Joseph Ratzinger - Meditação sobre a Fé

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  • 8/8/2019 Joseph Ratzinger - Meditao sobre a F

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    F, verdade ecultura

    Por Joseph Ratzinger

    A busca da verdade sobre Deus e sobre o mundo profundamente humana e aparece em todas as culturas. Masa verdade no meramente relativa, como se as culturasfossem incomunicveis e incapazes de evoluir. por ela quea f catlica encontra-se com a filosofia e com as outras

    religies. Estas reflexes do ento Cardeal Ratzinger sobre aEncclica Fides et Ratio, de Joo Paulo II, foram apresentadasno Primeiro Congresso Internacional da Faculdade SanDmaso de Teologia, em Madrid, no dia 16.02.2000.

    Do que trata, essencialmente, a Encclica Fides et ratio? umdocumento s para especialistas, uma tentativa de renovar a partir daperspectiva crist uma disciplina em crise, a Filosofia, e portanto

    interessante s para os filsofos, ou coloca uma questo que nos afetaa todos? Dito de outra maneira: A F precisa realmente da Filosofia,ou a F que, em palavras de Santo Ambrsio, foi confiada apescadores e no a dialticos completamente independente daexistncia ou inexistncia de uma filosofia aberta em relao a ela? Seconsiderarmos a Filosofia apenas como uma disciplina acadmica

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    entre outras, ento a F de fato independente dela. Mas o Papa JooPaulo II entende a Filosofia num sentido muito mais amplo e maisconforme com a sua origem. A Filosofia pergunta se o homem podeconhecer a verdade, as verdades fundamentais sobre si mesmo, sobre

    a sua origem e o seu futuro, ou se vive numa penumbra que no possvel iluminar e tem de recolher-se, em ltima anlise, ao mbitoda utilidade.

    A caracterstica prpria da F crist no mundo das religies queafirma dizer-nos a verdade sobre Deus, o mundo e o homem, e quepretende ser a religio vera, a religio da verdade.

    Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida: nestas palavras de Cristo

    segundo So Joo (14, 6) est expressa a pretenso fundamental daF crist. Dessa pretenso, brota o impulso missionrio da F: se a Fcrist a verdade, diz respeito a todos os homens. Se fosse apenasuma variante cultural das experincias religiosas do homem, cifradasem smbolos e nunca decifradas, ento faria bem em permanecer nasua cultura e deixar as outras em paz.

    Mas isto significa o seguinte: a questo da verdade a questoessencial da F crist, e, neste sentido, a F tem inevitavelmente aver com a Filosofia. Se tivesse que caracterizar brevemente a intenoda Encclica, diria que quer reabilitar a questo da verdade nummundo marcado pelo relativismo. Perante a situao atual da Cincia que certamente busca verdades, mas qualifica a questo da verdadecomo sendo no-cientfica , a Encclica apresenta essa questo comotarefa racional e cientfica; caso contrrio, a F perderia o ar querespira. A Encclica quer simplesmente animar-nos de novo aempreender a aventura da verdade. Por isso fala daquilo que est forado mbito da F, mas tambm daquilo que est no prprio centro domundo da F.

    1. AS PALAVRAS, A PALAVRA E A VERDADE

    Num livro de sucesso publicado nos anos quarenta, Cartas do diabo aoseu sobrinho, o escritor e filsofo C.S. Lewis mostrou magnificamentecomo no moderno perguntar pela verdade. O livro compe-se de

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    para que nos aproveita? Alis, para que existimos?

    O observador profundo ver nessa atitude fundamental moderna uma

    falsa humildade e, ao mesmo tempo, uma falsa soberba: falsahumildade, porque nega ao homem a capacidade de conhecer averdade; e falsa soberba, porque esse homem se situa acima dascoisas, acima da prpria verdade, e na medida em que erige comometa do seu pensamento a ampliao do seu poder acima darealidade.

    O que em Lewis aparece sob a forma de ironia, podemos encontr-lohoje apresentado cientificamente na crtica literria, em que a a

    questo da verdade abertamente descartada como no-cientfica. Oexegeta alemo Mario Reiser chamou a ateno para uma passagemde Umberto Eco no seu best-seller O nome da rosa, em que diz: Anica verdade consiste em aprender a libertar-se da paixo doentiapela verdade.

    O fundamento para a renncia inequvoca verdade estriba no quehoje se denomina o giro lingstico: no se poderia remontar paraalm da linguagem e das suas representaes, a razo estariacondicionada pela linguagem e vinculada linguagem. J em 1901 F.Mauthner cunhou a seguinte frase: O que se denomina pensamento pura linguagem. M. Reiser comenta, neste contexto, o abandono daconvico de que com meios lingsticos se pode ascender ao que supralingstico. O relevante exegeta protestante U. Luz afirma totalmente de acordo com o que antes dizia Screwtape que a crticahistrica abdicou na Idade Moderna da questo da verdade, econsidera-se obrigado a aceitar e reconhecer como correta essacapitulao: agora j no haveria uma verdade a buscar para alm dotexto, mas apenas posies sobre a verdade que concorreriam entresi, ofertas de verdade que seria preciso defender com um discursopblico no mercado das vises-de-mundo.

