Julia Kristeva - Sol Negro - Depressão e melancolia.pdf

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N DEPRESSÃO E MELANCOLIA 2fl EDIÇÃO

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N DEPRESSÃO E MELANCOLIA

2fl EDIÇÃO

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SOL NEGRO Depressão e melancolia

A depressão é, mais uma vez, o mal do sé­culo. Nada de tão espantoso nisso. Afinal, pro­va a semióloga Julia Kristeva, o sublime tem suas raízes na melancolia. Só os depressivos nos mos­tram a face verdadeira e às vezes insuportável de nossos valores.

Buscando o cerne melancólico de H o Ibein, Nerval, Dostoievski e Marguerite Duras, Julia Kristeva nos oferece uma obra densa e tão enig­mática e bela quanto a dos exemplos por ela des­vendados. E uma chave para a compreensão dos caminhos da arte atual.

"------~tú_./ __ ____.

SOL NEGRO Depressão e melancolia

O estado amoroso e a melan­colia têm uma ligação profunda: um é o termo corolário do outro. A criação literária, por sua vez, tem urna inteira relação comam­bos: não há escrita que não seja amorosa; nem imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.

Partindo dessas idéias· a se­mióloga Julia Kristeva tenta reve­lar o que acredita ser a face ocul­ta de Narciso: a depressão, que de­fine como amarga embriaguez on­de freqüentemente brotam nossos ideais e euforias. Místico, todo o depressivo encontra na dor e nas lágrimas a região inacessível da be­leza integral.

Em Sol Negro a intérprete maior do mal-estar da civilização utiliza Freud como seguro guia pa­ra mergulhar nos universos de Gé­rard de Nerval, Marguerite Duras, Holbein e Dostoievski. E deles emergir com uma visão predsa do que ocorre no pensamento euro­peu atual.

Julia Kristeva nasceu na Bulgá­ria em 1941. Psicanalista, é pro­fessora da Universidade Paris VII, trabalhando na França desde 1960. Foi professora as­sistente de Letras Modernas e completou o doutorado na Universidade de Paris. É repre­sentante de pesquisas do CNRS (Comitê Nacional para Pesqui­sas Científicas) e Secretária Geral da Associação Ipterna­cional de Semiótica. E reda­tora-chefe adjunta da revista Semiótica.

SOL NEGRO Depressão e Melancolia

SOL NEGRO Depressão e melancolia

O estado amoroso e a melan­colia têm uma ligação profunda: um é o termo corolário do outro. A criação literária, por sua vez, tem urna inteira relação comam­bos: não há escrita que não seja amorosa; nem imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.

Partindo dessas idéias· a se­mióloga Julia Kristeva tenta reve­lar o que acredita ser a face ocul­ta de Narciso: a depressão, que de­fine como amarga embriaguez on­de freqüentemente brotam nossos ideais e euforias. Místico, todo o depressivo encontra na dor e nas lágrimas a região inacessível da be­leza integral.

Em Sol Negro a intérprete maior do mal-estar da civilização utiliza Freud como seguro guia pa­ra mergulhar nos universos de Gé­rard de Nerval, Marguerite Duras, Holbein e Dostoievski. E deles emergir com uma visão predsa do que ocorre no pensamento euro­peu atual.

Julia Kristeva nasceu na Bulgá­ria em 1941. Psicanalista, é pro­fessora da Universidade Paris VII, trabalhando na França desde 1960. Foi professora as­sistente de Letras Modernas e completou o doutorado na Universidade de Paris. É repre­sentante de pesquisas do CNRS (Comitê Nacional para Pesqui­sas Científicas) e Secretária Geral da Associação Ipterna­cional de Semiótica. E reda­tora-chefe adjunta da revista Semiótica.

SOL NEGRO Depressão e Melancolia

JULIA KRISTEVA

SOL NEGRO Depressão e Melancolia

Tradução de

CARLOTA GOMES

2? edição

Rio de Janeiro - 1989

JULIA KRISTEVA

SOL NEGRO Depressão e Melancolia

Tradução de

CARLOTA GOMES

2? edição

Rio de Janeiro - 1989

Título original: SOLEIL NOIR - DEPRESSION ET ME.LANCOLJE

© Editions Gallimard, 1987

Direitos para a língua portuguesa reservados, com exclusividade para o Brasil, à

EDITORA ROCCO LTDA. Rua da Assembléia, 10 - Gr. 2313 CEP 20011 - Rio de Janeiro - RJ

Tel.: 224-5859 Telex: 38462 EDRC Bit

Printed in Brazii/Impresso no Brasil

capa ANA MARIA DUARTE

Foto: André Kertesz- Tulipe mélancolique (1939)

revisão GYPSI CANETTI LENY CORDEIRO

OSCAR GUILHERME LOPES

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ .

Kristcva, Julia, 1941· K93s Sol negro: depressão e meTancolia I Julia Kristcva; tra·

8~0706

dução de Carlota Gomes. -Rio de Janeiro: Roccc, 1989 .

Tradução de: Soleil noir: dépression et mélancolie.

I . Depressão mental - Ensaios. 2 . Melancolia - En­saios. I. Gomes, Carlota . 11. Título. 111. Título: Depres· são e melancolia .

CDD- 157 CDU - 159.942.5(042.3)

Por que, ó minh'alma estás tão triste? ' E por que me perturbas?

Salmo de David XLII, 6-12

A grandeza do homem é grande no que ele se conhece como miserável.

PASCAL

Pensamentos (165)

~alvez seJa isto o que se procure através da vtda! nada mais do que isto, o maior pesar posstvel, para nos tornarmos nós mesmos, antes de moner.

CÉLINE

Voyage au bout de la nuit

Título original: SOLEIL NOIR - DEPRESSION ET ME.LANCOLJE

© Editions Gallimard, 1987

Direitos para a língua portuguesa reservados, com exclusividade para o Brasil, à

EDITORA ROCCO LTDA. Rua da Assembléia, 10 - Gr. 2313 CEP 20011 - Rio de Janeiro - RJ

Tel.: 224-5859 Telex: 38462 EDRC Bit

Printed in Brazii/Impresso no Brasil

capa ANA MARIA DUARTE

Foto: André Kertesz- Tulipe mélancolique (1939)

revisão GYPSI CANETTI LENY CORDEIRO

OSCAR GUILHERME LOPES

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ .

Kristcva, Julia, 1941· K93s Sol negro: depressão e meTancolia I Julia Kristcva; tra·

8~0706

dução de Carlota Gomes. -Rio de Janeiro: Roccc, 1989 .

Tradução de: Soleil noir: dépression et mélancolie.

I . Depressão mental - Ensaios. 2 . Melancolia - En­saios. I. Gomes, Carlota . 11. Título. 111. Título: Depres· são e melancolia .

CDD- 157 CDU - 159.942.5(042.3)

Por que, ó minh'alma estás tão triste? ' E por que me perturbas?

Salmo de David XLII, 6-12

A grandeza do homem é grande no que ele se conhece como miserável.

PASCAL

Pensamentos (165)

~alvez seJa isto o que se procure através da vtda! nada mais do que isto, o maior pesar posstvel, para nos tornarmos nós mesmos, antes de moner.

CÉLINE

Voyage au bout de la nuit

Sumário

I . Um contra-depressor: a psicanálise ................ 9

11 . Vida e morte da palavra .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 7

lll. Aspecios da · depressão feminina . . . . . . . . . . . .. . . . . . . 69

IV . A beleza: o outro mundo dQ depressivo . . . . . . . . . . . . 93

V . O Cristo morto de Holbein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

VI. Nerval. El Desdichado ... . .... : . . .. .. .. .. .. . .. . . 131

VII. Dostoievski, a escrita do . S'Ofrimento e do perdão . . . . 159 . . .

VIII . A doença. da dor: .Duras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

Sumário

I . Um contra-depressor: a psicanálise ................ 9

11 . Vida e morte da palavra .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 7

lll. Aspecios da · depressão feminina . . . . . . . . . . . .. . . . . . . 69

IV . A beleza: o outro mundo dQ depressivo . . . . . . . . . . . . 93

V . O Cristo morto de Holbein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

VI. Nerval. El Desdichado ... . .... : . . .. .. .. .. .. . .. . . 131

VII. Dostoievski, a escrita do . S'Ofrimento e do perdão . . . . 159 . . .

VIII . A doença. da dor: .Duras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

I Um contra-depressor: a psicanálise

PARA aqueles a quem a melancolia devasta, escrever sobre ela só teria sentido se o escrito viesse da melancolia . Tento lhes falar de um abismo de tristeza, dor incomunicável que às vezes nos absorve, em geral de forma duradoura, até nos fazer perder o gosto por qualquer palavra, qualquer ato, o próprio gosto pela vida. Esse desespero não é uma aversão, que pressuporia capacidades de desejar e de criar, de fonna negativa, claro, mas existentes em mim . Na depressão, o absurdo de minha existência, se ela está prestes a se desequilibrar, não é trágico: ele me aparece evidente, resplandecente e inelutável.

Donde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e pesados . me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia?

O golpe que acabo de sofrer, essa derrota sentimental ou pro· fissional, essa dificuldade ou esse luto que afetam minhas relações com meus próximos são em geral o gatilho, facilmente focalizável, do meu desespero. Uma traição, uma doença fatal, um acidente ou uma desvantagem que, de for:ma brusca, me arrancam dessa cate­goria que me parecia normal, das pessoas ·normais, ou que se abatem com o mesmo efeito radical sobre um ser querido, ou ainda ... quem sabe? A lista das desgraças que nos oprimem todo~ os dias é infinita . . . Tudo isto, bruscamente, me dá uma outra vida. Uma vida impossível de ser vivida, carregada de aflições cotidianas, de lágrimas contidas ou derramadas, de desespero sem partilha, às vens abrasador, às vezes incolor e .vazio. F.m suma, uma existência desvitalizada que, embora às vezes exaltada pelo esforço que faço para continuá-la, a cada instante está prestes a oscilar para a morte . Morte vingança ou morte liberação, doravante ela é o limite interno do meu abatimento, o sentido impossível dessa vida, cujo fardo, a cada instante, me parece insustentável, salvo nO$ momentos em que

12 \]M ,CON'nA·DEPIUlSSOa: A PSICANÁLlSB

me mobilizo para enfrentar o desastre. Vivo uma morte viva, carne cortada, sangrante, tomada cadáver, ritmo diminuído ou suspenso, tempo apagado ou dilatado, incorporado na aflição... Ausente do sentido dos outros, estrangeira, acidental à felicidade ingênua, eu tenho de minha depressão uma lucidez suprema, metafísica . Nas fronteiras da vida e da morte, às vezes tenho o sentimento orgulhoso de ser a testemunha da insensatez do Ser, de revelar o absurdo dos laços e dos seres.

Minha dor é a face escondida de minha filosofia, sua irmã muda . Paralelamente, o "filosofar é aprender a morrer" não pode­ria ser concebido sem a coletânea melancólica da aflição ou do ódio - que culmirá na preocupação de Heidegger e na revelação de nosso "ser-para-a-morte". Sem uma disposição para a melancólia, não há psiquismo, mas atuação ou jogo.

Contudo, o poder dos acontecimentos que suscitam minha de­pressão, geralmente, é desproporcional em relação ao desastre que, de forma brusca, me submerge . Mais ainda, examinando o desen­canto, mesmo cruel, que sofro aqui e agora, este parece entrar em ressonância com traumas antigos, a parHr dos quais me apercebo de que jamais soube realizar o luto. Posso assim encontrar antece­dentes do meu desmorona~ento atual numa perda, numa morte ou num luto de alguém ou de alguma coisa que amei outrora . O desa­parecimento desse ser indispensável continua a me privar da parte mais válida de mim mesmo: eu o vivo como U10 golpe ou uma privação, para contudo descobrir que minha aflição é apenas o adia­mento do ódio ou do desejo de domínio que nutro por aquele ou aquela que me traíram ou abandonaram . Minha depressão assina­la-me que não sei perder: talvez não tenha sabido encontrar uma contrapartida válida para a perda? Como resultado, qualquer perda acarreta a perda do meu ser - e do próprio Ser. O deprimido é um ateu radical e soturno.

A melancolia: revestimento sombrio da paixão amorosa

Uma triste voluptuosidade, um arrebatamento pesaroso cons­tituem o fundo banal donde, em geral, se destacam nossos ideais ou nossas euforias, quando não são essa lucidez fugaz que rompe a hipnose amorosa que liga duas pessoas uma à outra . Conscientes de estarmos destinados a perder nossos amores, ficamos talvez ainda mais enlutados ao perceber no amante a sombra de um objeto ama­do. outrora perdido. A depressão é o rosto escondido de Narciso,

SOL NEGltiJ 13

o que vai levá-lo para a morte, mas que ele ignora enquanto se admira numa miragem. Falar da depressão nos reconduzirá para a região pantanosa do mito narcísico.1 Desta vez, entrelanlo, não ve­remos ali a esplendorosa e frágil idealização amorosa mas, pelo contrário, a sombra lançada sobre o ego frágil. mal dissociado do outro, precisamente pela perda desse outro necessário . Sombra do desespero.

Melhor do que procurar o sentido do desespero Cele é evi­dente ou metafísico), confessemos que só há sentido . no desespero. A criança-rainha toma-se irremediavelmente triste antes de proferir suas primeiras palavras: é a tristeza de ser separada de sua mãe, sem retorno, desesperadamente, que a faz decidir-se a tentar reencon­trá-la, da mesma forma que os outros objeto~ de amor, primeiro na sua imaginação, depois nas palavras. A semiologia, que se interessa pelo grau zero do simbolismo, é inevitavelmente levada a se inter­rogar não somente sobre o estado amoroso, ma~ também sobre o seu obscuro corolário, a melancolia, para constatar ao mesmo tempo que, se não ex:iste escrita que não seja amorosa, não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.

Pensamento - crise - melancolia

Entretanto, a melancolia não é francesa. O rigor do protestan­tismo ou o peso matriarcal da ortodoxia cristã confessam-se mais facilmente cúmplices do indivíduo enlutado, quando não o convi­dam para um deleite sombrio . Se. é verdade que a Idade Média francesa nos apresenta a tristeza sob imagens delicadas, o tom gau­lês, renascentista e iluminado está mais para a brincadeira, para o erótico e para o retórico do que para o niilismo . Pascal , Rousseau e Nerval fazem triste figura ... e constituem exceção .

Para o ser falante, a vida é uma vida que tem sentido: ela consti­tui mesmo o apogeu do sentido. Por isto, perdendo o sentido da vida, . esta se perde sem dificuldade: sentido desfeito, vida em perigo. Em seu momento de dúvida, o depressivo é filósofo e devemos a Heráclito, a Sócrates e, mais próximo de nós, a Kierkegaard as páginas mais in­quietantes sobre o sentido ou o absurdo do Ser. Todavia, é preciso re­montar a Aristóteles para encontrar uma reflexão completa sobre as

1 Cf. nosso obra Histórias de Amor, Paz e Terra, 1988.

12 \]M ,CON'nA·DEPIUlSSOa: A PSICANÁLlSB

me mobilizo para enfrentar o desastre. Vivo uma morte viva, carne cortada, sangrante, tomada cadáver, ritmo diminuído ou suspenso, tempo apagado ou dilatado, incorporado na aflição... Ausente do sentido dos outros, estrangeira, acidental à felicidade ingênua, eu tenho de minha depressão uma lucidez suprema, metafísica . Nas fronteiras da vida e da morte, às vezes tenho o sentimento orgulhoso de ser a testemunha da insensatez do Ser, de revelar o absurdo dos laços e dos seres.

Minha dor é a face escondida de minha filosofia, sua irmã muda . Paralelamente, o "filosofar é aprender a morrer" não pode­ria ser concebido sem a coletânea melancólica da aflição ou do ódio - que culmirá na preocupação de Heidegger e na revelação de nosso "ser-para-a-morte". Sem uma disposição para a melancólia, não há psiquismo, mas atuação ou jogo.

Contudo, o poder dos acontecimentos que suscitam minha de­pressão, geralmente, é desproporcional em relação ao desastre que, de forma brusca, me submerge . Mais ainda, examinando o desen­canto, mesmo cruel, que sofro aqui e agora, este parece entrar em ressonância com traumas antigos, a parHr dos quais me apercebo de que jamais soube realizar o luto. Posso assim encontrar antece­dentes do meu desmorona~ento atual numa perda, numa morte ou num luto de alguém ou de alguma coisa que amei outrora . O desa­parecimento desse ser indispensável continua a me privar da parte mais válida de mim mesmo: eu o vivo como U10 golpe ou uma privação, para contudo descobrir que minha aflição é apenas o adia­mento do ódio ou do desejo de domínio que nutro por aquele ou aquela que me traíram ou abandonaram . Minha depressão assina­la-me que não sei perder: talvez não tenha sabido encontrar uma contrapartida válida para a perda? Como resultado, qualquer perda acarreta a perda do meu ser - e do próprio Ser. O deprimido é um ateu radical e soturno.

A melancolia: revestimento sombrio da paixão amorosa

Uma triste voluptuosidade, um arrebatamento pesaroso cons­tituem o fundo banal donde, em geral, se destacam nossos ideais ou nossas euforias, quando não são essa lucidez fugaz que rompe a hipnose amorosa que liga duas pessoas uma à outra . Conscientes de estarmos destinados a perder nossos amores, ficamos talvez ainda mais enlutados ao perceber no amante a sombra de um objeto ama­do. outrora perdido. A depressão é o rosto escondido de Narciso,

SOL NEGltiJ 13

o que vai levá-lo para a morte, mas que ele ignora enquanto se admira numa miragem. Falar da depressão nos reconduzirá para a região pantanosa do mito narcísico.1 Desta vez, entrelanlo, não ve­remos ali a esplendorosa e frágil idealização amorosa mas, pelo contrário, a sombra lançada sobre o ego frágil. mal dissociado do outro, precisamente pela perda desse outro necessário . Sombra do desespero.

Melhor do que procurar o sentido do desespero Cele é evi­dente ou metafísico), confessemos que só há sentido . no desespero. A criança-rainha toma-se irremediavelmente triste antes de proferir suas primeiras palavras: é a tristeza de ser separada de sua mãe, sem retorno, desesperadamente, que a faz decidir-se a tentar reencon­trá-la, da mesma forma que os outros objeto~ de amor, primeiro na sua imaginação, depois nas palavras. A semiologia, que se interessa pelo grau zero do simbolismo, é inevitavelmente levada a se inter­rogar não somente sobre o estado amoroso, ma~ também sobre o seu obscuro corolário, a melancolia, para constatar ao mesmo tempo que, se não ex:iste escrita que não seja amorosa, não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.

Pensamento - crise - melancolia

Entretanto, a melancolia não é francesa. O rigor do protestan­tismo ou o peso matriarcal da ortodoxia cristã confessam-se mais facilmente cúmplices do indivíduo enlutado, quando não o convi­dam para um deleite sombrio . Se. é verdade que a Idade Média francesa nos apresenta a tristeza sob imagens delicadas, o tom gau­lês, renascentista e iluminado está mais para a brincadeira, para o erótico e para o retórico do que para o niilismo . Pascal , Rousseau e Nerval fazem triste figura ... e constituem exceção .

Para o ser falante, a vida é uma vida que tem sentido: ela consti­tui mesmo o apogeu do sentido. Por isto, perdendo o sentido da vida, . esta se perde sem dificuldade: sentido desfeito, vida em perigo. Em seu momento de dúvida, o depressivo é filósofo e devemos a Heráclito, a Sócrates e, mais próximo de nós, a Kierkegaard as páginas mais in­quietantes sobre o sentido ou o absurdo do Ser. Todavia, é preciso re­montar a Aristóteles para encontrar uma reflexão completa sobre as

1 Cf. nosso obra Histórias de Amor, Paz e Terra, 1988.

14 UM CONTJlA.DEPilESSOil: A PSICANÁLISE

relações que os filósofos mantinham com a melancolia. Nas Problema­ta {30, 1), atribuídas a Aristóteles, a bílis negra (melaina kole) deter­mina os grandes homens. A reflexão (pseudo-)aristotélica ap!íca-se ao éthos-périton, a personalidade de exceção, à qual a melancolia se­ria específica. Ao mesmo tempo em que se serviu das noções hipocrá­ticas (os quatro humores e os quatro temperamentos), Aristóteles inova, extraindo u melancolia da patologia e situando-a na natureza, mas também, e sobretudo, fazendo-a decorrer do calor, considerado como o princ.ípio regulador do organismo, c da mesotes, interação controlada de energias opostas. Essa noção grega de melancolia hoje nos é estranha: ela supõe uma "diversidade bem dosada" (c:uk ralos

anomalia), que ~e traduz de forma metafórica pela espuma (aphros), contraponto eufórico da bílis negra. Essa mistura branca de at· (pneuma) e de líquido faz espu mar tanto o mar, o vinho, quanto o esperma do homem. De fa to, Aristóteles associa exposição ci;:n­tífi~a c referências míticas , ligando a melancolia à espuma esper­mática e ao erotismo, e referindo-se explicitamente a Dionísio e a Afrodite (953b 31-32). A melancolia que ele evoca não é uma doen­ça do filósofo, mas sim sua própria natureza, o sc:1 éthos. Não é a que ataca o primeiro melancólico grego, Belcrefonte, que a l líada (V I, 200-203) nos apresenta: . ''Objeto de ódio para os deuses, ele errava sozinho na planície de Aléion, w m o coração devorado pe!a mágoa, evitando os vestígios dos homens." Autofágíco, porque aban­donado pelos deuses. exi1ado pelo decreto divino, este desesperado estava condenado não à mania, mas ao afastamento, à ausência, ao vazio . . . Com Adstótelcs. a melancolia, equilibrada pelo gênio, é cc-extensiva à inquietação do homem no Ser. Ali via-se a antecipação da angcistia heideggcriana como Stimrnung do pensamento. Schcl ling. de modo similar, descobriu aí a "essência da liberdad:! humana", o indício da ''simpatia do homem com a natureza". Assi m, o filósofo seria ' ·melancúlico por superabundância de humanidade" .2

Esta visão da melancolia, como estado-limite e como excepcio­nalidade reveladora da verdadeira natureza do Ser, sofreu uma pro­funda mutação na Idade Médi a. Por um lado, o pensamento medie­val volta às cosmologius da Antiguidade tardia e liga a melancolia

! C f. {a melauwfia ele/f' uomo di genio (A melancolia do homem genial) . Ed. Jt Mclangolo, aos cuidados de Carlos Angclino, ed. Enrica Salvaneschi Gênova, 1981.

90L N'E<HLO 15

a Sàturno, planeta do espírito e do pensamento.3 A Melancolia (1514) de Dürer saberá, de fonna magistral, transpor para a arte plástica essas especulações teóricas que encontravam o seu apogeu em Mar­sile Ficin . Por outro lado, a· teologia cristã faz da tristeza um pecado . Dante coloca as "multidões dolorosas que perderam o bem do en­tendimento" na "cidade dolente" (o Inferno, canto UI). Ter um "co­ração taciturno" significa ter perdido Deus, e os melancólicos for­mam "uma seita de fracos, importunos ante Deus e seus inimigos": sua punição é a não ter "nenhuma esperança de morte''. Aqueles a quem o deseipero torna violentos para con sigo mesmos, os suicidas e os dissipadores, não são menos poupados: estão condenados a se transformarem em árvores (canto XIII) . Entretanto, os monges da Idade Média cultivarão a tristeza: ascese mística (acedia), ela se imporá como meio de conhecimento paradoxal da verdade divina e constituirá a maior prova da fé .

Variável segundo os climas religiosos, a melancolia se afi rma, por assim dizer, na dúvida religiosa. Nada mais triste do que um Deus morto, e o próprio Dostoievski ficará perturbado pela imagem pungente do Cristo morto, no quadro de Holbein, apondo-se à "ver­dade da ressurreição". As épocas que vêem o desmoronamento de fdolos religiosos e políticos, as épocas de crise são partic:tlannente propicias ao humor negro. I! verdade que um desempregado é me­nos suicida do que uma mulher apabwnada e abandonada mas, em tempos de crise, a melancolia se impõe, é expressa, faz sua arqueo­logia, produz suas representações e seu saber . A melancolia escrita certamente não tem muita coisa a ver com o estupor de manicômio que traz o mesmo nome. Além da confusão terminológica , que até agora mantivemos (0 que é uma melancolia? O que é uma depre· são?), estamos aqui diante de um paradoxo enigmático que não deixará de nos interrogar: se a perda, o luto, a ausência desenca­deiam o ato imaginário e o nutrem permanentemente, tanto quanto o ameaçam e o danificam, é também notável que ao renegar-se essa mágoa mobilizadora erija-se o fetiche da obra. O artista que se consome com a melancolia é, ao mesmo tempo, o mais obstinado em combater a demissão simbólica que o envolve . . . Até qJ.e a morte

l Sobre a melancolia na história das idéias e das artes. cf. a obra fundamen­tal de K. Klíbanski, E. Panofski, Fr. Saxl, Saturn and Melandwly (Saturno •!

Melancolia), T . Nelson, ed. 1964.

14 UM CONTJlA.DEPilESSOil: A PSICANÁLISE

relações que os filósofos mantinham com a melancolia. Nas Problema­ta {30, 1), atribuídas a Aristóteles, a bílis negra (melaina kole) deter­mina os grandes homens. A reflexão (pseudo-)aristotélica ap!íca-se ao éthos-périton, a personalidade de exceção, à qual a melancolia se­ria específica. Ao mesmo tempo em que se serviu das noções hipocrá­ticas (os quatro humores e os quatro temperamentos), Aristóteles inova, extraindo u melancolia da patologia e situando-a na natureza, mas também, e sobretudo, fazendo-a decorrer do calor, considerado como o princ.ípio regulador do organismo, c da mesotes, interação controlada de energias opostas. Essa noção grega de melancolia hoje nos é estranha: ela supõe uma "diversidade bem dosada" (c:uk ralos

anomalia), que ~e traduz de forma metafórica pela espuma (aphros), contraponto eufórico da bílis negra. Essa mistura branca de at· (pneuma) e de líquido faz espu mar tanto o mar, o vinho, quanto o esperma do homem. De fa to, Aristóteles associa exposição ci;:n­tífi~a c referências míticas , ligando a melancolia à espuma esper­mática e ao erotismo, e referindo-se explicitamente a Dionísio e a Afrodite (953b 31-32). A melancolia que ele evoca não é uma doen­ça do filósofo, mas sim sua própria natureza, o sc:1 éthos. Não é a que ataca o primeiro melancólico grego, Belcrefonte, que a l líada (V I, 200-203) nos apresenta: . ''Objeto de ódio para os deuses, ele errava sozinho na planície de Aléion, w m o coração devorado pe!a mágoa, evitando os vestígios dos homens." Autofágíco, porque aban­donado pelos deuses. exi1ado pelo decreto divino, este desesperado estava condenado não à mania, mas ao afastamento, à ausência, ao vazio . . . Com Adstótelcs. a melancolia, equilibrada pelo gênio, é cc-extensiva à inquietação do homem no Ser. Ali via-se a antecipação da angcistia heideggcriana como Stimrnung do pensamento. Schcl ling. de modo similar, descobriu aí a "essência da liberdad:! humana", o indício da ''simpatia do homem com a natureza". Assi m, o filósofo seria ' ·melancúlico por superabundância de humanidade" .2

Esta visão da melancolia, como estado-limite e como excepcio­nalidade reveladora da verdadeira natureza do Ser, sofreu uma pro­funda mutação na Idade Médi a. Por um lado, o pensamento medie­val volta às cosmologius da Antiguidade tardia e liga a melancolia

! C f. {a melauwfia ele/f' uomo di genio (A melancolia do homem genial) . Ed. Jt Mclangolo, aos cuidados de Carlos Angclino, ed. Enrica Salvaneschi Gênova, 1981.

