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JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA A leitura infinita A Bíblia e a sua interpretação

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JOSÉ TOLENTINOMENDONÇA

A leitura infinitaA Bíblia e a sua interpretação

A LEITU

RA IN

FINITA

José Tolentino Mendonça

A Bíblia representa uma espécie de atlas. É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatu-ral, um fascinante laboratório de linguagens. Desconhecer a Bíblia não é apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é também uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde histori-camente nos inscrevemos. Compreender a Bíblia é compreender-se…

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA é uma das vozes originais do Portugal con-temporâneo. Especialista em estudos bíbli-cos, tem abordado com rigor e criativi-dade os temas e os textos do cânone cristão, mantendo um diálogo sensível com as interrogações do presente.

A relação entre o Cristianismo e a Cul-tura é uma das ideias-chave do seu percurso. Foi Straus Fellow, na New York University, integrando uma equipa de investigadores do tema «Religião e Espaço Público». Ocupa os cargos de vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa e de diretor do Centro de Estudos de Religiões e Culturas. É consultor do Pontifício Con-selho para a Cultura, no Vaticano.

Além de ensaísta, tem uma obra poé-tica que muitos reconhecem entre as mais marcantes do panorama atual. Os seus livros conhecem um grande sucesso em Portugal e são cada vez mais traduzidos internacionalmente.

A LEITURA INFINITAInfinita é também a tarefa que o leitor da Bíblia sente, não raras vezes, ao iniciar o contacto com o texto. Por um lado, a Bíblia exerce uma atração inesgotável. Por outro, essa atração mostra-nos rapida- mente que precisamos de uma iniciação ao mundo textual que está ali presente. Não basta colocarmo-nos a ler a Bíblia: precisamos de uma hermenêutica, por mais simples ou complexa que seja. A Palavra bíblica é uma janela, um espe-lho, uma fonte ou uma lâmpada, e em todas essas modalidades é imprescindível não só à construção do caminho crente, mas também à maturação cultural. Porém, não se acede a ela sem ativar uma espécie de arte da leitura. Ora, é precisa-mente com essa necessidade que este tra- balho dialoga.

José Tolentino Mendonça

A LEITURA INFINITA

A Bíblia e a sua interpretação

Coordenação da coleção: José Tolentino Mendonça

Pré-impressão Paulinas Editora – Prior VelhoImpressão e acabamentos Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda

ISBN 978-989-673-422-0

© Novembro 2014, Inst. Miss. Filhasde São PauloRua Francisco Salgado Zenha, 112685-332 Prior VelhoTel. 219 405 640 – Fax 219 405 649e-mail: [email protected]

SEM VALOR COMERCIAL

COLEÇÃO

POÉTICAS DO VIVER CRENTESérie JTM

As obras de um autor de referência, empenhado em

fazer dialogar a experiência cristã com os desafios de

um mundo que se entreabre em modos sempre

novos.

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A dado momento, conta Flaubert, Santo Antão,agitado pelas maiores fraquezas, pede a Deus co-ragem e entra na sua cela. Acende uma fogueiraque lhe permita fixar as letras do grosso volume.E cambaleando ainda, entre fantasmas que o em-purram para as derivas que ele não quer, abre a Bí-blia sucessivamente (cinco vezes, precisa a no-vela) em busca de proteção. Das cinco vezes,porém, fecha o livro e as mãos tremem-lhe. As ob-sessões contra as quais ele pugna, na depurada viada ascese, vêm incontroláveis ao seu assalto nasdescrições do texto sacro. Uma voz do céu ordenaque coma da grande toalha que desce sobre aterra, cheia da peçonha de répteis e quadrúpedes.A violência, o sangue e o desmando misturam-secom a névoa de sortilégios baços e de presságios.Como veneno doce, o perfume da glóriaadormece a paisagem... Michel de Foucauld diz,no prefácio à obra de Flaubert, que o eremitapercebe que «o Livro é o lugar da tentação». Por

isso, afasta de si a Bíblia, gritando pelo socorro deDeus.Mas a história que Flaubert conta sobre Antão

Abade, no fundo, o que conta? Que é inútil imporao texto um programa de compreensão, quandonos é pedido o contrário: que nos exponhamos aotexto, na nossa fragilidade, a fim de receber dele,e à maneira dele, um eu mais vasto.

