5 e 17 anos. Cerca de 50 (um quarto do total) chegaram extremamente

violentos, com diagnsticos psiquitricos e psicolgicos. As instituies de insero social que acolhem crianas e jovens rfos os encaminham para as escolas pblicas. Normalmente eles acabam isolados no fundo da classe e, posteriormente, so encaminhados para ns. No primeiro dia, chegam dando pontaps, gritando, insultando, atirando pedras. Algum tempo depois desistem de ser maus, como dizem, e admitem uma das duas hipteses: ser bom ou ser bom.

Como os estudantes vindos de outras escolas se integram a um sistema to diferente?PACHECO No fcil. H crianas e jovens que chegam e no sabem o que trabalhar em

grupo. No conhecem a liberdade, e sim, a permissividade. No sabem o que solidariedade, somente a competitividade. So timos, mas ainda no tm a cultura que cultivamos. Quando deparam com a possibilidade de definir as regras de convivncia que sero seguidas por todos ou no decidem nada ou o fazem de forma pouco ponderada. Em tempos de crise, como agora, em que muitos esto nessa situao, precisamos ser mais diretivos. S para citar um exemplo, recebemos um garoto de 15 anos que tinha agredido seu professor e o deixado em estado de coma. Como um jovem assim pode, de imediato, participar da elaborao de um sistema de

direitos e deveres?

A escola nem sempre seguiu uma proposta inovadora. Como ocorreu a transformao?PACHECO At 1976, a escola era igual a qualquer outra de 1 a 4 srie. Cada professor ficava

em sua sala, isolado com sua turma e seus mtodos. No havia comunicao ou projeto comum. O trabalho escolar era baseado na repetio de lies, na passividade. Naquele ano, havia trs educadores e 90 estudantes. Em vez de cada docente adotar uma turma de 30, juntamos todos. Nosso objetivo era promover a autonomia e a solidariedade. Antes disso, porm, chamamos os pais, explicamos o nosso projeto e perguntamos o que pensavam sobre o assunto. Eles nos apoiaram e defendem o modelo at hoje.

Qual a relao dos pais com a escola?PACHECO Eles participam conosco de todas as decises. Se nos rejeitarem, teremos de procurar

emprego em outro lugar. Tambm defendem a escola perante o governo. Neste momento, os pais esto em conflito com o Ministrio da Educao. Ao longo desses quase 30 anos, quiseram acabar com nosso projeto. Eu, como funcionrio pblico, sigo um regime disciplinar que me impede de tomar posies que transgridam a lei, mas o ministro no tem poder hierrquico sobre as famlias. Portanto, se o governo discordar de tudo aquilo que fazemos, defronta-se com este obstculo: os pais. Eles so a garantia de que o projeto vai continuar.

Como sua escola vista em Portugal?PACHECO H uma grande resistncia em aceitar o nosso modelo, que baseado em trs grandes

valores: a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade. Algumas pessoas consideram que todos precisam ser iguais e que ningum tem direito a pensamento e ao divergentes. H quem rejeite a proposta por preconceito, mas isso ns compreedemos porque tambm temos os nossos. A diferena que ns nunca colocamos em cheque o trabalho dos outros. Consideramos que quem nos ataca faz isso porque no foi nosso aluno e no aprendeu a respeitar o ponto de vista alheio.

Qual o segredo de sucesso da proposta seguida pela Ponte?PACHECO Ns acreditamos que um projeto como o nosso s vivel quando todos reconhecem

os objetivos comuns e se conhecem. Isso no significa apenas saber o nome, e sim ter intimidade, como em uma famlia. nesse ponto que o projeto se distingue. O viver em uma escola um sentimento de cumplicidade, de amor fraterno. Todos que nos visitam dizem que ficam impressionados com o olhar das pessoas que ali esto, com o afeto e a palavra terna que trocam entre si. No sei se estou falando de educao ou da minha escola, mas isso o que acontece l.

O modelo da Escola da Ponte pode ser seguido por outras escolas?PACHECO No defendo modelos. A Escola da Ponte fez o que as outras devem e podem fazer,

que produzir snteses e no se engajar em um nico padro. No inventamos nada. Estamos em um ponto de redundncia terica. H muitas correntes e quem quer fazer diferente tem de ter mais interrogaes do que certezas. Considero que na educao tudo j est inventado. A Escola da Ponte no duplicvel e no h, felizmente, clonagem de projetos educacionais.

