Jovens de periferia e a cidade: trajetórias de vida e processos de individualização

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ARTIGOS VARIADOS Jovens de periferia e a cidade: trajetórias de vida e processos de individualização (Florianópolis, 2000-2010) Francisco Canella* Introdução O reconhecimento da juventude como uma fase de desafios é particu- larmente mais verdadeiro para os jovens das periferias urbanas empobrecidas do Brasil. Embora não haja novidade alguma nessa afirmação, dado o amplo conjunto de pesquisas nesta área nas últimas décadas, a diversidade de situ- ações encontradas nos impulsiona a investigações cada vez mais criteriosas, a fim de evitarmos generalizações sobre os jovens pobres urbanos no Brasil. O processo de autonomização do sujeito, como parte da transição para vida adulta que caracteriza a juventude, implica na ampliação de laços sociais para novos espaços e no afastamento daqueles ligados às agências de socialização, como a família, a escola, a vizinhança. A forma como esse processo ocorre é bastante variada, dependendo de fatores como classe social, gênero, etnia, espaço de moradia, diferenças regionais, diferenças entre ambiente urbano ou rural, entre outros (Novaes, 2006). Daí o constante emprego do termo juventudes, no plural, para assinalar essa diversidade. No caso dos jovens de uma localidade da periferia de Florianópolis, o interesse recai em entender a tensão existente entre esse ingresso num conjunto mais amplo de relações, * Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor efetivo do Centro de Ciências da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). E-mail: [email protected].

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O reconhecimento da juventude como uma fase de desafios é particularmentemais verdadeiro para os jovens das periferias urbanas empobrecidasdo Brasil. Embora não haja novidade alguma nessa afirmação, dado o amploconjunto de pesquisas nesta área nas últimas décadas, a diversidade de situaçõesencontradas nos impulsiona a investigações cada vez mais criteriosas,a fim de evitarmos generalizações sobre os jovens pobres urbanos no Brasil.O processo de autonomização do sujeito, como parte da transição para vidaadulta que caracteriza a juventude, implica na ampliação de laços sociais paranovos espaços e no afastamento daqueles ligados às agências de socialização,como a família, a escola, a vizinhança. A forma como esse processo ocorreé bastante variada, dependendo de fatores como classe social, gênero, etnia,espaço de moradia, diferenças regionais, diferenças entre ambiente urbanoou rural, entre outros (Novaes, 2006). Daí o constante emprego do termojuventudes, no plural, para assinalar essa diversidade. No caso dos jovens deuma localidade da periferia de Florianópolis, o interesse recai em entendera tensão existente entre esse ingresso num conjunto mais amplo de relações,* Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor efetivodo Centro de Ciências da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). E-mail:[email protected], Francisco. Jovens de periferia e a cidade: trajetórias de v 70 ida e processos de individualização...representado aqui pelo mundo da cidade, e os espaços locais de convivência.O objetivo do artigo é discutir o processo de inserção no mundo da cidadede jovens de uma localidade da periferia empobrecida de Florianópolis, analisandoas mudanças nas suas relações com os espaços locais de participação.A especificidade histórica da localidade analisada neste artigo conduzo olhar para os espaços de participação política. Busca-se elucidar os mecanismospor meio dos quais essas relações entre a cidade e o plano local sãoconstruídas pelos atores sociais, dependendo de suas escolhas e do campo depossibilidades existentes. A premissa é que o destino social desses jovens podeser mais bem compreendido se analisarmosa relação com o espaço da cidade,seja no nível local, seja na relação com a esfera mais ampliada da cidade. Alémdisso, outraexigência desta abordagem é a compreensão da forma como osjovens se percebem, por quais categorias se identificam e significam suasexperiências. Assim, oartigo tem como foco a perspectiva dos jovens sobreeste processo, optando-se, para tanto, pelo recurso à história oral.

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  • ARTIGOS VARIADOS

    Jovens de periferia e a cidade: trajetrias de vida e processos de individualizao

    (Florianpolis, 2000-2010)

    Francisco Canella*

    Introduo

    O reconhecimento da juventude como uma fase de desafios particu-larmente mais verdadeiro para os jovens das periferias urbanas empobrecidas do Brasil. Embora no haja novidade alguma nessa afirmao, dado o amplo conjunto de pesquisas nesta rea nas ltimas dcadas, a diversidade de situ-aes encontradas nos impulsiona a investigaes cada vez mais criteriosas, a fim de evitarmos generalizaes sobre os jovens pobres urbanos no Brasil. O processo de autonomizao do sujeito, como parte da transio para vida adulta que caracteriza a juventude, implica na ampliao de laos sociais para novos espaos e no afastamento daqueles ligados s agncias de socializao, como a famlia, a escola, a vizinhana. A forma como esse processo ocorre bastante variada, dependendo de fatores como classe social, gnero, etnia, espao de moradia, diferenas regionais, diferenas entre ambiente urbano ou rural, entre outros (Novaes, 2006). Da o constante emprego do termo juventudes, no plural, para assinalar essa diversidade. No caso dos jovens de uma localidade da periferia de Florianpolis, o interesse recai em entender a tenso existente entre esse ingresso num conjunto mais amplo de relaes,

    * Doutor em Cincias Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor efetivo do Centro de Cincias da Educao, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). E-mail: [email protected].

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    representado aqui pelo mundo da cidade, e os espaos locais de convivncia. O objetivo do artigo discutir o processo de insero no mundo da cidade de jovens de uma localidade da periferia empobrecida de Florianpolis, ana-lisando as mudanas nas suas relaes com os espaos locais de participao.

    A especificidade histrica da localidade analisada neste artigo conduz o olhar para os espaos de participao poltica. Busca-se elucidar os meca-nismos por meio dos quais essas relaes entre a cidade e o plano local so construdas pelos atores sociais, dependendo de suas escolhas e do campo de possibilidades existentes. A premissa que o destino social desses jovens pode ser mais bem compreendido se analisarmosa relao com o espao da cidade, seja no nvel local, seja na relao com a esfera mais ampliada da cidade. Alm disso, outraexigncia desta abordagem a compreenso da forma como os jovens se percebem, por quais categorias se identificam e significam suas experincias. Assim, oartigo tem como foco a perspectiva dos jovens sobre este processo, optando-se, para tanto, pelo recurso histria oral.

    A pesquisa foi desenvolvida tambm por meio da observao partici-pante, proporcionada pelo contato com os moradores durante as atividades de pesquisa e de extenso como professor da universidade, mas tambm na condio de algum que havia sido no passado um apoiador do movimento fato que, sob muitos aspectos, favoreceu a insero no campo de pesquisa. H um inegvel componente etnogrfico no olhar que orienta a investiga-o aqui apresentada: como observa Franco Ferrarotti, o objeto da investi-gao, longe de ser passivo, modifica continuamente o seu comportamento de acordo com o observador (Ferrarotti, 1991, p. 172). Tal dimenso no tinha como no ser incorporada pesquisa.