90L N'E<HLO 15

a Sàturno, planeta do espírito e do pensamento.3 A Melancolia (1514) de Dürer saberá, de fonna magistral, transpor para a arte plástica essas especulações teóricas que encontravam o seu apogeu em Mar­sile Ficin . Por outro lado, a· teologia cristã faz da tristeza um pecado . Dante coloca as "multidões dolorosas que perderam o bem do en­tendimento" na "cidade dolente" (o Inferno, canto UI). Ter um "co­ração taciturno" significa ter perdido Deus, e os melancólicos for­mam "uma seita de fracos, importunos ante Deus e seus inimigos": sua punição é a não ter "nenhuma esperança de morte''. Aqueles a quem o deseipero torna violentos para con sigo mesmos, os suicidas e os dissipadores, não são menos poupados: estão condenados a se transformarem em árvores (canto XIII) . Entretanto, os monges da Idade Média cultivarão a tristeza: ascese mística (acedia), ela se imporá como meio de conhecimento paradoxal da verdade divina e constituirá a maior prova da fé .

Variável segundo os climas religiosos, a melancolia se afi rma, por assim dizer, na dúvida religiosa. Nada mais triste do que um Deus morto, e o próprio Dostoievski ficará perturbado pela imagem pungente do Cristo morto, no quadro de Holbein, apondo-se à "ver­dade da ressurreição". As épocas que vêem o desmoronamento de fdolos religiosos e políticos, as épocas de crise são partic:tlannente propicias ao humor negro. I! verdade que um desempregado é me­nos suicida do que uma mulher apabwnada e abandonada mas, em tempos de crise, a melancolia se impõe, é expressa, faz sua arqueo­logia, produz suas representações e seu saber . A melancolia escrita certamente não tem muita coisa a ver com o estupor de manicômio que traz o mesmo nome. Além da confusão terminológica , que até agora mantivemos (0 que é uma melancolia? O que é uma depre· são?), estamos aqui diante de um paradoxo enigmático que não deixará de nos interrogar: se a perda, o luto, a ausência desenca­deiam o ato imaginário e o nutrem permanentemente, tanto quanto o ameaçam e o danificam, é também notável que ao renegar-se essa mágoa mobilizadora erija-se o fetiche da obra. O artista que se consome com a melancolia é, ao mesmo tempo, o mais obstinado em combater a demissão simbólica que o envolve . . . Até qJ.e a morte

l Sobre a melancolia na história das idéias e das artes. cf. a obra fundamen­tal de K. Klíbanski, E. Panofski, Fr. Saxl, Saturn and Melandwly (Saturno •!

Melancolia), T . Nelson, ed. 1964.

16 UM CONTllA·I>El'ltESSOit: 4 PSICANÁLISE

o atinja ou que o suicídio se imponha para alguns, como triunfo final sobre o nada do objeto perdido ...

Melancolia/ depressão

Chamaremos de melancolia a sintomatologia psiquiátrica de inibição e de assimbolia que, por momentos ou de forma crônica, se instala num indivíduo, em geral se alternando com a fase, d ita maníaca, da exaltação. Quando os dois fenômenos, do abatimento e da excitação, são de menor intensidade e freqüência, podemos então falar de depressão neurótica. Ao mesmo tempo em que reco­nhece a diferença e.ntre melancolia e depressão, a teoria fre:~diana revela, em todo lugar, o mesmo luto impossível do objeto materno. Pergunta: impossível em razão de qual falha paterna? Ou de que fragilidade biológica? A melancolia - encontramos ainda o termo genérico, depois de ter distinguido as sintomatologias psic6tica e neu­rótica - tem o temível privilégio de situar a interrogação do ana­lista na encruzilhada do biológico e do simbólico. Séries paralelas? Seqüências consecutivas? Cruzamento ocasional a ser precisado, outra relação a ser inventada?

Os dois termos, melancolia e depressão, designam um conjunto que se poderia chamar de melancólico-depressivo, cujos limites, na realidade, são imprecisos e no qual a psiquiatria reserva o conceito de "melancolia" à d oença espontaneamente irreversível (que só cede com a administração de antidepressivos). Sem entrar nos detalhes dos diversos tipos de depressão ("psicótica'' ou "neurótica" ou, se­gundo uma outra classificação, "ansiosa", "agitada", "retardada", "hostil"), nem no campo promissor mas pouco preciso dos efeitos exatos dos antidepressivos (IMAO, tricfclicos, heterocíclicos) ou dos estabilizadores tímicos (sais de lítio) , nos situaremos numa perspec­tiva freudiana . A partir daí tentaremos extrair o que, no seio do conjunto melancólico-depressivo, por mais imprecisos que sejam os seus limites, depende de sua experiência comum da perda do objeto, bem como de uma modificação dos laços significantes. Estes últi­mos, em particular a linguagem, no conjunto melancólico-depressivo, revelam-se incapazes de assegurar a auto-estim:.~lação necessária para iniciar certas respostas. Em vez de operar como um "sistema de recompensas", a linguagem hiperativa, pelo contrário, o acopla à ansiedade-punição, inserindo-se assim no retardamento comporta· mental e ideativo característ ico da depressão. Se a tristeza passa­geira ou o luto, por um lado, e o estupor melancólico. por outro,

17

diferem clínica e nosologicamente, eles se apóiam contudo numa in­tolerância à perda do objeto e na falência do significante, para asse­gurar uma saída compensatória aos estados de retração hos .Quais o sujeito se refugia até a inanição, até fazer-se de mórto ou até a própria morte . Assim, falaremos de depressão e de melancolia, con." tinuando a não distinguir as particularidades das duas afecções, mas tendo em vista a sua estrutura comum.

O depressivo: odioso ou ferido . O "objeto' e a "coisa" do luto

Segundo a teoria psicanalítica clássica (Abraham;' Freud,5 M. Kleine) a depressão, assim como o luto, esconde sua agressividade contra o objeto de seu luto . "Eu o amo (parece dizer o depressivo a propósito de um ser ou de um objeto perdido), mas o odeio ainda mais; porque o amo, para não perdê-lo, eu o instalo em mim: mas porque o odeio, esse outro em mim é um mau eu, sou mau, sou nulo, me mato . " A queixa contra si seria portanto uma queixa contra um outro e a autocondenação à morte, um disfarce trágico do massacre de um outro. Concebemos que tal lógica supõe um superego severo e toda uma dialética complexa da idealização e da desvalorização de si e do outro, repousando o conjunto desses mo· vimentos no mecanismo da identijicação . Pois é identificando-me com o outro amado-odiado, por incorporação-introjeção-projeção, que instalo em mini sua parte sublime, que se torna meu juiz tirânico e necessário, assim como sua parte abjeta, que me rebaixa e que desejo liquidar . A análise da depressão passa, por conseqüência, pela eviden­ci~ção do fato de que a queixa de si é um ódio contra o outro e

• Cf. K. Abraham, " Prelimjnaires à l'investigation et au traítcment psychana­lytique de la folie maniaco-depressive ec des écats voisins" (Preliminares u investigação e ao tratamento psicanalítico da loucura maníaco-depressiva c estados semelhantes), {1912) in Oeuvres Completes (Obras completas), Payot, Paris, 1965, t. I, p. 99-118. 5 Cf. Freud, "Deuil et Melancolie" (ll.uto e Melancolia) (1917) in Metapsy· chologie (Metapsicologia), Gallimard, Paris, 1968, pp. 147-174; S. E. t.XIV, pp. 237-258; G. W .• t.X. pp. 428-446 . 6 Cf. M. Klein, "Contribution à l'étude de la psychogenese des états ma· niaco-<iépressifs " (Contribuição ao estudo da psicogênese tios estados maníaco­depressivos) (1934) c " Le deuil et ses rapports avec les états maníaco·déprcssifs" (0 luto e suas relações com os estados maníac<>-depressivos) in Essais de PsychDnalyse (Ensaios de Psicanálise), Payot , Paris, 1967, pp . 311-340 e 341-369 .

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o atinja ou que o suicídio se imponha para alguns, como triunfo final sobre o nada do objeto perdido ...

Melancolia/ depressão

Chamaremos de melancolia a sintomatologia psiquiátrica de inibição e de assimbolia que, por momentos ou de forma crônica, se instala num indivíduo, em geral se alternando com a fase, d ita maníaca, da exaltação. Quando os dois fenômenos, do abatimento e da excitação, são de menor intensidade e freqüência, podemos então falar de depressão neurótica. Ao mesmo tempo em que reco­nhece a diferença e.ntre melancolia e depressão, a teoria fre:~diana revela, em todo lugar, o mesmo luto impossível do objeto materno. Pergunta: impossível em razão de qual falha paterna? Ou de que fragilidade biológica? A melancolia - encontramos ainda o termo genérico, depois de ter distinguido as sintomatologias psic6tica e neu­rótica - tem o temível privilégio de situar a interrogação do ana­lista na encruzilhada do biológico e do simbólico. Séries paralelas? Seqüências consecutivas? Cruzamento ocasional a ser precisado, outra relação a ser inventada?

Os dois termos, melancolia e depressão, designam um conjunto que se poderia chamar de melancólico-depressivo, cujos limites, na realidade, são imprecisos e no qual a psiquiatria reserva o conceito de "melancolia" à d oença espontaneamente irreversível (que só cede com a administração de antidepressivos). Sem entrar nos detalhes dos diversos tipos de depressão ("psicótica'' ou "neurótica" ou, se­gundo uma outra classificação, "ansiosa", "agitada", "retardada", "hostil"), nem no campo promissor mas pouco preciso dos efeitos exatos dos antidepressivos (IMAO, tricfclicos, heterocíclicos) ou dos estabilizadores tímicos (sais de lítio) , nos situaremos numa perspec­tiva freudiana . A partir daí tentaremos extrair o que, no seio do conjunto melancólico-depressivo, por mais imprecisos que sejam os seus limites, depende de sua experiência comum da perda do objeto, bem como de uma modificação dos laços significantes. Estes últi­mos, em particular a linguagem, no conjunto melancólico-depressivo, revelam-se incapazes de assegurar a auto-estim:.~lação necessária para iniciar certas respostas. Em vez de operar como um "sistema de recompensas", a linguagem hiperativa, pelo contrário, o acopla à ansiedade-punição, inserindo-se assim no retardamento comporta· mental e ideativo característ ico da depressão. Se a tristeza passa­geira ou o luto, por um lado, e o estupor melancólico. por outro,

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diferem clínica e nosologicamente, eles se apóiam contudo numa in­tolerância à perda do objeto e na falência do significante, para asse­gurar uma saída compensatória aos estados de retração hos .Quais o sujeito se refugia até a inanição, até fazer-se de mórto ou até a própria morte . Assim, falaremos de depressão e de melancolia, con." tinuando a não distinguir as particularidades das duas afecções, mas tendo em vista a sua estrutura comum.

O depressivo: odioso ou ferido . O "objeto' e a "coisa" do luto

Segundo a teoria psicanalítica clássica (Abraham;' Freud,5 M. Kleine) a depressão, assim como o luto, esconde sua agressividade contra o objeto de seu luto . "Eu o amo (parece dizer o depressivo a propósito de um ser ou de um objeto perdido), mas o odeio ainda mais; porque o amo, para não perdê-lo, eu o instalo em mim: mas porque o odeio, esse outro em mim é um mau eu, sou mau, sou nulo, me mato . " A queixa contra si seria portanto uma queixa contra um outro e a autocondenação à morte, um disfarce trágico do massacre de um outro. Concebemos que tal lógica supõe um superego severo e toda uma dialética complexa da idealização e da desvalorização de si e do outro, repousando o conjunto desses mo· vimentos no mecanismo da identijicação . Pois é identificando-me com o outro amado-odiado, por incorporação-introjeção-projeção, que instalo em mini sua parte sublime, que se torna meu juiz tirânico e necessário, assim como sua parte abjeta, que me rebaixa e que desejo liquidar . A análise da depressão passa, por conseqüência, pela eviden­ci~ção do fato de que a queixa de si é um ódio contra o outro e

• Cf. K. Abraham, " Prelimjnaires à l'investigation et au traítcment psychana­lytique de la folie maniaco-depressive ec des écats voisins" (Preliminares u investigação e ao tratamento psicanalítico da loucura maníaco-depressiva c estados semelhantes), {1912) in Oeuvres Completes (Obras completas), Payot, Paris, 1965, t. I, p. 99-118. 5 Cf. Freud, "Deuil et Melancolie" (ll.uto e Melancolia) (1917) in Metapsy· chologie (Metapsicologia), Gallimard, Paris, 1968, pp. 147-174; S. E. t.XIV, pp. 237-258; G. W .• t.X. pp. 428-446 . 6 Cf. M. Klein, "Contribution à l'étude de la psychogenese des états ma· niaco-<iépressifs " (Contribuição ao estudo da psicogênese tios estados maníaco­depressivos) (1934) c " Le deuil et ses rapports avec les états maníaco·déprcssifs" (0 luto e suas relações com os estados maníac<>-depressivos) in Essais de PsychDnalyse (Ensaios de Psicanálise), Payot , Paris, 1967, pp . 311-340 e 341-369 .

18 tJ.)( CONTRA-DI!PaESSOil: A PSICANÁLISE

que este, sem dúvida, é a onda portadora de um desejo sexual insuspeito. Compreende-se que tal advento do ódio na transferência comporta os seus riscos para o anali~ando e para o analista, e que a terapia da depressão (mesmo a que chamamos de neurótica) es­barra na fragmentação esquizóide.

O canibalismo melancólico, que foi assinalado por Freud e por Abraham, e que aparece em numerosos sonhos e alucinações7 de deprimidos, traduz essa paixão da manter dentro da boca (mas a vagina e o ânus também podem se prestar a este controle) o o:ttro intolerável que tenho vontade de destruir para melhor possuí-lo vivo. Melhor fragmentado, retalhado, cortado, engolido, digerido. . . do que perdido. O imaginário canibalístico melancólico8 é um desmen­tido da realidade da perda, assim como da morte . Ele manifesta a angústia de perder o outro, fazendo sobreviver o ego, certamente abandonado, mas não separado daquilo que o nutre ainda e sempre e se metamorfoseia nele - que também ressuscita - por essa de­varação.

Entretanto, o tratamento das personalidades narcísicas fez com que os analistas modernos compreendessem uma o:ttra modalidade de depressão.9 Longe de ser .um ataque escondido contra um outro imaginado como hostil, porque frustrante, a tristeza seria o sinal de um ego primitivo ferido, incompleto, vazio. Um indivíduo assim · não se considera lesado, mas sim atingido por um defeito funda­mental, por uma carência congênita. Seu pesar não esconde a c:.tl­pabíli<iade ou o erro de uma vingança urdida em segredo contra o objeto ambivalente. Sua tristeza seria antes de mais nada a ex­pressão mais arcaica de um ferimento narcísico não-sirobolizável, não­nomeável, tão precoce que nenhum agente externo (sujeito ou obje­to) pode ser relacionado com ele. Na realidade, para esse tipo de

7 Cf. infra, cap. III, p. 86 . d Como assinala Pierrc Fédida, '"Le cannibalisme mélanoolique" (0 caniba­lismo mclancólioo), in L'Absence (A ausência), Gallimard, Paris, 1978, p. 65 . 9 Cf. E . Jacobson, Depression (Depressão), "Comparative s.tudies of normal neurotic and psychotic condition" (Estudos comparativos da condição normal, neurótica e psicótica), N . Y . Int. Uni v . Press, 1977; trad. franc. Pa~ot, 19~4.: B. Grunberger, "etude sur la dépression" (Estudo sobre a depressao) ass1m como "Lc suicide du mélancolique" (0 suicídio do melancólico" in Le Narcis­sisme (0 narcisismo), Payot, Paris. 197~; P . Rosolato, " L'ax.e narcissique des uépressions" (0 ellto narcísico das depressões), in Essais sur te symbotiquc (Ensaios subre o simbólico) , GaUiroard, Paris, 1979.

SOL NEORO 19

deprimido narcísico a tristeza é o único objeto: mais exatamente, ela é um sucedâneo do objeto ao qual ele se prende, q~c ele domestica e acaricia, na falta de um outro. Neste caso, o suicídio não é um alo de guerra camuflado, mas uma reunião com a tristeza e além dela, com esse impossível amor, jamais tocado, sémpre em' outro lugar, como as promessas do nada, da morte.

Coisa e Objeto

O depressivo narcísico está de luto, não de um Objeto, mas da Coisa.1° Chamemos assim o real rebelde à significação, o pólo de atração e de repulsão, morada da sexualidade da qual se desligará o objeto do desejo.

Nerval dá uma metáfora fascinante disto, sugerindo uma insis­tência sem presença, uma luz sem representação: a Coisa é um sol sonhado, ao mesmo tempo claro e negro. "Cada um sabe que nos sonhos jamais vemos o sol. embora, em geral, tenhamos a percepção de uma claridade muito mais intensa. "u

Desde essa ligação arcaica, o depressivo tem o sentimento de ser deserdado de um bem supremo não-nomeável, de alguma coisa irrepresentável, que talvez s6 uma devoração pudesse representar, uma invocação pudesse indicar, mas que nenhuma palavra poderia significar . Assim, para ele, nenhum objeto erótico poderá substituir a insubstituívcl apercepção de um lugar ou de um pré-objeto que

10 Tendo constatado que. desde o início da filosofia grega, a apreensão da coisa é solidária ào enunciado de uma proposição e da sua verdade, Heidegger, contudo, abre a questão do caráter "historiai" da coisa: "a questão em dire­ção à coisa recoioca-se em movimento desde o âmago do seu início" (Qu'est­ce qu'une chose? (0 que é uma coisa?), tradução francesa, Gallimard, Paris, 1965, p . 5?). Sem historiar o começo desse pensamento da coisa, mas abrindo-o no intervalo que se passa entre o homem e a coisa, Heidegger nota, passando por Kant: "Esse intervalo/homem-coisa/enquanto pré-apreendido estende o seu domínio para além da coisa, ao mesmo tempo que, num movimento de retrocesso, ele nos domina por detrás ."

Na brecha aberta pela questão de Hcidegger, mas ap6s o abalo freudiano das certezas raciionais, falaremos de Coisa, entendendo por isto a "alguma coisa" que, vista ao contrário pelo sujei to já constituído, aparece como n indetenninada, a inesperada, a inaprecnsívcl, até na sua própria determinação de coisa sexual . Reservamos o tenno Objeto à constância espaço-temporal que uma proposição, enunciada por um sujeito senhor do seu dizer, verifica . 11 Ncrval, Aurelia, ir1 Oeuvres c<Jmpletes (Obras completas), La Pléiadc . Gallimard, Paris, - 1952, t. I, p. 377.

18 tJ.)( CONTRA-DI!PaESSOil: A PSICANÁLISE

que este, sem dúvida, é a onda portadora de um desejo sexual insuspeito. Compreende-se que tal advento do ódio na transferência comporta os seus riscos para o anali~ando e para o analista, e que a terapia da depressão (mesmo a que chamamos de neurótica) es­barra na fragmentação esquizóide.

O canibalismo melancólico, que foi assinalado por Freud e por Abraham, e que aparece em numerosos sonhos e alucinações7 de deprimidos, traduz essa paixão da manter dentro da boca (mas a vagina e o ânus também podem se prestar a este controle) o o:ttro intolerável que tenho vontade de destruir para melhor possuí-lo vivo. Melhor fragmentado, retalhado, cortado, engolido, digerido. . . do que perdido. O imaginário canibalístico melancólico8 é um desmen­tido da realidade da perda, assim como da morte . Ele manifesta a angústia de perder o outro, fazendo sobreviver o ego, certamente abandonado, mas não separado daquilo que o nutre ainda e sempre e se metamorfoseia nele - que também ressuscita - por essa de­varação.

Entretanto, o tratamento das personalidades narcísicas fez com que os analistas modernos compreendessem uma o:ttra modalidade de depressão.9 Longe de ser .um ataque escondido contra um outro imaginado como hostil, porque frustrante, a tristeza seria o sinal de um ego primitivo ferido, incompleto, vazio. Um indivíduo assim · não se considera lesado, mas sim atingido por um defeito funda­mental, por uma carência congênita. Seu pesar não esconde a c:.tl­pabíli<iade ou o erro de uma vingança urdida em segredo contra o objeto ambivalente. Sua tristeza seria antes de mais nada a ex­pressão mais arcaica de um ferimento narcísico não-sirobolizável, não­nomeável, tão precoce que nenhum agente externo (sujeito ou obje­to) pode ser relacionado com ele. Na realidade, para esse tipo de

7 Cf. infra, cap. III, p. 86 . d Como assinala Pierrc Fédida, '"Le cannibalisme mélanoolique" (0 caniba­lismo mclancólioo), in L'Absence (A ausência), Gallimard, Paris, 1978, p. 65 . 9 Cf. E . Jacobson, Depression (Depressão), "Comparative s.tudies of normal neurotic and psychotic condition" (Estudos comparativos da condição normal, neurótica e psicótica), N . Y . Int. Uni v . Press, 1977; trad. franc. Pa~ot, 19~4.: B. Grunberger, "etude sur la dépression" (Estudo sobre a depressao) ass1m como "Lc suicide du mélancolique" (0 suicídio do melancólico" in Le Narcis­sisme (0 narcisismo), Payot, Paris. 197~; P . Rosolato, " L'ax.e narcissique des uépressions" (0 ellto narcísico das depressões), in Essais sur te symbotiquc (Ensaios subre o simbólico) , GaUiroard, Paris, 1979.

SOL NEORO 19

deprimido narcísico a tristeza é o único objeto: mais exatamente, ela é um sucedâneo do objeto ao qual ele se prende, q~c ele domestica e acaricia, na falta de um outro. Neste caso, o suicídio não é um alo de guerra camuflado, mas uma reunião com a tristeza e além dela, com esse impossível amor, jamais tocado, sémpre em' outro lugar, como as promessas do nada, da morte.

Coisa e Objeto

O depressivo narcísico está de luto, não de um Objeto, mas da Coisa.1° Chamemos assim o real rebelde à significação, o pólo de atração e de repulsão, morada da sexualidade da qual se desligará o objeto do desejo.

Nerval dá uma metáfora fascinante disto, sugerindo uma insis­tência sem presença, uma luz sem representação: a Coisa é um sol sonhado, ao mesmo tempo claro e negro. "Cada um sabe que nos sonhos jamais vemos o sol. embora, em geral, tenhamos a percepção de uma claridade muito mais intensa. "u

Desde essa ligação arcaica, o depressivo tem o sentimento de ser deserdado de um bem supremo não-nomeável, de alguma coisa irrepresentável, que talvez s6 uma devoração pudesse representar, uma invocação pudesse indicar, mas que nenhuma palavra poderia significar . Assim, para ele, nenhum objeto erótico poderá substituir a insubstituívcl apercepção de um lugar ou de um pré-objeto que

10 Tendo constatado que. desde o início da filosofia grega, a apreensão da coisa é solidária ào enunciado de uma proposição e da sua verdade, Heidegger, contudo, abre a questão do caráter "historiai" da coisa: "a questão em dire­ção à coisa recoioca-se em movimento desde o âmago do seu início" (Qu'est­ce qu'une chose? (0 que é uma coisa?), tradução francesa, Gallimard, Paris, 1965, p . 5?). Sem historiar o começo desse pensamento da coisa, mas abrindo-o no intervalo que se passa entre o homem e a coisa, Heidegger nota, passando por Kant: "Esse intervalo/homem-coisa/enquanto pré-apreendido estende o seu domínio para além da coisa, ao mesmo tempo que, num movimento de retrocesso, ele nos domina por detrás ."

Na brecha aberta pela questão de Hcidegger, mas ap6s o abalo freudiano das certezas raciionais, falaremos de Coisa, entendendo por isto a "alguma coisa" que, vista ao contrário pelo sujei to já constituído, aparece como n indetenninada, a inesperada, a inaprecnsívcl, até na sua própria determinação de coisa sexual . Reservamos o tenno Objeto à constância espaço-temporal que uma proposição, enunciada por um sujeito senhor do seu dizer, verifica . 11 Ncrval, Aurelia, ir1 Oeuvres c<Jmpletes (Obras completas), La Pléiadc . Gallimard, Paris, - 1952, t. I, p. 377.

20 UM CONTRA-DEPRESSOR: A PSICANÁLISS

aprisiona a libido e corta os laços do desejo. Sabendo-se deserdado de sua Coisa, o depressivo foge, perseguindo aventuras e amores sempre dcccpcionantes, ou então se fecha, inconsolávcl e afásico, num tête à tête com a Coisa não nomeada. A " identificação primá­ria" com o pai da pré-história pessoal"11 seria o meio, o traço de união que lhe permitiria resignar-se com a perda da Coisa. A identificação primária inicia a compensação da Coisa, ao mesmo tem­po que o soerguimento do indivíduo para uma outra dimensão, a da adesão i.naginária, que não deixa de lembrar o laço da f,! que, precisamente, desmorona no depressivo.

No melancólico, a identificação primária revela-se frágil e insu­ficiente para assegurar as outras identificações. estas simbólicas, 11

partir das quais a Coisa erótica estaria apta a se tornar um Objeto de desejo cativante e que assegurasse a continuidade de uma metonímia do prazer_ A Coisa melancólica interrompe a metonímia desejante, assim como ela se opõe à elaboração intrapsíquica da perda.n Como se aproximar desse lugar?

A sublimação faz uma tentativa neste sentido: por melodias, ritmos, polivalências semânticas, a forma dita poética, que decom­põe c refaz os signos, é o único "continente" que parece assegurar um domínio incerto, mas adequado, sobre a Coisa.