�Na Bíblia, o quadro social que se descobre é

plural e amplo: reis destronados por pastores,pequenos proprietários que resistem à opressãode poderosos, cortesãos que caem ou ascendem,deportados, mulheres fortes, indagadores, furi-bundos, pacíficos, sonhadores, oficiantes. Os per-sonagens da Bíblia são narrativamente desenhadoscom uma profundidade maior de consciência edestino. A sua presença não é sequer laboriosa-mente descrita. Por vezes basta um traço, um de-talhe, uma escuridão, alguma coisa que acene im-precisa na distância, para recolher isso que cadaum é de único. Eles são os eleitos, mas experi-mentam a paradoxal mão do Senhor. David ouJob, Elias ou Ester, os heróis bíblicos sabem osmistérios subidos da vontade divina e todavia per-manecem falíveis, expostos à convulsão e ao es-

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magamento indizíveis, perseguidos e acossados.Esta incerta condição, que tanto os afunda noenigma de Deus, é porém, depois, a possibilidadeinaudita da sua revelação. Os contrastes de som-bra e luz aí propostos, a ondulação, direta e es-pessíssima das figuras, tornam-as concretas e maisvulneravelmente históricas que qualquer perso-nagem da galeria homérica. Claro que na Bíbliaabunda o sublime, mas soletrado assim num rea-lismo de vida comum, inseparável do ordinário edo quotidiano. Passa também por aqui o seu sin-gular fascínio.

�Claro que é exagerado, e claro que é exatís-

simo aquilo que Wilde escreve: «Nem em Ésquilonem em Dante, esses mestres supremos da ter-nura, nem em Shakespeare, o mais puramentehumano de todos os grandes artistas, nem noconjunto das lendas e mitos celtas, onde a belezado mundo é apresentada através de um nevoeirode lágrimas, e a vida do homem não é mais do quea vida de uma flor, há alguma coisa que, na abso-luta simpatia do pathos empenhado e tornadoum só com a sublimidade do efeito trágico, sepossa considerar igual, ou mesmo aproximada…»Nos Evangelhos, o escritor encontra todos os

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elementos da vida: o mistério, a estranheza, a su-gestão, o êxtase, o amor, o apelo à capacidade deespanto que cria aquela disposição de espíritopela qual, e apenas pela qual, sublinha, aquelespodem ser lidos e entendidos. Por isso, explicaele, a estes textos bíblicos se deve tudo: a catedralde Chartres, o ciclo das lendas arturianas, a vidade São Francisco de Assis, a arte de Giotto, a Di-vina comédia de Dante, o Romeu e Julieta e oConto de inverno, Os miseráveis de Victor Hugoe As flores do mal de Baudelaire, os intensíssimosmármores transparentes de Miguel Ângelo, a notade piedade dos romances russos.

�No grande esforço de viragem metodológica

que se verifica atualmente nas ciências bíblicas,tem-se manifestado o intenso interesse de autoresque provêm do âmbito dos estudos literários e oseu entusiasmo pela altíssima qualidade da nar-ração bíblica. Sem dúvida que a consolidação deuma viragem metodológica resulta do trabalhodos exegetas, um trabalho que, por vezes, é alvode ironias e incompreensões, e que, claro está,não é, ele próprio, isento de erros, mas que, fei-tas as contas, gerou progressos irrecusáveis nanossa compreensão da Bíblia. Porém, o recente

contributo desse inesperado factor, que é o olhara partir da literatura, abriu, estimulou, inscreveucomo possível e fecunda uma outra leitura da Bí-blia.

�Dentre os meios da arte expressiva de João, um

dos mais admiravelmente desconcertantes é o re-curso à indeterminação. O objetivo do Evangelhoestá bem definido (foi escrito «para crerdes que Je-sus é o Cristo», Jo 20,31), mas a narrativa evangé-lica apresenta-se como uma história aberta. Em vezde conclusões dirimentes, a trama opta por umacomposição paciente: não há pressa em calar per-guntas, nem em dissolver ambiguidades, nem emimpedir interpretações inconclusivas que, por ve-zes, até os mais próximos, fazem das palavras deJesus. A indeterminação instaura entre texto e oleitor uma espécie de espaço em branco, um pa-tamar vazio, um tempo que ainda não começou.Como que se insinua que o mistério que rodeia Je-sus está e não está resolvido, para que precisa-mente esse interstício se revele como possibili-dade de inscrever uma nova e atual demanda. Aindeterminação é, portanto, a construção retó-rica de um encontro.