    O primeiro contato que estabeleci com os moradores foi quando comearam seu processo organizativo em torno do movimento dos sem--teto, em 1989. Sua histria, junto com a do conjunto de lutas domovi-mento por moradia, foi incorporada em minha dissertao de mestrado (Canella, 1992). A partir do final da dcada (1998) retomei o contato por meio de projetos de pesquisa e de extenso universitria e, em 2011, fina-lizei uma tese de doutorado sobre as experincias e memrias dos morado-res da Nova Esperana (Canella, 2011).1 O presente artigo resultado do conjunto de pesquisas desenvolvidas ao longo de duas dcadas (1990-2010).

    1 O artigo refere-se s anlises contidas nos captulos 2, 5 e 6 dessa tese.

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    Os principais depoimentos aqui apresentados foram coletados entre 2008 e 2010, e referem-se aos relatos de experincias vividas por jovens que, quando da realizao das entrevistas, tinham idades entre 18 e 25 anos. Alguns desses entrevistados eu conhecia desde a infncia, em razo do longo perodo de insero como pesquisador e extensionista na localidade. O contato intenso com algumas das famlias desses jovens permitiu que fossem incorporados anlise elementos obtidos ao longo do perodo de convivncia.

    O grupo de jovens aqui analisados, a segunda gerao, tem em comum em suas trajetrias de vida a participao em projetos socioeducativos desen-volvidos por meio de um programa de extenso universitria, o qual poste-riormente encaminhou-os para estgios de trabalho em diferentes rgos pblicos e entidades do terceiro setor. Podem ser designados pelo termo pro-posto por Regina Novaes: jovens de projeto.2 Tal fato comum a eles os tor-nou um grupo bastante diferenciado no contexto de sua localidade, a qual marcada pelos elevados ndices de desemprego, violncia e criminalidade. So os jovens que deram certo. A participao em projetos socioeducativos e o ingresso em estgios para iniciao ao trabalho desempenharam o papel de integrao com o mercado, com a vida da cidade e fortaleceram os laos na localidade.

    Da participao desmobilizao

    A localidade aqui analisada denomina-se Nova Esperana, e uma das nove comunidades (este o termo empregado pelos moradores e associaes) que constituem o Conselho de Associaes da Regio do Monte Cristo (Car-mocris). Situa-se na parte continental de Florianpolis, prximo divisa com o municpio de So Jos, s margens da via que liga a BR-101 ponte que d acesso parte insular de Florianpolis. Assim como outras localidades do bairro, seu surgimento est ligado ao movimento dos sem-teto, que no final dos anos 1980 e incio dos anos 1990 organizou ocupaes de terrenos em

    2 Os jovens de projeto so aqueles que constituem o pblico-alvo de iniciativas protagonizadas por ONGs e fundaes empresariais em favelas e reas de pobreza das grandes cidades. Tais jovens se apropriam de suas ideias, palavras e expedientes, incluindo-as em suas estratgias de sobrevivncia social (Novaes, 2006).

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    diferentes reas de Florianpolis, alm de ter prestado apoio ao processo de negociao de outras reas ocupadas de forma espontnea na cidade.

    O movimento dos sem-teto inscreveu-se numa conjuntura mais ampla de mobilizaes coletivas. A emergncia dos movimentos sociais e o cresci-mento urbano fizeram com que, durante os anos 1980, se rompesse com a imagem de Florianpolis como cidade pacata e provinciana.

    O cenrio de conflitos na cidade acompanhou a conjuntura nacional: a dcada de 1980 denominada por muitos analistas do perodo como a dcada da participao ou a conjuntura da cidadania (Sader, 1988; Tel-les, 1985; Gohn,1997; Doimo, 1995). Em Florianpolis h um conjunto diversificado de atores em movimento nesse perodo, destacando-se um ativo movimento sindical (notadamente de bancrios, professores, eletricitrios, entre outras categorias), o movimento ecologista o Movimento Ecolgico Livre (Mel) , o movimento estudantil e um nascente movimento de bair-ros, organizado em torno da Ufeco (Unio Florianopolitana de Entidades Comunitrias). Com relao ao movimento de bairros, a Ufeco confrontava os institucionalizados e controlados conselhos comunitrios criados durante o perodo militar com o objetivo deconter e tutelar as demandas urbanas surgidas em torno de questes envolvendo a moradia, infraestrutura e equi-pamentos urbanos. A Ufeco emblemtica desse perodo: criada durante o exerccio do prefeito Edison Andrino (1986-1988), do PMDB, por setores de oposio aos partidos conservadores (em especial, PDS e PFL), buscava viabilizar e ocupar espaos de participao popular que estavam sendo criados nessa gesto, como os conselhos municipais (de sade, transporte, de desen-volvimento) e o oramento participativo. Foi nesse cenrio que emergiu o movimento sem-teto em Florianpolis, com mobilizaes (como ocupaes de terrenos, ocupaes de prdios pblicos, passeatas) que conquistaram visi-bilidade na cidade. Na poca, a localidade contava com 250 mil habitantes e tinha uma poltica hegemonizada por polticos ligados a famlias tradicio-nais, e que contavam com redes clientelistas muito presentes e atuantes.

    Nas palavras de Maristela Fantin (1997, p. 166), Florianpolis: foi deixando de ser uma cidade aparentemente tranquila para se tornar um foco de protestos e de negaes. Isso se deveu muito ao movimento sindical e estudantil. No final da dcada de 1980 um novo tipo de ator social emergiu no cenrio dos conflitos da cidade: Florianpolis foi sacudida por ocupaes organizadas pelo movimento dos sem-teto. Integrado por moradores pobres da cidade, muitos vindos do interior ou de estados vizinhos, o movimento

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    apoiado por membros do clero progressista da igreja catlica teve uma clara preocupao pedaggica. Concentrou-se no s na conquista de suas reivin-dicaes, mas tambm na formao de lideranas, pois o envolvimento em aes coletivas e o contato com a poltica era uma novidade para a maioria dos sem-teto. Os moradores que participaram das mobilizaes tiveram suas vidas modificadas a partir dessas experincias: habitantes de novos espaos da cidade, ocupando a periferia que se expandia em Florianpolis, passaram a vivenciar novas relaes de sociabilidade, nas quais o passado de lutas se fazia presente, com suas marcas mais visveis no esprito comunitrio e no forte sentimento de unio coletiva.

    No entanto, duas dcadas aps, num contexto de desmobilizao cole-tiva e de privatizao das relaes na localidade, no mais se encontrava no comportamento da nova gerao a mesma prtica associativa da gera-o de seus pais, e sua insero na cidade acontecia por meio de estratgias individualizadas.

    A rica dinmica de sociabilidades, marcada por um claro componente poltico e utpico, no estava mais presente no final da dcada de 1990. Tam-bm nesse perodo Florianpolis acompanhou a conjuntura nacional. pos-svel identificar um ciclo de movimentos sociais que se inicia no final dos anos 1970 e se estende at o inicio da dcada de 1990. Com os elevados ndices de desemprego, a desregulamentao das relaes de trabalho e uma poltica que avanava no sentido da criminalizao dos movimentos sociais, os anos 1990, especialmente a sua segunda metade, ficaram marcados pela desmobilizao e desarticulao de movimentos sociais, em especial dos movimentos sociais urbanos (ou movimentos populares).

