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Livro sobre literatura e feminino

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  • DEVIR-MENOR DA POESIA FEMININA:

    CORPO E PALAVRA EM ANA CRISTINA CESAR

    Jucely Regis dos Anjos SILVA1

    Orientadora: Tnia LIMA2

    RESUMO:

    Este artigo estuda a construo da potica de Ana Cristina Cesar como um devir-menor da

    lngua e da literatura, tendo como base a obra A teus ps (CESAR, 1998). Pensa--se aqui de

    que modo essa produo dialoga com o modo maior de se fazer literatura e como busca

    estabelecer nele uma tenso, traar uma linha de fuga para fazer fugir o modo maior. Em vista

    dos procedimentos, foram pensadas trs posturas assumidas pela escritora por meio das quais

    a obra se constituiria como um modo menor da literatura. So elas: o uso da experimentao

    do corpo e do verbo como potencial criativo da literatura feminina;a relao estreita entre vida

    e literatura em sua obra, perceptvel, por exemplo, no trabalho com a problemtica de gnero

    em sua crtica e em sua potica; o dilogo com e o questionamento do cnone literrio

    masculino. A anlise tem como referncia terica Mil plats:Capitalismo e esquizofrenia, vol.

    2(2009). Mas tambm contribuem para a discusso os volumes 1 e 3 de Mil plats (2009);a

    crtica de Spivak em Pode o subalterno falar? (2010), pensando a relao entre poder, desejo

    e interesse; Cesar, no textoCrtica e Traduo (1999); Bonnici&Zolin(2009).

    Palavras-chave: devir-menor, literatura feminina, Ana Cristina Cesar

    1 Mestranda do Programa de Ps-graduao em Estudos da Linguagem (PPgEL-UFRN). Atualmente, desenvolve

    dissertao de mestrado sobre a Potica do Corpo em Ana Cristina Cesar. E-mail: [email protected]

    2 Professora adjunta do Departamento de Letras. Doutora em Teoria da Literatura, UFPE, 2007. E-mail:

    [email protected]

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    Introduo

    Na dcada de 1970, o Brasil ainda se encontrava em poder do regime militar e sofria

    as consequncias do Ato Institucional N 5, cuja decretao em 1968 levou ao fechamento do

    Congresso Nacional e tornou ainda mais rigorosa a atuao da ditadura, que silenciou a todos

    os que no estavam no poder ou ao lado dele. Em contrapartida, essa era a dcada seguinte

    aos primeiros avanos mais significativos do movimento negro e do movimento feminista. De

    acordo com Hutcheon (1999, p. 89), foi nesses anos [de 1960] que ocorreu o registro, na

    histria, de grupos anteriormente silenciosos. Definidos pela autora como ex-cntricos,

    esses grupos se inscreveram cada vez mais no discurso terico e na prtica artstica, pois os

    andro- (falo-), hetero-, euro e etnocentrismos foram intensamente desafiados (HUTCHEON,

    1991, p. 89).

    nesse contexto de forte tenso nas relaes sociais e consequente ebulio do meio

    artstico com a herana do tropicalismo, do Cinema Novo e o desenvolvimento de uma nova

    atitude literria que os anos 70 no Brasil se revelam como cenrio de efervescncia cultural

    em que o movimento denominado poesia marginal toma forma.

    Definir os poetas daqueles anos como marginais um ato que requer cautela. Sobre

    esse ponto, ressaltamos a compreenso de Heloisa Buarque de Hollanda (2013), conforme a

    qual o termo marginal sempre esteve rodeado de ambiguidades, mas permite trs

    interpretaes. Segundo essa ensasta, professora e organizadora da antologia 26 Poetas Hoje,

    os poetas dos anos 70 eram marginais da vida poltica do pas, marginais do mercado

    editorial, e, sobretudo, marginais do cnone literrio. Compreendemos como justificativa

    adequada para o uso do termo as duas ltimas percepes.