12 CL S. Freud ''Le moi ct lc ça" lO Eu e o Id} ( t923), in Essais de Psicha· nalyse (Ensaios de Psicanálise) , Payot, 1976, p . 200: S. E. t. XIX, p. 31: G. W., t. XIll, p . 258 .

n Diferenciaremos nossa proposição daquela de Lacan, que comenta a noção de das Ding a partir do Entwurf de Freud: ''Esse das Ding não está na relação, de alguma forma refletida porque é explicitável, que faz o homem· ques­tionar suas palavras como se referindo às coisas que, entretanto, eles criarlJm. Há outra coisa no das Ding. O que há no das Ding é o segredo verdadeiro ( ... ) Alguma coisa que quer. A necessidade e não as necessidades, a pressão, a urgência. O estado de N ot des Lebens é o estado de urgência da vida [ ... ). a quantidade de energia çonservada pelo organismo na medida da resposta c que é necessfiria para a conservação da vida" ('"L' Ethiquc de la psychanalyse'" - A ética da psicanálise, seminário de 9 de dezembro de 1959, Seuil, Paris, 1986, p. 58 sq.). Tratar-se-iam de inscrições psíquicas (Niederschrijt) ante­riores aos quatro anos. sempre "secundárias" para Lacan, mas próximas U(l "qualidade'', do "esforço" c do ''endopsíquico". "O Díng como 1-'remde, çomo estranho c mesmo oportunamente hostíl, em todo caso como o primeiro exte­rior [ ... ) é esse objeto, das Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito. que ~e trata de reencontrar. No máximo, o reencontramos como saudade [ ... 1 f. nesse estado de desejá-lo c de esperá-lo que, em nome do princípio do prate~r. será procurada essa tensão máxima abaixo da qual não há mais percepçao nem esforço'' (p . 65) . E ainda com mais nitidez: "dflS Ding. originalmenle,

SOL NEGRO 21

Supusemos que o depressivo era ateu - privado de sentidos, privado de valor. Ele se depreciaria por temer 'Ou ignorar o Além. Entretanto, por mais ateu que seja, o desesperado é um místico: ele adere ao seu pré-objeto, não crendo em Ti, mas adepto mudo e inabalável do seu próprio "continente" indizível. A esta orla da estranheza , ele consagra suas lágrimas e seu gozo. Na tensão de seus afetos, de seus músculos, de suas mucosas e de sua pele, ele sente, ao mesmo tempo, o seu pertencimento e a sua distância em relação a um outro arcaico que ainda escapa à representação e à nomeação, mas do qual suas descargas corporais e seu automatismo guardam a marca. Incrédulo qúanto à linguagem, o depressivo é um afetuoso, certamente ferido, mas prisioneiro do afeto. O afeto é a sua coisa .

A coisa inscreve-se em nós sem lembrança, cúmplice subterrâ· nca de nossas angústias indizíveis. Imaginamos as delícias dos reen~ centros que um devaneio regressivo promete através das núpci~s do suicídio.

O aparecimento da Coisa, no sujeito que está se constituindo, mobiliza o seu impulso vital: a prematuridade que todos nós somos sobrevive apenas agarran~o-se a um outro, percebido como suple· mento, prótese, capa protetora . Contudo, essa pulsão de vida é, radicalmente, aquela que, ao mesmo tempo, me rejeita, me isola, o (ou a) rejeita. Nunca a ambivalência pulsional é mais temível do que nesse início de alteridade em que, sem o filtro ·da linguagem, não posso inscrever minha violência no " não", não mais do que em qualquer signo . Só posso expulsá-la por gestos, espasmos, gri· tos. Eu a propulsiono, a projeto. Mas a Coisa necessária também é, e de forma absoluta, minha inimiga, minha repulsa, o pólo delicioso do meu ódio. A Coisa cai de mim no caminho desses postos avançados da significância em que o Verbo ainda não é o meu Ser. Um nada que é uma causa, mas ao mesmo tempo uma queda, antes de ser

é o que portanto chamamos de fora-de-significado . Em função desse fora-de­significado e de urna relação patética com· ele é que o sujeito conserva a sua distância e se, constitui nesse mundo de relação, de afeto primário anterio:· a qualquer recalque. Toda D primeira articulação do Entwurf é feita em tot no úisto (pp. 67-68). Contudo, enquanto Freud insiste no fato de que D Coisa só se apresenta como grito, Lacan traduz: palavra, fazendo um jogo com o scn· tido ambivalentc do termo em francês (''palavra ~ o que se cala", ''nenhuma palavra é pronunciada"). "As coisas de que se trata [ ... ] são as coisa.> en­quanto mudas. F. coisas mudas não são exatamente u mesmo que coisas que Pão têm nenhu1113 relação com as palavras", íbíd., pp.68-69 .

20 UM CONTRA-DEPRESSOR: A PSICANÁLISS

aprisiona a libido e corta os laços do desejo. Sabendo-se deserdado de sua Coisa, o depressivo foge, perseguindo aventuras e amores sempre dcccpcionantes, ou então se fecha, inconsolávcl e afásico, num tête à tête com a Coisa não nomeada. A " identificação primá­ria" com o pai da pré-história pessoal"11 seria o meio, o traço de união que lhe permitiria resignar-se com a perda da Coisa. A identificação primária inicia a compensação da Coisa, ao mesmo tem­po que o soerguimento do indivíduo para uma outra dimensão, a da adesão i.naginária, que não deixa de lembrar o laço da f,! que, precisamente, desmorona no depressivo.

No melancólico, a identificação primária revela-se frágil e insu­ficiente para assegurar as outras identificações. estas simbólicas, 11

partir das quais a Coisa erótica estaria apta a se tornar um Objeto de desejo cativante e que assegurasse a continuidade de uma metonímia do prazer_ A Coisa melancólica interrompe a metonímia desejante, assim como ela se opõe à elaboração intrapsíquica da perda.n Como se aproximar desse lugar?

A sublimação faz uma tentativa neste sentido: por melodias, ritmos, polivalências semânticas, a forma dita poética, que decom­põe c refaz os signos, é o único "continente" que parece assegurar um domínio incerto, mas adequado, sobre a Coisa.

12 CL S. Freud ''Le moi ct lc ça" lO Eu e o Id} ( t923), in Essais de Psicha· nalyse (Ensaios de Psicanálise) , Payot, 1976, p . 200: S. E. t. XIX, p. 31: G. W., t. XIll, p . 258 .

n Diferenciaremos nossa proposição daquela de Lacan, que comenta a noção de das Ding a partir do Entwurf de Freud: ''Esse das Ding não está na relação, de alguma forma refletida porque é explicitável, que faz o homem· ques­tionar suas palavras como se referindo às coisas que, entretanto, eles criarlJm. Há outra coisa no das Ding. O que há no das Ding é o segredo verdadeiro ( ... ) Alguma coisa que quer. A necessidade e não as necessidades, a pressão, a urgência. O estado de N ot des Lebens é o estado de urgência da vida [ ... ). a quantidade de energia çonservada pelo organismo na medida da resposta c que é necessfiria para a conservação da vida" ('"L' Ethiquc de la psychanalyse'" - A ética da psicanálise, seminário de 9 de dezembro de 1959, Seuil, Paris, 1986, p. 58 sq.). Tratar-se-iam de inscrições psíquicas (Niederschrijt) ante­riores aos quatro anos. sempre "secundárias" para Lacan, mas próximas U(l "qualidade'', do "esforço" c do ''endopsíquico". "O Díng como 1-'remde, çomo estranho c mesmo oportunamente hostíl, em todo caso como o primeiro exte­rior [ ... ) é esse objeto, das Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito. que ~e trata de reencontrar. No máximo, o reencontramos como saudade [ ... 1 f. nesse estado de desejá-lo c de esperá-lo que, em nome do princípio do prate~r. será procurada essa tensão máxima abaixo da qual não há mais percepçao nem esforço'' (p . 65) . E ainda com mais nitidez: "dflS Ding. originalmenle,

SOL NEGRO 21

Supusemos que o depressivo era ateu - privado de sentidos, privado de valor. Ele se depreciaria por temer 'Ou ignorar o Além. Entretanto, por mais ateu que seja, o desesperado é um místico: ele adere ao seu pré-objeto, não crendo em Ti, mas adepto mudo e inabalável do seu próprio "continente" indizível. A esta orla da estranheza , ele consagra suas lágrimas e seu gozo. Na tensão de seus afetos, de seus músculos, de suas mucosas e de sua pele, ele sente, ao mesmo tempo, o seu pertencimento e a sua distância em relação a um outro arcaico que ainda escapa à representação e à nomeação, mas do qual suas descargas corporais e seu automatismo guardam a marca. Incrédulo qúanto à linguagem, o depressivo é um afetuoso, certamente ferido, mas prisioneiro do afeto. O afeto é a sua coisa .

A coisa inscreve-se em nós sem lembrança, cúmplice subterrâ· nca de nossas angústias indizíveis. Imaginamos as delícias dos reen~ centros que um devaneio regressivo promete através das núpci~s do suicídio.

O aparecimento da Coisa, no sujeito que está se constituindo, mobiliza o seu impulso vital: a prematuridade que todos nós somos sobrevive apenas agarran~o-se a um outro, percebido como suple· mento, prótese, capa protetora . Contudo, essa pulsão de vida é, radicalmente, aquela que, ao mesmo tempo, me rejeita, me isola, o (ou a) rejeita. Nunca a ambivalência pulsional é mais temível do que nesse início de alteridade em que, sem o filtro ·da linguagem, não posso inscrever minha violência no " não", não mais do que em qualquer signo . Só posso expulsá-la por gestos, espasmos, gri· tos. Eu a propulsiono, a projeto. Mas a Coisa necessária também é, e de forma absoluta, minha inimiga, minha repulsa, o pólo delicioso do meu ódio. A Coisa cai de mim no caminho desses postos avançados da significância em que o Verbo ainda não é o meu Ser. Um nada que é uma causa, mas ao mesmo tempo uma queda, antes de ser

é o que portanto chamamos de fora-de-significado . Em função desse fora-de­significado e de urna relação patética com· ele é que o sujeito conserva a sua distância e se, constitui nesse mundo de relação, de afeto primário anterio:· a qualquer recalque. Toda D primeira articulação do Entwurf é feita em tot no úisto (pp. 67-68). Contudo, enquanto Freud insiste no fato de que D Coisa só se apresenta como grito, Lacan traduz: palavra, fazendo um jogo com o scn· tido ambivalentc do termo em francês (''palavra ~ o que se cala", ''nenhuma palavra é pronunciada"). "As coisas de que se trata [ ... ] são as coisa.> en­quanto mudas. F. coisas mudas não são exatamente u mesmo que coisas que Pão têm nenhu1113 relação com as palavras", íbíd., pp.68-69 .

UM CO~TU-DEPRESSOll : A PSICANÁUSE

um Outro, a Coisa é o vaso que contém minhas dejeções e tudo

0 que resulta de cadere: é um dejeto com o qual, na tristeza, me confundo. O esterco de Jó na Bíblia .

A analidadc mobiliza-se na instalação dessa Coisa que nos é tanto própria quanto imprópria. O melancólico que comemora este limite em que seu ego se despreende, mas também desaba na des­valorização, não consegue mobilizar sua analidadc para dela fazer uma construtora de separações e de fronteiras, como normalmente ela age ou prevalece no obsessivo. Pelo contrário, é todo o ego. do depressivo que se precipita numa analidade deserotiz~da e contudo jubilatória, pois se tornou o vetor de. um g.oz~ . fus~onante com a Coisa arcaica, percebida não como obJeto s1gmfrcattvo, mas como elemento fronteiriço do ego. Para o depressivo, a Coisa e o ego são quedas que o conduzem para o inv is~vel e não-nomeável. Cadere · Todos escória, todos cadáveres.

A pulsão de morte como inscrição primária da descontinuidade (trauma ou perda)

O postulado freudiano de um masoquismo pnmarto vai ao en­contro de certos aspectos da melancolia narcísica, em que n extinção de qualquer laço libidinal parece não ser um simples retorno da agressividade para com o objeto em animosidade ~o.n.tra si mesm~, mas impõe-se como sendo anterior a qualquer poss1b1hdade de posi-ção do objeto.

Suscitada em t915,u a noção de "masoquismo primário" afir-ma-se após o aparecimento da "pulsão de morte' ' na obra de Freud: notadamente em La probleme économique du masochisma (1924}.1.1 Tendo observado que o ser vivo apareceu após o não-vivo, Freud pensa que uma pulsão específica devt! habitá-lo, uma pulsão que "tende ao retorno a um estado anterior".16 Depois de Au-delii du

14 Cf . S. Frcud, "Pulsions ct destin dcs pulsions" (Pulsões e destino das pul­sõcs), in Métapsyd•ologie (Mctapsicologia), col. l dées. Gallimard, Paris. p. 65; S. E . . t. X IV, p . 3'l; G. W . , t. X. p . 232. t.í Cf. s. Fremi. " l.c probleme économiqm: du masochismc" tO prohlcmn eco· nômico do masoquismo), in Nt!a•rose. P.sydws~· L'l Pt•n•er:;ion (Ncuro~l!. Psicose .: Perversão). P . U . F. , Paris, 1973. pp. 21!7-297: S . E .. t. XIX, pp . 159· 170; G. W., t. XI II , pp . j]l -383. ló C f . S . Fr.::ud. "Abrégé d.: psychanalysc" (Resumo de psicanáli~cl. in R/Jsul­l<lls. Tú~~s. Problemes !Resultados. Idéias. Problemas}, t. 11. P . U . f .. Paris, 1!!85, pp . q7-tt 7; S . E . . t. XXlll, pp . 139-207; C . W .• t. XVll, pp. ó7-l38

IOL NEGRO 23

principe du plaisir (1920),11 que impõe a noção de pulsão de morte como tendência de retorno ao inorgânico c à homeostase, ao contrá­rio do princípio erótico da descarga e da ligação

1 Freud postula que

uma parte ~a pulsão de morte ou de destruição dirige-se para o mundo externo, notadamente através do sistema muscular, e se transforma em pulsão de destruição, de domínio ôu de vontade poderosa . A serviço da sexualidade, ela compõe o sadismo. Entre­tanto, ele observa que " uma outra parte não participa desse deslo­camento para o exterior: ela permanece no organismo e Já se encon­tra · ligada /ibidina/mente [ . . . ] é nela que devemos reconhecer. o masoquismo original, erógeno".18 Levando em conta que o ódio pelo outro já era considerado como "mais antigo que o amor, 19 esse refú­gio masoquista do ódio indicaria a existência de um ódio ainda mais arcaico? Freud parece supor isto: de fato , ele considera a pulsão de morte como uma manifestação intrapsíquica de uma herança filoge­nética que remonta até a matéria inorgânica. Entretanto, ao lado dessas especulações que a maiori a dos analistas, depois de Fre:.td, não seguem, podemos constatar, se não a anterioridade, pelo menos o poder da desintegração dos laços em várias estruturas e manifes­tações psíquicas. Além disso, a freqüência do masoquismo, a reação terapêutica negativa, mas também diversas patologias da tenra ida­de, que parecem anteriores à relação de objeto (anorexias infantis, mcricismo, certos autismos), incitam a aceitar a idéia de uma pulsão de morte que, aparecendo como :.~ma inaptidão biológica e lógica para transmitir as energias e as inscrições psíquicas, destruiria cir­culações e elos. Freud se. refere a ela : "Se abraçarmos no seu con­junto o quadro em que se reúnem as manifestações do masoquismo imanente de tantas pessoas, a da reação terapêutica negativà e a da cc.:nsciência de culpabilidade das neuroses, não poderemos mais ficar ligados à crença de que o curso dos acontecimentos psíquicos é ex­clusivamente dominado pela aspiração ao prazer. Estes fenôm:mos são indicias inegáveis da existência, na vida da alma, de um poder

17 Cf. S. Frcud, " Au-delà du principe du plaisir" (Além do princípio do pra­zer), in Essais de psychanalyse, op. cit., p . 64; S. E. , t . XIV, p. 139; G. W . , t. X. p . 232. 18 " t e probl~me économiquc clu masochismc" (0 problema econômico do ma· suquismo), up . rit ., p. 291; S. E .. t. X IX, p . 163: G . W ., t. Xlll , p . 376 . Grifo nosso . :,- '·Pulsions ct destin des pulsions'' (Pulsõcs e destino das pulsões), op . cit . p . 64; S E . , t. XIV, p . 139; G W . , t. X, p . 232 .

UM CO~TU-DEPRESSOll : A PSICANÁUSE

um Outro, a Coisa é o vaso que contém minhas dejeções e tudo

0 que resulta de cadere: é um dejeto com o qual, na tristeza, me confundo. O esterco de Jó na Bíblia .

A analidadc mobiliza-se na instalação dessa Coisa que nos é tanto própria quanto imprópria. O melancólico que comemora este limite em que seu ego se despreende, mas também desaba na des­valorização, não consegue mobilizar sua analidadc para dela fazer uma construtora de separações e de fronteiras, como normalmente ela age ou prevalece no obsessivo. Pelo contrário, é todo o ego. do depressivo que se precipita numa analidade deserotiz~da e contudo jubilatória, pois se tornou o vetor de. um g.oz~ . fus~onante com a Coisa arcaica, percebida não como obJeto s1gmfrcattvo, mas como elemento fronteiriço do ego. Para o depressivo, a Coisa e o ego são quedas que o conduzem para o inv is~vel e não-nomeável. Cadere · Todos escória, todos cadáveres.

A pulsão de morte como inscrição primária da descontinuidade (trauma ou perda)

O postulado freudiano de um masoquismo pnmarto vai ao en­contro de certos aspectos da melancolia narcísica, em que n extinção de qualquer laço libidinal parece não ser um simples retorno da agressividade para com o objeto em animosidade ~o.n.tra si mesm~, mas impõe-se como sendo anterior a qualquer poss1b1hdade de posi-ção do objeto.

Suscitada em t915,u a noção de "masoquismo primário" afir-ma-se após o aparecimento da "pulsão de morte' ' na obra de Freud: notadamente em La probleme économique du masochisma (1924}.1.1 Tendo observado que o ser vivo apareceu após o não-vivo, Freud pensa que uma pulsão específica devt! habitá-lo, uma pulsão que "tende ao retorno a um estado anterior".16 Depois de Au-delii du

14 Cf . S. Frcud, "Pulsions ct destin dcs pulsions" (Pulsões e destino das pul­sõcs), in Métapsyd•ologie (Mctapsicologia), col. l dées. Gallimard, Paris. p. 65; S. E . . t. X IV, p . 3'l; G. W . , t. X. p . 232. t.í Cf. s. Fremi. " l.c probleme économiqm: du masochismc" tO prohlcmn eco· nômico do masoquismo), in Nt!a•rose. P.sydws~· L'l Pt•n•er:;ion (Ncuro~l!. Psicose .: Perversão). P . U . F. , Paris, 1973. pp. 21!7-297: S . E .. t. XIX, pp . 159· 170; G. W., t. XI II , pp . j]l -383. ló C f . S . Fr.::ud. "Abrégé d.: psychanalysc" (Resumo de psicanáli~cl. in R/Jsul­l<lls. Tú~~s. Problemes !Resultados. Idéias. Problemas}, t. 11. P . U . f .. Paris, 1!!85, pp . q7-tt 7; S . E . . t. XXlll, pp . 139-207; C . W .• t. XVll, pp. ó7-l38

IOL NEGRO 23

principe du plaisir (1920),11 que impõe a noção de pulsão de morte como tendência de retorno ao inorgânico c à homeostase, ao contrá­rio do princípio erótico da descarga e da ligação

1 Freud postula que

uma parte ~a pulsão de morte ou de destruição dirige-se para o mundo externo, notadamente através do sistema muscular, e se transforma em pulsão de destruição, de domínio ôu de vontade poderosa . A serviço da sexualidade, ela compõe o sadismo. Entre­tanto, ele observa que " uma outra parte não participa desse deslo­camento para o exterior: ela permanece no organismo e Já se encon­tra · ligada /ibidina/mente [ . . . ] é nela que devemos reconhecer. o masoquismo original, erógeno".18 Levando em conta que o ódio pelo outro já era considerado como "mais antigo que o amor, 19 esse refú­gio masoquista do ódio indicaria a existência de um ódio ainda mais arcaico? Freud parece supor isto: de fato , ele considera a pulsão de morte como uma manifestação intrapsíquica de uma herança filoge­nética que remonta até a matéria inorgânica. Entretanto, ao lado dessas especulações que a maiori a dos analistas, depois de Fre:.td, não seguem, podemos constatar, se não a anterioridade, pelo menos o poder da desintegração dos laços em várias estruturas e manifes­tações psíquicas. Além disso, a freqüência do masoquismo, a reação terapêutica negativa, mas também diversas patologias da tenra ida­de, que parecem anteriores à relação de objeto (anorexias infantis, mcricismo, certos autismos), incitam a aceitar a idéia de uma pulsão de morte que, aparecendo como :.~ma inaptidão biológica e lógica para transmitir as energias e as inscrições psíquicas, destruiria cir­culações e elos. Freud se. refere a ela : "Se abraçarmos no seu con­junto o quadro em que se reúnem as manifestações do masoquismo imanente de tantas pessoas, a da reação terapêutica negativà e a da cc.:nsciência de culpabilidade das neuroses, não poderemos mais ficar ligados à crença de que o curso dos acontecimentos psíquicos é ex­clusivamente dominado pela aspiração ao prazer. Estes fenôm:mos são indicias inegáveis da existência, na vida da alma, de um poder

17 Cf. S. Frcud, " Au-delà du principe du plaisir" (Além do princípio do pra­zer), in Essais de psychanalyse, op. cit., p . 64; S. E. , t . XIV, p. 139; G. W . , t. X. p . 232. 18 " t e probl~me économiquc clu masochismc" (0 problema econômico do ma· suquismo), up . rit ., p. 291; S. E .. t. X IX, p . 163: G . W ., t. Xlll , p . 376 . Grifo nosso . :,- '·Pulsions ct destin des pulsions'' (Pulsõcs e destino das pulsões), op . cit . p . 64; S E . , t. XIV, p . 139; G W . , t. X, p . 232 .

24 UM CONDA.·DEP&i.SSOR: A PSlCAN'ÁUSE

que, segundo seus objetivos, chamamos de pulsão -de agressão ou de destruição, e que derivamos da originária pulsão de morte da matéria animada. '120

A melancolia narcísica manifestaria esta pulsão no seu estado de desunião com a pulsão de vida: o superego do melancólico apa­rece para Freud como "uma cultura da pulsão de morte" .21 Contudo, a pergunta permanece: esta deserotização melanc61ica seria oposta ao principio do prazer? Ou então, pelo contrário, é implicitamente erótica, o que significaria que o refúgio melancólico seria sempre um retorno da relação de objeto, uma metamorfose do ódio pelo outro? A obra de Melanie Klein, que concedeu a maior importância à pulsão de morte, parece fazê-la depender, para a maioria, da rela· ção de objeto, masoquismo e melancolia· aparecendo então como transformações da introjeção do mau objeto. Entretanto, o raciocí­nio kleiniano admite situações em que os elos eróticos estão corta­dos, sem dizer claramente se alguma vez eles existiram ou se foram rompidos (neste último caso, seria a introjeção da projeção que re­sultaria nesse desinvestimento erótico).

Notaremos, em particular, a definição kleinia.1a da clivagem, introduzida em 1946. Por um lado, ela se desloca da posição de­pressiva para trás, p8l'a a posição paranóide e esq:lizóide, mais ar­caica. Por outro, ela distingue uma clivagem binária (a distinção entre "bom" e "mau" objeto assegurando a unidade do ego) e uma clivagem fragmentante, esta última afetando não somente o objeto, mas, em contrapartida, o próprio ego, que literalmente "cai em pe· daços" (fali into pieces).

Integração f não-integração/ desintegração

Para o nosso propósito, é fundamental notar {~Ue essa fragmen· tação pode ser devida a uma não-integração pulsional que entrava a coesão do ego, ou a uma desintegração acompanhada de angústias e provocando a fragmentação esquiz6ide.22 Na primeira hip6tese,

20 Cf . FTel.ld, "Analyse terminée et interminable" (Análise terminada e inter· minável), in Résultats, Idées, Problemes (Resultados, idéias, problemas), t. li , c;p . cit., pp . 258; A. W., t. XXIII, pp . 243; G . W., t: XVI, pp . 88. 21 Cf. S . Freud, "0 Ego e o Id", op . cit ., p. 227; S. E . , t. XIX, p. 53; G. W. , t. XIII, p . 283. n C f. M. Klein, Développements de la psycfumalyse (Os progressos da psica­nálise), P . U . F ., Paris, 1966 (Oevelopments in Psycho-analysis, Londres, Ho­ghart Press, 1952) .

SOL NEGJlO 25

que parece ter sido tomada de Winnicott, a não-integração resulta de uma imaturidade biológica: se podemos falar de ·Tanatos nessa situação, a pulsão de morte aparece como uma inaptidão biológica para a seqüencialidade e para a integração (não de memória). Na segunda hipótese, a de uma desintegração do ego, conseqüência do, retorno da pulsão de morte, observamos uma " reação tanática a uma ameaça, ela própria tanática."l.l Bastante próxima de Ferenczi, esta. concepção acentua a tendência do ser humano para a fragmentação e para a desintegração, como uma expressão da pulsão de morte. "O ego arcaico tem; amplamente, falta de coesão e uma tendência à integração alternada com uma tendência à desintegração, a cair em pedaços [ . .. 1 A angústia de ser destruído do interior continua ativa. Parece-me que o ego, sob a pressão da angústia, tende a cair em pedaços, resultado da sua falta de coesão.''2• Se a fragmentação esquizóide é uma manifestação radical e paroxística da fragmenta~ ção, podemos considerar a inibição melancólica ·(retardamento, ca· rência da seqüencialidade) como uma outra manifestação da desin­tegração dos elos . Como?

Consecutivo à deflexão da pulsão de morte, o afeto depressivo pode ser interpretado como uma defesa . contra a fragmentação. De fato, a tristeza reconstitui uma coesão afetiva do ego, que reintegra a sua unidade no invólucro do afeto. O humor depressivo é cons· tituído como um suporte narcfsico, certamente negativo;2S mas que, contudo, oferece ao ego uma integridade, mesmo que seja não-verbal. Em conseqüência disto, o afeto depressivo substitui a invalidação e a interrupção simbólíca (o ~'isso não tem sentido" do depressivo), ao mesmo tempo em que o protege contra a atuação suicida. Entre­tanto, esta proteção é frágil. A recusa depressiva que aniquila o sentido do simbólico também aniquila o sentido do ato e condu·z o sujeito a cometer o suicídio sem angústia de desintegração, como

u CC. Jean-Michel Petot, Meúmie Kltln, le Moi et le Bon Objet (Melanie Klein, o Ego e o .Bom Objeto), Dunod, Paris, 1932, p. 150 . 2• Cf. M. Klein, Développements de la psychanalyse (Os progréssos da psica­nálise), op. cit ., pp. 276 e 219. ~ · A . Green, Narcisismo de vida, • arcisismo de morte, assim deCiniu a no­c,:iio de narcisismo negativo: "Além do esfacelamento que fragmenta o eu ~ o conduz ao auto-erotismo, o narcisismo primário absoluto deseja Q repouso mimético da morte. Ele é a busca do não-desejo do outro, da inexist~ncia, do não-ser, outra forma de acesso à imortalidad.e".

24 UM CONDA.·DEP&i.SSOR: A PSlCAN'ÁUSE

que, segundo seus objetivos, chamamos de pulsão -de agressão ou de destruição, e que derivamos da originária pulsão de morte da matéria animada. '120

A melancolia narcísica manifestaria esta pulsão no seu estado de desunião com a pulsão de vida: o superego do melancólico apa­rece para Freud como "uma cultura da pulsão de morte" .21 Contudo, a pergunta permanece: esta deserotização melanc61ica seria oposta ao principio do prazer? Ou então, pelo contrário, é implicitamente erótica, o que significaria que o refúgio melancólico seria sempre um retorno da relação de objeto, uma metamorfose do ódio pelo outro? A obra de Melanie Klein, que concedeu a maior importância à pulsão de morte, parece fazê-la depender, para a maioria, da rela· ção de objeto, masoquismo e melancolia· aparecendo então como transformações da introjeção do mau objeto. Entretanto, o raciocí­nio kleiniano admite situações em que os elos eróticos estão corta­dos, sem dizer claramente se alguma vez eles existiram ou se foram rompidos (neste último caso, seria a introjeção da projeção que re­sultaria nesse desinvestimento erótico).