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A Bíblia tem sido objeto de uma apropriaçãopor parte da cultura. Surge não raro como operaaperta, acessível à variedade de leituras, disponí-vel para questionamentos interdisciplinares, sus-cetível de múltiplos níveis de interpretação.«Numa Europa fortemente descristianizada – avisaAnne-Marie Pelletier –, a Bíblia está prestes a se-dimentar leitorados para lá das fronteiras domundo crente.» De facto, a circulação contempo-rânea da Bíblia acontece já fora daquilo que cha-maríamos os seus limites naturais ou tradicionais.O estatuto cultural que lhe reconhecem investe--a de uma capacidade inédita de cruzar e aproxi-mar públicos, suscitar amplos entusiasmos, des-pertar curiosidades inusitadas.

�Neste amor, o encontro é interminável, é

sempre e ainda o desejo do encontro. Desejovital, encravado no segredo do corpo como umadoença: «Eu vos conjuro, mulheres de Jerusalém:se encontrardes o meu amado, sabeis o que dizer--lhe? Que eu adoeço de amor» (Ct 5,8). O corpoamoroso é poderoso e vencedor, mas tambémvencido e suplicante, pois o encontro de amor éjá o desencontro do amor: «No meu leito, toda anoite, procurei aquele que o meu coração ama;

procurei-o e não o encontrei. Vou levantar-me edar voltas pela cidade: pelas praças e pelas ruas,procurarei aquele que o meu coração ama.Procurei-o e não o encontrei. Encontraram-me osguardas que fazem ronda pela cidade: “Vistesaquele que o meu coração ama?” Mal me aparteideles, logo encontrei aquele que o meu coraçãoama» (Ct 3,1-4). O amor está sempre a serproposto e reproposto: nunca é construçãoterminada. Há um ritmo incessante de movi-mentos, quase vertiginoso em alguns momentos.O amor faz dos enamorados nómadas, buscadorese mendigos. Todo o diálogo de amor é umaconversa entre mendigos: não entre gente quesabe, mas entre quem não sabe; não entre genteque tem, mas entre quem nada retém. Por isso amaior declaração de amor não é uma ordem, éainda um pedido: «Grava-me como selo em teucoração, como selo no teu braço, porque fortecomo a morte é o amor» (Ct 8,6).As mãos ardem folheando este livro que pede

para ser lido por dentro dos olhos, este livrohumano e sagrado, este cântico anónimo quetodos sentem seu, este relato de um sucesso e deum naufrágio ao mesmo tempo manifestos esecretos, esta ferida inocente, esta mistura debusca e de fuga, este rapto onde tudo afinal se

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declara, esta cartografia incerta, este estado desítio, este estado de graça, este único sigilogravado a fogo, este estandarte da alegria, este diae noite enlaçados, esta prece ininterrupta ondeDeus se toca.

�No relato que inaugura a revelação bíblica, já

o casal humano é definido a partir da sexuali-dade. Os termos zâkâr e neqébâ, macho e fêmea,comparecem em Gn 1,27: «E criou Deus o serhumano (‘adam) à sua imagem, à imagem deDeus o criou; macho (zâkâr) e fémea (neqébâ) oscriou.» É interessante notar o ritmo da construçãofrásica. A primeira nomeação do ser humano é ge-nérica, vem num singular coletivo, e a etimologiado termo empregue, ‘adam, inscreve-o simples-mente na situação terrestre. É na segunda no-meação, quando se visa especificar em detalhe aobra criadora de Deus, que surge com todo o rea-lismo o caráter sexuado do casal humano: zâkâré o «membrum virile» e neqébâ é «aquela que serasga, que se penetra». Este retardamento da di-ferenciação de género, colocada apenas no finalda frase, serve sem dúvida para afastar leituras queentendessem o Deus, do qual o ser humano é se-melhante, como um deus andrógino ou ambíguo.

O homem é semelhante a Deus na sua designaçãomais total. Contudo, colocada neste contexto, a re-ferência ao macho e fémea atesta que «a sexuali-zação do homem não é uma consequência daqueda (nem do pecado). É desde a sua criação queo casal humano é sexuado».Talvez o traço mais original da apresentação

que a Bíblia faz da sexualidade resida na reivindi-cação de uma sexualidade especificamente hu-mana. É isso que narrativamente ela se ocupa aelaborar, distanciando-se do paradigma que, nasculturas vizinhas, era tutelar: o da sexualidade sa-grada. A sexualidade é olhada pelo texto bíblico,desde o princípio, como um território privile-giado de descoberta e de construção do humano.

�O comer e o beber são importantes para as

religiões. O Cristianismo também se interessoumuito pela comida, e ao contrário das outras duasreligiões monoteístas, o Judaísmo e o Islão, deixoucair os interditos alimentares. A mesa e a refeiçãotornam-se por excelência o sítio da universalidadee da utopia cristãs.Jesus não ensina a confecionar um prato.