    Primeiramente, esses escritores se afastavam dos crculos das grandes editoras e se

    utilizavam de formas alternativas de publicao e produo dos prprios livros, o que motivou

    a denominao gerao mimegrafo. Em segundo lugar, estava a negao do cnone. Isso

    porque, embora os pesquisadores da poesia marginal tenham divergido criticamente, h

    consenso em admitir que os marginais optaram pela poesia expressiva, em oposio s

    produes anteriores de cunho construtivista. Isso mostra que a gerao marginal constitui

    uma literatura (...) cuja linguagem estabelece uma relao direta com a realidade corporal-

    existencial vivida pelo escritor (FARIA, 2007).

    A partir dessas afirmaes, vemos convergir duas etapas do processo de escrita nos

    anos 70: a etapa de elaborao do livro e a de venda. J que os autores produziam de forma

    autnoma, a interao com o pblico se dava simultaneamente venda ou divulgao do livro

    e permitia o corpo-a-corpo com o leitor. Assim, as vivncias dos escritores influenciavam a

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    prpria etapa de elaborao/escrita dessa poesia, de modo que o cotidiano no s modificou a

    relao com o pblico, mas tambm se tornou tema da produo marginal e fator que

    influenciava essa nova linguagem.

    A incorporao da vida na literatura aparece, ento, como um fator comum diante de

    um panorama heterogneo, como deixa transparecer a antologia 26 Poetas Hoje(2007) e o seu

    posfcio,da 6 edio. Com essa publicao, Heloisa Buarque de Hollanda integrava, ao

    campo das editoras, nomes que j produziam de modo independente, e reunia escritos de uma

    diversidade estilstica e ideolgica. Alguns nomes so citados entre os que se distanciavam da

    ideia mais geral sobre a literatura marginal, a qual apresentaria uma linguagem primeira

    vista fcil, leve e engraada e seria, portanto, uma literatura menos preocupada com a questo

    esttica. Entre aqueles que se dispersavam dessa definio, destaca-se o nome de Ana Cristina

    Cesar.

    Ana Cristina Cesar nasceu em 1952, no Rio de Janeiro e empreendeu a sua vida

    incessantemente no campo artstico. Licenciou-se em Letras pela PUC do Rio de Janeiro, em

    1971, concluiu mestrado em Comunicao Social na UFRJ, em 1978, e obteve ttulo de

    mestre em Teoria e Prtica de Traduo Literria pela Universidade de Essex, Inglaterra, em

    1981. Seu envolvimento com a literatura ultrapassou a esfera acadmica, perpassando a sua

    potica, seus ensaios, resenhas, artigos, tradues, e at mesmo suas correspondncias

    pessoais. Os estudiosos de sua obra evidenciam que a sua relao com a escritura se deu desde

    a infncia, de forma que produziu bastante at os 31 anos. Aps o seu suicdio em 1983, os

    textos sob sua autoria se multiplicariam com as edies pstumas (LEONE, 2008). Cesar

    publicou trs livros de forma independente: Cenas de abril (1979), Correspondncia

    completa (1979), Luvas de pelica (1981); e um por editora, A teus ps (1982) que reunia os

    trs livros anteriores e um novo grupo de poemas.

    Nessa ltima obra, a opo que Cesar faz pelo olhar estetizante (CESAR, 1998b, p.

    141) anula a possibilidade de chegar Verdade do poema, impede o impulso de determinar a

    construo de uma potica a partir de dados biogrficos e direciona o foco para o processo de

    construo. Essa opo integra uma postura frente literatura, e ao mesmo tempo no diminui

    a relevncia de um fator primordial: indcios de que a escrita de Cesar se inscreveria no corpo

    e, portanto, estaria relacionada sua subjetividade na condio de mulher.