Notaremos, em particular, a definição kleinia.1a da clivagem, introduzida em 1946. Por um lado, ela se desloca da posição de­pressiva para trás, p8l'a a posição paranóide e esq:lizóide, mais ar­caica. Por outro, ela distingue uma clivagem binária (a distinção entre "bom" e "mau" objeto assegurando a unidade do ego) e uma clivagem fragmentante, esta última afetando não somente o objeto, mas, em contrapartida, o próprio ego, que literalmente "cai em pe· daços" (fali into pieces).

Integração f não-integração/ desintegração

Para o nosso propósito, é fundamental notar {~Ue essa fragmen· tação pode ser devida a uma não-integração pulsional que entrava a coesão do ego, ou a uma desintegração acompanhada de angústias e provocando a fragmentação esquiz6ide.22 Na primeira hip6tese,

20 Cf . FTel.ld, "Analyse terminée et interminable" (Análise terminada e inter· minável), in Résultats, Idées, Problemes (Resultados, idéias, problemas), t. li , c;p . cit., pp . 258; A. W., t. XXIII, pp . 243; G . W., t: XVI, pp . 88. 21 Cf. S . Freud, "0 Ego e o Id", op . cit ., p. 227; S. E . , t. XIX, p. 53; G. W. , t. XIII, p . 283. n C f. M. Klein, Développements de la psycfumalyse (Os progressos da psica­nálise), P . U . F ., Paris, 1966 (Oevelopments in Psycho-analysis, Londres, Ho­ghart Press, 1952) .

SOL NEGJlO 25

que parece ter sido tomada de Winnicott, a não-integração resulta de uma imaturidade biológica: se podemos falar de ·Tanatos nessa situação, a pulsão de morte aparece como uma inaptidão biológica para a seqüencialidade e para a integração (não de memória). Na segunda hipótese, a de uma desintegração do ego, conseqüência do, retorno da pulsão de morte, observamos uma " reação tanática a uma ameaça, ela própria tanática."l.l Bastante próxima de Ferenczi, esta. concepção acentua a tendência do ser humano para a fragmentação e para a desintegração, como uma expressão da pulsão de morte. "O ego arcaico tem; amplamente, falta de coesão e uma tendência à integração alternada com uma tendência à desintegração, a cair em pedaços [ . .. 1 A angústia de ser destruído do interior continua ativa. Parece-me que o ego, sob a pressão da angústia, tende a cair em pedaços, resultado da sua falta de coesão.''2• Se a fragmentação esquizóide é uma manifestação radical e paroxística da fragmenta~ ção, podemos considerar a inibição melancólica ·(retardamento, ca· rência da seqüencialidade) como uma outra manifestação da desin­tegração dos elos . Como?

Consecutivo à deflexão da pulsão de morte, o afeto depressivo pode ser interpretado como uma defesa . contra a fragmentação. De fato, a tristeza reconstitui uma coesão afetiva do ego, que reintegra a sua unidade no invólucro do afeto. O humor depressivo é cons· tituído como um suporte narcfsico, certamente negativo;2S mas que, contudo, oferece ao ego uma integridade, mesmo que seja não-verbal. Em conseqüência disto, o afeto depressivo substitui a invalidação e a interrupção simbólíca (o ~'isso não tem sentido" do depressivo), ao mesmo tempo em que o protege contra a atuação suicida. Entre­tanto, esta proteção é frágil. A recusa depressiva que aniquila o sentido do simbólico também aniquila o sentido do ato e condu·z o sujeito a cometer o suicídio sem angústia de desintegração, como

u CC. Jean-Michel Petot, Meúmie Kltln, le Moi et le Bon Objet (Melanie Klein, o Ego e o .Bom Objeto), Dunod, Paris, 1932, p. 150 . 2• Cf. M. Klein, Développements de la psychanalyse (Os progréssos da psica­nálise), op. cit ., pp. 276 e 219. ~ · A . Green, Narcisismo de vida, • arcisismo de morte, assim deCiniu a no­c,:iio de narcisismo negativo: "Além do esfacelamento que fragmenta o eu ~ o conduz ao auto-erotismo, o narcisismo primário absoluto deseja Q repouso mimético da morte. Ele é a busca do não-desejo do outro, da inexist~ncia, do não-ser, outra forma de acesso à imortalidad.e".

26 VM CONTU·DEPRESSOR: 11. PSICANÁLISE

uma reunião com a não-integração arcaica tão letal quanto jubi­latória, "oceânica".

Assim, portanto, a fragmentação esquizóide é uma defesa con­tra a morte - contra a somatização ou o suicídio A depressão, pelo contrário, evita a angústia esquizóide de fragmentação. Mas, se a depressão não tem a chance de se apoiar numa certa erotização do sofrimento, ela não pode funcionar como defesa contra a pulsão de morte. A calma que precede certos suicídios talvez traduza essa regressão arcaica pela qual o ato de uma consciência denegada ou entorpecida vira Tanatos para o ego e reencontra o paraíso perdido de um ego não-integrado, sem outros c sem limites, fantasma de plenitude intocável .

Assim, o sujeito falante pode reagir aos dissabores, não somente pela fragmentação defensivá, mas também pela inibição-retardamen­to, pela recusa da seqüencialidadc, pela neutralização do significan­te . Talvez alguma imaturação ou outras particularidades neurobio­l6gicas que tendem à não-integração condicionem tal atitude. Ela é defensiva? O depressivo não se defende contra a morte, mas contra a angústia que o objeto erótico provoca. O depressivo não suporta Eros, ele se prefere com a Coisa até o limite do narcisismo negativo que o conduz a Ta natos. Defendido pelo seu pesar contra Eros, mas sem defesa contra Tanatos, porque é partidário incondicional da Coisa. Mensageiro de Ta natos, o melanc6lico é o cúmplice-teste­munha da fragilidade do significante, da precariedade do ser vivo.

Menos hábil do que Melanie Klein para encenar a dramatur· gia das pulsões, e notadamente :da pulsão de morte, Freud, contudo parece radical. Para ele o ser falante, para além do poder, deseja a morte. Nesta extremidade lógica, não há mais desejo . O próprio desejo se .dissolve numa desintegração da transmissão e numa dcsin· tegração dos elos . Quer seja biologicamente predeterminado, conse­cutivo a traumas narcísicos pré-objetais, ou de modo mais banal, em razão da inversão da agressividade, este fenômeno, que podería­mos descrever como um desmoronamento da seqüencialidade biológi­ca e lógica, encontra a sua manifestação radical na melancolia. Seria a pulsão de morte a inscrição primária (de forma lógica e crono­lógica) deste desmoronamento?

Na realidade, se a "pulsão de morte" permanece uma espec:.~la­ção teórica, a experiência da depressão confronta tanto o doente como o observador com o enigma do humor.

SOL NEGRO 27

O humor é uma linguagem?

A tristeza é o humor fundamental da depressão, c mesmo se a euforia maníaca alterna com ela nas formas bipolares desta afecção, o pesar é a manifestação maior que trai o desesperado. A tristeza nos conduz ao campo enigmático dos afetos: angústia, medo ou ale­gria.26 Irredutível às suas expressões verbais ou semiológicas, a tris­teza (como todos os afetos), é a representação psíquica de desloca­mentos energéticos provocados por traumatismos externos ou inter· nos. Permanece muito impreciso o estatuto exato desses represen­tantes psíquicos dos deslocamentos energéticos no estado atual da~ teorias psicanalíticas e semiológicas: nenhum quadro conceitual das ciências constituídas (lingüística em particular) revela-se adequado para dar conta dessa representação aparentemente tão rudimentar, pré-signo e pré-linguagem. O humor "tristeza" desen:adeado. por uma excitação, tensão ou conflito energético num orgamsmo pstcos­somático não é uma resposta específica a um disparador (não estou triste como resposta ou sinal a X c somente a X) . O humor é uma "transferência generalizada" (E . J acobson) que marca todo o com· portamento e todos os sistemas· de signos (da motricidade à e~ocução c à idealização), sem identificar-se com. eles nem desorg:"mzá-los. Temos fundamentos para pensar que aqut se trata de um stgno ener­gético arcaico, de uma herança filogenética, mas que, no espaço psíquico do ser humano, encontra-se imediatamente levado em conta pela representação verbal e pela consciência. Contudo, este "levar em conta" não é da ordem das energias chamadas por Fre~d de "ligadas", aptas a verbalizações, associações c a julgamento. Di~a­mos que as representações próprias aos afetos, notadamente a tns­teza, são investimentos energéticos flutuantes: insuficientemente es· tabelecidos para coagular em signos verbais ou outros, operados por processos primários de deslocamento e de condensação, entretanto tributários da instância do ego, através dela eles. registram as amea· ças, os comandos e as injunções do superego. Assim, ~s humores são i]1scrições, rupturas energéticas e não somente energtas brutas. Eles nos conduzem para uma modalidade da signific.ância que, ·no limite dos equilíbrios bioenergéticos, assegura as precondições (ou manifesta as dissoluções) do imaginário c do simbólico. Nas fron-

2<> Sobre o afeto, cf. A. Green, Le Discours vivallt {0 Discurso vivo), P.U.F., Paris, 1971. e E. Jacobson, op. cit.

26 VM CONTU·DEPRESSOR: 11. PSICANÁLISE

uma reunião com a não-integração arcaica tão letal quanto jubi­latória, "oceânica".

Assim, portanto, a fragmentação esquizóide é uma defesa con­tra a morte - contra a somatização ou o suicídio A depressão, pelo contrário, evita a angústia esquizóide de fragmentação. Mas, se a depressão não tem a chance de se apoiar numa certa erotização do sofrimento, ela não pode funcionar como defesa contra a pulsão de morte. A calma que precede certos suicídios talvez traduza essa regressão arcaica pela qual o ato de uma consciência denegada ou entorpecida vira Tanatos para o ego e reencontra o paraíso perdido de um ego não-integrado, sem outros c sem limites, fantasma de plenitude intocável .

Assim, o sujeito falante pode reagir aos dissabores, não somente pela fragmentação defensivá, mas também pela inibição-retardamen­to, pela recusa da seqüencialidadc, pela neutralização do significan­te . Talvez alguma imaturação ou outras particularidades neurobio­l6gicas que tendem à não-integração condicionem tal atitude. Ela é defensiva? O depressivo não se defende contra a morte, mas contra a angústia que o objeto erótico provoca. O depressivo não suporta Eros, ele se prefere com a Coisa até o limite do narcisismo negativo que o conduz a Ta natos. Defendido pelo seu pesar contra Eros, mas sem defesa contra Tanatos, porque é partidário incondicional da Coisa. Mensageiro de Ta natos, o melanc6lico é o cúmplice-teste­munha da fragilidade do significante, da precariedade do ser vivo.

Menos hábil do que Melanie Klein para encenar a dramatur· gia das pulsões, e notadamente :da pulsão de morte, Freud, contudo parece radical. Para ele o ser falante, para além do poder, deseja a morte. Nesta extremidade lógica, não há mais desejo . O próprio desejo se .dissolve numa desintegração da transmissão e numa dcsin· tegração dos elos . Quer seja biologicamente predeterminado, conse­cutivo a traumas narcísicos pré-objetais, ou de modo mais banal, em razão da inversão da agressividade, este fenômeno, que podería­mos descrever como um desmoronamento da seqüencialidade biológi­ca e lógica, encontra a sua manifestação radical na melancolia. Seria a pulsão de morte a inscrição primária (de forma lógica e crono­lógica) deste desmoronamento?

Na realidade, se a "pulsão de morte" permanece uma espec:.~la­ção teórica, a experiência da depressão confronta tanto o doente como o observador com o enigma do humor.

SOL NEGRO 27

O humor é uma linguagem?

A tristeza é o humor fundamental da depressão, c mesmo se a euforia maníaca alterna com ela nas formas bipolares desta afecção, o pesar é a manifestação maior que trai o desesperado. A tristeza nos conduz ao campo enigmático dos afetos: angústia, medo ou ale­gria.26 Irredutível às suas expressões verbais ou semiológicas, a tris­teza (como todos os afetos), é a representação psíquica de desloca­mentos energéticos provocados por traumatismos externos ou inter· nos. Permanece muito impreciso o estatuto exato desses represen­tantes psíquicos dos deslocamentos energéticos no estado atual da~ teorias psicanalíticas e semiológicas: nenhum quadro conceitual das ciências constituídas (lingüística em particular) revela-se adequado para dar conta dessa representação aparentemente tão rudimentar, pré-signo e pré-linguagem. O humor "tristeza" desen:adeado. por uma excitação, tensão ou conflito energético num orgamsmo pstcos­somático não é uma resposta específica a um disparador (não estou triste como resposta ou sinal a X c somente a X) . O humor é uma "transferência generalizada" (E . J acobson) que marca todo o com· portamento e todos os sistemas· de signos (da motricidade à e~ocução c à idealização), sem identificar-se com. eles nem desorg:"mzá-los. Temos fundamentos para pensar que aqut se trata de um stgno ener­gético arcaico, de uma herança filogenética, mas que, no espaço psíquico do ser humano, encontra-se imediatamente levado em conta pela representação verbal e pela consciência. Contudo, este "levar em conta" não é da ordem das energias chamadas por Fre~d de "ligadas", aptas a verbalizações, associações c a julgamento. Di~a­mos que as representações próprias aos afetos, notadamente a tns­teza, são investimentos energéticos flutuantes: insuficientemente es· tabelecidos para coagular em signos verbais ou outros, operados por processos primários de deslocamento e de condensação, entretanto tributários da instância do ego, através dela eles. registram as amea· ças, os comandos e as injunções do superego. Assim, ~s humores são i]1scrições, rupturas energéticas e não somente energtas brutas. Eles nos conduzem para uma modalidade da signific.ância que, ·no limite dos equilíbrios bioenergéticos, assegura as precondições (ou manifesta as dissoluções) do imaginário c do simbólico. Nas fron-

2<> Sobre o afeto, cf. A. Green, Le Discours vivallt {0 Discurso vivo), P.U.F., Paris, 1971. e E. Jacobson, op. cit.

UM CONTllA-DEJ>JlESSOJl; A P$1CANÁL1SS

teíras da animalidade e da simbolicidade, os humores - e em parti­cular a tristeza - são as últimas reações aos nossos traumatismos, nossos recursos homeostásicos de base. Pois se é verdade que uma pessoa escrava dos seus humores, um ser afogado em sua tristeza, revela certas fragilidades psíquicas ou ideatórias, é igualmente ver­dade que uma diversificação dos humores, uma tristeza em palheta, um requinte no pesar ou no luto são a marca de uma humanidade, com certeza não triunfante, mas sutil, combativa e criadora ...

A criação literária é esta aventura do corpo e dos signos, que dá testemunho do afeto: da tristeza, como marca da separação e como início da dimensão do simbólico; da alegria, como marca do triunfo que me instala no universo do artifício e do símbolo, que tento fazer corresponder ao máximo às minhas experiências da rea­lidade . Mas esse testemunho, a criação literária o produz num ma­terial bem diferente do humor. Ela transpõe o afeto nos ritmos. nos signos, nas formas. O "semiótico" e o "simb6lico"Z7 tornanHe

ZI Cf. nossa obra LA RévoluJion du langage poétique (A n:volução da lingua­~em poética), y: Scuil, 1974, cap. A . I.: "Dizendo 'semi6tica' retomamos '' acepção grega do tenno 111/Ptlov: marca distintiva, vesHgio, indício, signo pre­cursor, prova, signo gravado ou escrito, marca, traço, figuração { ... ] . Trata-se daquilo que n psicanálise freudiana indica, postulando a abertura de caminho c a disposição estruturante das pulsões, mas também dos processos ditos pri­mários, que deslocam e condensam energias, assim como a sua inscrição. Quan· tidades discretas de energia percorrem o corpo daquilo que mais tarde será um sujeito e, no caminho do seu devir, elas se dispõem segundo as coações impos­tas a esse corpo - sempre já semiotizante - pela estrutura familiar c social . Cargas "energéticas" ao mesmo tempo que marcas "psíquicas'', as pulsões ar­ticulam assim o que chamamos de uma cora: uma totalidade niio-expressiva constituída por essas pulsões e por suas estases numa motilidade tão rnovímen· tada quanto regulamentada" (pp . 22·23) . Em compensação, o simbólico é -iden· tificado ao julgamento e à frase: "Distinguiremos o semi6tico (as pulsões e suas articulações) do campo da significação, que é sempre o de uma proposição ou de um julgamento. isto é, um campo de posições . Essa posicionalidade, que a fenomenologia husserliana orquestra através dos conceitos de doxa e de tese. estrutura-se como um corte no processo da significância, instaurando a identifi­cação do sujeito e dos seus objetos como condições da proposicionalidade . Chamaremos esse corte que produz a posição da significação de uma fase tética, seja ela enunciação de palavra ou da frase: qualquer enunciação exige um:1 identificação. isto é, uma separação do sujeito da e na sua imagem, ao mesmo tempo que dos e nos seus objetos; previamente, ela exige suas posições num espaço que, doravantc, se tomou !imbólico, pelo fato de que ele une as duas posições assim separadas para registrá-las ou redistribuí·las numa combinatória de posições doravante "abertas .. (l'P · 41-42) .

SOl. NEGRO 29

as marcas comumcaveis de uma realidade afetiva presente, sensível ao leitor (gosto desse livro porque ele me comunica a tristeza, a an­gústia ou a alegria). e contudo dominada, afastada. vencida.

Equivalentes simbólicos/ símbolos

Supondo-se que o afeto seja a inscrição mais arcaica dos acon· tecimentos internos e externos, como chegamos aos signos? Seguire­mos a hipótese de Hanna Segal, segundo a qual, a partir da separa­ção (notemos a necessidade -de .uma "falta" ~ara que o_ signo sur!a) a criança produz ou utiliza objetos ou vocahses que sao . os eqwv~­leutes simbólicos do que falta. Posteriormente, e a parhr da post­ção dita depressiva, ela tenta significar a tristeza que a submerge, produzindo no seu próprio ego elementos estranhos ao mundo exte­rior que ela faz corresponder a e~sa exterioridade ~did~ ~u deslo· cada: estamos então em presença. não mais de equ1valencJas, mas de símbolos propriamente ditos.28

Acrescentemos o seguinte à posição de Hanna Segal: o que tor· na possível tal triunfo sobre a tristeza é a capacidade do ego de se identificar desta vez não mais com o objeto perdido, mas com uma terceira i~stância - pai, forma, esquema. Condição de ~a .P?si­ção de recusa ou maníaca ('' não, eu não perdi;. eu evoco, stgmflco, faço existir pelo artifício dos signos e para m1m mesmo o qu~ . se separo.u de mim"), essa identificação qüe podemos chamar de ~altca ou sirnbQlica assegura a entrada do indivíduo no universo dos ~&gno.s e da criação. O pai-apoio desse triunfo simbólico ~ão. é ~ p~t ~d~­piano, mas sim esse "pai-imaginário", "p~i. da_ pre-~tst~~ta mdtvt· dual" segundo Freud, que garante a identtftcaçao pnmana. Entre· tanto é imperativo que este pai da pré-história individual possa asseg~rar o seu papel de pai edipiano na Lei simbólica, yois é na base desta aliança harmoniosa das duas faces da patermdade que os signos abstratos e arbitrários da comunicação pod:m. te; .a chance de se ligar ao sentido afetivo das identificações pre-htston~as, ~ a linguagem morta do depressivo potencial de obter um sentido VlVO

no laço com os outros .

2~ C f. Hanna Sega\, "Note on symbol formation" (Anotações sobre a formação . do símbolo), in Intertultional ]ournal oj Psycho-Analysis, vol. XXXVII. 1957, parL 6; tradução francesa in Révue Française de Psychanalyse, t. XXXIV. 1' ." 4, julho de 1970, pp . 685-696 .

UM CONTllA-DEJ>JlESSOJl; A P$1CANÁL1SS

teíras da animalidade e da simbolicidade, os humores - e em parti­cular a tristeza - são as últimas reações aos nossos traumatismos, nossos recursos homeostásicos de base. Pois se é verdade que uma pessoa escrava dos seus humores, um ser afogado em sua tristeza, revela certas fragilidades psíquicas ou ideatórias, é igualmente ver­dade que uma diversificação dos humores, uma tristeza em palheta, um requinte no pesar ou no luto são a marca de uma humanidade, com certeza não triunfante, mas sutil, combativa e criadora ...

A criação literária é esta aventura do corpo e dos signos, que dá testemunho do afeto: da tristeza, como marca da separação e como início da dimensão do simbólico; da alegria, como marca do triunfo que me instala no universo do artifício e do símbolo, que tento fazer corresponder ao máximo às minhas experiências da rea­lidade . Mas esse testemunho, a criação literária o produz num ma­terial bem diferente do humor. Ela transpõe o afeto nos ritmos. nos signos, nas formas. O "semiótico" e o "simb6lico"Z7 tornanHe

ZI Cf. nossa obra LA RévoluJion du langage poétique (A n:volução da lingua­~em poética), y: Scuil, 1974, cap. A . I.: "Dizendo 'semi6tica' retomamos '' acepção grega do tenno 111/Ptlov: marca distintiva, vesHgio, indício, signo pre­cursor, prova, signo gravado ou escrito, marca, traço, figuração { ... ] . Trata-se daquilo que n psicanálise freudiana indica, postulando a abertura de caminho c a disposição estruturante das pulsões, mas também dos processos ditos pri­mários, que deslocam e condensam energias, assim como a sua inscrição. Quan· tidades discretas de energia percorrem o corpo daquilo que mais tarde será um sujeito e, no caminho do seu devir, elas se dispõem segundo as coações impos­tas a esse corpo - sempre já semiotizante - pela estrutura familiar c social . Cargas "energéticas" ao mesmo tempo que marcas "psíquicas'', as pulsões ar­ticulam assim o que chamamos de uma cora: uma totalidade niio-expressiva constituída por essas pulsões e por suas estases numa motilidade tão rnovímen· tada quanto regulamentada" (pp . 22·23) . Em compensação, o simbólico é -iden· tificado ao julgamento e à frase: "Distinguiremos o semi6tico (as pulsões e suas articulações) do campo da significação, que é sempre o de uma proposição ou de um julgamento. isto é, um campo de posições . Essa posicionalidade, que a fenomenologia husserliana orquestra através dos conceitos de doxa e de tese. estrutura-se como um corte no processo da significância, instaurando a identifi­cação do sujeito e dos seus objetos como condições da proposicionalidade . Chamaremos esse corte que produz a posição da significação de uma fase tética, seja ela enunciação de palavra ou da frase: qualquer enunciação exige um:1 identificação. isto é, uma separação do sujeito da e na sua imagem, ao mesmo tempo que dos e nos seus objetos; previamente, ela exige suas posições num espaço que, doravantc, se tomou !imbólico, pelo fato de que ele une as duas posições assim separadas para registrá-las ou redistribuí·las numa combinatória de posições doravante "abertas .. (l'P · 41-42) .

SOl. NEGRO 29

as marcas comumcaveis de uma realidade afetiva presente, sensível ao leitor (gosto desse livro porque ele me comunica a tristeza, a an­gústia ou a alegria). e contudo dominada, afastada. vencida.

Equivalentes simbólicos/ símbolos

Supondo-se que o afeto seja a inscrição mais arcaica dos acon· tecimentos internos e externos, como chegamos aos signos? Seguire­mos a hipótese de Hanna Segal, segundo a qual, a partir da separa­ção (notemos a necessidade -de .uma "falta" ~ara que o_ signo sur!a) a criança produz ou utiliza objetos ou vocahses que sao . os eqwv~­leutes simbólicos do que falta. Posteriormente, e a parhr da post­ção dita depressiva, ela tenta significar a tristeza que a submerge, produzindo no seu próprio ego elementos estranhos ao mundo exte­rior que ela faz corresponder a e~sa exterioridade ~did~ ~u deslo· cada: estamos então em presença. não mais de equ1valencJas, mas de símbolos propriamente ditos.28

Acrescentemos o seguinte à posição de Hanna Segal: o que tor· na possível tal triunfo sobre a tristeza é a capacidade do ego de se identificar desta vez não mais com o objeto perdido, mas com uma terceira i~stância - pai, forma, esquema. Condição de ~a .P?si­ção de recusa ou maníaca ('' não, eu não perdi;. eu evoco, stgmflco, faço existir pelo artifício dos signos e para m1m mesmo o qu~ . se separo.u de mim"), essa identificação qüe podemos chamar de ~altca ou sirnbQlica assegura a entrada do indivíduo no universo dos ~&gno.s e da criação. O pai-apoio desse triunfo simbólico ~ão. é ~ p~t ~d~­piano, mas sim esse "pai-imaginário", "p~i. da_ pre-~tst~~ta mdtvt· dual" segundo Freud, que garante a identtftcaçao pnmana. Entre· tanto é imperativo que este pai da pré-história individual possa asseg~rar o seu papel de pai edipiano na Lei simbólica, yois é na base desta aliança harmoniosa das duas faces da patermdade que os signos abstratos e arbitrários da comunicação pod:m. te; .a chance de se ligar ao sentido afetivo das identificações pre-htston~as, ~ a linguagem morta do depressivo potencial de obter um sentido VlVO

no laço com os outros .

2~ C f. Hanna Sega\, "Note on symbol formation" (Anotações sobre a formação . do símbolo), in Intertultional ]ournal oj Psycho-Analysis, vol. XXXVII. 1957, parL 6; tradução francesa in Révue Française de Psychanalyse, t. XXXIV. 1' ." 4, julho de 1970, pp . 685-696 .

30 UM CONTllA·DEPRESSOR; A PSICANÁLISE

Nas circunstâncias bem diferentes da criação literária, por exem­plo, esse momento essencial da formação do símbolo, que é a posi­ção maníaca em substituição à depressão, pode se manifestar pela constituição de uma filiação simbólica (assim o recurso a nomes pró­prios d ependentes da história real ou imaginária d o sujeito dos quais este se apresenta como o herdeiro ou o igual e que, na realidade para além da f<~!ha paterna, comemoram a adesão nostálgica à m ãe perdida). 29

Depressão objetai (implicitamente agressiva) , depressão narcí­sica (logicamente anterior à relação Jibidinal de objeto) . Afetividade competindo com os signos, ultrapassando-os, ameaçando-os ou modi­ficando-os. A partir deste quadro, a indagação que seguiremos po­derá se resumir assim: a criação estética e notadamente literária, mas também o discurso religioso na sua essência imaginária, fíccio­nal, propõem um dispositivo cuja economia prosódica, a dramatur­gia dos personagens e o simbolismo implícito são uma representa­ção semiológica mttito fiel da luta do sujeito com o desmoronamento simbóHco. Essa representação literária não é uma elaboração, no sentido de uma '' tomada de consciência" das causas inter c intrapsí­quicas da dor moral; nisto ela difere da via psicanalítica que se propõe a dissolver esse sintoma. Entretanto, essa representação li te· rária (e religiosa) possui uma ef!cácia real e imaginária, que depende mais da catarse do que da elaboração; é um meio terapêutico utili­zado em todas as sociedades, em todas as idades. Se a psicanálise considera que ela o ultrap-.ssa em eficácia, notadamente reforçando as possibilidades ideatórias do sujeito, ela também se obriga a se enri­quecer, prestando mais atenção a essas soluções sublimatórias de nossas crises, para ~er não um antidrepressivo neutralizante, mas um contra-depressor lúcido.