    Quem medita sobre semelhantes modos de ver as coisas, perceberque lhe vem quase que inevitavelmente memria uma passagemprofunda do Fedro de Plato. Nela, Scrates conta a Fedro uma

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    histria ouvida dos antigos, que tinham conhecimento do que verdadeiro. Certa vez Thot, o pai das letras e o deus do tempo,teria visitado o rei egpcio Thamus, de Tebas. Instruiu o soberano em

    diversas artes que havia inventado, e especialmente na arte deescrever que tinha concebido. Ponderando o seu prprio invento, disseao rei: Este conhecimento, rei, tornar os egpcios mais sbios efortalecer a sua memria; o elixir da memria e da sabedoria. Maso rei no se deixou impressionar. Previu o contrrio comoconseqncia do conhecimento da escrita: Este mtodo produziresquecimento nas almas dos que o aprenderem porque descuidaro oexerccio da memria, j que agora, fiando-se da escrita externa,recordaro apenas de uma maneira externa, no a partir do seu

    prprio interior e de si mesmos. Por conseguinte, tu inventaste ummeio, no para recordar, mas para perceber, e transmites aos teusaprendizes apenas a representao da sabedoria, no a prpriasabedoria. Pois agora so eruditos em muitas coisas, mas semverdadeira instruo, e assim pensam ser entendidos em mil coisasquando na realidade no entendem nada, e so gente com quem difcil tratar, pois no so verdadeiros sbios, mas sbios apenas naaparncia.

    Quem pensa no modo como hoje os programas de televiso do mundointeiro inundam o homem com informaes e o tornam assim sbiona aparncia; quem pensa nas enormes possibilidades docomputador e da Internet, que, por exemplo, permitem que qualquerum tenha acesso a todos os textos de um Padre da Igreja e veja aspalavras sem no entanto ter compreendido o pensamento, esse noconsiderar exageradas as prevenes do rei. Plato no rejeita aescrita enquanto tal como ns tambm no rejeitamos as novaspossibilidades de informao, antes fazemos delas um uso agradecido

    , mas d um sinal de alerta cuja seriedade se comprova diariamentepelas conseqncias do giro lingstico e pelas muitas circunstnciasque so familiares a todos. H. Schade mostra o ncleo daquilo quePlato tem a dizer-nos hoje quando escreve: acerca do predomniode um mero mtodo filolgico e da conseqente perda da realidadeque Plato nos previne.

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    Quando a escrita, o escrito, convertido em barreira que oculta ocontedo, transforma-se numa anti-arte, que no torna o homemmais sbio, mas o leva a extraviar-se numa sabedoria falsa e doente.

    Por isso, em face do giro lingstico, A. Kreiner adverte com razo: O abandono da convico de que se pode remeter com meioslingsticos a contedos extralingsticos equivale ao abandono de umdiscurso que de algum modo ainda estava cheio de sentido. E sobreesta mesma questo Joo Paulo II comenta na Encclica Fides et ratio: A interpretao desta Palavra (a de Deus) no pode levar-nos deinterpretao em interpretao, sem nunca chegarmos a descobriruma afirmao simplesmente verdadeira. O homem no estaprisionado na sala de espelhos das interpretaes; pode e deve

    buscar o acesso ao real, que est alm das palavras e se lhe revelanas palavras e atravs delas.

    Aqui chegamos ao ponto central da discusso da F crist comdeterminado tipo de cultura moderna, que gostaria de ser consideradacomo a cultura moderna sem mais, mas que, felizmente, apenasuma variedade desta. Isto fica muito claro, por exemplo, na crtica queo filsofo italiano Paolo Flores dArcais fez Encclica Fides et ratio.

    Como a Encclica insiste na necessidade da questo da verdade,comenta esse pensador que a cultura catlica oficial (isto , aEncclica) j no tem nada que dizer cultura enquanto cultura....Mas isso significa tambm que a pergunta pela verdade estaria fora dacultura enquanto cultura. Nesse caso, porm, essa tal culturaenquanto cultura no seria antes uma anticultura? E no seria a suapresuno de ser a cultura sem mais uma presuno arrogante eque despreza o ser humano?

    Fica evidente que exatamente disso que se trata quando Flores

    dArcais acusa a Encclica de ter conseqncias mortferas para ademocracia e identifica o seu ensinamento com o tipo fundamentalista do Isl. Comentando o fato de o Papa terqualificado como carentes de validade autenticamente jurdica as leisque permitem o aborto e a eutansia, argumenta: quem se opusessedessa forma a um Parlamento eleito e tentasse exercer o poder

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    secular com uma mscara eclesial, mostraria que o selo dodogmatismo catlico permanecer essencialmente estampado no seupensamento.

    Semelhantes afirmaes pressupem que no pode haver nenhumainstncia acima das decises da maioria. A maioria conjunturalconverte-se num absoluto. Porque, de fato, volta-se a cair numabsoluto, algo inapelvel. Estamos expostos ao domnio do positivismoe absolutizao do conjuntural, do manipulvel. Se o homem pe-sefora da verdade, necessariamente passa a estar submetido aoconjuntural, ao arbitrrio. Por isso, no fundamentalismo, e simum dever de humanidade proteger o homem contra a ditadura do

    conjuntural convertido em absoluto e devolver-lhe a sua dignidade,que consiste justamente em que nenhuma instncia humana podedomin-lo porque est aberto prpria verdade. Precisamente pelasua insistncia na capacidade do homem para a verdade, a Encclica uma apologia sumamente necessria da grandeza do homem contratudo o que pretende apresentar-se como a cultura tout court.