    Dessa forma, podemos dizer que, por um lado,ao escolher como tema literrio a vida

    cotidiana,a escritora estava em consonncia com a produo marginal, isto , se localizava

    num modo maior, estratificado, de se fazer poesia nos anos 70. Por outro, a sua escritura

    traou uma linha de fuga capaz de fazer fugir o modo maior(DELEUZE; GUATTARI,

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    2009). Essa linha de fuga pde ser traada pelo que foi denominado pelos tericos franceses

    Gilles Deleuze e Flix Guattari como devir-menorda lngua (2009, p. 54), o qual se

    construiria na potica de Ana Cristina Cesar conforme hiptese levantada aqui aps prvio

    estudo da obra pela adeso de trs posturas que se afetam mutuamente e que sero

    detalhadas no desenvolvimento.

    Pensando essas possveis posturas adotadas por essa escritora na construo de sua

    potica, pretendemos, neste artigo, fazer um mapeamento inicial desses mecanismos na obra

    A teus ps (1998a). A anlise tem como referncia terica Mil plats:Capitalismo e

    esquizofrenia, vol. 2(2009), mas tambm contribuem para a discusso os volumes 1 e 3 de Mil

    plats (2009).Alm disso, recorremos crtica de:Spivak em Pode o subalterno falar? (2010),

    para pensar a relao entre poder, desejo e interesse; Cesar, no textoCrtica e Traduo

    (1999), para verificar a postura da autora como intelectual ao tratar as questes de gnero e

    literatura; Bonnici&Zolin(2009), para contextualizar a literatura de autoria feminina e da

    crtica ps-colonial.

    Trs posturas por um devir-menor da poesia feminina

    Em Mil plats: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, Deleuze e Guattari tratam

    inicialmente dos pressupostos da lingustica. Ao debater o quarto pressuposto, de que s se

    poderia estudar cientificamente uma lngua sob as condies de uma lngua maior ou

    padro, os intelectuais franceses problematizam a existncia de uma lngua maior e de outra

    considerada menor.

    Deleuze e Guattari compreendem que no preciso distinguir lnguas maiores e

    lnguas menores, e justificam seu ponto de vista com dois argumentos. Primeiro, conforme o

    prprio Chomsky, um dialeto, considerado uma lngua menor, no escapa ao tratamento que o

    submete extrao de constantes para criar um sistema homogneo. Segundo, quanto mais

    uma lngua tem ou adquire os caracteres de uma lngua maior, mais ela trabalhada pelas

    variaes contnuas que a transpem em menor. (p. 51). Assim, a lngua considerada

    maior, ou padro, como o ingls, no adquire esse status sem ser trabalhada por todas as

    minorias do mundo, com procedimentos de variao bastante diversos. Isso porque

    No existe uma pobreza e uma sobrecarga que caracterizariam as lnguas menores

    em relao a uma lngua maior ou padro; h uma sobriedade e uma variao que

    so como um tratamento menor da lngua padro, um devir-menor da lngua

    maior. O problema no o de uma distino entre lngua maior e lngua menor, mas

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    o de um devir. A questo no a de se reterritorializar em um dialeto ou patu, mas

    de desterritorializar a lngua maior. (2009, p. 54, grifos nossos).

    Kafka escrevia em alemo e teria sido capaz de dar a essa lngua um tratamento

    criador de lngua menor, colocando-a em variao contnua, a partir da explorao de recursos

    sintticos, lexicais, fonticos, a fim de extrair da gritos, clamores, alturas, direes, timbres,

    acentos, intensidades (p. 53). Nessa perspectiva, os escritores menores so estrangeiros em

    sua prpria lngua. So aqueles que encontraram os meios para tornar menor sua lngua maior.

    Dessa forma, o modo maior e o modo menor so dois tratamentos da lngua: um,

    consistindo em extrair dela constantes; outro, em coloc-la em variao contnua. (p. 57). A

    isso se acrescenta, no volume 3 de Mil plats, quecada devir pressupe um lado maior, mais

    estvel, e um lado menor, mais fluido ou menos fixo. Enquanto o lado maior se determina por

    sua constncia, o lado menor se caracteriza por sua capacidade de desestabilizar o lado maior.