    E isso se refletia no plano interno e cotidiano da localidade. As socia-bilidades tinham como marca a desarticulao coletiva e a privatizao do cotidiano. No havia mais uma associao de moradores ativa e representa-tiva da coletividade. Tambm no se percebia qualquer outra contrapartida associativa, mesmo que no poltica, como, por exemplo, momentos festi-vos ou de lazer que reunissem um coletivo mais ampliado da comunidade, ou qualquer outro espao que articulasse os moradores em alguma forma de vivncia coletiva. Ao contrrio, predominava o encerramento dos mora-dores em suas vidas privadas. A associao (ou o que sobrara dela) ao invs de agregar, tornava-se espao de poucos (muitas vezes reduzida figura de seu presidente), reproduzia relaes de tipo clientelista com polticos e com o poder pblico (inclusive se transformando em espao para promoo de

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    polticos que visavam se candidatarem em eleies). Emblemtico disso foi o fato de que, aps alguns anos, a casa que era a sede comunitria acabou ruindo. O exame da trajetria dos moradores nos anos seguintes ocupa-o e ao mutiro bastante revelador quanto aos processos de segregao da cidade. No era difcil constatar o recolhimento s suas vidas privadas e o pouco interesse em participar dos espaos coletivos, mesmo ainda havendo uma srie de questes pendentes (por exemplo, no tinham a escritura das casas). Tambm reclamavam da perda dos espaos e das prticas de sociabi-lidade, tal como o das festas e das celebraes coletivas. Referindo-se a este perodo, dona Marta, antiga moradora da localidade reclama:

    O que eu no gosto aqui o que se tornou de uns dez anos pra c. Droga, trfico, isso eu nunca vou aceitar na minha comunidade. Se eu pudesse, eu fazia uma varredura e tirava todos eles daqui, que lidam com isso, que vivem disso. Isso o que eu no gosto na minha comunidade, que a gente fundou tijolo por tijolo, pedra por pedra, ento o que eu no gosto. No mais, o que eu sinto muita falta... se no tem uma rea de lazer, no tem nada assim, para levar criana pra brincar, no em casa comunitria bonita, apresent-vel... Ento isso tambm me deixa chateada, porque tu vai em outros bair-ros, mais pobre que seja, mas t organizado e tudo. (Marta, 2009).

    A falta de unio e a perda dos espaos festivos tambm aparecem na avaliao de Janete, antiga moradora e uma das importantes lideranas da localidade:

    A comunidade hoje est pssima. No comeo ns ramos muito unidos, agora no v mais reunio, no v mais festa nenhuma, eu acho que a comu-nidade cada um pra si mesmo. Era to bom antes, porque tinha festa, a gente participava de encontro, a gente ia passear, agora, oh. ( Janete, 2000).

    nesse contexto que se desenvolve a juventude da localidade, a segunda gerao. E a percepo de um tempo perdido no passado no privilgio dos antigos moradores, como evidencia a fala abaixo de um jovem morador da localidade:

    [der] J foi melhor [morar na Nova Esperana], porque tinha uma poca que, chegava final de semana, dava oito, nove horas da noite, tinha

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    uma porrada de gente na rua. Durante a semana, deu cinco horas no fica mais ningum na rua. [...] Final de semana, ento, nossa![Entrevistador] Mas por conta do qu? Por conta da violncia?[der] Por conta do prprio pessoal mesmo, pelos prprios moradores... (der, 2009).

    Na fala de der, o problema no se encontra na violncia, mas nos pr-prios moradores: o novo componente, identificado na fala dos moradores mais antigos, a violncia, no se apresenta no depoimento de der, mesmo quando sugerido pelo entrevistador. Ao invs disso, situa sua explicao para o esvaziamento das ruas nas escolhas dos moradores.

    Entre escolhas e possibilidades, duas geraes

    A sada encontrada pela primeira gerao para responder necessidade de moradia foi o movimento coletivo. E foram bem sucedidos nessa esco-lha: em seus depoimentos esse sentimento traduziu-se no reconhecimento ao movimento e queles que os apoiaram (Canella, 2010). Uma das antigas lideranas, dona Janete, criticava enfaticamente aqueles que no expressavam gratido aos religiosos e outros apoiadores do movimento: Tudo que eles tm hoje devem nossa luta. Na verdade, em que pese a reclamao desta senhora, o que pude constatar foi o profundo respeito do conjunto dos mora-dores por aquelas pessoas que de alguma forma estiveram envolvidas com as lutas protagonizadas no passado.

    O perodo em que os moradores localizam a crise da comunidade corresponde a uma transio na qual as estratgias coletivas, no mais possi-bilitando melhorias nas condies de vida, cederam lugar a estratgias indi-viduais de resoluo de conflitos e encaminhamento de demandas. A perda de uma sociabilidade marcada pela solidariedade e cooperao mtuas, que proporcionava momentos de prazer, parece ter sido o preo pago por essa opo por estratgias individuais.

    Essa mudana no foi de forma alguma uma especificidade da Nova Esperana. Os movimentos de luta por moradia, que fizeram surgir uma srie de novas localidades na Grande Florianpolis, no encontraram maior ressonncia na cidade a partir de meados dos anos 1990. Como colocado anteriormente, o cenrio dos movimentos em Florianpolis pouco diferiu

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    do nacional. Mesmo com a eleio de um prefeito fortemente identificado com os movimentos sociais, Srgio Grando (1993-1996),3 as tentativas de incorporar os atores polticos das periferias urbanas nos espaos de partici-pao no foram bem-sucedidas. Para alguns analistas, como Edalea Ribeiro (2005), as dinmicas participativas desfavorecem os setores mais popula-res, pois exigem outro perfil de militante, normalmente mais escolarizado, com habilidades como debate intelectual, boa retrica, capacidade associa-tiva, disponibilidade de tempo, capacidade de dilogo com as autoridades e conhecimentos jurdicos.

    Assim, a segunda gerao da Nova Esperana no pode contar com a alternativa de participao num movimento coletivo para conquistar seu espao na cidade. A conquista da casa prpria (um bem com tanto valor sim-blico e material em classes populares) para a nova gerao passou por outras alternativas. Eles no buscaram criar uma alternativa coletiva, mas necess-rio considerar que um importante diferencial com relao gerao anterior situa-se no encolhimento do campo de possibilidades de insero na cidade: no contaram com um movimento organizado e enfrentaram problemas de desemprego. Desse modo, compreender a insero destes jovens de periferia na cidade, processo que envolve a complexa interao entre as escolhas e as possibilidades,4 depende do exame atento das trajetrias dos atores e dos sig-nificados por eles conferidos s suas escolhas.

    Finalmente, antes de passarmos anlise dos depoimentos dos jovens, cabe uma ltima observao com relao perspectiva aqui adotada na abor-dagem do conjunto especfico de atores aqui enfocados, constitudo pelos jovens da localidade. A incorporao de um componente geracional anlise local, alm evitar as homogeneidades e simplificaes, conduz a reflexo a uma dimenso que traduz muitas das tenses das sociedades contempor-neas. Assumindo a perspectiva geracional, as idades deixam de ser apenas referncias cronolgicas, uma vez que permitem a percepo da ruptura com padres e atitudes da gerao anterior, afirmando os estilos de vida, que se referem s mudanas entre as geraes. A pluralidade de estilos de vida no

    3 A Frente Popular era composta por partidos como PPS (do prefeito Srgio Grando), PT (do vice-pre-feito Afrnio Boppr, partido hegemnico na Frente), PDT, PSB, PCdoB, PSDB, PV e PCB.