    Naturalmente, difcil voltar a dar carta de cidadania questo daverdade no debate pblico, por causa do cnon metodolgico que hoje

    se imps como selo de garantia de cientificidade. Por isso necessrioum debate fundamental sobre a essncia da Cincia, sobre a verdadee o mtodo, sobre a tarefa que cabe Filosofia e sobre os possveiscaminhos que ela pode trilhar.

    O Papa no considerou que era tarefa sua tratar na Encclica daquesto totalmente prtica de se a verdade pode chegar a sernovamente cientfica, e como. Mas mostra por que devemos acometeressa tarefa. No quis realizar ele mesmo a tarefa dos filsofos, mascumpriu a tarefa de denunciar e advertir-nos contra aquilo que umatendncia auto-destrutiva da cultura enquanto tal. Alis, justamenteessa chamada de ateno um ato autenticamente filosfico, querevive no presente a origem socrtica da Filosofia e com isso mostra apotncia filosfica contida na F bblica.

    Ope-se essncia da Filosofia um certo tipo de cientificidade que

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    barra o caminho para a questo da verdade, ou mesmo a tornaimpossvel. Essa autoclausura, esse apoucamento da razo no podeser a norma da Filosofia, nem a Cincia como um todo pode tornar

    impossveis as perguntas que so prprias do homem, sem as quais aprpria Cincia converte-se num ativismo vazio e, no fim das contas,perigoso. O papel da Filosofia no o de submeter-se a um cnonmetodolgico qualquer, por ser ele legtimo para certos setores dopensamento. Sua tarefa tem de ser justamente a de pensar acientificidade como um todo, conceber criticamente a sua essncia e de maneira racionalmente responsvel ir mais alm, rumo quiloque lhe d sentido.

    A Filosofia tem de perguntar-se sempre sobre o homem, e portantoquestionar-se sempre sobre a vida, sobre a morte, sobre Deus e sobrea eternidade. Para isso, ter de servir-se hoje, antes de mais nada,dos becos sem sada aos quais chega aquele tipo de cientificidade queafasta o homem de tais questes. E partindo dessas aporias que anossa sociedade pe mostra tentar sempre abrir novamente ocaminho rumo ao que necessrio, e rumo quilo que se faznecessrio.

    Na histria da Filosofia moderna no faltaram tentativas como essa tambm hoje em dia h suficientes ensaios promissores , visandoabrir outra vez a porta para a questo da verdade: uma porta paraalm da linguagem que gira sobre si mesma. Nesse sentido, achamada da Encclica sem dvida crtica para com a nossa situaocultural atual, mas ao mesmo tempo est em profunda unio com oselementos essenciais do esforo intelectual da Idade Moderna.

    A confiana em buscar a verdade e encontr-la nunca anacrnica. justamente essa confiana que mantm o homem na sua dignidade,que rompe os particularismos e une as pessoas ultrapassando oslimites culturais , em virtude da sua comum dignidade.

    2. CULTURA E VERDADE

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    a)A essncia da Cultura

    Tratamos at aqui do debate entre a F crist que a Encclica expressa

    e um tipo concreto de cultura moderna; por isso as nossas reflexesdeixaram entre parnteses o lado tcnico-cientfico da Cultura: o olhardirigiu-se ao que se relaciona com as cincias humanas na nossacultura. No seria difcil mostrar que a sua desorientao quanto questo da verdade (que acabou por converter-se em ira contra essetema) reside, em ltima anlise, na pretenso de se alcanar omesmo cnon metodolgico, o mesmo tipo de segurana, que se dno campo emprico.

    A renncia metodolgica praticada pela cincia natural, que a leva aater-se ao que pode ser verificado, converte-se em credencial dacientificidade; mais ainda: converte-se na prpria racionalidade. Essareduo metodolgica, cheia de sentido alis, necessria nombito da cincia emprica, converte-se assim num muro para aquesto da verdade. No fundo, trata-se do problema da verdade e domtodo, da universalidade de um cnon metodolgico estritamenteemprico. Em face desse cnon, o Papa defende a multiplicidade decaminhos do esprito humano, a amplitude da racionalidade, queprecisa conhecer diversos mtodos conforme a ndole do objeto. O que imaterial no pode ser abordado com os mtodos que correspondemao que material. Assim poderia ser resumida, em grandes traos, adenncia do Papa contra uma forma unilateral de racionalidade.

    O debate com a cultura moderna, o debate acerca da verdade e domtodo, a primeira fibra do tecido da Encclica. Mas a questoacerca da verdade da cultura apresenta-se ainda sob outro aspecto,que substancialmente remete-se ao mbito propriamente religioso.Hoje, contrape-se de bom grado a relatividade das culturas

    pretenso universal do cristo, fundamentada na universalidade daverdade. O tema ressoa j no sculo XVIII em Gotthold EphraimLessing, que apresenta as trs grandes religies na parbola dos trsanis, dos quais um tem que ser o autntico, mas cuja autenticidadej no verificvel. A questo da verdade insolvel e substituda

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    pela questo do efeito curativo e purificador da religio.