A morJe é irrepresentável?

Ao colocar que o inconsciente é regido pelo princípio do prazer Freud postula, com muita lógica, que não há representação da morte no inconsciente. Como ignora a negação, o inconsciente ignora a morte . Sinônimo do não-gozo. equivalente imaginário da desposse fálica, a morte não poderia se ver . Talvez seia por isto mesmo que ela abra caminho para a especulação.

29 CL mais adiante, cap. 111 .2 sobre Nerval, pp . l&l-16ó

SOL NEORQ 31

Entretanto, quando a experiência clínica conduz Freud ao nar­cisismo30 para chegar à descoberta da pulsão de morteJ' e à segunda tópica,32 ele impõe uma visão do aparelho psíquico em que ~:Os está ameaçado de ser dominado por Tanatos e onde, por consequen­cia, a possibilidade de uma representação da morte coloca-se em outros termos.

O medo da castração, até então percebido como subjacente à angústia consciente de morte, não desaparece, mas se ~clipsa _dian~e do medo de perder o objeto ou de se perder como obJeto (etiologia da melancolia e das psicoses narcísicas).

Esta evolução do pensamento freudiano deixa duas interroga­ções que foram assinaladas por A . Green. 33

Inicialmente, o que ocorre com a representação dessa pulsão de morte? Invertendo a fónnula de Freud, poderíamos dizer q:Je) igno­rada pelo inconsciente, ela é, no "segundo Freud", uma_ "cultura do superego". Ela cliva o próprio ego numa parte q~e a ag?ora ao mesmo tempo que é afetada por ela (é a sua parte mconsctente) e numa outra parte que a combate (é o ego megalômano que nega a castração e a morte e que fantasia a imortalidade).

Mas, de forma mais fundamental, tal clivagem não atravessa todos os discursos? O símbolo é constituído pelo fato de denegar (Verneinung) * a perda, mas a recusa (Verleugnung)** do sím?olo produz uma inscrição psíquica o mais próxima possível do_ ód10 e do domínio em relação ao objeto perdido.34 'E o que se decifra nos brancos do discurso, nos vocalismos, _nos ritmos, nas sílabas das palavras desviatalizadas, para serem recompostas pelo analista a par­tir da depressão ouvida -

Assim, portanto, . se a pulsão de morte não é representa~a _no inconsciente, é preciso i.D.ventar um outro nível do aparelho ps1qU1co

3() "Pour introduire au 1larcissisme" (Introdução ao narcisismo), 1914. Jl "Au-delà du príncipe du plaisir " (Além do princípio do prazer), 1920. 31 "Lc moi et le ça" (O Ego e o Id), 1923 . 33 Narcisismo de vida, Narcisismo de morte. . . • Em francés: "dénier". ''dénegation". Processo de defesa pelo qual_ o mdt­víduo, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até ali recalcado, continua a negar que ele lhe pertença . ~ •• Em francês : "déni", recusa em reconhecer a realidade de uma percepçao traumatizante . tN . da T .) 34 Cf. mais adiante, cap . 11: •'Vida e morte da palavra".

30 UM CONTllA·DEPRESSOR; A PSICANÁLISE

Nas circunstâncias bem diferentes da criação literária, por exem­plo, esse momento essencial da formação do símbolo, que é a posi­ção maníaca em substituição à depressão, pode se manifestar pela constituição de uma filiação simbólica (assim o recurso a nomes pró­prios d ependentes da história real ou imaginária d o sujeito dos quais este se apresenta como o herdeiro ou o igual e que, na realidade para além da f<~!ha paterna, comemoram a adesão nostálgica à m ãe perdida). 29

Depressão objetai (implicitamente agressiva) , depressão narcí­sica (logicamente anterior à relação Jibidinal de objeto) . Afetividade competindo com os signos, ultrapassando-os, ameaçando-os ou modi­ficando-os. A partir deste quadro, a indagação que seguiremos po­derá se resumir assim: a criação estética e notadamente literária, mas também o discurso religioso na sua essência imaginária, fíccio­nal, propõem um dispositivo cuja economia prosódica, a dramatur­gia dos personagens e o simbolismo implícito são uma representa­ção semiológica mttito fiel da luta do sujeito com o desmoronamento simbóHco. Essa representação literária não é uma elaboração, no sentido de uma '' tomada de consciência" das causas inter c intrapsí­quicas da dor moral; nisto ela difere da via psicanalítica que se propõe a dissolver esse sintoma. Entretanto, essa representação li te· rária (e religiosa) possui uma ef!cácia real e imaginária, que depende mais da catarse do que da elaboração; é um meio terapêutico utili­zado em todas as sociedades, em todas as idades. Se a psicanálise considera que ela o ultrap-.ssa em eficácia, notadamente reforçando as possibilidades ideatórias do sujeito, ela também se obriga a se enri­quecer, prestando mais atenção a essas soluções sublimatórias de nossas crises, para ~er não um antidrepressivo neutralizante, mas um contra-depressor lúcido.

A morJe é irrepresentável?

Ao colocar que o inconsciente é regido pelo princípio do prazer Freud postula, com muita lógica, que não há representação da morte no inconsciente. Como ignora a negação, o inconsciente ignora a morte . Sinônimo do não-gozo. equivalente imaginário da desposse fálica, a morte não poderia se ver . Talvez seia por isto mesmo que ela abra caminho para a especulação.

29 CL mais adiante, cap. 111 .2 sobre Nerval, pp . l&l-16ó

SOL NEORQ 31

Entretanto, quando a experiência clínica conduz Freud ao nar­cisismo30 para chegar à descoberta da pulsão de morteJ' e à segunda tópica,32 ele impõe uma visão do aparelho psíquico em que ~:Os está ameaçado de ser dominado por Tanatos e onde, por consequen­cia, a possibilidade de uma representação da morte coloca-se em outros termos.

O medo da castração, até então percebido como subjacente à angústia consciente de morte, não desaparece, mas se ~clipsa _dian~e do medo de perder o objeto ou de se perder como obJeto (etiologia da melancolia e das psicoses narcísicas).

Esta evolução do pensamento freudiano deixa duas interroga­ções que foram assinaladas por A . Green. 33

Inicialmente, o que ocorre com a representação dessa pulsão de morte? Invertendo a fónnula de Freud, poderíamos dizer q:Je) igno­rada pelo inconsciente, ela é, no "segundo Freud", uma_ "cultura do superego". Ela cliva o próprio ego numa parte q~e a ag?ora ao mesmo tempo que é afetada por ela (é a sua parte mconsctente) e numa outra parte que a combate (é o ego megalômano que nega a castração e a morte e que fantasia a imortalidade).

Mas, de forma mais fundamental, tal clivagem não atravessa todos os discursos? O símbolo é constituído pelo fato de denegar (Verneinung) * a perda, mas a recusa (Verleugnung)** do sím?olo produz uma inscrição psíquica o mais próxima possível do_ ód10 e do domínio em relação ao objeto perdido.34 'E o que se decifra nos brancos do discurso, nos vocalismos, _nos ritmos, nas sílabas das palavras desviatalizadas, para serem recompostas pelo analista a par­tir da depressão ouvida -

Assim, portanto, . se a pulsão de morte não é representa~a _no inconsciente, é preciso i.D.ventar um outro nível do aparelho ps1qU1co

3() "Pour introduire au 1larcissisme" (Introdução ao narcisismo), 1914. Jl "Au-delà du príncipe du plaisir " (Além do princípio do prazer), 1920. 31 "Lc moi et le ça" (O Ego e o Id), 1923 . 33 Narcisismo de vida, Narcisismo de morte. . . • Em francés: "dénier". ''dénegation". Processo de defesa pelo qual_ o mdt­víduo, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até ali recalcado, continua a negar que ele lhe pertença . ~ •• Em francês : "déni", recusa em reconhecer a realidade de uma percepçao traumatizante . tN . da T .) 34 Cf. mais adiante, cap . 11: •'Vida e morte da palavra".

32

em que - ao mesmo tempo que o gozo - ela registre o ser do seu não ser? E exatamente uma produção do ego clivado, construção fantasmática e ficcional - em suma, o registro do imaginário, re­gistro da escrita - q;.~e dá testemunho desse hiato, branco ou inter­valo que é a morte para o inconsciente.

Dissociação das formas

As construções imaginárias transformam a pulsão de morte em agressividade erotizada contra o pai ou em abominação aterrorizada contra o corpo da mãe . Sabemos que, ao mesmo tempo em que . descobre o poder da pulsão de morte, Freud desloca seus interesses não somente do modelo teórico da primeira tópica (consciente/pré­consciente/inconsciente) para o da segunda. mas, sobretudo, e graças a ela, orienta-se ainda mais para a análise das produções imaginá­rias (religiões, artes, literatura) . Ali ele encontra uma certa repre· sentação da angústia de morte.lS Será que devemos dizer que a an­gústia de morrer - que doravante não se resume no medo da cas­tração, mas o engloba e a ele acrescenta o ferimento, até mesmo a perda da integridade do corpo e do ego - encontra as suas repre­sentações nas formações que chamamos de ''ttansconscientes": nas construções imaginárias do sujeito clivado, segundo Lacan? Sem dúvida.

Apesar disto, uma outra leitura do próprio inconsciente poderia localizar no seu próprio tecido, assim como certos sonhos nos comu­nicam, este intervalo a-representativo da representação, que é, não o signo, mas o indício da pulsão de morte. Os sonhos das pessoas fron­teiriças, das personalidades esquizóides ou sob experiência psicodélica, em geral, são " pinturas abstratas" ou cascatas de sons, emaranhados de linhas e de tecidos, nos quais o analista decifra a dissociação -ou uma não-integração - da unidade psíq1Jíca e somática . Podería­mos interpretar esses indícios como a última marca da pulsão de morte . Além das representações figuradas da pulsão de morte, for­çosamente deslocadas, pois erotizadas, o trabalho, exatamente como o da morte, no grau zero do psiquismo, é Jocalizável precisamente na dissociação da própria forma, quando a forma se de-forma, se

lS Assim, assassinato do pai em Totem c tabu (1913) ou vagina mortalmente nmeaçadora em ''L'inquiétante étrangeté" (A inquietante estranheza) (1919).

SOL NF.GR·::> 33

abstrai, se des-figura, vaza: últimos Hminares do deslocamento e do gozo inscritíveis ...

Por outras vias, o irrepresentável da morte foi associado a este outro irrepresentável - morada original , mas também último re­pouso das almas mortas além- que, p~ra o ~nsame~to mí~ic~, é o corpo feminino. O horror da castraçao subJacente a angush~ ~e morte explica sem dúvida uma parte importante d~ssa assoctaçao universal entre o feminino, desprovido de pênis, e a morte. Con­tudo, a hipótese de uma pulsão de morte impõe um outro raciocínio .

A mulher mortífera

Para o homem e para a mulher, a perda da mãe é uma necessi· dadc biológica e psíquica, o primeiro marco de a;.~tonomização. O matricídio é nossa necessidade vital, condição sine qua non de nossa individuação, contanto que ocorra .de maneira otimizada e que p~ssa ser erotizado: quer o objeto perdido seja reencontrado como objeto erótico (é o caso da heterossexualidade masculina, da homossexuali­dade feminina), quer seja transposto por um incrível esforço sim­bólico e cujo advento só poderíamos admirar, que crotiza o outro (o outro sexo, no caso da mulher heterossexual) ou ent~o que met~­morfoseia em objeto erótico "sublimado" as construçoes culturats {para os homens e para as mulheres, pensamos nos investimentos ~os laços sociais das produções intelectuais e estéticas etc.). A ma10r ou menor vi~lência da pulsão matricida segundo os indivíduos e se­gundo a tolerância dos meios acarreta, quando entravada, sua in­versão sobre o ego: estando o objeto materno introjetado, em lugar do matricídio isto resulta . na condenação à morte depressiva ou melancólica d~ ego. Para proteger mamãe, eu me mato, ao mesmo tempo que sei - saber fantasmático e protetor - que é dela que vem isso, dela, geena mortífera . . . Assim, meu ódio está salvo c mi­nha culpabilidade matricida está apagada . Faço d'Eia uma i~agem da Morte para impedir que eu me quebre em pedaços pelo 6<:ho que tenho por mim quando me iden tifico com Ela, pois, em princípio, essa aversão lhe é dirigida como barreira individuante contra o amor confusionista . Assim, portanto, o feminino-imagem da morte é não somente uma ·tela do meu medo da castração, mas também um freio imaginário. contra a pulsão matricida que, sem esta rep~esentaç~o, me pulverizaria em melancolia, se não me impelisse ao cru~e. Nao, é Ela que é mortífera, portanto não me mato para mata-la , mas agrido-a, atormento-a, represento-a ...

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em que - ao mesmo tempo que o gozo - ela registre o ser do seu não ser? E exatamente uma produção do ego clivado, construção fantasmática e ficcional - em suma, o registro do imaginário, re­gistro da escrita - q;.~e dá testemunho desse hiato, branco ou inter­valo que é a morte para o inconsciente.

Dissociação das formas

As construções imaginárias transformam a pulsão de morte em agressividade erotizada contra o pai ou em abominação aterrorizada contra o corpo da mãe . Sabemos que, ao mesmo tempo em que . descobre o poder da pulsão de morte, Freud desloca seus interesses não somente do modelo teórico da primeira tópica (consciente/pré­consciente/inconsciente) para o da segunda. mas, sobretudo, e graças a ela, orienta-se ainda mais para a análise das produções imaginá­rias (religiões, artes, literatura) . Ali ele encontra uma certa repre· sentação da angústia de morte.lS Será que devemos dizer que a an­gústia de morrer - que doravante não se resume no medo da cas­tração, mas o engloba e a ele acrescenta o ferimento, até mesmo a perda da integridade do corpo e do ego - encontra as suas repre­sentações nas formações que chamamos de ''ttansconscientes": nas construções imaginárias do sujeito clivado, segundo Lacan? Sem dúvida.

Apesar disto, uma outra leitura do próprio inconsciente poderia localizar no seu próprio tecido, assim como certos sonhos nos comu­nicam, este intervalo a-representativo da representação, que é, não o signo, mas o indício da pulsão de morte. Os sonhos das pessoas fron­teiriças, das personalidades esquizóides ou sob experiência psicodélica, em geral, são " pinturas abstratas" ou cascatas de sons, emaranhados de linhas e de tecidos, nos quais o analista decifra a dissociação -ou uma não-integração - da unidade psíq1Jíca e somática . Podería­mos interpretar esses indícios como a última marca da pulsão de morte . Além das representações figuradas da pulsão de morte, for­çosamente deslocadas, pois erotizadas, o trabalho, exatamente como o da morte, no grau zero do psiquismo, é Jocalizável precisamente na dissociação da própria forma, quando a forma se de-forma, se

lS Assim, assassinato do pai em Totem c tabu (1913) ou vagina mortalmente nmeaçadora em ''L'inquiétante étrangeté" (A inquietante estranheza) (1919).

SOL NF.GR·::> 33

abstrai, se des-figura, vaza: últimos Hminares do deslocamento e do gozo inscritíveis ...

Por outras vias, o irrepresentável da morte foi associado a este outro irrepresentável - morada original , mas também último re­pouso das almas mortas além- que, p~ra o ~nsame~to mí~ic~, é o corpo feminino. O horror da castraçao subJacente a angush~ ~e morte explica sem dúvida uma parte importante d~ssa assoctaçao universal entre o feminino, desprovido de pênis, e a morte. Con­tudo, a hipótese de uma pulsão de morte impõe um outro raciocínio .

A mulher mortífera

Para o homem e para a mulher, a perda da mãe é uma necessi· dadc biológica e psíquica, o primeiro marco de a;.~tonomização. O matricídio é nossa necessidade vital, condição sine qua non de nossa individuação, contanto que ocorra .de maneira otimizada e que p~ssa ser erotizado: quer o objeto perdido seja reencontrado como objeto erótico (é o caso da heterossexualidade masculina, da homossexuali­dade feminina), quer seja transposto por um incrível esforço sim­bólico e cujo advento só poderíamos admirar, que crotiza o outro (o outro sexo, no caso da mulher heterossexual) ou ent~o que met~­morfoseia em objeto erótico "sublimado" as construçoes culturats {para os homens e para as mulheres, pensamos nos investimentos ~os laços sociais das produções intelectuais e estéticas etc.). A ma10r ou menor vi~lência da pulsão matricida segundo os indivíduos e se­gundo a tolerância dos meios acarreta, quando entravada, sua in­versão sobre o ego: estando o objeto materno introjetado, em lugar do matricídio isto resulta . na condenação à morte depressiva ou melancólica d~ ego. Para proteger mamãe, eu me mato, ao mesmo tempo que sei - saber fantasmático e protetor - que é dela que vem isso, dela, geena mortífera . . . Assim, meu ódio está salvo c mi­nha culpabilidade matricida está apagada . Faço d'Eia uma i~agem da Morte para impedir que eu me quebre em pedaços pelo 6<:ho que tenho por mim quando me iden tifico com Ela, pois, em princípio, essa aversão lhe é dirigida como barreira individuante contra o amor confusionista . Assim, portanto, o feminino-imagem da morte é não somente uma ·tela do meu medo da castração, mas também um freio imaginário. contra a pulsão matricida que, sem esta rep~esentaç~o, me pulverizaria em melancolia, se não me impelisse ao cru~e. Nao, é Ela que é mortífera, portanto não me mato para mata-la , mas agrido-a, atormento-a, represento-a ...

UM COH'l'aÃ..DEPUSSOJt: A PSJCAHÁJ,US.

Para uma mulher cuja identificação especular com a mãe, mas também a introjeção do corpo c do ego maternos são mais imedia­tos, essa inversão da pulsão matricida em figura materna mortífera é mais difícil, se não impossíveL De fato, como pode ela ser essa Erínea sedenta <le sangue, pois sou Ela (sexualmente e narcis!ca­mente). Ela sou eu? Em conseqüência, o ódio que tenho por ela não se exerce para fora, mas se fecha em mim . Não há ódio, somente um humor implosivo que se empareda e me mata escondido, em fogo brando, em amargura permanente, em acessos <le tristeza ou até o sonífero letal que utilizo em maiores ou menores doses, na negra esperança de encontrar. . . ninguém, senão minha completude jmaginária, aumentada por minha morte que me realiza. O homos· sexual divide essa mesma economia depressiva: é um melancólico re· quintado, quando não se entrega à paixão sádica com um outro homem.

O fantasma de imortalidade feminina talvez encontre o seu fundamento na transmissão germinai feminina, capaz de realizar a partogênese. Além disso, as novas técnicas de reprodução artificial conferem ao corpo feminino possibilidades reprodut~vas insuspeita· das. Se esta "onipotência" feminina na sobrevivência da es~cie pode ser minada por outras possibilidades técnicas que, parece, tor­nariam também o homem grávido, é provável que esta última even­tualidade possa atrair somente uma pequena minoria, embora satis· faça os fantasmas androginários da maioria. Entretanto, a parte essencial da convicção feminina, de ser imortal na e para além da morte (que a Virgem Maria encarna com tanta perfeição) enraíza-se menos nessas possibilidades biológ!cas, cuja " ponte" para o psiquis­mo vemos mal, do que no "narcisismo negativo".

No seu paroxismo, este enfraquece tanto o afeto agressivo (ma­tricida) em relação ao outro quanto o afeto pesaroso diante de si mesmo, para substituí-lo pelo que poderíamos chamar de um "vazio oceânico". Trata-se do sentimento c do fantasma de d or, mas anes­tesiada, de gozo, mas suspenso, de uma espera e de um silêncio tanto vazios quanto satisfeitos. No seio d o seu oceano letal, a melancó­lica é esta morta que sempre foi abandonada dentro de si e que jamais poderá se matar fora de si.36 Pudica, mutica, sem elo de pfllavra ou de desejo para com os outros, ela se consome aplicando·

36 Cf. cap . UI : "Matar ou se malar" e "Uma Virgem mãe" .

SOL NEGRO 35

se golpes morais e físicos que, cont>.1do, não lhe proporcionam pra· zeres suficientes. Até o golpe fatal - núpcias definitivas da Morte com a Mesma, que ela não matou.

Não será preciso insistir muito sobre o imenso esforço psíquico, intelectual e afetivo que uma mulher deve fazer para encontrar o outro sexo como objeto erótico. Nos seus devane!os filogenéticos, muitas vezes Freud mostra-se admirado diante da realização intelec­tual efetuada pelo homem quando ficou (ou quando está) frustrado com mulheres (pela glaciação ou pela tirania do pai da horda pri· mitiva etc.) . Se a descoberta de sua vagina invisível já demanda à mulher um imenso esforço sensorial, especulativo e intelectual, a pas­sagem para a oroem simbólica ao mesmo tP.mpo que para um objeto sexual, de um sexo diferente daquele do objeto materno primordial, representa uma elaboração gigantesca na qual uma mulher investe um potencial psíquico superior àquele exigido do sexo masculino. Quando esse processo se realiza de forma favorável, o despertar pre­coce das meninas, suas performances intelectuais, em geral mais brilhantes na idade escoJar, a maturidade feminina permanente são testemunhas disto . Entretanto, elas pagam por essa propensão a cc· lebrar, continuamente, o luto problemático do objeto perdido ... não tão pcr<lido assim e que continua lancinante na "cripta" da facilidade e da maturidade femininas. A menos que uma introjeção maciça do ideal venha satisfazer, ao mesmo tempo, o narcisismo com o seu lado negativo e a aspiração a estar presente na arena onde se decide o poder do mundo .

UM COH'l'aÃ..DEPUSSOJt: A PSJCAHÁJ,US.

Para uma mulher cuja identificação especular com a mãe, mas também a introjeção do corpo c do ego maternos são mais imedia­tos, essa inversão da pulsão matricida em figura materna mortífera é mais difícil, se não impossíveL De fato, como pode ela ser essa Erínea sedenta <le sangue, pois sou Ela (sexualmente e narcis!ca­mente). Ela sou eu? Em conseqüência, o ódio que tenho por ela não se exerce para fora, mas se fecha em mim . Não há ódio, somente um humor implosivo que se empareda e me mata escondido, em fogo brando, em amargura permanente, em acessos <le tristeza ou até o sonífero letal que utilizo em maiores ou menores doses, na negra esperança de encontrar. . . ninguém, senão minha completude jmaginária, aumentada por minha morte que me realiza. O homos· sexual divide essa mesma economia depressiva: é um melancólico re· quintado, quando não se entrega à paixão sádica com um outro homem.

O fantasma de imortalidade feminina talvez encontre o seu fundamento na transmissão germinai feminina, capaz de realizar a partogênese. Além disso, as novas técnicas de reprodução artificial conferem ao corpo feminino possibilidades reprodut~vas insuspeita· das. Se esta "onipotência" feminina na sobrevivência da es~cie pode ser minada por outras possibilidades técnicas que, parece, tor­nariam também o homem grávido, é provável que esta última even­tualidade possa atrair somente uma pequena minoria, embora satis· faça os fantasmas androginários da maioria. Entretanto, a parte essencial da convicção feminina, de ser imortal na e para além da morte (que a Virgem Maria encarna com tanta perfeição) enraíza-se menos nessas possibilidades biológ!cas, cuja " ponte" para o psiquis­mo vemos mal, do que no "narcisismo negativo".

No seu paroxismo, este enfraquece tanto o afeto agressivo (ma­tricida) em relação ao outro quanto o afeto pesaroso diante de si mesmo, para substituí-lo pelo que poderíamos chamar de um "vazio oceânico". Trata-se do sentimento c do fantasma de d or, mas anes­tesiada, de gozo, mas suspenso, de uma espera e de um silêncio tanto vazios quanto satisfeitos. No seio d o seu oceano letal, a melancó­lica é esta morta que sempre foi abandonada dentro de si e que jamais poderá se matar fora de si.36 Pudica, mutica, sem elo de pfllavra ou de desejo para com os outros, ela se consome aplicando·

36 Cf. cap . UI : "Matar ou se malar" e "Uma Virgem mãe" .

SOL NEGRO 35

se golpes morais e físicos que, cont>.1do, não lhe proporcionam pra· zeres suficientes. Até o golpe fatal - núpcias definitivas da Morte com a Mesma, que ela não matou.

Não será preciso insistir muito sobre o imenso esforço psíquico, intelectual e afetivo que uma mulher deve fazer para encontrar o outro sexo como objeto erótico. Nos seus devane!os filogenéticos, muitas vezes Freud mostra-se admirado diante da realização intelec­tual efetuada pelo homem quando ficou (ou quando está) frustrado com mulheres (pela glaciação ou pela tirania do pai da horda pri· mitiva etc.) . Se a descoberta de sua vagina invisível já demanda à mulher um imenso esforço sensorial, especulativo e intelectual, a pas­sagem para a oroem simbólica ao mesmo tP.mpo que para um objeto sexual, de um sexo diferente daquele do objeto materno primordial, representa uma elaboração gigantesca na qual uma mulher investe um potencial psíquico superior àquele exigido do sexo masculino. Quando esse processo se realiza de forma favorável, o despertar pre­coce das meninas, suas performances intelectuais, em geral mais brilhantes na idade escoJar, a maturidade feminina permanente são testemunhas disto . Entretanto, elas pagam por essa propensão a cc· lebrar, continuamente, o luto problemático do objeto perdido ... não tão pcr<lido assim e que continua lancinante na "cripta" da facilidade e da maturidade femininas. A menos que uma introjeção maciça do ideal venha satisfazer, ao mesmo tempo, o narcisismo com o seu lado negativo e a aspiração a estar presente na arena onde se decide o poder do mundo .

11 Vida e morte da palavra

11 Vida e morte da palavra

LEMBREM-SE da palavra do deprimido: repetitiva e monótona. Na impossibilidade de encadear, a frase se interrompe, esgota-:se, pára . Mesmo os sintagmas não chegam a se formular . Um ritmo repetiti· vo, uma melodia monótona vêm dominar as seqüências lógicas que­bradas e tr ansformá-las em litanias recorrentes, enervantes . Enfim , quando, por sua vez, essa musicalidade frugal se esgota ou simples­mente não consegue se instalar por força <lo silêncio, o melancólico, com o proferimento, parece suspender qualquer idcação, soçobrando no branco da assimbolia ou no excesso de um caos ideatório não­ordenável .

O encadeamento quebrado: uma hipótese biológica

Essa tri.steza inconsolável em geral esconde uma verdadeira predisposição para o desespero . Em parte, talvez ela seja biológica: a excessiva rapidez ou o excessivo retardamento <la circulação dos fluxos nervosos dependem, de forma incontestável, de certas subs­tâncias químicas qÜe os indivíduos possuem de forma . diferente.1

O discurso médico observa que a sucessão das emoções, movi­mentos, atos ou palavras, considerada como normal porque e~tatis­

ticamente prcvalente, encontra-se .entravada na depressão: o ritmo do comportamento global é quebrado, ato e seqüência não têm mais tempo nem lugar para se efetuarem. Se o estado não-depressivo era a capacidade de encadear (de "concatenar"), o depressivo, pelo con-

1 Lembremos dos progressos da farmacologia neste campo: em 1952, desco­berta, feita por Ddaye e Denikcr, da açiio dos neurolépticos sobre cstad05 de ~llci tação; em 1957, emprego. feito por Kuhn c Kline, dos primeiros antidepres· ~ivos maiores; no início dos anos 60, Schou domina a utilização dos s;~is de t:tio .