    4 Gilberto Velho (1999) e Alfred Schutz (1979) contrapem (e articulam) as noes de projeto (conduta organizada, no nvel individual, para atingir finalidades especficas) e campo de possibilidades (as alter-nativas construdas do processo socio-histrico e com o potencial interpretativo do mundo simblico da cultura).

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    implica na relao de equivalncia entre eles: na sociedade moderna h uma maior valorizao do estilo de vida associado juventude. Como observa Guita Debert, a caracterstica marcante desse processo a valorizao da juventude que associada a valores e a estilos de vida e no propriamente a um grupo etrio especfico, sendo que a promessa da eterna juventude um mecanismo fundamental de constituio de mercados de consumo (Debert, 1996 apud Peralva, 1997, p. 23).

    Nessa perspectiva, os conflitos geracionais podem ser entendidos como a defesa de padres nicos de comportamento por instituies que Gilberto Velho (1999) denomina como instituies encompassadoras, que limitam o movimento na direo da liberdade de estilos de vida preconizados pelo individualismo moderno.

    Esse processo perceptvel entre os jovens de periferias, tal como o grupo aqui investigado. As prticas dos jovens podem ser analisadas como parte de processos de individualizao, pois nelas se constata que a presena da famlia e daquelas instituies que os vinculam ao plano local so cada vez mais reduzidas nas suas sociabilidades e projetos de vida.

    No entanto, necessrio observar que esse processo de individualizao tambm se manifesta entre o conjunto dos moradores da Nova Esperana. Uma de suas manifestaes pode ser exemplificada na fofoca (nos termos locais: a falao). Da mesma forma que em outras localidades urbanas pobres, a fofoca est presente entre os moradores, mas de forma veemente repudiada pelos mais antigos (que a apontam recorrentemente como um dos principais problemas da convivncia no plano local). A reao a ela pode ser interpretada como uma demanda por maior privacidade no cotidiano vivido na localidade. Do mesmo modo, o abandono dos espaos coletivos de socia-bilidade. Diversos depoimentos lamentam a perda de um cotidiano em que os vizinhos sentavam-se na frente de suas casas para conversar, da mesma forma que muitas lembranas remetem s festas que reuniam a comunidade. Contrastam com o perodo inicial da ocupao, quando moravam sob bar-racas de lona em outro terreno (nas proximidades de onde se localiza Nova Esperana):

    Ningum chateou de sair l da Coloninha. [...] Morar sem gua, sem luz, sem banheiro, sem nada, aqui era bem melhor. Mas muita gente disse: l na Coloninha ns ramos mais unido, e eu tambm gostava mais da Coloni-nha. [Pergunto por que isso Janete responde]: Quando veio pra c muita

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    gente comeou a pensar muito em si. A teve muita diviso, todo mundo... L em cima no parecia, assim, que voc gostava do que era dos outros. Eu pra mim, eu achava que l em cima todo mundo era igual, sabe? Mas depois que vim pra c, no... muita diviso, aquele que mais pode, que pode mais chora menos... cada um por si e Deus por todos. Eu no sei se l o pessoal era mais unido porque queria terra. O nosso projeto era ter a terra, n? ( Janete, 2009).

    Essa reclamao do tempo presente, marcado por um abandono de laos e referncias coletivas, talvez permita pensar, nos termos de Elias, num processo de individualizao em curso, que vem se ampliando ao longo dos sculos de grupos bastante seletos e restritos da sociedade para um conjunto maior da sociedade.

    medida que os indivduos deixam para trs os grupos pr-estatais estrei-tamente aparentados, dentro de sociedades nacionais cada vez mais com-plexas, eles se descobrem diante de um nmero crescente de opes. Mas tambm tm que decidir muito mais por si. No apenas podem, mas devem ser mais autnomos. Quanto a isso, no tm opo. (Elias, 1994, p. 102).

    No entanto, a explicao de Elias tomada, no caso aqui analisado, no como fato, como algo dado, mas como tenso. Se tomarmos como exem-plo os casamentos e a forma como muitos dos jovens se relacionam com os papis sociais que o seu meio lhes atribui, as referncias cronolgicas da gera-o anterior se colocam com muita fora entre eles. Mas tambm poss-vel perceber que existe incorporada nos jovens a expectativa de serem mais autnomos, e talvez esse elemento constitua-se como uma das chaves para a elucidao de muitos conflitos geracionais.

    Neste artigo, o exame da tenso do que denomino como processo de individualizao baseou-se na anlise de dois aspectos da vivncia de sua juventude: de um lado, a relao com os espaos coletivos existentes no plano local; de outro, a relao com o consumo de massas. Para tanto, trato aqui do exame da trajetria de dois jovens cuja insero nos espaos da cidade e na vida adulta condensa muitas das caractersticas desse processo na vida de outros jovens de sua vizinhana.

    As trajetrias de vida, no mbito desse trabalho, foram incorporadas levando em considerao a crtica de Sabina Loriga, que nos alerta para os

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    riscos de se enclausurar a existncia [...] em busca de uma improvvel unidade de sentido (Loriga, 1998, p. 246). Para Bourdieu, a iluso biogrfica consiste na organizao, como linearidade histrica, do que antes eram traos isolados (Bourdieu, 2000). O entendimento que perpassa o presente artigo, e que moti-vou o recurso s trajetrias pessoais, que elas permitem, como bem observou Sabina Loriga (1998, p. 246), se interrogar no apenas sobre o que foi, sobre o que aconteceu, mas tambm sobre as incertezas do passado e as possibilidades vividas. De acordo com Loriga (1998, p. 248-249): no necessrio que o indivduo represente um caso tpico, pois as vidas que se afastam da mdia permitem perceber melhor o equilbrio entre a especificidade do destino pes-soal e o conjunto do sistema social. Nessa especificidade do destino pessoal, d-se relevncia dimenso da escolha, nos termos j definidos acima.

    Nas prximas pginas, concentro os esforos na anlise de duas dessas trajetrias.5

    A trajetria de Renato: projetos e elevao da autoestima

    Renato estava com apenas quatro anos quando sua me participou da ocupao que fez surgir a Nova Esperana. Como muitas outras crianas de sua vizinhana, participou dos projetos que eram oferecidos comunidade por ONGs comprometidas com o combate excluso social e com a defesa dos direitos da infncia. Em que pese o vnculo da localidade onde nasceu com a histria de lutas sociais e enfrentamentos polticos na cidade, no s Renato, mas toda a sua gerao teve uma trajetria bastante distinta da de seus pais, especialmente no que se refere participao poltica. Assim como a maioria dos jovens da Nova Esperana, Renato no participou de espaos polticos como grmios estudantis. No entanto, sua passagem pela escola foi marcada por um forte protagonismo. Em seus relatos, ressaltou o quanto teve papel de liderana na turma, nos momentos em que era necessrio questio-nar os professores, seus critrios de avaliao, ou sua autoridade disciplinar. Tinha por hbito colocar-se frente e falar por todos os colegas. Renato orgulha-se disso.