    Logo no incio do sculo XX, Ernst Troeltsch refletiu expressamente

    sobre a questo da religio e da cultura, da verdade e da cultura. Noprincpio ainda considerava o Cristianismo como a revelao completada religiosidade personalista, como a nica ruptura completa com oslimites e as condies da religio natural. Mas, no decorrer do seucaminho intelectual, a determinao cultural da religio foi fechando-lhe cada vez mais o olhar para a verdade e subordinando todas asreligies relatividade das culturas. No final, a validez do Cristianismoconverte-se num assunto europeu: para ele o Cristianismo seria aforma de religio adequada Europa, enquanto atribui ao budismo e

    ao bramanismo uma autonomia absoluta. Na prtica elimina-se aquesto da verdade, e os limites entre as culturas tornam-seintransponveis.

    Por isso, uma Encclica toda dedicada aventura da verdade deveriatambm colocar a questo da relao entre verdade e cultura. Deveriaperguntar se pode dar-se uma comunho das culturas numa nicaverdade, se a verdade pode ser decidida para todos os homens,transcendendo as diversas formas culturais, ou se afinal teramos quepressenti-la apenas assintoticamente, em meio a formas culturaisdiversas e at opostas.

    A um conceito esttico de cultura que pressupe formas culturais fixas que afinal s convivem umas com as outras, sem que hajacomunicao entre elas , o Papa ops, na Encclica, umacompreenso dinmica e comunicativa da cultura. E ressalta que asculturas, quando esto profundamente enraizadas no humano,trazem consigo o testemunho da abertura tpica do homem aouniversal e transcendncia. Por isso as culturas que so

    expresses do nico ser do homem esto caracterizadas peladinmica do homem, que transcende todos os limites: no estofixadas numa dada forma de uma vez para sempre. Tm a capacidadede progredir e de transformar-se, e tambm o perigo da decadncia.Esto voltadas para o encontro e para a fecundao mtua.

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    Quanto maiores e mais genunas so as culturas, mais impregnadasesto da abertura interior do homem a Deus: trazem impressa umapredisposio para a revelao de Deus. A Revelao no lhes

    estranha. Responde a uma espera interior presente nas prpriasculturas. A propsito disso, Theodor Haecker falou do carter de advento das culturas pr-crists, e so muitas as pesquisas deHistria das Religies que puderam mostrar de maneira concreta essaaluso das culturas ao Logos de Deus, encarnado em Jesus Cristo.

    Tendo isso em vista, o Papa vale-se da lista de naes contida norelato pascal dos Atos dos Apstolos (2, 7-14), onde nos narradocomo o testemunho da F em Cristo perceptvel e comunicvel

    mediante todas as lnguas, e em todas as lnguas, isto , em todas asculturas das quais a lngua expresso. Em todas elas, a palavrahumana faz-se portadora do falar prprio de Deus, do seu prprioLogos. E a Encclica acrescenta: O anncio do Evangelho nas diversasculturas, embora exija a f de cada destinatrio, no o impede deconservar uma identidade cultural prpria. Isso no cria nenhumadiviso, porque o povo dos batizados caracteriza-se por umauniversalidade que sabe acolher cada cultura, favorecendo o progressodaquilo que nela est implcito, rumo sua plena explicitao na

    verdade.A partir disso e no que diz respeito s relaes entre a F crist e asculturas pr-crists em geral o Papa, tomando o caso da culturaindiana, desenvolve de modo exemplar os princpios que devem serobservados no encontro dessas culturas com a F. Em primeiro lugar,chama brevemente a ateno para o grande auge espiritual dopensamento indiano, que luta por libertar o esprito das condiesespao-temporais, exercitando assim a abertura metafsica dohomem, que depois haveria de receber uma configurao especulativaem importantes sistemas filosficos.

    Com essas indicaes, o Papa pe em evidncia a tendncia universaldas grandes culturas, a sua superao do tempo e do espao, etambm o seu avano na direo do ser do homem e das suassupremas possibilidades. Aqui reside a capacidade de dilogo entre as

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    culturas, neste caso entre a cultura indiana e as que cresceram nombito da F crist.

    O primeiro critrio infere-se espontaneamente, por assim dizer, noprprio contato interior com a cultura indiana: consiste nauniversalidade do esprito humano, cujas exigncias fundamentaisso idnticas nas mais diversas culturas.

    Dele se segue um segundo critrio: Quando a Igreja entra emcontato com grandes culturas a que antes no tinha chegado, nopode esquecer o que adquiriu quando da sua inculturao nopensamento greco-latino. Rejeitar essa herana seria ir contra odesgnio providencial de Deus...