    Depreendendo-se a ideia mais geral do devir deleuziano, possvel trabalhar essa

    noo no campo da literatura. Isso se admitirmos que exista um tipo de produo que se

    constri como um modo menor (varivel e menos fixo) diante de um modo maior da lngua,

    ou mesmo da literatura (como um padro fixado pelo cnone). Alm disso, seria necessrio

    pressupor que essa literatura menor, ou devir-menor da literatura tivesse a capacidade de

    desestabilizar o modelo cannico.

    Neste artigo, pensamos se possvel a adeso desse ponto de vista, por reconhecermos

    na poesia feminina, e mais especificamente na potica de Ana Cristina Cesar, esse potencial.

    Ou seja, compreendemos que essa produo dialoga com o modo maior da literatura com o

    objetivo de estabelecer nele uma tenso, traar uma linha de fuga para fazer fugir o modo

    maior.

    Em A teus ps, o devir-menor da lngua se manifestaria pela adeso de trs posturas.

    Primeira: a adeso da experimentao da linguagem e do corpo como potencial criativo ou

    mesmo subversivo da literatura feminina. Segunda: a relao intensiva entre vida e

    literatura. Terceira:o dilogo com/e a desleitura do cnone literrio masculino.

    Corpo e palavra vida e literatura

    Quando entre ns s havia

    uma carta certa

    a correspondncia

    completa

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    o trem os trilhos

    a janela aberta

    uma certa paisagem

    sem pedras ou sobressaltos

    meu salto alto em equilbrio

    o copo dgua

    a espera do caf

    (CESAR, 1998a, p. 63)

    Se pretendssemos reduzir esse poema a uma espcie de enredo, poderamos dizer que

    o poema trata da descrio de uma manh comum no quotidiano de um casal. Obviamente,

    seria uma leitura reducionista que deixaria de fora a maior parte do processo criativo do

    poema. certo que Ana Cristina Cesar igualmente a outros poetas de sua gerao

    tematizou a vida cotidiana, assim como optou por se utilizar dos chamados gneros da

    intimidade (carta pessoal, dirio, bilhete) em sua obra. Mas tambm possvel dizer que a

    estes foi impressa uma deformao(MALUFE, 2011, p. 89) que ultrapassa a expresso das

    vivncias pessoais.

    Voltando-nos ao poema, percebemos uma srie de indcios da ausncia: a inexistncia

    de ttulo, a omisso da vrgula entre o trem e os trilhos e os demais elementos da

    enumerao, o eu elptico. Alm disso, estabelece-se um campo de intimidade sugerido pelo

    ns, e h um convite para que o leitor ocupe o espao vazio da segunda pessoa. Porm, algo

    o impede. Novamente um indcio de ausncia que est atuando.

    No poema, h um jogo com a estrutura da carta, que pressupe a interlocuo, isto , a

    comunicao entre um destinatrio singular e o autor do texto. Nesse gnero, o texto escrito

    para um interlocutor especfico que partilharia determinadas informaes prvias com o

    remetente. Porm, quando o leitor do livro A teus ps que no representa o interlocutor

    especfico do texto l, fica evidente a ausncia dessas informaes em comum. So

    referncias das quais o leitor no possui a fonte e que apenas esto sugeridas no texto,

    assumindo a forma da ausncia.

    Ainda sobre esse aspecto, nota-se no poema a ausncia da chamada orao principal.

    O poema iniciado pelo advrbio quando, colocando em subordinao todo o resto do

    poema. Findada a leitura, normal que o leitor se pergunte o que vir depois, ou o que viria

    antes. Mas o silncio no preenchido, fica em suspenso a informao principal subtrada

    do texto.