    5 Entre 2008 e 2010 foram realizadas entrevistas com 12 jovens da localidade.

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    Ser lder de turma eu no era, deixava pras outras pessoas. Mas acontecia que da eu perguntava, s vezes ns tinha trs aulas de matemtica, e tam-bm j respondia: Por que que a gente tem que ter trs aulas de mate-mtica? Renato, vocs tm trs aulas de matemtica porque vocs to muito ruim na classe, t? Ah, t. Ento, pelo menos... porque outros ficam me perguntando: , Renato, pergunta l pro professor se isso... Eles sentem medo, tm receio de perguntar, e eu no tinha. (Renato, 2008).

    Tambm nos projetos dentro da comunidade essa caracterstica se fez presente (o que posso testemunhar como coordenador de algumas ativida-des das quais Renato participou). De esprito carismtico e forte magnetismo pessoal, sempre soube cativar aqueles que estavam sua volta. No projeto dos bombeiros juvenis, desenvolvido pelo Corpo de Bombeiros, recebeu apoio dos coordenadores das atividades e sempre foi incentivado para que prosse-guisse nos estudos recordo durante uma das entrevistas que um deles foi a sua casa pra entregar-lhe apostilas para um concurso. Em outra ocasio, mostrou-me um equipamento para escaladas que ganhou de presente de um dos instrutores.

    A sua trajetria apontou para a reflexo de muitos analistas do tema da juventude brasileira contempornea e a participao poltica. Tal reflexo se faz necessria porque havia, da parte daqueles que coordenavam os pro-jetos na Nova Esperana (grupo no qual me incluo) uma preocupao em incorporar os jovens do projeto, na poca de sua implantao, com a par-ticipao na associao. Fruto de outro momento poltico do pas, a parti-cipao poltica desses jovens deve ser pensada em outros termos. Esse o pressuposto que orienta Paulo Krischke em suas anlises sobre cultura pol-tica e participao poltica no Brasil. O tipo de participao que esperamos (ou cobramos) dos jovens est relacionado a outro modelo de participao e de juventude, extrado muitas vezes, de outras realidades sociais: Muitas vezes os pesquisadores e as lideranas investem na juventude expectativas de mudana extradas de outros contextos, que no condizem com a trajetria histrico-cultural do pas nem com os incentivos e condies abertos sua participao ( Krischke, 2005, p. 323-324).

    Na mesma direo dessa crtica de Krischke, Marlia Spsito (2005) observa que se assume como parmetro de anlise o modelo de participa-o constatado em outras dcadas, tal como, por exemplo, a participao estudantil, e destaca a motivao dos jovens atuais com relao aos temas

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    culturais em oposio ao seu afastamento das formas tradicionais de parti-cipao poltica.6

    A trajetria de Renato e de seus amigos, que evitam a participao nos espaos polticos locais, o inscreve numa tendncia da juventude de seu tempo. Bem falante, articulado, confiante, com magnetismo pessoal (caris-mtico), corajoso no enfrentamento com autoridades: as mesmas caracte-rsticas que o tornaram uma liderana entre os jovens de sua localidade, o conduziriam, em outro contexto, a se transformar em uma liderana de um movimento poltico.

    Junto com outros jovens, foi liderana do grupo Ao Radical, o qual, a partir do apoio da Universidade, realizava atividades de rapel, escaladas, trilhas, alm da formao nos bombeiros juvenis, que envolvia uma formao bastante prtica, incorporando as habilidades dos esportes radicais, alm de testes de sobrevivncia. Examinar a histria desse grupo e seu significado na trajetria de Renato oferece algumas importantes reflexes acerca da condi-o juvenil em classes populares. O grupo Ao Radical surgiu do desejo dos jovens da Nova Esperana. A proposta partiu deles, mas foi viabilizada por um projeto de extenso universitria. Houve uma grande adeso dos jovens da localidade. Criaram um forte sentimento de grupo, estabelecendo uma sociabilidade cotidiana e todo um conjunto de regras de convivncia. Com relao a essas regras, que eram formalizadas, chamou a ateno a forma como espontaneamente estabeleceram um pacto antidrogas (os coordena-dores e monitores eram orientados a no impor o debate dessa temtica aos jovens, evitando que os projetos assumissem um carter modelador do com-portamento dos jovens). Por esse pacto, a participao no grupo tinha como condio no ser usurio frequente de drogas.

    O final dessas atividades e a dissoluo do grupo coincidiram com a entrada na vida adulta, quando muitos comearam a assumir responsabilida-des da vida adulta. por esta via que Renato explica o final do grupo:

    Isso da foi... foi se acabando. Um fazia uma coisinha aqui, outro fazia l, e a se acabou. Onde uns j to sendo pai, outros j to... Ainda bem que ningum do foco no caiu, assim, nas drogas, ou coisa pesada, assim... To

    6 Spsito (2005) arrola toda uma diversidade de prticas coletivas entre os jovens, ainda pouco visveis e escassamente investigadas, tais como: a produo e circulao de meios de informao, como fanzines, rdios comunitrias, produo de vdeos e de redes via internet, entre outros.

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    tudo trabalhando. Das equipes de tutor to trabalhando. Pra tu ver como o projeto teve importncia na pode ter acabado, mas acabou assim, na hora que era para acabar, ele acabou, entendeu? porque... da, porque o projeto pegou ns j com uma idade, as pessoas j tinha que trabalhar, no sobrou muito tempo, foi se acabando, s que se acabou numa hora boa, entendeu, na hora que era pra acabar mesmo... O projeto pegou ns, assim, numa idade perigosa, e largou ns... , agora vocs se viram. (Renato, 2008).

    A continuidade do grupo faria parte do que se convencionou denomi-nar como prolongamento a juventude. No entanto, na hora que era pra aca-bar mesmo. Enquanto encerrava suas atividades nos projetos de extenso, Renato assumia uma srie de novos compromissos: trabalho, paternidade e casamento, construo de uma casa.

    Suas referncias ao novo momento de sua vida colocam em destaque a busca da ascenso social, onde o trabalho e o comportamento de poupana, no contexto de uma famlia bem organizada, so meios importantes para chegar a essa meta.

    Mais do que reproduo de um padro familiar (lembro que tais ele-mentos no estiveram presentes em muitas famlias da primeira gerao da localidade, at mesmo pela prpria precariedade das condies que viven-ciavam) a defesa dessas prticas por parte de Renato pode ser interpretada como ruptura de um ciclo que aprisiona os jovens a uma dinmica de vio-lncia. Sua afirmao dos valores da famlia tambm nos sugere considerar a observao de Gilberto Velho (1999) de que os projetos individuais, no contexto de uma sociedade marcada por uma ideologia individualista, no significam necessariamente afirmao de um estilo de vida que rompa com as configuraes de valores e instituies tradicionais, as unidades encom-passadoras. A ruptura com o passado de militncia poltica e participao comunitria da gerao anterior no tem que se traduzir obrigatoriamente, na trajetria de Renato, em um estilo de vida individualista. A afirmao de estilos de vida, em oposio s referncias cronolgicas, no ocorre sem ambiguidades. Segundo Gilberto Velho, tais ambiguidades seriam a prpria marca da vida na sociedade moderna. Outra dimenso destacada por Renato tem a ver com a questo do isolamento social, a qual parece ser menor do que a me. Em sua trajetria, observa-se uma insero maior nos espaos da cidade. A experincia de trabalho na Assembleia Legisla-tiva pode ser tomada como experincia de reconhecimento de outro espao

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    social, de contato com outro universo social e da percepo das habilida-des necessrias para enfrentar esse meio.