    Finalmente a Encclica aponta um terceiro critrio, decorrente dasreflexes anteriores sobre a essncia da cultura: Deve-se evitarconfundir a legtima reivindicao do que h de especfico e original nopensamento indiano com a idia de que uma tradio cultural devaencerrar-se na sua diferena e afirmar-se na sua oposio s demaistradies. Isso seria contrrio prpria natureza do esprito humano.

    b)A superao das culturas na Bblia e na histria da F

    Tendo o Papa insistido no carter irrenuncivel da herana culturalforjada no passado, que chegou a ser um veculo para a verdadecomum de Deus e do homem, surge ento espontaneamente aquesto de se isso no seria canonizar um eurocentrismo da F. Umeurocentrismo que no parece ter sido superado pelo fato de que, aolongo da Histria, possam introduzir-se ou j se tenham introduzido novas heranas na identidade da f constante que afeta a todos.

    uma questo que no se pode evitar. At que ponto a F grega oulatina, tendo alis surgido no no mundo greco-latino, mas no mundosemita do antigo Oriente, onde estavam e esto em contato a sia, africa e a Europa? A Encclica assume uma posio sobre isso,especialmente no seu segundo captulo, em que trata dodesenvolvimento do pensamento filosfico no interior da Bblia, e no

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    quarto captulo, ao apresentar o encontro decisivo dessa sabedoria darazo cultivada na F com a sabedoria grega da Filosofia. Gostaria deacrescentar o seguinte:

    Um variado acervo de pensamento religioso e filosfico, a partir demundos culturais diversos, j est elaborado na Bblia. A Palavra deDeus desenvolve-se num processo de encontros com a busca humanapor respostas s suas perguntas ltimas. Essa Palavra no algocado do cu como um meteorito: precisamente uma sntese deculturas. Vista com mais profundidade, permite reconhecer umprocesso no qual Deus luta com o homem, fazendo com que este sev abrindo lentamente sua Palavra mais profunda, a Si prprio: ao

    Filho, que o Logos.A Bblia no a mera expresso da cultura do povo de Israel. Est,pelo contrrio, continuamente em disputa com a inteno totalmente natural desse povo de ser ele prprio e de instalar-se nasua prpria cultura. A F em Deus e o sim sua vontade vo-lhecontinuamente desarraigando as representaes e aspiraesprprias. Deus enfrenta-se continuamente com a religiosidade peculiara Israel e com a sua cultura religiosa, que queria expressar-se noculto dos lugares altos, deusa celeste e na pretenso de poder daprpria monarquia.

    Comeando pela a clera de Deus e de Moiss contra o culto dobezerro de ouro no Sinai e at os ltimos profetas depois do Exlio,tudo sempre concorre para que Israel desprenda-se da sua prpriaidentidade cultural, abandone, por assim dizer, o culto prprianacionalidade, o culto raa e terra, para inclinar-se diante do Deustotalmente outro, de Quem no podem apropriar-se, do Deus quecriou o Cu e a Terra, e que Deus de todos os povos.

    A F de Israel significa uma permanente auto-superao da prpriacultura na abertura no horizonte da verdade comum. Os livros doAntigo Testamento podem parecer, sob muitos pontos de vista, menospiedosos, menos poticos, menos inspirados do que certas passagensmais importantes dos livros sagrados de outros povos. Mas em troca

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    tm sua singularidade na ndole combativa da F contra aquilo que prprio, nesse desarraigamento daquilo que prprio, iniciado com aperegrinao de Abrao.

    A libertao da Lei que So Paulo alcana pelo seu encontro com JesusCristo ressuscitado conduz essa orientao fundamental do AntigoTestamento sua conseqncia lgica: a plena universalizao dessaF, separada da ordem nacional. Agora todos os povos so convidadosa ingressar nesse processo de superao daquilo que prprio,comeado em primeiro lugar em Israel. Todos so convidados a seconverterem a Deus, que se despojando de Si mesmo em Jesus Cristoderrubou o muro de inimizade que havia entre ns (cfr. Ef 2, 14) e

    nos congrega a todos na auto-entrega da Cruz.Desse modo, a F em Jesus Cristo na sua essncia um permanenteabrir-se, uma irrupo de Deus no mundo humano com acorrespondente abertura do homem para Deus, que ao mesmo tempocongrega os homens. Tudo o que prprio pertence agora a todos, etudo o que alheio chega a ser, ao mesmo tempo, algo prprio. Etudo abarcado pela palavra do pai ao filho mais velho: Tudo o que meu teu (Lc 15, 31), que torna a aparecer na orao sacerdotal deJesus como modo de o Filho dirigir-se ao Pai: Tudo o que meu teu,e tudo o que meu teu (Jo 17, 10).

    Esse padro determina tambm o encontro da mensagem reveladacom a cultura grega, que por certo no comea apenas com aevangelizao crist: j se desenvolvera dentro dos escritos do AntigoTestamento sobretudo mediante a sua traduo ao grego , e apartir de ento no judasmo primitivo. Esse encontro era possvel,porque j fora aberto o caminho no mundo grego para umacontecimento de autotranscendncia como esse. Os Padres da Igreja

    no verteram sem mais no Evangelho uma cultura grega que semantinha em si e por si mesma: puderam assumir o dilogo com afilosofia grega e convert-la em instrumento do Evangelho justamenteporque nesse mundo grego j se tinha iniciado, mediante a busca deDeus, uma autocrtica da prpria cultura e do prprio pensamento.