Lendo os Evangelhos não conseguimos, talvez,preparar um jantar. Mas somos seguramente

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capazes de organizar um banquete: quemconvidar prioritariamente, onde colocar-se nageografia da mesa, que atitude assumir. Jesus foiacusado de comilão e beberrão pelos seusopositores, e pelos vistos era. E uma das últimascoisas que disse foi: «Desejei ardentemente comeresta Páscoa convosco» (Lc 22,15). O comer não eracircunstancial na sua vida. É interessante o verboque utiliza, «desejei», porque liga, sabiamente, arefeição ao desejo.Os Evangelhos narrammúltiplas refeições, cujo

sentido se enfraquece quando lidas apenas pelolado do maravilhoso. O milagre deixa o leitorprecocemente saciado. As refeições são para Jesussobretudo atos performativos, onde Ele explicitao seu projeto, colocando os que não podem estarjuntos à volta da mesma mesa, preparando umarefeição igualitária para a multidão díspar doshomens e mulheres.

�Ainda que, nas comunidades sinagogais do

judaísmo helenístico, algumas mulheres piedo-sas, provenientes da aristocracia, tenham tido umpapel não secundário, no contexto palestinense,considerar mulheres como discípulas só poderiaprovocar escândalo. Pois uma coisa era o auxílio

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feminino a mestres e discípulos, pela oferta de di-nheiro, bens ou alimentos, outra é que as própriasmulheres se tornem «discípulas itinerantes de umrabi». Tome-se como aceno o espanto dos discí-pulos-varões, no quarto Evangelho, ao surpreen-derem Jesus a falar com uma mulher (cf. 4,27). Eo discipulado supõe «uma forte ligação pessoal aJesus».Nesta abertura do capítulo diz-se que as mu-

lheres estavam «com Jesus», expressão utilizadapara os Doze (9,18; 22,56) e que indica igual-mente um estar com Jesus mais lato (cf. 8,38). EmLc 23,49 conta-se que estas mulheres o «segui-ram», modo com que é referido também o segui-mento dos próprios Apóstolos (cf. 5,11.28). Umacaracterística da relação de Jesus com as suas se-guidoras é que a transformação que Ele provocanão passa por reivindicar para elas novos papéissociais ou outros direitos, mas em encontrar umsentido inédito para as funções tradicionais atri-buídas à mulher. Os atos de hospitalidade e ocuidado pela manutenção da vida passam, porexemplo, a ser vistos como um serviço de fé.Esta presença invulgar e contínua de mulheres

entre os que seguem Jesus contribui sem dúvidapara tornar ainda mais enigmática a figura do pro-

tagonista. «Quem é, de facto, este Jesus», que nossurge relatado a partir de traços tão peculiares?

�Da multidão, destacam-se figuras anónimas,

cuja caracterização se resume ao breve relato dacarência que sofrem e do modo como Jesus a re-solve. (...) Em traços gerais pode contar-se assimcada um destes episódios: numa situação de trans-torno existencial (doença, morte, possessão...), oencontro com Jesus constitui a oportunidade deuma transformação libertadora. E a ação cum-prida por Ele não se confunde com o desenvolvi-mento de uma ciência médica: não há a elabora-ção de um diagnóstico, nem a prescrição de umaterapia. Há simplesmente o encontro com Jesus:o impacto da sua palavra, dos seus gestos, da suaautoridade. Em alguns episódios, ainda, a fé torna--se motivo para a cura. Mas não se deverá aí iden-tificar a fé como forma de encontro radical com Je-sus?Estes são os dados gerais. Mas o que tornam

únicos estes momentos é o modo como o acon-tecimento central se rodeia de características par-ticulares: os gritos que os possessos lançam; o fioda navalha em que Jesus se coloca ao tocar no le-proso, arriscando a contaminação; a dramática

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espetacularidade de um doente que é descido,através das telhas, para conseguir alcançar a pro-ximidade de Jesus; a humildade do centurião e asua certeza de que bastaria apenas uma palavra doSenhor; a comoção de Jesus diante das lágrimas damãe de Naim; o realismo (quase negro) com quenos é apresentado o possesso geraseno, presocom cadeias e algemas e rebentando-as com forçademoníaca; a dor dos pais que perdem a única fi-lha e a dor, envergonhada e solitária, que vive amulher hemorroísa; o incalculável sofrimento quese esconde neste pedido: «Mestre, rogo-te quevenhas ver o meu filho.»A presença de Jesus revela-se a força recons-

trutora daquelas vidas bloqueadas. (...) Se asopressões em que os vários sujeitos aparecemmergulhados são desfeitas, isso sinaliza a emer-gência daquele que traz a salvação de Deus aoemaranhado da história. Justamente por isso os re-latos de exorcismos e curas funcionam como umapropagação do único tema: a identidade de Jesus.No espanto que se apodera dos circundantes, nadeclaração dos que solicitam a intervenção de Je-sus, na fama que se expande a seu respeito, nasmovimentações que seguem o seu encalço ou nospedidos para que Ele se desloque está subjacenteuma determinada ideia ou interrogação sobre a

pessoa de Jesus. Podemos dizer que esta procurade Jesus é uma realidade construída episódio aepisódio e cada personagem desempenha um pa-pel nessa construção.