    Que eu fui, eu fui selecionado, eu fui chamado, no teve nenhuma que eu fui assim, sabe, eu ligo depois, nunca ela falou eu ligo depois. Ento eu pego o teu nmero, comparea aqui tal dia... Isso que eu aprendi bastante, que era o foco do projeto, era esse, de tu saber se relacionar com as pessoas, e tu crescer na vida. Eu acho que eu peguei bastante o foco do projeto, assim, o objetivo do Antonieta de Barros era ensinar pras pessoas, tu saber escolher o que tu quer trabalhar, no o que.. a pessoa t l trabalhando, p, mas nem gosta de trabalhar, se alevanta... Tu se alevanta pra trabalhar todo dia tem que l fazer uma coisa que tu no gosta ou que tu no... entendeu? Da, no, o foco trabalhar o que tu gosta, tu saber se relacionar com as pessoas. (Renato, 2008).

    Mais do que a declarada experincia de conhecer a poltica, o impor-tante que Renato destaca que viu, que presenciou, que incorporou no seu rol de experincias o contato com um mundo que at ento lhe foi sempre bastante distante. Parece no ter aprendido muito de poltica, mas aprendeu de convvio com o ambiente dela: passou a sentir-se mais parte da cidade onde vive. No entanto, sua trajetria no significou apenas uma adeso ao individualismo de massas (Peralva, 2000). Renato diferencia-se dos outros jovens destacando esse aspecto, e posicionando-se criticamente com relao ao consumo. Assim ele justifica a compra de seu carro: O carro foi porque d pra levar compras de supermercado, pra me, levar ela, fazer as coisas. Eu sou um guri que no peguei o carro pra mim, assim, eu peguei pra minha famlia, assim, entendeu?. Alm de justificar o seu consumo por questes familiares, tambm critica o comportamento de outros jovens de sua localidade quando a questo comprar:

    Pago at agora, t ralando, no tem? Como bom tu sair com a tua moto, sair com o teu carro, porra, no devo nada pra polcia, a polcia vem, tu pega o documento, , a minha carteira de motorista, o documento do carro, t aqui pra tu no se incomodar, entendeu? Mas eu no posso meter um Golf se eu no tenho condies de pagar um Golf, mas amanh ou depois eu posso ter trabalho ganhando seis mil, vou juntando, guardo um dinhei-rinho, eu posso ter um Golf, entendeu? Mas o jovem no tem pacincia,

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    do jovem, mesmo, entendeu, no tem, eles no tm, no esperam: No, eu quero s para mostrar, e quando eles vo mostrar no vale mais a pena, ou j esto na cadeia. do jovem mesmo, do adolescente, , eu quero, eu quero, eu quero, no, o jovem no tem pacincia, n? Eu mesmo... j fui adolescente, adolescente pacincia no existe, n? No tm pacincia, cara, eles no tm, no tm, querem ter corrente de prata, querem andar... agora... (Renato, 2008).

    Isso relativizando a anlise de Peralva, pois em sua percepo h uma sria crtica ao consumismo de muitos outros jovens, embora essas atitu-des de consumo estejam tambm presentes no comportamento de Renato, como, por exemplo, sua fixao em ter automveis ou motocicletas. Mas, na percepo que tem de si mesmo, sua relao com o consumo mode-rada, e explica muitas das suas escolhas, se comparadas com a de outros jovens. Criticando muitos dos jovens que se inserem no mundo da crimi-nalidade, Renato diz:

    Eles quiseram ter as coisas e no quiseram trabalhar. Quem vem dizer pra mim, hoje, assim, ah, eu uso droga e no como. No, a, ele... eu sei, eu vivi, eu sei, os meus amigos tm a mesma idade que eu, estudamos nove anos, estudamos quase a mesma coisa, porque eu consegui e eles no consegui-ram? Entendeu? Eu acho assim, , no me bota na cabea ah, por causa da educao, no sei o que... no porque tu tem que entender o que tu quer... entendeu? ah, eu quero um carro, ento, p, ento trabalha... trabalha, entra um dinheirinho, compra um carrinho, depois vai indo, entendeu? No, eles j querem um Golf... (Renato, 2008).

    Renato traa caminhos que o distanciam da gerao anterior: muito mais voltado para sua ascenso individual, no desenvolve prticas associa-tivas, ao contrrio de sua me, que fez da participao poltica e comunitria um modo de vida. No caso de Renato, suas escolhas o encaminharam para um processo de individualizao (nos termos de Elias), e podem ser pensadas muito mais como o afastamento do risco comum aos jovens de seu meio do que como ruptura com o comunitarismo e o militantismo.

    Por outro lado, pode ser pensada como a presena elementos de perma-nncia com relao gerao anterior, ao assumir as mesmas referncias cro-nolgicas de seu meio, tornando-se pai, trabalhador, adotando uma tica do

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    provedor (Zaluar, 2000). O projeto de Renato, assim, se rompe com o comu-nitarismo e o militantismo da gerao anterior e com os laos sociais locais, reafirma os valores da famlia. Por trs da tica do provedor, um projeto.

    Letcia: entre sair e ficar

    Na poca da ocupao, Letcia ainda era uma criana de colo. Eu a conheci quando tinha onze anos, no incio da dcada passada, l pelos anos 2000, 2001. Teve seu primeiro filho aos dezoito anos. Em 2009, aos vinte anos, era me de uma menina. uma jovem cuja beleza, aliada a uma grande simpatia, chama a ateno de quem a conhece, aparentando muita segurana e autoconfiana. Casou-se por conta de uma gravidez no planejada, mas ficou viva em razo de um acidente sofrido pelo marido.

    Participou intensamente dos projetos desenvolvidos na localidade e sobre esse ponto pretendia me debruar na entrevista. Assim, iniciei com uma pergunta sobre os projetos que a Universidade havia desenvolvido na Nova Esperana, indagando de quais havia participado. Disse que havia par-ticipado de muitos, que estava em todos. Dos que mais gostou, destacou o de trilhas, que fez com uma jovem estudante que compunha a equipe de exten-sionistas da Udesc. Das pessoas que trabalhavam nos projetos, foi com ela que teve a melhor relao. Sobre os projetos considerados importantes para a sua vida, apontou o projeto de informtica, no qual trabalhou como monitora.

    Tambm mencionou o curso (as aulas) de educao sexual. Disse que foram as que mais ficaram, mas comentou que, apesar delas, engravidou sem ter planejado.

    Minha me falava: um dia tu vai crescer, tu vai casar, tu vai ter filho e eu: Deus que me perdoe, eu no quero casar, eu no quero nunca ter filho. Pergunta para minha me, eu falava: Eu nunca quero casar! Cruz, me amarrar em homem, Deus que me livre!. Foi castigo! Paguei a lngua! Ela falava pra mim: T vendo como tu pagou a lngua? Nunca mais tu fala essas coisas, que agora tu casou e tem um filho, olha a, . Eu nunca ia ima-ginar que eu ia ter um filho, que eu realmente no tenho pacincia com criana. (Letcia, 2009).