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    A F une os diversos povos comeando pelos germanos e peloseslavos, que na poca das invases brbaras tomaram contato com amensagem crist, at os povos da sia, da frica e da Amrica no

    cultura grega como tal, mas sua auto-superao, que era overdadeiro ponto de contato para a interpretao da mensagem crist.A partir da a F os introduz na dinmica da sua auto-superao.

    Richard Schffler disse recentemente, e de modo certeiro, que apregao crist desde o princpio exigiu dos povos da Europa (quealis nem existia antes da evangelizao crist) a renncia a todos osseus respectivos deuses autctones, muito antes de entrarem emseu campo de viso as culturas extra-europias. a partir da que se

    deve entender por que a pregao crist entrou em contato com afilosofia, e no com as religies. Rapidamente caram em desuso astentativas de, por exemplo, interpretar Cristo como sendo overdadeiro Dionsio, Esculpio ou Hrcules. O fato de se ter entradoem contato com a filosofia, e no com as religies, tem a ver com queno se tenha canonizado uma cultura, e sim se pde entrar nelajustamente no ponto onde ela j havia comeado a sair de si mesma:por onde tinha comeado ela mesma a sair de si, por onde tinhainiciado o caminho de abertura verdade comum, deixando atrs a

    instalao no que lhe era meramente prprio. Isso constitui tambmhoje uma indicao fundamental para a questo dos contatos etransferncias a outros povos e culturas.

    A F no pode sintonizar com filosofias que excluam a questo daverdade, mas sintoniza, sim, com movimentos que se esforam porsair do crcere do relativismo. Da mesma forma, no pode integrardiretamente as antigas religies. No entanto, as religies podemproporcionar-lhe formas e imagens de diverso tipo, mas sobretudoatitudes, como o respeito, a humildade, a abnegao, a bondade, oamor ao prximo, a esperana na vida eterna. Isto parece-me sejadito entre parnteses ser importante tambm para a questo dosignificado salvfico das religies. No salvam, por assim dizer, namedida em que so sistemas fechados e pela fidelidade a essessistemas, mas colaboram com a salvao na medida em que levam oshomens a perguntar-se por Deus (como diz o Antigo Testamento), a

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    buscar o seu rosto, a buscar o Reino de Deus e a sua justia.

    3. RELIGIO, VERDADE E SALVAOPermitam-me que me detenha um momento mais nesse ponto, poistoca um aspecto fundamental da existncia humana, e que com razorepresenta tambm uma questo radical no atual debate teolgico.Isso porque se trata do prprio impulso do qual partiu a Filosofia, e aoqual tem de voltar sempre: nele se tocam necessariamente a Filosofiae a Teologia, quando estas se mantm fiis sua inteno. aquesto de como o homem se salva, de como se justifica.

    No passado, pensou-se de preferncia na morte e naquilo que vemdepois da morte; hoje o mais alm visto como algo incerto, eportanto continua sendo excludo das questes atuais. Por isso necessrio continuar buscando o que reto e justo no tempo: no sepode preterir o problema de como se deve enfrentar a morte.Curiosamente, no debate sobre a relao do Cristianismo com asreligies universais, o ponto de discusso que vem sendo mantido ode como se relacionam as religies e a salvao eterna.

    A questo sobre como o homem pode salvar-se ainda vem sendodebatida em moldes clssicos. Ultimamente, porm, vem-se impondode modo bastante geral esta tese: todas as religies so caminhos desalvao. Talvez no o caminho ordinrio, mas ao menos caminhos extraordinrios de salvao: por todas as religies se chegaria salvao. essa a viso habitual.

    Semelhante tese no corresponde apenas idia da tolerncia e dorespeito pelos outros que hoje nos imposta. Corresponde tambm

    imagem moderna de Deus: Deus no pode rejeitar homem algumapenas porque no conhece o cristianismo e, em conseqncia,cresceu em outra religio. Aceitar a sua vida religiosa da mesmaforma que faz com a nossa.

    Embora esta tese reforada nos ltimos tempos com muitos outrosargumentos seja bastante clara primeira vista, no deixa de

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    suscitar dvidas. Pois as religies particulares no exigem apenascoisas diferentes, mas tambm coisas opostas. Diante do nmerocrescente de homens no vinculados ao religioso, esta teoria universal

    da salvao estendeu-se tambm a formas de existncia noreligiosas, mas vividas de maneira coerente. Sendo assim, atitudescontraditrias conduziriam mesma meta. Em poucas palavras,estamos novamente diante do relativismo. Pressupe-se sub-repticiamente que, no fundo, todos os contedos so igualmentevlidos. No sabemos o que vale realmente.