LEMBREM-SE da palavra do deprimido: repetitiva e monótona. Na impossibilidade de encadear, a frase se interrompe, esgota-:se, pára . Mesmo os sintagmas não chegam a se formular . Um ritmo repetiti· vo, uma melodia monótona vêm dominar as seqüências lógicas que­bradas e tr ansformá-las em litanias recorrentes, enervantes . Enfim , quando, por sua vez, essa musicalidade frugal se esgota ou simples­mente não consegue se instalar por força <lo silêncio, o melancólico, com o proferimento, parece suspender qualquer idcação, soçobrando no branco da assimbolia ou no excesso de um caos ideatório não­ordenável .

O encadeamento quebrado: uma hipótese biológica

Essa tri.steza inconsolável em geral esconde uma verdadeira predisposição para o desespero . Em parte, talvez ela seja biológica: a excessiva rapidez ou o excessivo retardamento <la circulação dos fluxos nervosos dependem, de forma incontestável, de certas subs­tâncias químicas qÜe os indivíduos possuem de forma . diferente.1

O discurso médico observa que a sucessão das emoções, movi­mentos, atos ou palavras, considerada como normal porque e~tatis­

ticamente prcvalente, encontra-se .entravada na depressão: o ritmo do comportamento global é quebrado, ato e seqüência não têm mais tempo nem lugar para se efetuarem. Se o estado não-depressivo era a capacidade de encadear (de "concatenar"), o depressivo, pelo con-

1 Lembremos dos progressos da farmacologia neste campo: em 1952, desco­berta, feita por Ddaye e Denikcr, da açiio dos neurolépticos sobre cstad05 de ~llci tação; em 1957, emprego. feito por Kuhn c Kline, dos primeiros antidepres· ~ivos maiores; no início dos anos 60, Schou domina a utilização dos s;~is de t:tio .

40 \liDA E MORTE DA PALAVRA

trário, preso à sua dor, não encadeia mais e, por conseguinte, não age nem fala.

Os "retardados": dois modelos

Numerosos são os autores que insistiram no retardamento motor, afetivo c ideativo característico do conjunto melancólico-depressi­vo.2 Mesmo a agitação psicornotora ·e a depressão delirante, ou mais geralmente o humor depressivo, parecem indissociáveis do retarda­mento.3 O retardamento verbal participa do mesmo quadro: o fluxo da enunciação é lento, os silêncios são longos e freqüentes, os ritmos diminuem, as entonações ficam monótonas e as próprias estruturas sintáticas, sem acusarem perturbações c confusões como as que po­demos observar nas esquizofrenias, em geral caracterizam-se por su­pressões não-recuperáveis (omissão de objetos ou de verbos impos­síveis de serem reconstit.1ídos a partir do contexto).

Um dos modelos propostos para se pensar os processos sub­jacentes ao estado de retardamento depressivo, o "learned hei ples­ness" (confusão aprendida), parte da observação segundo a qual, com todas as saídas fechadas, o animal, tanto quanto o homem, aprende a se retirar em vez de fugir ou de combater. O retarda­mento ou a inação, que poderíamos chamar de depressivos, cons­tituiriam portanto uma reação de defesa aprendida contra uma si­tuação sem saída e contra choques inevitáveis. Os antidepressivos tricíclicos aparentemente restauram a capacidade de fuga, o que faz supor que a inação aprendida está ligada a uma depleção noradre­nérgica ou a uma hiperatividade coEnérgica .

Segundo um outr(l modelo, todo comportamento seria governa­do por um sistema de autO-estimulação, baseado na recompensa, que condicionaria o início das respostas. Chega-se à noção de "sistemas de reforço positivo ou negativo", e, supondo-se que estes estariam perturbados no estado depressivo, estudam-se as estruturas e os me­diadores implicados . Chega-se a propor uma dupla explicação para

2 Reportar-nos-emos à obra coletiva sob a direção de Daniel Widlõcper, Le Ralentissement dépressij (O retardamento depressivo), P.U.F., Paris, 1985, qu~ resume esses trabalhos e traz uma nova concepção do retard11mento próprio ~ depressão: "Estar deprimido é estar aprisionado num sistema de ação, é agir, pensar, falar segundo modalidades cujo retardamento constitui uma caracterís· tica" (I bid., p. 9) . · 3 Cf. R . Jouvent, ibid ., pp . 41-53.

SOL NEGRO 41

essa desordem. Uma vez que a estrutura de reforço, o feixe media­no do telencéfalo, de mediação noradrenérgica, é responsável pela resposta, o retardamento e a fuga depressiva seriam devidos à sua disfunção. Paralelamente, um hiperfuncionamento dos sistemas ue "punição" pré-ventricular, de mediação colinérgic~. estaria na base da ansiedade.4 O papel do locus coereleus do feixe mediano do telen­céfalo seria essencial na auto E" timulação e na mediação noradre­nérgica. Nas experiências de supressão de urna resposta pela espera de uma punição, seria, pelo contrário, a serotonina que aumentaria. O tratamento antidepressivo exigiria portanto um aumento noradre­nérgico e uma diminuição serotoninérgica.

Esse papel essencial do locus coereleus é assinalado por nume­rosos autores como "um centro de revezamenio" para um "sistema de alarme" que induz o medo normal ou a ansiedade . . . Além do mais, existem vias que vão para e vêm do córtex cerebral, que constituem fechos em "feedback" e que explicam a influência que o sentido e a pertinência dos estímulos poderiam exercer sobre a res­posta. E estes mesmos fechos em "feedback" dão um acesso às re­giões que, talvez, sirvam de base para a experiência cognitiva do estado ou dos estados emocionais".5

A linguagem como "estimulação" e "reforço"

Neste ponto das tentativas atuais de pensar as duas vias psíquica e biológica - das afecções, podemos recolocar a questão da importância axial da linguagem no ser humano.

Na experiência de separação sem solução ou de choques inevi­táveis, ou ainda de perseguição sem saída, e contrariamente ao ani­mal que só pode recorrer ao comportamento, a criança pode encon­trar uma solução de luta ou de fuga na representação psíquica e na linguagem . Ela imagina, pensa, fala a luta ou a fuga assim como toda uma gama intermediária, o que pode evitar que se feche na inação ou que se faça de morta, ferida por frustrações ou danos irreparáveis. Entretanto, para que essa solução não-depressiva para o dilema melancólico fugir-combater: fazer-se de morto (jlight/fight,

• Cf. Y. Lecrubier, "Une limite biologique des états depressifs" (Um limite biológico dos estados depressivos), ibid ., p. 85. 5 Cf. D. E. Redmond, Jr., citado por Morton Reiser, Mind, Brain, Body (Mente, Cérebro. Corpo), Basic Books, Nova York, 1984, p. 148. Grifo nosso.

40 \liDA E MORTE DA PALAVRA

trário, preso à sua dor, não encadeia mais e, por conseguinte, não age nem fala.

Os "retardados": dois modelos

Numerosos são os autores que insistiram no retardamento motor, afetivo c ideativo característico do conjunto melancólico-depressi­vo.2 Mesmo a agitação psicornotora ·e a depressão delirante, ou mais geralmente o humor depressivo, parecem indissociáveis do retarda­mento.3 O retardamento verbal participa do mesmo quadro: o fluxo da enunciação é lento, os silêncios são longos e freqüentes, os ritmos diminuem, as entonações ficam monótonas e as próprias estruturas sintáticas, sem acusarem perturbações c confusões como as que po­demos observar nas esquizofrenias, em geral caracterizam-se por su­pressões não-recuperáveis (omissão de objetos ou de verbos impos­síveis de serem reconstit.1ídos a partir do contexto).

Um dos modelos propostos para se pensar os processos sub­jacentes ao estado de retardamento depressivo, o "learned hei ples­ness" (confusão aprendida), parte da observação segundo a qual, com todas as saídas fechadas, o animal, tanto quanto o homem, aprende a se retirar em vez de fugir ou de combater. O retarda­mento ou a inação, que poderíamos chamar de depressivos, cons­tituiriam portanto uma reação de defesa aprendida contra uma si­tuação sem saída e contra choques inevitáveis. Os antidepressivos tricíclicos aparentemente restauram a capacidade de fuga, o que faz supor que a inação aprendida está ligada a uma depleção noradre­nérgica ou a uma hiperatividade coEnérgica .

Segundo um outr(l modelo, todo comportamento seria governa­do por um sistema de autO-estimulação, baseado na recompensa, que condicionaria o início das respostas. Chega-se à noção de "sistemas de reforço positivo ou negativo", e, supondo-se que estes estariam perturbados no estado depressivo, estudam-se as estruturas e os me­diadores implicados . Chega-se a propor uma dupla explicação para

2 Reportar-nos-emos à obra coletiva sob a direção de Daniel Widlõcper, Le Ralentissement dépressij (O retardamento depressivo), P.U.F., Paris, 1985, qu~ resume esses trabalhos e traz uma nova concepção do retard11mento próprio ~ depressão: "Estar deprimido é estar aprisionado num sistema de ação, é agir, pensar, falar segundo modalidades cujo retardamento constitui uma caracterís· tica" (I bid., p. 9) . · 3 Cf. R . Jouvent, ibid ., pp . 41-53.

SOL NEGRO 41

essa desordem. Uma vez que a estrutura de reforço, o feixe media­no do telencéfalo, de mediação noradrenérgica, é responsável pela resposta, o retardamento e a fuga depressiva seriam devidos à sua disfunção. Paralelamente, um hiperfuncionamento dos sistemas ue "punição" pré-ventricular, de mediação colinérgic~. estaria na base da ansiedade.4 O papel do locus coereleus do feixe mediano do telen­céfalo seria essencial na auto E" timulação e na mediação noradre­nérgica. Nas experiências de supressão de urna resposta pela espera de uma punição, seria, pelo contrário, a serotonina que aumentaria. O tratamento antidepressivo exigiria portanto um aumento noradre­nérgico e uma diminuição serotoninérgica.

Esse papel essencial do locus coereleus é assinalado por nume­rosos autores como "um centro de revezamenio" para um "sistema de alarme" que induz o medo normal ou a ansiedade . . . Além do mais, existem vias que vão para e vêm do córtex cerebral, que constituem fechos em "feedback" e que explicam a influência que o sentido e a pertinência dos estímulos poderiam exercer sobre a res­posta. E estes mesmos fechos em "feedback" dão um acesso às re­giões que, talvez, sirvam de base para a experiência cognitiva do estado ou dos estados emocionais".5

A linguagem como "estimulação" e "reforço"

Neste ponto das tentativas atuais de pensar as duas vias psíquica e biológica - das afecções, podemos recolocar a questão da importância axial da linguagem no ser humano.

Na experiência de separação sem solução ou de choques inevi­táveis, ou ainda de perseguição sem saída, e contrariamente ao ani­mal que só pode recorrer ao comportamento, a criança pode encon­trar uma solução de luta ou de fuga na representação psíquica e na linguagem . Ela imagina, pensa, fala a luta ou a fuga assim como toda uma gama intermediária, o que pode evitar que se feche na inação ou que se faça de morta, ferida por frustrações ou danos irreparáveis. Entretanto, para que essa solução não-depressiva para o dilema melancólico fugir-combater: fazer-se de morto (jlight/fight,

• Cf. Y. Lecrubier, "Une limite biologique des états depressifs" (Um limite biológico dos estados depressivos), ibid ., p. 85. 5 Cf. D. E. Redmond, Jr., citado por Morton Reiser, Mind, Brain, Body (Mente, Cérebro. Corpo), Basic Books, Nova York, 1984, p. 148. Grifo nosso.

42 VIDA E woa:n; DA P4J.AVIIA

learned ·helplesness) seja elaborável, é preciso q ue a criança tenha uma sólida implicação no cód!go simbólico e imaginário que so-. , , mente nesta condições, toma-se estimulação e re{orÇo. . Então, ela inicia respostas para uma certa ação, ela também implicitamente simbólica, informada pela linguagem ou na ação somente da lin­guagem. Se, pelo contrário, a dimensão simbólica se revela insufi­ciente, o sujeito encontra-se de novo na situação sem ·saída da con­fusão, que desemboca na inação e na morte. Em outros termos, a linguagem, na sua heterogeneidade (processos primários e secundá· rios, vetor ideico e emocional de de:sejo, de ódio, de conflitos), é um fator poderoso que, por mediações desconhecidas, exerce um efeito de ativação {como, inversamente, de inibição), sobre os circu itos neurobiológicos . Nesta ótica, várias questões continuam em suspenso.

A falha simbólica constatada no depre;SSivo é um elemento, entre outros, do retardamento, clinicamente observável, ou então figura ela entre as suas condições essenciais? f: condicionada por uma disfunção do circuito ne;uonal e endócrino que serve de base (mas de que maneira?) para as representações psíquicas e, em parti· cular, para as representações de palavras, assim como para as vias que as ligam aos núcleos hipotalâmicos? Ou trata-se, ainda, de uma _insuficiência do impacto ~imbólico que seria devida somente ao am­biente familiar e social?

Sem excluir a primeira hipótese, o ps!canaJista se preocupará em esclarecer a segunda. Nós nos perguntaremos então quais são os mecanismos que atenUflm o impacto simbólico no sujeito, que todavia adquiriu uma capacidade simbólica adequada, em geral apa­rentemente em conformidade com a norma social, até mesmo com êxito . Tentaremos, pela dinâmica da cura c por uma economia es­pecífica da int~rpretação, res.tituir o seu poder maximal à dimensão imaginária e simbólica desse conjunto ·heterogêneo que é o organis­mo falante. Isto nos condüzirá a nos interrogarmos sobre <1 recusa tio sig?if~c~nte no deprimido, .assim como sobre o papel dos proces­sos pnmanos na palavra depressiva, mas também na palavra inter­pretativa como "enxerto imaginário e simbólico" por intermédio dos processos primários. Enfim, nos interrogaremos sobre a importân­cia do reconhecimento narcísico e da idealização, com o intuito de facilitar no paciente um ancoramento da dimensão simbólica, o que em geral equivale a uma nova aquisição da comunicação enquanto P,arâmctro do desejo e do conflito, até o ódio.

SOL NEGRO

Para abordar uma últimà vez o problema do "limite biológico" que doravante iremos abandonar, digamos que o nível de represen­tação psiquica e, em particular, lingüística translada-se neurologi­camente para os acontecimentos fisiológicos do · cérebro, em última análise pelos múltiplos circuitos do hipotálam.o (os núcleos hipota­Iâmicos são conectados ao córtex cerebral, cujo funcionamento serve de base - mas como? - ao sentido, assim como ao sistema Um bico do tronco cerebral, cujo funcionamento serve de base para os afe­tos). Hoje, não sabemos como se produz essa translação, mas esta­mos fundamentados, pela experiência clínica, para pensar que ele se produz efetivamente (como exemplo, lembraremos os efeitos exci­tantes ou sedativos, "opiáceos", de certas palavras) . Enfim, nume­rosas doenças - e depressões -, cuja origem podemos localizar em perturbações neurofisiológicas ativadas por falhas simbólicas, per­manecem fixadas em níveis inacessíveis aos efeitos da linguagem . O efeito adjuvante dos antidepressivos é então necessário para re­constituir uma base neurofisiol6gica mínima, sobre a qual pode se iniciar um trabalho psicoterápico, analisando-se carências e ligações simbólicas e reconstituindo-se uma nova "simbolicidade".

Outras transla~ possíveis entre o sentido e o funcionamento cerebral

As interrupções da seqüencialidade lingüística e, mais ainda, as suas substituições por operações supra-segmentais (ritmos, melo­dias) no discurso depressivo podem ser interpretadas como uma defi­ciência do hemisfério esquerdo que comanda a construção lingüís­tica, em proveito de uma dominação - mesmo provisória - do hemisfério direito, que comanda os afetos c as emoções, assim como suas inscrições " primárias", ''musicais", não lingüísticas.' Por outro lado, a estas observações acrescentaremos o modelo de um duplo funcionamento cerebral: neuronal, elétrico ou por cabos c digital, assim como endócrino, humoral, flutuante e anatógico.' Certas subs­tânc;ias químicas do cérebro, mesmo certos neurotransmissores, pa­recem ter um d-.tplo comportamento: às vezes "neuronal", às vezes

h C f . Michacl Gazzaniga, The bisectcd brain (0 crânio bipartido), Mcredilh Corporation, Nova York:, 1970. Numerosos trabalhos insistirão, depois disso, 1>essa divisão das funções simbólicas entre os dois hemisférios cerebrais. 1 Cf. J. D . Vincent, Biologie des passions (Biologia das paixões), Ed. O . Jacob. Paris, 1986.

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learned ·helplesness) seja elaborável, é preciso q ue a criança tenha uma sólida implicação no cód!go simbólico e imaginário que so-. , , mente nesta condições, toma-se estimulação e re{orÇo. . Então, ela inicia respostas para uma certa ação, ela também implicitamente simbólica, informada pela linguagem ou na ação somente da lin­guagem. Se, pelo contrário, a dimensão simbólica se revela insufi­ciente, o sujeito encontra-se de novo na situação sem ·saída da con­fusão, que desemboca na inação e na morte. Em outros termos, a linguagem, na sua heterogeneidade (processos primários e secundá· rios, vetor ideico e emocional de de:sejo, de ódio, de conflitos), é um fator poderoso que, por mediações desconhecidas, exerce um efeito de ativação {como, inversamente, de inibição), sobre os circu itos neurobiológicos . Nesta ótica, várias questões continuam em suspenso.

A falha simbólica constatada no depre;SSivo é um elemento, entre outros, do retardamento, clinicamente observável, ou então figura ela entre as suas condições essenciais? f: condicionada por uma disfunção do circuito ne;uonal e endócrino que serve de base (mas de que maneira?) para as representações psíquicas e, em parti· cular, para as representações de palavras, assim como para as vias que as ligam aos núcleos hipotalâmicos? Ou trata-se, ainda, de uma _insuficiência do impacto ~imbólico que seria devida somente ao am­biente familiar e social?

Sem excluir a primeira hipótese, o ps!canaJista se preocupará em esclarecer a segunda. Nós nos perguntaremos então quais são os mecanismos que atenUflm o impacto simbólico no sujeito, que todavia adquiriu uma capacidade simbólica adequada, em geral apa­rentemente em conformidade com a norma social, até mesmo com êxito . Tentaremos, pela dinâmica da cura c por uma economia es­pecífica da int~rpretação, res.tituir o seu poder maximal à dimensão imaginária e simbólica desse conjunto ·heterogêneo que é o organis­mo falante. Isto nos condüzirá a nos interrogarmos sobre <1 recusa tio sig?if~c~nte no deprimido, .assim como sobre o papel dos proces­sos pnmanos na palavra depressiva, mas também na palavra inter­pretativa como "enxerto imaginário e simbólico" por intermédio dos processos primários. Enfim, nos interrogaremos sobre a importân­cia do reconhecimento narcísico e da idealização, com o intuito de facilitar no paciente um ancoramento da dimensão simbólica, o que em geral equivale a uma nova aquisição da comunicação enquanto P,arâmctro do desejo e do conflito, até o ódio.

SOL NEGRO

Para abordar uma últimà vez o problema do "limite biológico" que doravante iremos abandonar, digamos que o nível de represen­tação psiquica e, em particular, lingüística translada-se neurologi­camente para os acontecimentos fisiológicos do · cérebro, em última análise pelos múltiplos circuitos do hipotálam.o (os núcleos hipota­Iâmicos são conectados ao córtex cerebral, cujo funcionamento serve de base - mas como? - ao sentido, assim como ao sistema Um bico do tronco cerebral, cujo funcionamento serve de base para os afe­tos). Hoje, não sabemos como se produz essa translação, mas esta­mos fundamentados, pela experiência clínica, para pensar que ele se produz efetivamente (como exemplo, lembraremos os efeitos exci­tantes ou sedativos, "opiáceos", de certas palavras) . Enfim, nume­rosas doenças - e depressões -, cuja origem podemos localizar em perturbações neurofisiológicas ativadas por falhas simbólicas, per­manecem fixadas em níveis inacessíveis aos efeitos da linguagem . O efeito adjuvante dos antidepressivos é então necessário para re­constituir uma base neurofisiol6gica mínima, sobre a qual pode se iniciar um trabalho psicoterápico, analisando-se carências e ligações simbólicas e reconstituindo-se uma nova "simbolicidade".

Outras transla~ possíveis entre o sentido e o funcionamento cerebral

As interrupções da seqüencialidade lingüística e, mais ainda, as suas substituições por operações supra-segmentais (ritmos, melo­dias) no discurso depressivo podem ser interpretadas como uma defi­ciência do hemisfério esquerdo que comanda a construção lingüís­tica, em proveito de uma dominação - mesmo provisória - do hemisfério direito, que comanda os afetos c as emoções, assim como suas inscrições " primárias", ''musicais", não lingüísticas.' Por outro lado, a estas observações acrescentaremos o modelo de um duplo funcionamento cerebral: neuronal, elétrico ou por cabos c digital, assim como endócrino, humoral, flutuante e anatógico.' Certas subs­tânc;ias químicas do cérebro, mesmo certos neurotransmissores, pa­recem ter um d-.tplo comportamento: às vezes "neuronal", às vezes

h C f . Michacl Gazzaniga, The bisectcd brain (0 crânio bipartido), Mcredilh Corporation, Nova York:, 1970. Numerosos trabalhos insistirão, depois disso, 1>essa divisão das funções simbólicas entre os dois hemisférios cerebrais. 1 Cf. J. D . Vincent, Biologie des passions (Biologia das paixões), Ed. O . Jacob. Paris, 1986.

VIDA E MOaTE DA PALA v.A

"endócrino". Definitivamente, e levando-se em conta essa dualida­de cerebral em que as paixões encontram seu ancoradouro no humo­ral, podemos falar de "estado central flutuante". Se admitirmos que a linguagem, no seu próprio nível, também deve traduzir este "esta­do flut:.tante", é forçoso localizar, no funcionamento da linguagem, registros que parecem mais próximos do "cérebro-glândula" (os com­ponentes supra-segmentais do discurso). Assim, poderíamos pensar a "modalidade simbólica" da significãncia em relação ao hemisfério esquerdo e ao cérebro neuronal, e a "modalidade sem:ótica" em re­lação ao hemisfério direito e ao cérebro·glândula.

Entretanto, hoje nada permite estabelecer qualquer correspon­dência- a não ser um salto- entre o substrato biológico e o nível das representações, sejam elas tonais ou sintáxicas, emotivas ou cog­nitivas, semiót!cas ou simbólicas . Contudo, não poderíamos negli­genciar os relacionamentos possíveis entre esses dois níveis e tentar ressonâncias, certamente aleatórias e imprevisíveis, de um sobre o outro e, ainda com mais razão, modificações de um em relação ao outro.

Como conclusão: se uma disfunção de noradrenalina e de sero­tonina, ou então de sua recepção, entrava a condutibilidade das si­napses, e pode condicionar o estado depressivo, o papel dessas poucas sinapses, na estrutura em forma de estrela do cérebro, não poderia ser absoluto.1 Tal insuficiência pode sofrer a oposição de outros fenô­menos químicos e também de outras ações ex.ternas (incluindo as simbólicas) sobre o cérebro, que a eles se acomoda por modifica­ções biológicas. De fato, a experiência da relação com o outro, suas violências ou suas delícias, imprimem, de forma definitiva, a s:.ta marca nesse terreno biológico e concluem o quadro bem conhecido do comportamento depressivo. Não renunciando à ação química no combate à melancolia, o analista dispõe (ou poderá dispor) de uma extensa gama de verbalizações deste estado e das suas. ultrapassa­gens. Permanecendo atento a estas interferências, ele se aterá à5 mutações específicas do discurso depressivo, assim como à constru­ção de s:1a própria palavra interpretativa, delas resultantes.

O psicanalista, defrontando com a depressão, é conduzido a se interrogar sobre a posição do sujeito em relação ao sentido, assim

õ Cf. D . Widõcher, Les logiques de la dépression {A~ lógicas da depressão), Fayard, Paris, 1986.

45

como sobre as dimensões heterogêneas da linguagem, suscetíveis de ter inscrições psíquicas diferentes, que, em razão dessa diversidade, teriam um número crescente de vias de acesso possíveis para os múltiplos aspectos do funcionamento cerebral e, portanto, para as atividades do organismo. Enfim, vista sob este ângulo, a experiên­cia imaginária nos aparecerá, ao mesmo tempo, como um testemu­nho do combate que o homem trava contra a depressão e como uma gama de meios aptos a enriquecer o discurso interpretativo.

O salto psicanalítico: encadear e transpor

Do ponto de vista do analista, a possibilidade de encadear sig· nificantes (palavras ou atos) parece depender de um luto realizado em relação a um objeto arcaico e indispensável. assim como às emoções a ele ligadas. Luto da Coisa, essa po~ibili~de _Pt;>~ém da transposição, para além da perda e num regtstro m~agmarto e simbólico, das marcas de uma interação com o outro, articulando-se segundo uma certa ordem .

Sem o lastro do objeto originário, as marcas semióticas ini­cialmente se ordenam em séries, segundo os processos primários (deslocamento e condensação), e, em seguida, em sintagmas e frases, segundo os processos secundários da gramática e da lógica. Tod~s as ciências da linguagem hoje concordam em reconhecer que o dts­curso é diúlogo: que o seu ordenamento, tanto rítmico e de entona· ção quanto sintáxico, necessita de dois interlocutores p~~ se rea· lizar. Entretanto, seria preciso acresçentar a essa condt~a? funda­mental, que já sugere a necessária separação entre um sujet'? : um outro 0 fato de que as seqüências verbais só advêm à cond1çao de substituir um objeto originário mais ou menos simbiótico por uma trans-posição, verdadeira re-constituição que, retroativamen~e, dá fonna e sentido à miragem da Coisa originária . Este movn~ento decisivo da transposição compreende duas vertentes: o bto realizado do objeto (e na sua sombra, o luto da Coisa arcaica), bem com? a adesão do indivíduo a um registro de signos (significante, prect­samente, pela ausência do objeto), somente desta forma suscetív~l de se ordenar em séries . O testemunho disso é dado pelo aprendt­zado da linguagem feita pela· criança, ser errante intrépido, que deixa o seu leito para reencontrar sua mãe no reino das represen­tações. O deprimido é :.tma outra testemunha disto, às avessas, quan­do renuncia a significar e imerge no silêncio da dor ou _no espasmo das lágrimas que comemoram os reencontros com a Co1sa.