�Lucas mostra como o Cristianismo inventou e

promoveu uma verdadeira gramática suportadapor uma voluntária ambivalência semântica, sus-cetível de abrigar a diversidade. O grego que seusa é o koiné, o linguajar corrente, o grego que asconquistas de Alexandre Magno impuseram aolongo da metade oriental do Mediterrâneo. Mas adicção é espantosamente nova e universalista. Sãoinfindas as expressões e desdobram-se os exem-plos desta deliberada polissemia. (...)Que efeito tem esta ambivalência? – pergun-

tamo-nos. Um efeito de abertura. Ora, essa brechasemântica revela-nos a identidade cristã. O Cris-tianismo é uma realidade mista, heterogénea eplural desde a sua origem. Num dos primeiros es-forços para o dizer, faz-se a escolha de uma con-figuração transcultural para o Cristianismo. Eleconstrói-se do lado da hospitalidade.

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O coração de Deus ensina o que é não des-prezar, não excluir. O facto de a oração do fariseunão ter sido aceite diz-nos isso. Que no coração deDeus não há lugar para divisão, para muros. QueDeus não podia por isso legitimar uma tal oração.Em Jesus presentifica-se plenamente este desígniode misericórdia de Deus. Ele soube abolir as fron-teiras de toda a ordem que segmentavam as rela-ções: anunciou a salvação aos que tinham sido ata-dos à margem, fez chegar a notícia feliz aospobres, tocou os «impuros» e os distantes, acolheuos estrangeiros, restituiu à vida aos perdidos. E es-tes gestos, precisamente, permitiram reconhecernele (cf. Lc 4,17-20) o Messias, fruto primacial e,ao mesmo tempo, perfeito cumprimento doReino. No fim de contas, Ele disse-nos que é o ou-tro quem nos torna justos.

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SUMÁRIO

O elogio da leitura

Escondimento e revelação

Ars amatoria

A cozinha e a mesa

«No meio de vós está o que não conheceis»

Dizer o Invisível sem o prender

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A leitura infinitaA Bíblia e a sua interpretação

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A Bíblia representa uma espécie de atlas. É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatu-ral, um fascinante laboratório de linguagens. Desconhecer a Bíblia não é apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é também uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde histori-camente nos inscrevemos. Compreender a Bíblia é compreender-se…

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA é uma das vozes originais do Portugal con-temporâneo. Especialista em estudos bíbli-cos, tem abordado com rigor e criativi-dade os temas e os textos do cânone cristão, mantendo um diálogo sensível com as interrogações do presente.

A relação entre o Cristianismo e a Cul-tura é uma das ideias-chave do seu percurso. Foi Straus Fellow, na New York University, integrando uma equipa de investigadores do tema «Religião e Espaço Público». Ocupa os cargos de vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa e de diretor do Centro de Estudos de Religiões e Culturas. É consultor do Pontifício Con-selho para a Cultura, no Vaticano.

Além de ensaísta, tem uma obra poé-tica que muitos reconhecem entre as mais marcantes do panorama atual. Os seus livros conhecem um grande sucesso em Portugal e são cada vez mais traduzidos internacionalmente.

A LEITURA INFINITAInfinita é também a tarefa que o leitor da Bíblia sente, não raras vezes, ao iniciar o contacto com o texto. Por um lado, a Bíblia exerce uma atração inesgotável. Por outro, essa atração mostra-nos rapida- mente que precisamos de uma iniciação ao mundo textual que está ali presente. Não basta colocarmo-nos a ler a Bíblia: precisamos de uma hermenêutica, por mais simples ou complexa que seja. A Palavra bíblica é uma janela, um espe-lho, uma fonte ou uma lâmpada, e em todas essas modalidades é imprescindível não só à construção do caminho crente, mas também à maturação cultural. Porém, não se acede a ela sem ativar uma espécie de arte da leitura. Ora, é precisa-mente com essa necessidade que este tra- balho dialoga.