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    O modo menor aqui se manifestaria, em primeiro lugar, por um uso menor da lngua

    que, no caso desse poema, se vale da subverso de algumas normas sintticas e de normas

    estruturais do gnero textual. Essa desobedincia, potencializada na ausncia, abala o plano

    do significado, enfocando o processo de experimentao.

    Certamente, essa no uma postura inocente.Ao debater a questo da literatura

    produzida por mulheres, Helosa Buarque de Hollanda afirma:

    No momento em que [as mulheres escritoras] desenvolvem suas sensibilidades

    experimentais e definem espaos alternativos possveis de expresso, tendem a

    produzir um contradiscurso, cujo potencial subversivo no desprezvel e merece

    ser explorado (HOLLANDA apud BONNICI & ZOLIN, 2009).

    No seria essa uma aluso ao devir-menor da literatura feminina, em que se verifica o

    potencial de desestabilizar o modo maior de se fazer literatura? Na fala de Hollanda, sugere-se

    uma tendncia da literatura feminina de optar pela via da experimentao, em detrimento dos

    padres representativos.

    Essa via parece se construir na potica de Cesar por uma dupla experimentao do

    corpo e do verbo. No poema citado, nota-se uma predominncia de substantivos, que

    demonstram uma insistncia na materialidade das coisas, naquilo que elas tm de corpreo,

    apontado por Deleuze e Guattari como plano do contedo. Entre esses substantivos, encontra-

    se o salto alto. Ironicamente, esse elemento de representao que simboliza o feminino

    aparece no texto. O salto alto aqui surge como uma pista de que h um sujeito mulher que

    fala no poema.

    Durante depoimento cedido ao curso Literatura de mulheres no Brasil, presente no

    livro Crtica e Traduo (1999),Cesar recorre etimologia da palavra tero, para lanar

    uma provocao ao pblico sobre o dizer da mulher. Ela afirma: Mulher por natureza

    histrica, quer dizer, ela , por natureza, a que fala com o corpo. Se voc reparar, toda mulher

    comunica com o corpo. (1999, p. 272). Na sua fala, a escritora reconhece que, em alguns de

    seus poemas, possvel perceber a presena de um sujeito mulher. Alm disso, sugere uma

    provvel indissociabilidade do corpo e da palavra na escrita feminina, um dos temas de seu

    interesse como ensasta e poetisa.

    A relao estreita entre corpo e palavra aponta para uma segunda relao no

    exatamente distinta, entre vida e literatura. Em Kafka para uma literatura menor, Deleuze e

    Guattari afirmam que a oposio entre viver e escrever, a arte e a vida, s se aplica a uma

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    literatura maior. No caso da literatura menor, a linha de fuga criativa arrasta consigo

    qualquer poltica, economia, burocracia ou jurisdio (p. 78).

    Em Mil plats: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, Deleuze e Guattari criticam a

    atitude adotada pelos linguistas: traar um sistema homogneo para a lngua (entendida por

    esses filsofos como uma realidade heterognea) com vistas a possibilitar o estudo cientfico

    desta. Esse modelo cientfico consiste em extrair das variveis da lngua um conjunto de

    constantes, ou de determinar relaes constantes entre as variveis. Segundo Deleuze e

    Guattari, essa ordem da cincia estaria a servio das exigncias de uma outra ordem (p. 49).

    Argumentam que a unidade de uma lngua , antes de tudo, poltica e que o empreendimento

    cientfico de destacar constantes e relaes constantes sempre se duplica no empreendimento

    poltico de imp-las queles que falam, e de transmitir palavras de ordem. (p. 49, grifos

    nossos).

    Dessa forma, torna-se visvel que os padres de expresso tidos como corretos,

    aceitveis, ou mesmo tidos como modelo (como a literatura reconhecida pelo cnone) tm

    nessa determinao um carter poltico. Ou seja, so modelos estabelecidos por pessoas cujo

    interesse em manter o quadro social tal como est estabelecido se faz presente.