VIDA E MOaTE DA PALA v.A

"endócrino". Definitivamente, e levando-se em conta essa dualida­de cerebral em que as paixões encontram seu ancoradouro no humo­ral, podemos falar de "estado central flutuante". Se admitirmos que a linguagem, no seu próprio nível, também deve traduzir este "esta­do flut:.tante", é forçoso localizar, no funcionamento da linguagem, registros que parecem mais próximos do "cérebro-glândula" (os com­ponentes supra-segmentais do discurso). Assim, poderíamos pensar a "modalidade simbólica" da significãncia em relação ao hemisfério esquerdo e ao cérebro neuronal, e a "modalidade sem:ótica" em re­lação ao hemisfério direito e ao cérebro·glândula.

Entretanto, hoje nada permite estabelecer qualquer correspon­dência- a não ser um salto- entre o substrato biológico e o nível das representações, sejam elas tonais ou sintáxicas, emotivas ou cog­nitivas, semiót!cas ou simbólicas . Contudo, não poderíamos negli­genciar os relacionamentos possíveis entre esses dois níveis e tentar ressonâncias, certamente aleatórias e imprevisíveis, de um sobre o outro e, ainda com mais razão, modificações de um em relação ao outro.

Como conclusão: se uma disfunção de noradrenalina e de sero­tonina, ou então de sua recepção, entrava a condutibilidade das si­napses, e pode condicionar o estado depressivo, o papel dessas poucas sinapses, na estrutura em forma de estrela do cérebro, não poderia ser absoluto.1 Tal insuficiência pode sofrer a oposição de outros fenô­menos químicos e também de outras ações ex.ternas (incluindo as simbólicas) sobre o cérebro, que a eles se acomoda por modifica­ções biológicas. De fato, a experiência da relação com o outro, suas violências ou suas delícias, imprimem, de forma definitiva, a s:.ta marca nesse terreno biológico e concluem o quadro bem conhecido do comportamento depressivo. Não renunciando à ação química no combate à melancolia, o analista dispõe (ou poderá dispor) de uma extensa gama de verbalizações deste estado e das suas. ultrapassa­gens. Permanecendo atento a estas interferências, ele se aterá à5 mutações específicas do discurso depressivo, assim como à constru­ção de s:1a própria palavra interpretativa, delas resultantes.

O psicanalista, defrontando com a depressão, é conduzido a se interrogar sobre a posição do sujeito em relação ao sentido, assim

õ Cf. D . Widõcher, Les logiques de la dépression {A~ lógicas da depressão), Fayard, Paris, 1986.

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como sobre as dimensões heterogêneas da linguagem, suscetíveis de ter inscrições psíquicas diferentes, que, em razão dessa diversidade, teriam um número crescente de vias de acesso possíveis para os múltiplos aspectos do funcionamento cerebral e, portanto, para as atividades do organismo. Enfim, vista sob este ângulo, a experiên­cia imaginária nos aparecerá, ao mesmo tempo, como um testemu­nho do combate que o homem trava contra a depressão e como uma gama de meios aptos a enriquecer o discurso interpretativo.

O salto psicanalítico: encadear e transpor

Do ponto de vista do analista, a possibilidade de encadear sig· nificantes (palavras ou atos) parece depender de um luto realizado em relação a um objeto arcaico e indispensável. assim como às emoções a ele ligadas. Luto da Coisa, essa po~ibili~de _Pt;>~ém da transposição, para além da perda e num regtstro m~agmarto e simbólico, das marcas de uma interação com o outro, articulando-se segundo uma certa ordem .

Sem o lastro do objeto originário, as marcas semióticas ini­cialmente se ordenam em séries, segundo os processos primários (deslocamento e condensação), e, em seguida, em sintagmas e frases, segundo os processos secundários da gramática e da lógica. Tod~s as ciências da linguagem hoje concordam em reconhecer que o dts­curso é diúlogo: que o seu ordenamento, tanto rítmico e de entona· ção quanto sintáxico, necessita de dois interlocutores p~~ se rea· lizar. Entretanto, seria preciso acresçentar a essa condt~a? funda­mental, que já sugere a necessária separação entre um sujet'? : um outro 0 fato de que as seqüências verbais só advêm à cond1çao de substituir um objeto originário mais ou menos simbiótico por uma trans-posição, verdadeira re-constituição que, retroativamen~e, dá fonna e sentido à miragem da Coisa originária . Este movn~ento decisivo da transposição compreende duas vertentes: o bto realizado do objeto (e na sua sombra, o luto da Coisa arcaica), bem com? a adesão do indivíduo a um registro de signos (significante, prect­samente, pela ausência do objeto), somente desta forma suscetív~l de se ordenar em séries . O testemunho disso é dado pelo aprendt­zado da linguagem feita pela· criança, ser errante intrépido, que deixa o seu leito para reencontrar sua mãe no reino das represen­tações. O deprimido é :.tma outra testemunha disto, às avessas, quan­do renuncia a significar e imerge no silêncio da dor ou _no espasmo das lágrimas que comemoram os reencontros com a Co1sa.

VIDA I! MORTB DA PAJ:.AVL\

. Trans-~or, em grego m2taphorein: transportar - de início, a hnguagem e uma tradução, mas num registro heterogêneo àquele em ~ue se opera a perda afetiva, a renúncia, a fratura. Se não consr~to em .per~er mamãe, não poderia imaginá-la nem nomeá-la . ~ cnança ps~cóttca conhece esse. drama: é um tradutor incapaz, ela :~nora ~. metafora. ~uanto. ao. d1scurso deprimido, ele é a s:~perfície normal de um nsco ps~cótlco: a tristeza que nos submerge, o

retardamento que nos paralisa também são uma muralha _ às vezes a última - contra a loucura .

Consistiria _o destino do ser falante em não cessar de transpor, semp~e. para ma1s longe ou mais para o lado, essa transposição serial ou fras1ca que testemunham a nossa capacidade de elaborar um luto fundamental e lutos sucessivos? Nosso dom de falar, de nos situar­m?s no tempo . para um outro, poderia existir em outro lugar senão alem de um ab1smo. O ser falante, desde a sua capacidade de durar no temp? at~ as s~as construções entusiastas, eruditas ou simples­mente divertidas, exige, na sua base, uma ruptura, um abandono, um mal-estar.

A denegação desta perda fundamental nos abre o país dos sig­nos, mas, em geral, o luto está inacabado. Ele desordena a dene­gação e traz signos para a memória . tirando-os de sua neutralidade significante. Ele os carrega com af;tos, o que tem como efeito tor­ná-los ambíguos, repetitivos, simplesmente aliterativos musicais ou às vezes, insensatos. Então, a trad:~ção - nosso destlno de ser fa~ Jante -:.. pára o seu caminhar vertiginoso em direção às metalin­g.uagens ou às línguas estrangeiras, que são igualmente sistemas de s1g~os afastados do lugar da dor. Ela procura tornar-se estrangeira a st mesma, para encontrar, na língua materna, uma ''palavra total, nova, estranha à língua" (Mallarmé), a fim de captar o não-nomeá­vel. O excesso de afeto não tem, portanto, outro meio de se mani­festar senão produzindo novas linguagens -· encadeamentos estra­nhos, ideoletos, poéticas . Até que o peso da Coisa originária o vença, e que qualquer tradutibilídade se tome impossível. A me­lancolia. termina então na assimbolia, a perda de sentido; se não sou ma1s capaz de traduzir ou de fazer metáforas, calo-me e morro .

A recusa da denegação

~~cutem d_e novo, por alguns instantes, a palavra depressiva, repetitiva, monotona, ou então esvaziada de sentido, inaudível, mes­mo para aquele que a diz, antes que se afunde no mutismo. Vocês

SOL NEORIJ 47

constatarão que o sentido no melancólico parece . . . arbitrário, ou então que ele é construído com a ajuda de uma grande quantidade de saber e de vontade de dominar, mas parece secundário, fixado um pouco ao lado da cabeça e do corp{> de quem lhes fala . Ou então que, de repente, é evasivo, incerto, lacunar, quase de pessoa muda: "se" lhes fala já persuadido de que a palavra é falsa e, portanto, ''se" lhes fala negligentemente, fala-"se" sem acreditar nisto .

Entretanto, que o sentido é arbitrário, a lingüística o afirma para todos os signos verbais e para todos os discursos . Não é o significante RJR tot.almente imotivado em relação ao sentido de " rir", mas também, e sobretudo, em relação ao ato de rir, à sua efetivação física, ao seu va1or int.rapsíquico e de interação? Eis a prova: eu nomeio o mesmo sentido e o mesmo ato " to laugh" em inglês, " smeiatsia" em russo etc. Ora, qualquer locutor " normal" aprende a levar a sério este artifício, a investi-lo ou a esquecê-lo.

Os signos são arbitrários porque a linguagem se inicia por uma denegação (V erneinung) da perda, ao mesmo tempo que da depres­são ocasionada pelo luto . " Perdi um objeto indispensável que, no caso, em última instância, é minha mãe", parece dizer o ser falante . "Mas não, eu a reencontrei nos signos, ou melhor, porque não aceito perdê-la, não a perdi (eis a denegação), posso recuperá-la na lin­guagem."

O deprimido, pelo c;ontrário, recusa a denegação: ele a an:Jla. suspende c se curva, nostálgico, sobre o objeto real (a Coisa) da sua perda, que precisamente, ele não chega a perder, ao qual per­manece dolorosamente fixado. A recusa { Verleugnung) da denega­ção seria assim o mecanismo de um luto impossível, a instalação de uma tristeza fundamental e de uma ling:Iagem artificial, inacredi­tável, cortada desse fundo doloroso ao qual nenhum significante tem acesso e que somente a entonação, por intennitêncía, consegue modular.

O que c01-zpreender por recusa e denegação?

Entenderemos por recusa a negação do s~gnificante, tanto quan­to dos representantes semióticos das pulsões e dos afetos. O termo denegação será entendido como uma operação intelectual que con­duz o recalcado à representação sob a condição de o negar e, por esta razão, partícipe do advento do significante .

Segundo Freud, a recusa ou desmentido (Verleugnung) aplica­se à realidade psíquica que ele considerava como sendo da ordem

VIDA I! MORTB DA PAJ:.AVL\

. Trans-~or, em grego m2taphorein: transportar - de início, a hnguagem e uma tradução, mas num registro heterogêneo àquele em ~ue se opera a perda afetiva, a renúncia, a fratura. Se não consr~to em .per~er mamãe, não poderia imaginá-la nem nomeá-la . ~ cnança ps~cóttca conhece esse. drama: é um tradutor incapaz, ela :~nora ~. metafora. ~uanto. ao. d1scurso deprimido, ele é a s:~perfície normal de um nsco ps~cótlco: a tristeza que nos submerge, o

retardamento que nos paralisa também são uma muralha _ às vezes a última - contra a loucura .

Consistiria _o destino do ser falante em não cessar de transpor, semp~e. para ma1s longe ou mais para o lado, essa transposição serial ou fras1ca que testemunham a nossa capacidade de elaborar um luto fundamental e lutos sucessivos? Nosso dom de falar, de nos situar­m?s no tempo . para um outro, poderia existir em outro lugar senão alem de um ab1smo. O ser falante, desde a sua capacidade de durar no temp? at~ as s~as construções entusiastas, eruditas ou simples­mente divertidas, exige, na sua base, uma ruptura, um abandono, um mal-estar.

A denegação desta perda fundamental nos abre o país dos sig­nos, mas, em geral, o luto está inacabado. Ele desordena a dene­gação e traz signos para a memória . tirando-os de sua neutralidade significante. Ele os carrega com af;tos, o que tem como efeito tor­ná-los ambíguos, repetitivos, simplesmente aliterativos musicais ou às vezes, insensatos. Então, a trad:~ção - nosso destlno de ser fa~ Jante -:.. pára o seu caminhar vertiginoso em direção às metalin­g.uagens ou às línguas estrangeiras, que são igualmente sistemas de s1g~os afastados do lugar da dor. Ela procura tornar-se estrangeira a st mesma, para encontrar, na língua materna, uma ''palavra total, nova, estranha à língua" (Mallarmé), a fim de captar o não-nomeá­vel. O excesso de afeto não tem, portanto, outro meio de se mani­festar senão produzindo novas linguagens -· encadeamentos estra­nhos, ideoletos, poéticas . Até que o peso da Coisa originária o vença, e que qualquer tradutibilídade se tome impossível. A me­lancolia. termina então na assimbolia, a perda de sentido; se não sou ma1s capaz de traduzir ou de fazer metáforas, calo-me e morro .

A recusa da denegação

~~cutem d_e novo, por alguns instantes, a palavra depressiva, repetitiva, monotona, ou então esvaziada de sentido, inaudível, mes­mo para aquele que a diz, antes que se afunde no mutismo. Vocês

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constatarão que o sentido no melancólico parece . . . arbitrário, ou então que ele é construído com a ajuda de uma grande quantidade de saber e de vontade de dominar, mas parece secundário, fixado um pouco ao lado da cabeça e do corp{> de quem lhes fala . Ou então que, de repente, é evasivo, incerto, lacunar, quase de pessoa muda: "se" lhes fala já persuadido de que a palavra é falsa e, portanto, ''se" lhes fala negligentemente, fala-"se" sem acreditar nisto .

Entretanto, que o sentido é arbitrário, a lingüística o afirma para todos os signos verbais e para todos os discursos . Não é o significante RJR tot.almente imotivado em relação ao sentido de " rir", mas também, e sobretudo, em relação ao ato de rir, à sua efetivação física, ao seu va1or int.rapsíquico e de interação? Eis a prova: eu nomeio o mesmo sentido e o mesmo ato " to laugh" em inglês, " smeiatsia" em russo etc. Ora, qualquer locutor " normal" aprende a levar a sério este artifício, a investi-lo ou a esquecê-lo.

Os signos são arbitrários porque a linguagem se inicia por uma denegação (V erneinung) da perda, ao mesmo tempo que da depres­são ocasionada pelo luto . " Perdi um objeto indispensável que, no caso, em última instância, é minha mãe", parece dizer o ser falante . "Mas não, eu a reencontrei nos signos, ou melhor, porque não aceito perdê-la, não a perdi (eis a denegação), posso recuperá-la na lin­guagem."

O deprimido, pelo c;ontrário, recusa a denegação: ele a an:Jla. suspende c se curva, nostálgico, sobre o objeto real (a Coisa) da sua perda, que precisamente, ele não chega a perder, ao qual per­manece dolorosamente fixado. A recusa { Verleugnung) da denega­ção seria assim o mecanismo de um luto impossível, a instalação de uma tristeza fundamental e de uma ling:Iagem artificial, inacredi­tável, cortada desse fundo doloroso ao qual nenhum significante tem acesso e que somente a entonação, por intennitêncía, consegue modular.

O que c01-zpreender por recusa e denegação?

Entenderemos por recusa a negação do s~gnificante, tanto quan­to dos representantes semióticos das pulsões e dos afetos. O termo denegação será entendido como uma operação intelectual que con­duz o recalcado à representação sob a condição de o negar e, por esta razão, partícipe do advento do significante .

Segundo Freud, a recusa ou desmentido (Verleugnung) aplica­se à realidade psíquica que ele considerava como sendo da ordem

48 VIDA E M<)JtTE DA PALAVRA

da percepção. Essa recusa seria coisa usual na criança, mas torna-se o ponto de partida de uma psicose no adulto, pojs aplica-se à reali­dade externa.9 Entretanto, e posteriormente, a recusa encontra o seu protótipo na recusa da castração e se especifica constituindo o fetichismo!0

Nosso alargamento ao campo da Verleugnung freudiana não muda a sua função de produzir uma clivagem no sujeito: por um lado, ele recusa as representações arcaicas das percepções traumá­ticas, por outro reconhece simbolicamente o seu impacto e tenta tirar as suas conseqüências.

Contudo, nossa concepção modifica o objeto da recusa. Esta se aplica à inscrição intrapsíquica ( semiótka e simbólica) da falta, seja ela fundamentalmente uma falta de objeto ou, posteriormente, erotizada como uma castração da mulher. Em o:.atros termos, a recusa aplica-se a significantes suscetíveis de inscrever traços semió­ticos e de transpô-los, para . fazer sentido no sujeito para um outro sujeito.

Notaremos que esse valor recusado do significante depressivo traduz uma impossibilidade de realizar o' lJJto do objeto c que, em geral, ela é acompanhada por um fantasma de mãe fática . O feti­chismo aparece como uma resolução da depressão e da sua recusa do significante: o fetichismo substitui pelo fantasma e pela atuação a recusa da dor psíquica (dos representantes psíq:.aicos da dor) con­secutiva à perda de equilíbrio biopsíquico pela perda do objeto .

A recusa do significante apóia-se numa recusa da função pa· terna que, precisamente, garante a imposição do significante. Man­tido em sua função de pai ideal ou de pai imaginário, o pai do depressivo é despojado do poder fá li co atribuído à sua mãe . Sedu· zindo ou sedutor, frágjl e atraente, esse pai mantém o sujeito na paixão, mas não lhe prepara a possibilidade de uma . saída pela idealização do simbólico . Quando esta intervém, ela se apóia no pai matem o e toma o caminho da sublimação.

9 Cf. S . Freud, "Ouelques conséquences psychologiques de la différence ana­tomique entre les sexes" (Algumas conseqüências psicológicas da diferença ana­tômica entre os sexos) (1925), in La Vie sexuellc (A vida sr.xual) , P .U . F ., Pa· ris, 1969. pp . l2J-IJ2; S. E . , t. XIX, pp . 241-258; G . V.- XIV, pp . 19-JO . Y.l Cf. S . Freud, " Le fétichisme" (0 fetichismo) (1927), m IA Vie sexuelle <A vida sexual), op. cit., pp . IH ·138: S . E .• t. XXI, pp . 147·157; S. W ., t . XIV, pp . 311·317 .

SOL NEGlO 49

A denegação (Verneinung), cujas ambigüidades Freud mantém e amplifica no seu estudo Die Verneinung ,11 é um processo que in­troduz um aspecto do desejo e da idéia inconsciente na consciência . "Disto resulta uma espécie de aceitação intelectual do recalcado, en­quanto persiste o essencial do recalcamento. "12 "Por meio do símbolo da negação, o ato de pensar lib·erta-se das limitações do recalcamen­to."13 Pela denegação, "um conteúdo recalcado de representação ou de pensamento pode, portanto, penetrar aié a consciência".u Este processo psiquico observável nas defesas dos pacientes contra seus desejos inconscientes ("não, eu não o amo", significaria a confissão desse amor sob uma forma precisamente denegada) seria o mesmo que produz o símbolo lógico e lingüístico.

Consideramos que a negatividade é coextensiva à atividade psi­quica do ser falante. Suas {}iversas modalidades, que são a negação, a recusa e a joraclusão (que podem produzir ou modificar o recal­camento, a resistência, a defesa ou a censura) , por mais distintas que sejam umas das outras, influenciam-se e se condicionam recipro­camente . Não existe "dom simbólico" sem clivagem, e a capacidade verbal é potencialmente portadora de fetichismo (nem que seja o dos próprios símbolos), assim como de psicose (seja ela suturada).

Entretanto, as diversas estruturas psíquicas são diversamente dominadas por esse processo de negatividade. Se a /oraclusão (Ver­werfuizg) vencesse ·a denegação, a trama simbólica desmoronaria, apagando a própria realidade: é a economia da psicose. O melan­cólico que pode chegar até a foraclusão (psicose melancólica) carac­teriza-se, no desenvolvimento benigno da doença, por uma recusa sobre a denegação. Os substratos semióticos (representantes afetivos e pulsionais da perda e da castração) subjacentes aos signos lin­güísticos são recusados, e o valor íntrapsíquico destes últimos, de fazer sentido para o sujeito, em conseqüência, é aniquilado. O re­sultado disto é que as lembranças traumáticas (a perda de um pa­rente querido na infância, um golpe mais recente) não são recalca·

11 Cf. S. Freud, " Die Verneinung" (A denegação) (1925), in Révue Française de l'sychanalyse. Paris, 1934, VII, n.• 2, pp. 174-177 . Tradução comparada in Lc Coq-Hérott, n." 8: S. E., t. XIX, pp . 2JJ-2J9; G . W . , t . XIV, pp . 11-15 . tz Cf . "Die Vemeinung'' (A denegação), tradução comparada in Le Coq-Hé· ron, n.• 8, p . ]J . 13 lbid . ,. lbid .

48 VIDA E M<)JtTE DA PALAVRA

da percepção. Essa recusa seria coisa usual na criança, mas torna-se o ponto de partida de uma psicose no adulto, pojs aplica-se à reali­dade externa.9 Entretanto, e posteriormente, a recusa encontra o seu protótipo na recusa da castração e se especifica constituindo o fetichismo!0

Nosso alargamento ao campo da Verleugnung freudiana não muda a sua função de produzir uma clivagem no sujeito: por um lado, ele recusa as representações arcaicas das percepções traumá­ticas, por outro reconhece simbolicamente o seu impacto e tenta tirar as suas conseqüências.

Contudo, nossa concepção modifica o objeto da recusa. Esta se aplica à inscrição intrapsíquica ( semiótka e simbólica) da falta, seja ela fundamentalmente uma falta de objeto ou, posteriormente, erotizada como uma castração da mulher. Em o:.atros termos, a recusa aplica-se a significantes suscetíveis de inscrever traços semió­ticos e de transpô-los, para . fazer sentido no sujeito para um outro sujeito.

Notaremos que esse valor recusado do significante depressivo traduz uma impossibilidade de realizar o' lJJto do objeto c que, em geral, ela é acompanhada por um fantasma de mãe fática . O feti­chismo aparece como uma resolução da depressão e da sua recusa do significante: o fetichismo substitui pelo fantasma e pela atuação a recusa da dor psíquica (dos representantes psíq:.aicos da dor) con­secutiva à perda de equilíbrio biopsíquico pela perda do objeto .

A recusa do significante apóia-se numa recusa da função pa· terna que, precisamente, garante a imposição do significante. Man­tido em sua função de pai ideal ou de pai imaginário, o pai do depressivo é despojado do poder fá li co atribuído à sua mãe . Sedu· zindo ou sedutor, frágjl e atraente, esse pai mantém o sujeito na paixão, mas não lhe prepara a possibilidade de uma . saída pela idealização do simbólico . Quando esta intervém, ela se apóia no pai matem o e toma o caminho da sublimação.

9 Cf. S . Freud, "Ouelques conséquences psychologiques de la différence ana­tomique entre les sexes" (Algumas conseqüências psicológicas da diferença ana­tômica entre os sexos) (1925), in La Vie sexuellc (A vida sr.xual) , P .U . F ., Pa· ris, 1969. pp . l2J-IJ2; S. E . , t. XIX, pp . 241-258; G . V.- XIV, pp . 19-JO . Y.l Cf. S . Freud, " Le fétichisme" (0 fetichismo) (1927), m IA Vie sexuelle <A vida sexual), op. cit., pp . IH ·138: S . E .• t. XXI, pp . 147·157; S. W ., t . XIV, pp . 311·317 .

SOL NEGlO 49

A denegação (Verneinung), cujas ambigüidades Freud mantém e amplifica no seu estudo Die Verneinung ,11 é um processo que in­troduz um aspecto do desejo e da idéia inconsciente na consciência . "Disto resulta uma espécie de aceitação intelectual do recalcado, en­quanto persiste o essencial do recalcamento. "12 "Por meio do símbolo da negação, o ato de pensar lib·erta-se das limitações do recalcamen­to."13 Pela denegação, "um conteúdo recalcado de representação ou de pensamento pode, portanto, penetrar aié a consciência".u Este processo psiquico observável nas defesas dos pacientes contra seus desejos inconscientes ("não, eu não o amo", significaria a confissão desse amor sob uma forma precisamente denegada) seria o mesmo que produz o símbolo lógico e lingüístico.

Consideramos que a negatividade é coextensiva à atividade psi­quica do ser falante. Suas {}iversas modalidades, que são a negação, a recusa e a joraclusão (que podem produzir ou modificar o recal­camento, a resistência, a defesa ou a censura) , por mais distintas que sejam umas das outras, influenciam-se e se condicionam recipro­camente . Não existe "dom simbólico" sem clivagem, e a capacidade verbal é potencialmente portadora de fetichismo (nem que seja o dos próprios símbolos), assim como de psicose (seja ela suturada).

Entretanto, as diversas estruturas psíquicas são diversamente dominadas por esse processo de negatividade. Se a /oraclusão (Ver­werfuizg) vencesse ·a denegação, a trama simbólica desmoronaria, apagando a própria realidade: é a economia da psicose. O melan­cólico que pode chegar até a foraclusão (psicose melancólica) carac­teriza-se, no desenvolvimento benigno da doença, por uma recusa sobre a denegação. Os substratos semióticos (representantes afetivos e pulsionais da perda e da castração) subjacentes aos signos lin­güísticos são recusados, e o valor íntrapsíquico destes últimos, de fazer sentido para o sujeito, em conseqüência, é aniquilado. O re­sultado disto é que as lembranças traumáticas (a perda de um pa­rente querido na infância, um golpe mais recente) não são recalca·

11 Cf. S. Freud, " Die Verneinung" (A denegação) (1925), in Révue Française de l'sychanalyse. Paris, 1934, VII, n.• 2, pp. 174-177 . Tradução comparada in Lc Coq-Hérott, n." 8: S. E., t. XIX, pp . 2JJ-2J9; G . W . , t . XIV, pp . 11-15 . tz Cf . "Die Vemeinung'' (A denegação), tradução comparada in Le Coq-Hé· ron, n.• 8, p . ]J . 13 lbid . ,. lbid .

50 VIDA E MORTE DA PALAVRA

dos mas constantemente evocados, a recusa da denegação impe-'

dindo o trabalho do recalcamento, ou pelo menos sua parte repre-sentativa . De tal forma que essa evocação, essa representação do recalcado, não chega a uma elaboração simbólica da perda, pois os signos são inaptos para captar as inscrições primárias intrapsíquicas da perda e para liquidá-la por essa mesma elaboração: pelo wntrá­rio, eles se repetem, impotentes. O deprimido sabe que os seus humores o determinam inteiramente, mas ele não os deixa passar no seu discurso. Ele sabe que sofre por estar separado do seu invólucro narcísico materno, mas não deixa de manter a sua onipo­tência sobre esse inferno que não deve perder. Sabe que sua mãe . não tem pênis, ao mesmo tempo em que o faz aparecer não somente nos seus devaneios, mas também no seu discurso "liberado", "im­pudico", de fato neutro, entrando em competição, em geral mortal, com esse poder fálico.

No nível do signo, a clivagem separa o significante tanto do referente quanto das inscrições pulsionais (semióticas) e desvaloriza todos os três .

No nível do narcisismo, a clivagem conserva a onipotência ao mesmo tempo que a destrutividade e a angústia de aniquilamento .

No nivel do desejo edipiano, ela oscila entre o meio da cas­tração e o fantasma de onipotência fálica pela mãe assim como . por si mesmo.

Em todo lugar a recusa opera clivagens c desvitaliza tanto as representações quanto os comportamentos.

Contudo contrariamente ao psicótico, o deprimido conserva um significa~te paterno desmentido, diminuído, ambíguo, desvalori­zado, e entretanto persistente até o aparecimento da assimbolia. An­tes que essa mortalha o envolva, arrastando o pai e o indivíduo na solidão do mutismo, o deprimido não perde o uso dos s!gnos. Ele os conserva, mas absurdos, retardados, e prestes a se apagarem, em razão da clivagem introduzida até o próprio signo. Pois, em vez de ligar o afeto provocado pela perda, o signo deprimido desmente tanto o afeto quanto o significante, confessando assim que o sujeito deprimido ficou prisioneiro do objeto não-perdido (da Coisa) .