    Cada um tem de percorrer o seu caminho, ser feliz sua maneira,como dizia Frederico II da Prssia. Assim, galopando nas teorias da

    salvao, o relativismo torna a entrar sub-repticiamente pela portatraseira: a questo da verdade separada da questo das religies eda salvao. A verdade substituda pela boa inteno; a religiomantm-se no plano subjetivo, porque no se pode conhecer aquiloque objetivamente bom e verdadeiro.

    a)A diferena entre as religies e seus perigos

    Temos que conformar-nos com isso? inevitvel a alternativa entre o

    rigorismo dogmtico e o relativismo humanitrio? Penso que as teoriasaqui analisadas no pensaram suficientemente trs coisas. Emprimeiro lugar, as religies (e agora tambm o agnosticismo e oatesmo) so consideradas iguais. Mas com certeza isto no assim.Com efeito, h formas de religio degeneradas e doentias, que noelevam o homem, mas o alienam: a crtica marxista da religio nocarecia totalmente de base. Tambm as religies com uma certagrandeza moral, e que esto a caminho da verdade, podem estardoentes em alguns pontos. No hindusmo (que mais propriamente

    um nome coletivo para diversas religies), h elementos grandiosos,mas tambm aspectos negativos: por exemplo o entrelaamento como sistema de castas, a prtica da queima de vivas que se formou apartir de representaes inicialmente simblicas , bem como asaberraes do shaktismo (*), para mencionar apenas uns poucosexemplos. Tambm o Isl, com toda a grandeza que representa, est

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    continuamente exposto ao perigo de perder o equilbrio, de dar espao violncia e deixar que a religio deslize para o ritualismo externo.------------------------------------------------------------------------------

    -----------------------------------(*) Conjunto de crenas dentro do tantrismo movimento filosfico eritualstico que influenciou diversas seitas hindustas, budistas, etc. que preconiza a realizao espiritual por meio de prticas densamentesimbolistas, que em alguns casos abrangem a magia negra, o culto morte e prticas sexuais orgisticas (N. do T.)-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    E naturalmente h tambm, como todos ns bem sabemos, formasdoentias no cristianismo. Assim aconteceu quando os cruzados, naconquista da cidade santa de Jerusalm, em que Cristo morreu portodos os homens, mergulharam muulmanos e judeus num banho desangue. Isto significa que a religio exige discernimento,discernimento em relao s formas das religies e discernimento nointerior da prpria religio, conforme o seu prprio nvel.

    Com o indiferentismo quanto aos contedos e s idias todas as

    religies, embora distintas, seriam iguais , no se pode avanar. Orelativismo perigoso, tanto para a formao do ser humanoindividualmente como em comunidade. A renncia verdade no curao homem. No se pode esquecer o enorme mal que se fez na Histriaem nome de opinies e intenes boas.

    b) A questo da salvao

    Tocamos j o segundo ponto costumeiramente deixado de lado.Surpreendentemente, quando se fala do significado salvfico das

    religies, pensa-se, na maioria das vezes, apenas em que todaspossibilitariam a vida eterna, o que acaba neutralizando o pensamentoda vida eterna, pois todo o mundo chegaria a ela de uma forma ou deoutra. Contudo, isso rebaixa de maneira inconveniente a questo dasalvao.

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    O cu comea na terra. A salvao no alm pressupe uma vidacorrespondente no aqum. No podemos, pois, perguntar-nos apenasquem vai para o cu e desentender-nos simultaneamente da questo

    do cu. necessrio perguntar o que o cu e como vem terra. Asalvao do alm deve refletir-se numa forma de vida que torne ohomem humano no aqum, isto , neste mundo, e portanto conformecom a vontade de Deus. Uma vez mais, isto significa que, na questoda salvao, preciso olhar para alm das prprias religies, para umhorizonte ao qual pertencem as regras de uma vida reta e justa,regras que no podem ser relativizadas arbitrariamente. Eu diria, pois,que a salvao comea com a vida reta e justa do homem nestemundo, que abarca sempre os dois plos: o indivduo e a comunidade.

    H formas de comportamento que nunca podem servir para tornarreto e justo o homem, e outras que sempre pertencem ao ser reto ejusto do homem. Isto significa que a salvao no est nas religiescomo tais, mas depende tambm de at que ponto elas levam oshomens Deus, verdade e ao bem. Por isso, a questo da salvaotraz sempre consigo um elemento de crtica religiosa, embora tambmpossa aliar-se positivamente com as religies. Em qualquer caso, tema ver com a unidade do bem, com a unidade do verdadeiro, com a

    unidade de Deus e do homem.c)A conscincia e a capacidade do homem para a verdade

    A unidade do homem tem um rgo: a conscincia. Foi uma ousadiade So Paulo afirmar que todos os homens tm a capacidade deescutar a sua conscincia, separando assim a questo da salvao daquesto do conhecimento e da observncia da Torah, e situando-a noterreno da comum exigncia interior em que o Deus nico fala e diz acada um o que verdadeiramente essencial na Lei: Quando osgentios, que no tm lei, cumprem naturalmente as prescries da lei,sem ter lei so lei para si mesmos, demonstrando que tm a realidadedessa lei escrita no seu corao, segundo o testemunho da suaconscincia... (Rom 2, 14 e segs.). Paulo no diz: Se os gentios semantiverem firmes na sua religio, isso bom diante do juzo deDeus. Pelo contrrio, ele condena grande parte das prticas religiosas

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    do seu tempo. Remete para outra fonte, para aquela que todos trazemescrita no corao, para o nico bem do nico Deus.