    Discurso feminino em dilogo com o cnone

    No so incomuns, atualmente, discusses a respeito do cnone e de sua formao,

    no se ignorando que estes se deramporque certas obras literrias em determinados perodos

    histricos cultuavam interesses e propsitos culturais particulares, como se fossem o nico

    padro de investigao literria (BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 269).

    Novamente fica latente o papel dos interesses no estabelecimento de padres mais ou

    menos objetivos. No obstante, a manifestao das minorias no includas nesse padro

    tambm acontece, caracterizando a afetao do lado menor e do lado maior num processo de

    devir. Essa relao com o cnone estava presente na obra de Ana Cristina Cesar, a qual,

    produzindo nos anos de 1970, dialogava com a poesia modernista, j ento reconhecida como

    um padro esttico a que se pode chamar cnone. Esse cnone se compunha/compe

    predominantemente por homens. No muito diferente era o quadro da poesia marginal. Como

    se percebe hoje, aps o relativamente recente interesse pela poesia marginal no mbito

    acadmico, recorrente que apenas os nomes masculinos sejam lembrados. Entre os mais

    citados esto Paulo Leminski, Torquato Neto, Antnio Carlos de Brito (Cacaso) e

  • 9

    WalySalomo, de forma que nomes como ngela Melim, Leila Miccolis ou mesmo Ana

    Cristina Cesar so constantemente esquecidos.

    Sob esse contexto, de que forma atuaria a literatura escrita por mulher, constantemente

    ignorada? Na poesia de A teus ps se desenha uma tentativa de dilogo. Esse dilogo acontece

    por meio da tessitura do poema, em que as vozes do cnone masculino se fazem presentes.

    Porm, indo alm da aluso(ocultada ou explcita)so propostas desleituras em que a palavra

    citada toma outros contornos.

    Atrs dos olhos das meninas srias

    Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vo,

    por injunes muito mais srias, lustrar pecados

    que jamais repousam?

    (CESAR, 1998a, p. 52)

    Nesse poema, observamos um recurso utilizado pela autora em alguns dos seus textos,

    a citao de outros autores. a esse recurso que se refere o termo poesia-em-vozes, de

    Flora Sssekind (1995), em trabalho acadmico sobre a obra de Cesar. Desde o ttulo, esse

    poema desenvolve uma rede referencial em relao ao poema de Manuel Bandeira

    (Variaes Srias em Forma de Soneto). Se o ttulo se compe de um dos versos do poema

    de Bandeira, o corpo do texto igualmente formado por versos do poema primeiro, porm,

    no de modo integral. O poema de Cesar composto por apenas trs dos versos de Bandeira,

    tendo havido um recorte do poema original. Nesse recorte, muitos versos do poema de

    Bandeira so subtrados e os trs que so mantidos formam um novo poema, sob autoria de

    Ana Cristina Cesar. Alm disso, h a inverso do gnero do pronome pessoal. Onde se lia

    eles, passa-se a ler elas.

    Ao realizar a subtrao e a inverso do gnero sobre o poema de Bandeira, a escritora

    imprime conotaes discursivas distintas a esse texto. Esse novo discurso, ou esse

    contradiscurso, se delineia num contexto cultural distinto. Cesar produziu mais ativamente

    nos anos de 1970, tendo atuado como escritora de literatura e intelectual, produzindo ensaios,

    trabalhos acadmicos e textos para revistas.Essa era a dcada posterior ao avano do

    movimento feminista, na qual se v construir uma nova atitude da mulher, que no se encaixa

    nos padres comportamentais do at ento tido como o feminino. Essa relao pode-se

    depreender da expresso do poema, mulheres que ousam, impondo-se contra uma possvel

    censura, injunes muito mais srias.