Hoje a escola pode funcionar sem o senhor?PACHECO Fui e continuo sendo um intermedirio. No tenho mrito por isso, apenas cumpro a

minha misso. Vou me afastar dentro de um ano e estou amargamente antecipando essa

despedida. Todo pai tem de deixar o filho andar por si prprio e, nesse momento, a Ponte caminha sozinha. Depois quero continuar desassossegando os espritos em lugares onde h gente generosa, que s precisa de um louco com a noo da prtica, como eu. Agora ningum pode dizer que uma experincia como a da Escola da Ponte no aconteceu, porque ela existe e provamos que possvel.

Quer saber mais?A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir, Rubem Alves, 120 pgs., Ed. Papirus, tel. (19) 3272-4500, 22 reais Quando Eu For Grande, Quero Ir Primavera, Jos Pacheco, 109 pgs., Ed. Didtica Suplegraf, tel. (11) 6941-0599, 19,60 reais Sozinhos na Escola, Jos Pacheco, 115 pgs., Ed. Didtica Suplegraf, 19,90 reais

RUBEM ALVES - A Escola da PonteVisitei Portugal e l conheci uma escola diferente: a Escola da Ponte. Foi um espanto. Fiquei apaixonado

OS OLHOS SO rgos marotos. Mesmo perfeitos, no so dignos de confiana. "No vemos o que vemos; vemos o que somos", escreveu Bernardo Soares. A gente pensa que os olhos pem dentro o que est longe, l fora, quando o que os olhos fazem por l longe o que est dentro. o caso dos olhos do pai e os olhos do apaixonado por sua filha... Olho de pai olho que se educou com a vida. Conhece a menina, viu-a nascer, crescer, voar, cair... Alegrou-se nos dias de sol, entristeceu-se nos dias de sombras e escurido. Os olhos do apaixonado so diferentes. Neles mora uma pitada da loucura que se chama fantasia. O apaixonado v como realidade aquilo que existe dentro dele como sonho. Versinho enorme de Fernando Pessoa: "Quando te vi, ameite j muito antes". Traduzindo: vejo no seu rosto o rosto que j morava dentro de mim, adormecido... O apaixonado um porta-sonhos. Vocs, meu leitores, no devem estar percebendo a propsito de que essa meditao sobre os olhares. que eu escrevo por meio de parbolas, e o que est em jogo um pai de olhar claro, uma donzela linda, sua filha, e um apaixonado que v com olhos de poeta. Respectivamente, o professor Jos Pacheco, a Escola da Ponte e eu, Rubem Alves. Visitei Portugal, acho que no ano 2000, e l conheci uma escola diferente: a Escola da Ponte. Para mim, foi um espanto. Fiquei apaixonado e escrevi um livrinho sobre ela: "A Escola com que Sempre Sonhei Sem Imaginar que Pudesse Existir". Amei a Escola da Ponte, amor primeira vista. Sou um educador. Escrevi muitas coisas sobre a educao no transcorrer da minha vida. Mas, de tudo o que escrevi, acho que minha contribuio mais significativa para a educao foi esse relato espantado e apaixonado.

A Folha publicou uma entrevista com o ttulo "O lado escuro da Escola da Ponte" (7 de maro de 2011). Nessa entrevista, o professor Jos Pacheco manifestou a sua preocupao com esse livro, exatamente por ele ter sado de um olhar apaixonado. A paixo obscurece os olhos que se pem ento a construir mitos. E os mitos podem ser enganadores. O meu livrinho poderia levar os leitores a fantasiar coisas maravilhosas sobre a escola que no correspondem realidade. O que so mitos? Mitos so sonhos transformados em poesia. E a poesia tem poderes mgicos de transformar e dar vida. Quem explica o mito Fernando Pessoa: "O mytho o nada que tudo;/ Sem existir, bastou./ Por no ter vindo foi vindo e nos creou./ Assim a lenda se escorre a entrar na realidade/ E a fecund-la decorre". A viso mtica, que no intencional, acendeu sonhos que dormiam em mim. A me vieram ao pensamento estes trs textos que dizem o que penso. Primeiro, Miguel de Unamuno: "Recuerda, pues, o suea t, alma mia -la fantasia es tu sustancia eterna lo que no fu; com tus figuraciones hazte fuerte, que eso es vivir, y lo dems es muerte". Depois, as palavras de Tolsti, que Guimares Rosa cita com aprovao: "Se descreves o mundo tal como , no haver em tuas palavras seno muitas mentiras e nenhuma verdade". Finalmente, esse delicioso poeminha de Mrio Quintana sobre as utopias: "Se as coisas so inatingveis, ora... no motivo para no quer-las. Que tristes os caminhos se no fora a presena distantes das estrelas". Continuarei a apontar para as estrelas...