    Enfrentam-se hoje dois conceitos contrrios de conscincia nesteponto, que na maioria das vezes simplesmente se intrometem um nooutro. Para Paulo, a conscincia o rgo da transparncia do nicoDeus em todos os homens, que so um s homem. Mas, atualmente,a conscincia aparece como expresso do carter absoluto do sujeito,acima do qual no poderia haver, no campo moral, nenhuma instnciasuperior. O bem como tal no seria cognoscvel. O Deus nico noseria cognoscvel. No que diz respeito moral e religio, a ltimainstncia seria o sujeito. Isso seria lgico, se a verdade como tal fosse

    inacessvel.Assim, o conceito moderno de conscincia equivale canonizao dorelativismo, da impossibilidade de haver normas morais e religiosascomuns, ao passo que, pelo contrrio, para Paulo e para a tradiocrist, a conscincia sempre foi a garantia da unidade do ser humanoe da cognoscibilidade de Deus, e portanto da obrigatoriedade comumde um mesmo e nico bem. O fato de em todos os tempos ter havidoe haver santos pagos baseia-se em que em todos os lugares e emtodos os tempos embora muitas vezes com grande esforo e apenasparcialmente a voz do corao era perceptvel; a Torah de Deus senos fazia perceptvel como obrigao dentro de ns mesmos, no nossoser criatural, e desse modo tornava possvel que superssemos amera subjetividade na relao de uns com os outros e na relao comDeus. E isto a salvao.

    Resta saber o que Deus faz com os pobres fragmentos do nossocaminho rumo ao Bem, rumo a Ele mesmo e ao Seu mistrio: umcaminho que no deveramos pretender controlar.

    CONCLUSO

    Ao final destas minhas reflexes, quisera chamar novamente aateno sobre uma indicao metodolgica dada pelo Papa para as

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    relaes entre a Teologia e a Filosofia, entre a F e a razo, porquecom ela se toca a questo prtica de como se pode pr emandamento, no sentido em que fala a Encclica, uma renovao do

    pensamento filosfico e teolgico. A Encclica fala de um movimentocircular entre a Teologia e a Filosofia, entendendo-o no sentido de quea Teologia tem que partir sempre em primeiro lugar da Palavra deDeus; mas, posto que essa Palavra verdade, preciso relacion-lacom a busca humana da verdade, com a luta da razo pela verdade,pondo-a assim em relao com a Filosofia.

    A busca da verdade por parte de quem cr realiza-se, pois, nummovimento em que sempre se confrontam a escuta da Palavra

    proclamada e a busca da razo. Desse modo, por um lado, a F setorna mais profunda e mais pura; por outro, o pensamento tambm seenriquece, porque se abrem para ele novos horizontes. Parece-me queessa idia de circularidade pode ser ampliada ainda mais: a prpriaFilosofia no deveria fechar-se naquilo que lhe meramente prprio epensado por ela. Assim como tem que estar atenta aos conhecimentosempricos, que se amadurecem nas diversas cincias, assim tambmdeveria considerar a sagrada tradio das religies, e especialmente amensagem da Bblia, como fonte de conhecimentos capazes de

    fecund-la.De fato, no h nenhuma grande filosofia que no tenha recebido datradio religiosa luzes e orientaes: pensemos na filosofia da Grciaou da ndia, ou na filosofia que se desenvolveu no mbito docristianismo. Tambm vale o mesmo para as filosofias modernas, queembora estivessem convencidas da autonomia da razo econsiderassem essa autonomia como critrio ltimo do pensar, mesmoassim mantiveram-se devedoras dos grandes temas do pensamento

    que a F crist foi dando Filosofia: Kant, Fichte, Hegel e Schellingno seriam imaginveis sem os antecedentes da F. At mesmo Marx,no corao da sua radical reinterpretao, vive do horizonte deesperana assumido pela tradio judaica.

    Quando a Filosofia apaga totalmente esse dilogo com o pensamentoda F, acaba como j disse uma vez Jaspers numa seriedade que

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    se vai esvaziando, at ficar sem contedo. Por fim se v impelida arenunciar questo da verdade, e isso significa dar-se a si mesma porperdida: uma filosofia que j no pergunta mais quem somos, para

    que somos, se existe Deus e a vida eterna, abdicou como filosofia.Quero concluir com a meno de um comentrio Encclica publicadono semanrio alemo Die Zeit, cuja tendncia distanciar-se dasposies da Igreja. O comentarista Jan Ross sintetiza com muitapreciso o ncleo da Encclica ao dizer que o destronamento daTeologia e da Metafsica no somente tornou o pensamento maislivre, mas tambm mais estreito. Sim, Ross no receia falar de um emburrecimento por descrena. Quando a razo se afastou das

    questes ltimas, tornou-se aptica e tediosa, deixou de ser capaz delidar com os enigmas vitais do bem e do mal, da morte e daimortalidade. A voz de Joo Paulo II continua o comentarista deunimo a muitos homens e a povos inteiros; tambm soou dura ecortante aos ouvidos de muitos, e at suscitou dio, mas, seemudecer, far-se- um terrvel silncio.

    Com efeito, se deixamos de falar de Deus e do homem, do pecado eda graa, da morte e da vida eterna, todo o grito e todo o rudo quehouver ser apenas uma tentativa intil de fazer esquecer oemudecimento daquilo que prprio do ser humano. O Papa fez frenteao perigo de um tal emudecimento, com a sua coragem e com afranqueza intrpida da F, prestando assim um servio no somente Igreja, mas a toda a Humanidade. E devemos agradecer-lhe por isso.

    Por Joseph Ratzinger