  • 10

    Indo alm disso, no poema de Bandeira, a pergunta se dirige s meninas srias e os

    sujeitos referidos so eles, e trata de um possvel pudor que tornaria difcil o que o sujeito

    potico tinha a dizer. J no poema de Cesar, os sujeitos referidos so elas, e a pergunta se

    dirige, ento, a um grupo masculino (se for feita a inverso, como o poema sugere). Assim, os

    versos que compem o poema de Cesar, destitudos do contexto do de Bandeira,

    potencializam o questionamento (Mas poderei dizer-vos...?) sobre a permisso da fala.

    Alm disso, subtrado o complemento do verbo ousar, de modo que o leitor se pergunta o

    qu elas ousam. No se trata mais de pudor, mas de um questionamento sobre a possibilidade

    ou no de falar. Isso no sentido de que: o sujeito potico feminino tem permisso, ou possui

    os meios para falar? As mulheres possuem os meios para ousar (falar ou escrever)?

    Consideraes finais

    Todo o desenvolvimentodeste artigo no escapou inquietao levantada pela

    pergunta de Spivak em Pode o subalterno falar? (2010). A intelectual indiana, aps intensa

    argumentao sobre o papel do intelectual do ocidente, a importncia do interesse econmico

    nas relaes de poder e de desejo, e a subalternidade de gnero, afirma que no h nenhum

    espao a partir do qual o sujeito subalterno sexuado possa falar(SPIVAK, 2010, p. 121). A

    mesma pergunta parece ecoar no poema Atrs dos olhos das meninas srias; escrita de outra

    forma, questiona novamente sobre a possibilidade ou no de a mulher falar.

    Ao defendermos que poesia feminina de Ana Cristina Cesar se constitui como um

    devir-menor da lngua e da literatura, reconhecemos nela um potencial de variao capaz de

    desestabilizar o modelo cannico da literatura e da linguagem cientfica, em sua literatura e

    em sua crtica. Essa desestabilizao seria propiciada pelo uso da experimentao do corpo e

    do verbo como potencial criativo da literatura feminina,pelo estreitamento da relao entre

    vida e literatura, perceptvel, por exemplo, no trabalho com a problemtica de gnero em sua

    crtica e em sua potica; e a partir do dilogo com o cnone e a simultnea desestabilizao

    deste.

    No afirmamos aqui que as literaturas de autoria feminina constituem, em si, uma

    literatura menor, no sentido deleuziano da expresso. As mulheres podem compor um

    subsistema a que se pode chamar minoria. Contudo, sua literatura s se efetua como uma

    literatura menor quando trabalha o minoritrio como devir potencial e criativo, isto , quando

    pe a lngua em variao contnua.

  • 11

    Assim, a literatura de A teus ps, assumida como prtica subjetiva de experimentao,

    por meio da qual as vivncias corporais so potencializadas em forma de escrita,

    correspondem a um espao alternativo por meio do qual possvel fazer falar a mulher. Ou

    seja, embora a mulher, em sua condio de subalternidade, no possua um lugar legitimado

    por meio do qual ela possa falar o corpo, como lugar localizado de sua fala, possui um

    carter discursivo que pode ser potencializado por meio da escrita.Nesse processo de escrita,

    essa literatura pode assumir-se num devir-minoritrio, de carter subversivo.

    Referncias

    BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lcia Osana (orgs.). Teoria Literria: abordagens histricas e

    tendncias contemporneas. 3 ed. Maring: Eduem, 2009.

    CESAR, Ana Cristina. Crtica e Traduo. So Paulo: Editora tica. 1999.

    _______. A teus ps. So Paulo: Editora tica. 1998a.

    _______. Inditos e dispersos. So Paulo: Editora tica. 1998b.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats Capitalismo e Esquizofrenia. So Paulo:

    Editora 34, 2009.

    _______. Kafka para uma literatura menor. So Paulo: Ddalus, 2003.

    FARIA, Alexandre (Org.). Poesia e vida: anos 70. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007.

    HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Rio de Janeiro:

    Imago, 1991.

    LEONE, Luciana Maradi. Ana C.: As tramas da consagrao. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

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