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    Ponto de convergncia das trajetrias dos jovens aqui investigados, os projetos socioeducativos de que participaram so unanimemente reconheci-dos da parte dos que foram importantes para suas vidas, mesmo que os bene-fcios prticos no tenham aparecido de modo direto, explcito, evidente. Mesmo quando suas prticas aparentemente recusavam de todo os ensina-mentos das oficinas o caso de Letcia e sua gravidez no planejada (caso em que no a nica) , elogiam de modo sincero os projetos; reconhecem sua importncia e no veem contradio entre isso e suas prticas aparentemente contraditrias com o discurso. Utilizo, no caso das oficinas de educao sexual, o termo aparentemente porque, segundo os professores, a ideia no era redirecionar as prticas e as condutas, mas fornecer informaes e pro-porcionar reflexes que contribussem com a escolha sobre as suas prprias prticas, respeitando, com isso, a autonomia dos participantes das atividades.

    A trajetria de Letcia pode elucidar um pouco a aparente contradi-o. De um lado, os projetos preencheram a juventude, demarcaram um momento de convivncia coletiva. Coincidiram com uma etapa de vida. De outro, o reconhecimento diz respeito aquisio de um novo habitus,7 de um conjunto de disposies que proporcionam maior segurana social e abertura para outros contatos sociais (o que Nadir Azibeiro (2006) muito bem desta-cou como desconstruo de subalternidades). Oportunizaram experincias que a conduziram ao exerccio dessas habilidades.

    Letcia, filha de Marta, foi criada sem a presena do pai. Filha caula, cresceu na Nova Esperana com mais dois irmos, homens. Entre os filhos, foi a mais aplicada na escola, pois sempre gostou de estudar.

    Adaptou-se bem aos projetos que se iniciaram quando era ainda criana estava ento com dez anos. Desde ento, passou a se integrar s mais varia-das atividades que aconteciam na Nova Esperana. Embora de carter educa-tivo, essas atividades se misturavam com o lazer, preenchiam o tempo livre, com o que no era ocupado pela escola, aspecto nunca descuidado por sua me, e ao qual igualmente se adaptou bem, em tudo sempre considerada boa aluna.

    Letcia parece ter tido as possibilidades de vivenciar o lazer intensamente. No incio da adolescncia, j comeava a fazer suas sadas noturnas, em gru-pos de amigas da vizinhana. Vivncia de um lazer de classe, sem dvida, pois

    7 Um novo habitus implica a criao de um novo sistema de disposies, que funcionariam como princ-pios organizadores de novas prticas e representaes (Bourdieu, 1996; Martins, 1990).

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    se restringia mais ao continente. Seu grupo no frequentava, por exemplo, a regio do centro ou a Lagoa, bairros preferidos pelos jovens de classe mdia da cidade. Mas circulou para alm dos limites locais, enfrentando a falta de recursos. Conta as aventuras, como ficar sem dinheiro, por gastar muito na noite e ter que voltar a p de uma boate muito distante de sua casa.

    No reclamava de dificuldades de relacionamentos, mesmo quando mudou de rea foi morar em Barreiros. Demorou um pouco para se acos-tumar. Sentiu falta das amizades que tinha na Nova Esperana, mas fez novas amizades e montou, junto com seu irmo, um grupo de dana (de ax).

    Com o casamento, seu cotidiano sofreu muitas limitaes, especial-mente no que toca ao lazer, mas continuou vivenciando a juventude: saa uma vez por ms, por falta de recursos, e restringia a sociabilidade aos encon-tros em casa mas tudo certo. Letcia parece ter gostado bastante dessa alternativa, ligada a uma nova fase de sua vida.

    Praticamente, a gente ficava mais em casa, n, quando a gente no tinha dinheiro pra sair. Reunia todo mundo quando no tinha dinheiro opa, vamo l pra casa, a gente faz um churrasquinho, a juntava todo mundo, o dinheirinho que tinha, a gente ia no mercado, comprava uma carninha, fazia um churrasco, jogava domin, uma canastra... (Letcia, 2009).

    A gravidez, seguida do casamento, e a mudana da Nova Esperana pare-cem ter demarcado uma fase posterior da juventude. Saa com os amigos de seu marido, no mais com as amigas, com as quais aprontava, se aventurava (tal como no relato sobre a volta a p da New Time). Aps o casamento, e com a maternidade, ficaram as saudades de um tempo. Em seu relato biogr-fico, demarcou uma etapa de vida: A pegamo e viemo andando... mas era uma poca to boa. Pergunto: Tu sente saudade disso?. Muita, muita, eu sinto muita saudade de quando eu era mais nova, ela responde.

    Com relao s amizades, disse que agora, aps a morte de Fbio, no tem mais amigos. Mesmo Lisa, que andava sempre com ela, no mais o mesmo: ela trabalha o dia inteiro, estuda noite, e quando se veem, oi e tchau.

    Revelando maturidade, talvez forada pelas dificuldades que tem enfrentado ao longo da vida (pobreza, ausncia do pai, maternidade precoce e indesejada, morte recente e prematura do marido), quando fala do trabalho tem muito claro que deseja conquistar estabilidade. Pensa em fazer concurso

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    para o Estado, e seu sonho, dentro disso, ser policial, o que passa tambm por um curso de Direito. Ela diz: mas o que eu mais quero, mesmo, con-curso da polcia. Mas isso parece estar afetando outros projetos que j havia revelado em outros tempos, quando adolescente, como o de ser modelo. De qualquer modo, parece que a maturidade sua marca, pois, ao invs do des-lumbramento, tem a percepo das dificuldades inerentes imerso nesse campo, totalmente estranho para ela.

    Entre seus projetos, est o de comprar uma casa (j deu entrada nos papis para um financiamento). Ao contrrio do que me havia dito em outra ocasio, no pretendia mais construir atrs da casa de sua me. Perguntei por qu, e ela respondeu que quer uma casa que seja sua, resultado de sua luta. Como sua me lutou pela casa que tem, ela tambm quer ter uma casa que seja sua, que venha de seu esforo.

    No quer educar os seus filhos na Nova Esperana, no ambiente para eles. Acha que, por conta da violncia, mudou muito. Quanto ao pessoal ven-dendo essas coisas (como muitos outros moradores, hesita antes de falar; sua voz quase some quando se refere ao trfico ou s drogas e, como outros mora-dores, at evita mencionar essas palavras). Perguntada, atribui essas mudanas ao pessoal de fora. Mas tambm ao pessoal daqui mesmo, que se juntou.

    Tudo indica que o bairro aonde foi morar guarda algumas diferenas com relao Nova Esperana. H um respeito maior privacidade, cujo desrespeito na Nova Esperana parece ser reclamao geral. O que explica-ria isso? O passado comum, e o conhecimento mtuo, em uma situao de vivncia coletiva partilhada entre todos? A disposio das casas, voltadas para dentro de si, com a vista recproca de um morador para com o outro?

    Olha... o bom de morar l em Barreiros que um bairro quieto. um bairro que tu faz o que tu quer e ningum se mete na tua vida, entendeu? Agora, aqui se tu faz alguma coisa, todo mundo j t sabendo, todo mundo j t falando, todo mundo v, todo mundo sabe. Ento, l em Barreiros no, l diferente: tu faz... por exemplo: eu vou fazer uma reforma, ningum se mete, ningum quer saber se tu t fazendo alguma coisa ou no t, se deixa de fazer alguma coisa. Agora, aqui, no: se tu faz alguma coisa todo mundo j t comentando, todo mundo t falando isso e aquilo, e fica aquele comentrio, assim, sabe, no ar. Eu gosto l de Barreiros por causa disso: porque ningum se mete na tua vida. Tu faz o que tem que fazer, tu no faz, ento, um bairro muito bom, muito quieto... (Letcia, 2009).

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    Com essas palavras, junta-se ao coro dos que reclamam da falta de pri-vacidade. No entanto, no reclamava dessa invaso, mesmo morando num terreno compartilhado, entre familiares, embora tenha reconhecido a exis-tncia de alguns problemas. Reconheceu-os aps eu perguntar: Mas, aqui, a interferncia, se familiar, tolerada, faz parte da famlia. O problema a interferncia de vizinhos, afirma Letcia.

    Chama a ateno sua segurana, o que no constatei em outros jovens.8 A autoconfiante Letcia pretende sair, porque deseja algo melhor para si, ao contrrio de outros jovens, que no apresentam projetos de futuro. Letcia demonstra ambies; persegue seu sonho de ser policial, qui at delegada.

    Mesmo que Letcia tenha passado por momentos de instabilidade, algo inerente juventude ou sua condio de classe, vivenciava o momento com uma disposio que a diferenciava de muitos jovens de seu meio. E sua dispo-sio aponta para a sada para outros espaos sociais.

    Concluses

    As trajetrias de Renato e de Letcia guardam muito em comum com as de outros jovens de sua localidade, cujas trajetrias foram tambm investiga-das, embora no aqui expostas. Um destes aspectos, e que os diferenciam da gerao de seus pais no que diz respeito participao em espaos coletivos locais, uma sociabilidade que se desenvolveu em projetos educativos e, a partir deles, a insero em novos espaos.

    Os projetos no lhes criaram alternativas profissionais, mas lhes propor-cionaram uma maior insero social. Criaram tambm a possibilidade, de um lado, de fugirem a um destino comum a muitos de seus vizinhos, de crimi-nalidade ou de vcio. De outro lado, proporcionaram-lhes a oportunidade de uma maior insero no mundo da cidade, dando-lhes as ferramentas para, a partir de suas individualidades, buscarem alternativas para suas vidas.

    Tais aspectos no esto isolados, pois a segurana adquirida com os pro-jetos os afastaram, de diferentes maneiras, dos laos locais. Os depoimentos revelam, em Renato, a recusa de um modo de ser jovem (um estilo de vida).

    8 Em outras entrevistas realizadas com jovens da localidade, foi possvel constatar essa ausncia de expec-tativas quanto ao futuro. Tais depoimentos, no entanto, no sero reproduzidos nos limites desse artigo. Sobre esses jovens, consultar Canella (2011), especialmente o sexto captulo.

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    Ao valorizar a famlia, o comportamento de poupana, relacionados a uma conscincia adquirida nos projetos, Renato afirma sua individualizao e se afasta de seu antigo universo de convvio social. Letcia, por sua vez, mostra--se decidida a sair e construir seu espao distante de uma comunidade que no para ela nem para educar os filhos. Tambm se afasta de uma vizinhana que ameaa sua individualidade.

    Os projetos significaram uma transio para outro tipo de habitus, o qual lhes permitiu, por exemplo, buscar alternativas profissionais (mesmo que os projetos no os tenham profissionalizados). Nesse processo de tran-sio, as diferenas se fizeram sentir entre eles, mas mudaram as disposies internalizadas dos que continuaram nos projetos, como ocorreu com Letcia e Renato. Assim pode ser pensada a incorporao pelos jovens de um senti-mento de autoestima e de segurana, que favoreceriam aes mais respons-veis, maior autodisciplina, maior responsabilidade e autonomia.Termo que era quase uma palavra de ordem entre os participantes dos mais variados pro-jetos (bolsistas, voluntrios e professores): o objetivo de elevao da autoes-tima dos jovens. O termo foi muito bem apropriado por eles (os moradores da Nova Esperana). Nas menes a si mesmos, como indivduos ou cole-tividade, sempre foi destacada a elevao da autoestima (especialmente em Renato). Algo perfeitamente compreendido e incorporado por eles e relacio-nado com o reconhecimento intersubjetivo do sujeito til e cidado, de que fala Jess Souza (2003), ou da constituio do indivduo, como menciona Velho (1999).

    Pode-se dizer que os projetos os articularam coletivamente, mas no no sentido de intermediar com a esfera pblica citadina, tais como o fariam a associao de moradores e outras entidades. Mobilizaram os jovens coletiva-mente, mas no sentido de encaminh-los para buscas individuais, reforando processos de individualizao. Assim podem ser interpretadas as percepes negativas dos jovens sobre as sociabilidades no plano local. Tambm permi-tem entender porque tanto enfatizaram em seus discursos (e o quanto de fato adquire centralidade em seus projetos) o bem-estar individual, no plano privado, cujo foco se concentrava em ter casa prpria, trabalho e constituir famlia.

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  • Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 69-93, jul./dez. 2014 93

    Resumo: O artigo discute trajetrias de vida de jovens de uma localidade da periferia empobrecida de Florianpolis, analisando as mudanas nas suas relaes com os espaos locais de participao e suas inseres no mundo da cidade. A histria da localidade onde vivem relaciona-se com as lutas empreendidas pelo movimento dos sem-teto no final dos anos 1980, o que caracterizou o forte engajamento em aes coletivas da gerao de seus pais. Assim, as dimenses pblica e privada da vida dos jovens so mais bem compreendidas se contrastadas com a forma como a gerao de seus pais se relacionou com os espaos locais e seus distintos processos de insero no mundo da cidade. Os dados que fundamentam esse artigo foram coletados por meio de entrevistas (seguindo a metodologia da histria oral) e por observao participante. Enquanto a primeira gerao de moradores, formada pelos pais dos jovens aqui analisados, tem como trao distintivo ter encontrado na mobilizao coletiva a principal estratgia para a conquista de seu espao, o exame das trajetrias de vida da segunda gerao revela significativas mudanas em seu processo de insero na cidade.

    Palavras-chave: jovens, periferia urbana, individualizao.

    Young people from impoverished outskirts and the city: life trajectories and individualization processes (Florianpolis, 2000-2010)

    Abstract: This article discusses life trajectories of young people from a poor neighborhood of Florianpolis (Brazil), and analyses how the changes in their relationship with the local spaces of participation. The history of the neighborhood is connected with the struggles of the homeless movement at the end of the 1980s, which characterized their parents strong engagement in collective actions. Thus, the public and private dimensions of the young peoples lives are better understood if compared to the way their parents generation related to the local spaces, and their individual processes of insertion in the world of the city. The fundamental data for this work were collected by means of interviews (based on the oral history methodology) and ethnographic observation. Whereas the first generation of dwellers, composed of the young peoples parents, has as a distinctive feature the fact that they found in the collective mobilization the main strategy to conquer their space, the examination of the life trajectories of the second generation shows significant changes in their process of insertion in the city.

    Keywords: young people, impoverished outskirts, individualization.

    Recebido em 20/10/2014Aprovado em 2/12/2014