A perversidade afetiva do depressivo

Se a recusa do significante no depressivo lembra o mecanismo da perversão, .: ·.: observações se impõem:

SOL NEGRO 51

Inicialmente, na depressão, a recusa tem um poder superior ao da recusa perversa, que atinge a própria identicúzde subietiva e não somente a identidade sexual posta em causa pela inversão (homosse­xuaHdade) ou pela perversão (fetichismo, exibicionismo etc.). A recusa aniquila até as introjeções do depressivo e lhe deixa o sen· timento de não ter valor, de ser "vazio". Deprecian<Jo-se e se des­truindo, ele consome toda possibilidade de objeto, o que também é um meio desviado de preservá-lo ... em outro lugar, intocável. Os únicos traços da objetalidade que o depressivo conserva são os afe· tos. O afeto é o objeto parcial do depressivo: a sua "perversão", no sentido de uma droga que lhe permite assegurar uma homeostase por esse domínio não-verbal, não-nomeável (e por isto mesmo in­tocável e todo poderoso) sobre uma Coisa não-objetai. Assim o afeto depressivo - e s:ta verbalização nas curas, assim como nas obras de arte - é a panóplia perversa do depressivo, sua fonte de prazer ambíguo, que preenche o vazio e repele a morte, preservando o in­divíduo tanto do suicídio quanto do acesso psicótico.

Paralelamente, aparecem nessa ótica as diversas perversões, como a outra face da recusa depressiva. Ambas - depressão e perversão -, segundo Melanie Klein, evitam que ele. elabore a ''posição depressiva" .1s Contudo, as inversões e perversões pa­recem levadas por uma recusa que não atinge a identidade subje­tiva, ao mesmo tempo em que perturba a identidade sexual, e que dá lugar para a criação (comparável a uma produção ficcional) de uma homeostase libidinal narcísica, recorrendo ao auto-erotismo, à homossexualidade, ao fetichismo, ao exibicionismo etc. Esses atos e relações com objetos parciais preservam o sujeito e o seu objeto de uma destruição total e proporcionam, com a homeostase narcísica, uma vitalidade que contraria Tanatos. A depressão é assim colocada entre parênteses, mas ao preço de uma dependência, em geral vivida com(} atroz, em relação ao teatro perverso onde se desenrolam os objetos e as. relações onipotentes que evitam o confronto com a

11 C f. M. Mahler, On H uman Symbiosis and t!Je Vicissitudes o f I dentífication (Sobre a Simbiose Humana ç as Vicissitudes da Identificação), vot. I, Nova York, International Univcrsity Press, 1968; Joycc Mac Dougall, Jdentifications, Neoneeds and Neosexualities (Identificações, novas necessidades c neossexua· !idades) in Jnternational fournul of Psyclto-Analysis (Revista Internacional de Psicanálise), \968, 67, pp. 19-31 analisou a recusa no teatro do perverso.

50 VIDA E MORTE DA PALAVRA

dos mas constantemente evocados, a recusa da denegação impe-'

dindo o trabalho do recalcamento, ou pelo menos sua parte repre-sentativa . De tal forma que essa evocação, essa representação do recalcado, não chega a uma elaboração simbólica da perda, pois os signos são inaptos para captar as inscrições primárias intrapsíquicas da perda e para liquidá-la por essa mesma elaboração: pelo wntrá­rio, eles se repetem, impotentes. O deprimido sabe que os seus humores o determinam inteiramente, mas ele não os deixa passar no seu discurso. Ele sabe que sofre por estar separado do seu invólucro narcísico materno, mas não deixa de manter a sua onipo­tência sobre esse inferno que não deve perder. Sabe que sua mãe . não tem pênis, ao mesmo tempo em que o faz aparecer não somente nos seus devaneios, mas também no seu discurso "liberado", "im­pudico", de fato neutro, entrando em competição, em geral mortal, com esse poder fálico.

No nível do signo, a clivagem separa o significante tanto do referente quanto das inscrições pulsionais (semióticas) e desvaloriza todos os três .

No nível do narcisismo, a clivagem conserva a onipotência ao mesmo tempo que a destrutividade e a angústia de aniquilamento .

No nivel do desejo edipiano, ela oscila entre o meio da cas­tração e o fantasma de onipotência fálica pela mãe assim como . por si mesmo.

Em todo lugar a recusa opera clivagens c desvitaliza tanto as representações quanto os comportamentos.

Contudo contrariamente ao psicótico, o deprimido conserva um significa~te paterno desmentido, diminuído, ambíguo, desvalori­zado, e entretanto persistente até o aparecimento da assimbolia. An­tes que essa mortalha o envolva, arrastando o pai e o indivíduo na solidão do mutismo, o deprimido não perde o uso dos s!gnos. Ele os conserva, mas absurdos, retardados, e prestes a se apagarem, em razão da clivagem introduzida até o próprio signo. Pois, em vez de ligar o afeto provocado pela perda, o signo deprimido desmente tanto o afeto quanto o significante, confessando assim que o sujeito deprimido ficou prisioneiro do objeto não-perdido (da Coisa) .

A perversidade afetiva do depressivo

Se a recusa do significante no depressivo lembra o mecanismo da perversão, .: ·.: observações se impõem:

SOL NEGRO 51

Inicialmente, na depressão, a recusa tem um poder superior ao da recusa perversa, que atinge a própria identicúzde subietiva e não somente a identidade sexual posta em causa pela inversão (homosse­xuaHdade) ou pela perversão (fetichismo, exibicionismo etc.). A recusa aniquila até as introjeções do depressivo e lhe deixa o sen· timento de não ter valor, de ser "vazio". Deprecian<Jo-se e se des­truindo, ele consome toda possibilidade de objeto, o que também é um meio desviado de preservá-lo ... em outro lugar, intocável. Os únicos traços da objetalidade que o depressivo conserva são os afe· tos. O afeto é o objeto parcial do depressivo: a sua "perversão", no sentido de uma droga que lhe permite assegurar uma homeostase por esse domínio não-verbal, não-nomeável (e por isto mesmo in­tocável e todo poderoso) sobre uma Coisa não-objetai. Assim o afeto depressivo - e s:ta verbalização nas curas, assim como nas obras de arte - é a panóplia perversa do depressivo, sua fonte de prazer ambíguo, que preenche o vazio e repele a morte, preservando o in­divíduo tanto do suicídio quanto do acesso psicótico.

Paralelamente, aparecem nessa ótica as diversas perversões, como a outra face da recusa depressiva. Ambas - depressão e perversão -, segundo Melanie Klein, evitam que ele. elabore a ''posição depressiva" .1s Contudo, as inversões e perversões pa­recem levadas por uma recusa que não atinge a identidade subje­tiva, ao mesmo tempo em que perturba a identidade sexual, e que dá lugar para a criação (comparável a uma produção ficcional) de uma homeostase libidinal narcísica, recorrendo ao auto-erotismo, à homossexualidade, ao fetichismo, ao exibicionismo etc. Esses atos e relações com objetos parciais preservam o sujeito e o seu objeto de uma destruição total e proporcionam, com a homeostase narcísica, uma vitalidade que contraria Tanatos. A depressão é assim colocada entre parênteses, mas ao preço de uma dependência, em geral vivida com(} atroz, em relação ao teatro perverso onde se desenrolam os objetos e as. relações onipotentes que evitam o confronto com a

11 C f. M. Mahler, On H uman Symbiosis and t!Je Vicissitudes o f I dentífication (Sobre a Simbiose Humana ç as Vicissitudes da Identificação), vot. I, Nova York, International Univcrsity Press, 1968; Joycc Mac Dougall, Jdentifications, Neoneeds and Neosexualities (Identificações, novas necessidades c neossexua· !idades) in Jnternational fournul of Psyclto-Analysis (Revista Internacional de Psicanálise), \968, 67, pp. 19-31 analisou a recusa no teatro do perverso.

52 VIDA E MORTE DA PALA VltA

castração e resg-.1ardam da dor da separação pré-edipiana. A fra­queza do fantasma que é repelido pela atuação dá testemunho da permanência da recusa do significante ao nível do funcionamento mental nas perversões . Este traço vai ao encontro da inconsistência do simbólico vivida pelo depressivo, assim como da excitação ma­níaca por atos que só se tomam desenfreados se forem considerados insignificantes.

A alternância de comportamentos perversos e depressivos no aspecto neurótico do conjunto melancólico-depressivo é freqüente. Ela assinala a articulação das duas estruturas em torno de um mes­mo mecanismo (o da recusa), com intensidades diversas, recaindo sobre diferentes elementos da estrutura subjetiva. A recusa perversa não atingiu o auto-erotismo e o narcisismo. Por conseguinte, estes podem se mobilizar para fazer barreira ao vazio e ao ódio . A recusa depressiva, em compensação, atinge até as possibilidades de repre­sentação de uma coerência narcísica e, em conseqüência, priva o sujeito de sua jubilação auto-erótica, de sua "assunção jubilatória". Somente permanece, então, a dominação masoquista dos recônditos narcísicos por um superego sem mediação, que condena o afeto a continuar sem objeto, mesmo que parcial, e a só se representar para a consciência como viúvo, enlutado, doloroso. Essa dor afetiva, resultante da recusa, é um sentido sem significação, mas é utilizada como tela contra a morte. Quando esta tela também cede, resta somente, como único encadeamento ou ato possível, o ato de r..tp­tura, de des-encadeamento, impondo o não-sentido da morte: desafio para os outros, reencontrados assim a título de rejeitados, ou então consolidação narcísica no sujeito que se faz reconhecer, por uma atuação fatal, como tendo sempre estado fora do pacto simbólico parenta!, isto ê, lá onde a recusa (parenta! ou a sua própria) o havia bloqueado.

Assim, a recusa da denegação, que constatamos no centro do evitamento da " posição depressiva" no deprimido, não dá, neces­sariamente, uma coloração perversa a essa afecção. O deprimido é um perverso que se ignora: ele tem mesmo interesse em se ignorar, de tanto que suas atuações, que nenhuma simbolização parece satis­fazer, podem ser paroxísticas. E verdade que as delícias do sofri­mento podem conduzir a um gozo triste que vários monges conhe­ceram e que Dostoievski, mais próximo de nós, exalta.

Somente na vertente maníaca, própria às formas bipolares da depressão, é que a recusa se torna mais vigorosa e aparece de forma plena. Certamente e la sempre esteve ali, mas em segredo: compa·

SOL .NEGRO Sl

nheira sorrateira e consoladora do pesar, a recusa da denegação construía um sentido dubitativo e fazia da linguagem sombria uma aparência incredível . Ela assinalava su.a existência no discurso des­ligado do deprimido, que dispõe de um artifício do qual não sabe se servir: desconfiem da criança muito bem comportada e da água que dorme ... No maníaco, contudo, a recusa ultrapassa a dupla renegação na qual se apóia a tristeza: ela entra em cena e se torna o instrumento de uma construção que protege contra a perda. Longe de se contentar com construir uma falsa linguagem, doravante a recusa ar{{uiteta panóplias variadas de objetos eróticos substitutivos: são conhecidas a erotomania dos viúvos ou das viúvas, as com­pensações orgíacas dos ferimentos narcísicos ligadas às doenças ou enfermidades etc . A elação estética, elevando-se pelo ideal e pelo artifício, acima da construção ordinária própria às normas da lín­gua natural e do código social vulgarizado, pode participar desse movimento maníaco . Que ela continue nesse nível e a obra aparece em sua falsidade: sucedância, cópia ou decalque. Pelo contrário, a obra de arte que assegura um renascimento do seu autor e do seu destinatário é aquela que consegue integrar na língua artificial que ela propõe (novo estilo, nova composição, imaginação surpreen~ente) as emoções não-nomeadas de uin ego onipotente que o uso social e lingüístico corrente sempre deixa um pouco enlutado ou órfão. Assim, tal ficção é, se não um antidepressivo, pelo menos uma so­brevivêncja, uma ressurreição.

Arbitrária ou vazio

O desesperado torna-se um hiperlúcido por anulação da dene­gação. Uma . seqüência significante, forçosamente arbitrária, parecer­lhe-á pesadamente, violentamente arbitrária: ele a achará absurda, ela não terá sentido: Nenhuma palavra, nenhum objeto da vida será !Juscetível de encontrar um encadeamento coerente, ao mesmo tempo que adequado, para um sentido ou para um referente.

A seqüência arbitrária recebida pelo depressivo como absurda é co-extensiva a uma perda da referência. O deprimido não fala de nada, não tem nada do que falar: aglutinado à Coisa (Res), ele não tem objet,os. Esta Coisa total e não-significável é insignificante: é um Nada, o seu· Nada, a Morte. O abismo que se instala ~ntre o sujeito c os objetos significáveis traduz-se por uma impossibilidade de fazer encadeamentos significantes . Mas tal exílio revela um abis­mo no próprio sujeito. Por um lado, os objetos e os significantes,

52 VIDA E MORTE DA PALA VltA

castração e resg-.1ardam da dor da separação pré-edipiana. A fra­queza do fantasma que é repelido pela atuação dá testemunho da permanência da recusa do significante ao nível do funcionamento mental nas perversões . Este traço vai ao encontro da inconsistência do simbólico vivida pelo depressivo, assim como da excitação ma­níaca por atos que só se tomam desenfreados se forem considerados insignificantes.

A alternância de comportamentos perversos e depressivos no aspecto neurótico do conjunto melancólico-depressivo é freqüente. Ela assinala a articulação das duas estruturas em torno de um mes­mo mecanismo (o da recusa), com intensidades diversas, recaindo sobre diferentes elementos da estrutura subjetiva. A recusa perversa não atingiu o auto-erotismo e o narcisismo. Por conseguinte, estes podem se mobilizar para fazer barreira ao vazio e ao ódio . A recusa depressiva, em compensação, atinge até as possibilidades de repre­sentação de uma coerência narcísica e, em conseqüência, priva o sujeito de sua jubilação auto-erótica, de sua "assunção jubilatória". Somente permanece, então, a dominação masoquista dos recônditos narcísicos por um superego sem mediação, que condena o afeto a continuar sem objeto, mesmo que parcial, e a só se representar para a consciência como viúvo, enlutado, doloroso. Essa dor afetiva, resultante da recusa, é um sentido sem significação, mas é utilizada como tela contra a morte. Quando esta tela também cede, resta somente, como único encadeamento ou ato possível, o ato de r..tp­tura, de des-encadeamento, impondo o não-sentido da morte: desafio para os outros, reencontrados assim a título de rejeitados, ou então consolidação narcísica no sujeito que se faz reconhecer, por uma atuação fatal, como tendo sempre estado fora do pacto simbólico parenta!, isto ê, lá onde a recusa (parenta! ou a sua própria) o havia bloqueado.

Assim, a recusa da denegação, que constatamos no centro do evitamento da " posição depressiva" no deprimido, não dá, neces­sariamente, uma coloração perversa a essa afecção. O deprimido é um perverso que se ignora: ele tem mesmo interesse em se ignorar, de tanto que suas atuações, que nenhuma simbolização parece satis­fazer, podem ser paroxísticas. E verdade que as delícias do sofri­mento podem conduzir a um gozo triste que vários monges conhe­ceram e que Dostoievski, mais próximo de nós, exalta.

Somente na vertente maníaca, própria às formas bipolares da depressão, é que a recusa se torna mais vigorosa e aparece de forma plena. Certamente e la sempre esteve ali, mas em segredo: compa·

SOL .NEGRO Sl

nheira sorrateira e consoladora do pesar, a recusa da denegação construía um sentido dubitativo e fazia da linguagem sombria uma aparência incredível . Ela assinalava su.a existência no discurso des­ligado do deprimido, que dispõe de um artifício do qual não sabe se servir: desconfiem da criança muito bem comportada e da água que dorme ... No maníaco, contudo, a recusa ultrapassa a dupla renegação na qual se apóia a tristeza: ela entra em cena e se torna o instrumento de uma construção que protege contra a perda. Longe de se contentar com construir uma falsa linguagem, doravante a recusa ar{{uiteta panóplias variadas de objetos eróticos substitutivos: são conhecidas a erotomania dos viúvos ou das viúvas, as com­pensações orgíacas dos ferimentos narcísicos ligadas às doenças ou enfermidades etc . A elação estética, elevando-se pelo ideal e pelo artifício, acima da construção ordinária própria às normas da lín­gua natural e do código social vulgarizado, pode participar desse movimento maníaco . Que ela continue nesse nível e a obra aparece em sua falsidade: sucedância, cópia ou decalque. Pelo contrário, a obra de arte que assegura um renascimento do seu autor e do seu destinatário é aquela que consegue integrar na língua artificial que ela propõe (novo estilo, nova composição, imaginação surpreen~ente) as emoções não-nomeadas de uin ego onipotente que o uso social e lingüístico corrente sempre deixa um pouco enlutado ou órfão. Assim, tal ficção é, se não um antidepressivo, pelo menos uma so­brevivêncja, uma ressurreição.

Arbitrária ou vazio

O desesperado torna-se um hiperlúcido por anulação da dene­gação. Uma . seqüência significante, forçosamente arbitrária, parecer­lhe-á pesadamente, violentamente arbitrária: ele a achará absurda, ela não terá sentido: Nenhuma palavra, nenhum objeto da vida será !Juscetível de encontrar um encadeamento coerente, ao mesmo tempo que adequado, para um sentido ou para um referente.

A seqüência arbitrária recebida pelo depressivo como absurda é co-extensiva a uma perda da referência. O deprimido não fala de nada, não tem nada do que falar: aglutinado à Coisa (Res), ele não tem objet,os. Esta Coisa total e não-significável é insignificante: é um Nada, o seu· Nada, a Morte. O abismo que se instala ~ntre o sujeito c os objetos significáveis traduz-se por uma impossibilidade de fazer encadeamentos significantes . Mas tal exílio revela um abis­mo no próprio sujeito. Por um lado, os objetos e os significantes,

54 VlDA E MORTE DA PALAVRA

denegados na medida em q:re são identificados com a vida, adqui­rem o valor do não-sentido: a linguagem e a vida não têm sentido. Por outro, pela clivagem, um valor intenso e insensato é restituído à Coisa, ao Nada: ao não-significável e à morte. O discurso depri­mido, construído com signos absurdos, com seqüências retardadas, deslocadas, paradas, traduz o desmoronamento do sentido no não­nomeáyel em que mergulha, inacessível e delicioso, em proveito do valor afetivo fixado na Coisa.

A recusa da denegação priva os significantes da ling:.~agem de sua função de fazer sentido para o sujeito. Ao mesmo tempo que têm uma significação em si, esses significantes são sentidos como vazios .para o sujeito. Isto se deve ao fato de que eles não estão ligados aos traços semióticos (representantes pulsionais e represen­tações de afetos). Como resultado, deixadas livres, essas inscrições psíquicas arcaicas podem ser utilizadas na identificação projetiva como quase-objetos. Elas dão lugar a atuações que substituem a lin­guagem no depressivo.16 A quebra do humor, até o entorpecimento que invade o corpo, é um retorno da atuação sobre o próprio sujeito: o humor massacrante é u.m ato que não passa em razão da recusa, que tem por objeto o s!gnificante. Por outro lado, a atividade de­fensiva febril, que camufla a tristeza inconsolável de tantos depri· midos, antes de e incluindo o assassinato e o suicídio, é uma pro­jeção dos resíduos da simbolização: sem lastro para os seus sentidos, pela recusa, seus atos são tratados como quase-objetos expulsos para o exterior, ou então voltados sobre si na maior indiferença de um sujeito, ele próprio anestesiado pela recusa.

A hipótese psicanalítica da recusa do significante no depressivo, que não exclui o recurso aos meios bioquímicas para remediar as carências neurológicas, reserva-se a possibilidade de reforçar as ca­pacidades ideatórias do sujeito. Analisando - isto é, dissolvendo ­o mecanismo da recusa, no qual o depressivo se imobilizou, a cura analítica pode operar um verdadeiro "transplante" de potencial sim­bólico e pôr à disposição do sujeito estratégias discursivas mistas, que operam no cru.zamento das inscrições afetivas e das inscrições lingüísticas, do semiótico e do simbólico. Tais estratégias são ver-

15 Cf. infra, cap. 111, "Matar ou se matar", p . 91 sq., e "Uma Virgem mãe", p . 99 sq .

SOL NBGRU 55

dadeíras reservas contradepressoras, que a interpretação maximal no seio da análise põe à disposição do paciente depressivo. Para­lelamente, é requerida uma grande empatia entre o analista c o paciente deprimido. A partir dela, as vogais, consoantes ou sílabas podem ser extraídas da cadeia significante e recompostas segundo o sentido global do discurso, que a identificação do analista com ó paciente permitiu-lhe detectar. E um registro infra- e trans-lingüís­tico que, em geral, se deve levar em consideração, reportando-o ao "segredo" e ao afeto não-nomeado do depressivo.

Língua morta e Coisa enterrada viva

O desabamento espetacular do sentido no depressivo - e, no extremo, do sentido da vida - nos deixa portanto pressupor que ele tem dificuldades de integrar a cadeia significante universal, a linguage·m. No caso ideal, o ser falante está perfeHamente unido ao seu discurso: a palavra não é a nossa "segunda natureza"? Pelo contrário, o dizer do depressivo, para ele, é como uma pele estra­nha: o melancólico é um estrangeiro na sua Hngua materna. Ele perdeu o sentido - o valor - da sua língua materna, por não poder perder sua mãe. A língua morta que ele fala e que anuncia o seu suicídio esconde uma Coisa enterrada viva. Mas esta, ele não a traduzirá, para não traí-la: ela permanecerá murada na "crip­fa"17 do afeto indizível, captada analmente, sem saída.

Uma padente sujeita a freqQentes acessos de melancolia veio à nossa prinieira entrevista com um vestido chemisíer de cor viva, no qual estava inscrita, inúmeras vezes, a palavra "casa". Ela me falava de suas preocupações quanto ao seu apartamento, dos seus sonhos de edifícios construídos com ma­teriais heteróclitos e de uma casa africana, lugar paradisíaco de sua infância, perdida pela família em circunstâncias dramá­ticas - Você está de luto de uma casa - disse-lhe.

17 N. Abraham e M. Torok publicaram numerosas pesquisas sobre a introje· Çiío e a formação de "criptas" psíquicas no luto, na depressão c nas estruturas vizinhas. Cf., entre outros, N. Abraham, L'Ecorce et le Noyau (A casca e c caroço), Aubier, Paris, 1978. Nossa interpretação, diferente dos seus procedi­n1entos, parte da mesma observação clínica de um "vazio psíquico" no depri· mido, que, por outro lado, André Green notou .

54 VlDA E MORTE DA PALAVRA

denegados na medida em q:re são identificados com a vida, adqui­rem o valor do não-sentido: a linguagem e a vida não têm sentido. Por outro, pela clivagem, um valor intenso e insensato é restituído à Coisa, ao Nada: ao não-significável e à morte. O discurso depri­mido, construído com signos absurdos, com seqüências retardadas, deslocadas, paradas, traduz o desmoronamento do sentido no não­nomeáyel em que mergulha, inacessível e delicioso, em proveito do valor afetivo fixado na Coisa.

A recusa da denegação priva os significantes da ling:.~agem de sua função de fazer sentido para o sujeito. Ao mesmo tempo que têm uma significação em si, esses significantes são sentidos como vazios .para o sujeito. Isto se deve ao fato de que eles não estão ligados aos traços semióticos (representantes pulsionais e represen­tações de afetos). Como resultado, deixadas livres, essas inscrições psíquicas arcaicas podem ser utilizadas na identificação projetiva como quase-objetos. Elas dão lugar a atuações que substituem a lin­guagem no depressivo.16 A quebra do humor, até o entorpecimento que invade o corpo, é um retorno da atuação sobre o próprio sujeito: o humor massacrante é u.m ato que não passa em razão da recusa, que tem por objeto o s!gnificante. Por outro lado, a atividade de­fensiva febril, que camufla a tristeza inconsolável de tantos depri· midos, antes de e incluindo o assassinato e o suicídio, é uma pro­jeção dos resíduos da simbolização: sem lastro para os seus sentidos, pela recusa, seus atos são tratados como quase-objetos expulsos para o exterior, ou então voltados sobre si na maior indiferença de um sujeito, ele próprio anestesiado pela recusa.

A hipótese psicanalítica da recusa do significante no depressivo, que não exclui o recurso aos meios bioquímicas para remediar as carências neurológicas, reserva-se a possibilidade de reforçar as ca­pacidades ideatórias do sujeito. Analisando - isto é, dissolvendo ­o mecanismo da recusa, no qual o depressivo se imobilizou, a cura analítica pode operar um verdadeiro "transplante" de potencial sim­bólico e pôr à disposição do sujeito estratégias discursivas mistas, que operam no cru.zamento das inscrições afetivas e das inscrições lingüísticas, do semiótico e do simbólico. Tais estratégias são ver-

15 Cf. infra, cap. 111, "Matar ou se matar", p . 91 sq., e "Uma Virgem mãe", p . 99 sq .

SOL NBGRU 55

dadeíras reservas contradepressoras, que a interpretação maximal no seio da análise põe à disposição do paciente depressivo. Para­lelamente, é requerida uma grande empatia entre o analista c o paciente deprimido. A partir dela, as vogais, consoantes ou sílabas podem ser extraídas da cadeia significante e recompostas segundo o sentido global do discurso, que a identificação do analista com ó paciente permitiu-lhe detectar. E um registro infra- e trans-lingüís­tico que, em geral, se deve levar em consideração, reportando-o ao "segredo" e ao afeto não-nomeado do depressivo.

Língua morta e Coisa enterrada viva

O desabamento espetacular do sentido no depressivo - e, no extremo, do sentido da vida - nos deixa portanto pressupor que ele tem dificuldades de integrar a cadeia significante universal, a linguage·m. No caso ideal, o ser falante está perfeHamente unido ao seu discurso: a palavra não é a nossa "segunda natureza"? Pelo contrário, o dizer do depressivo, para ele, é como uma pele estra­nha: o melancólico é um estrangeiro na sua Hngua materna. Ele perdeu o sentido - o valor - da sua língua materna, por não poder perder sua mãe. A língua morta que ele fala e que anuncia o seu suicídio esconde uma Coisa enterrada viva. Mas esta, ele não a traduzirá, para não traí-la: ela permanecerá murada na "crip­fa"17 do afeto indizível, captada analmente, sem saída.

Uma padente sujeita a freqQentes acessos de melancolia veio à nossa prinieira entrevista com um vestido chemisíer de cor viva, no qual estava inscrita, inúmeras vezes, a palavra "casa". Ela me falava de suas preocupações quanto ao seu apartamento, dos seus sonhos de edifícios construídos com ma­teriais heteróclitos e de uma casa africana, lugar paradisíaco de sua infância, perdida pela família em circunstâncias dramá­ticas - Você está de luto de uma casa - disse-lhe.

17 N. Abraham e M. Torok publicaram numerosas pesquisas sobre a introje· Çiío e a formação de "criptas" psíquicas no luto, na depressão c nas estruturas vizinhas. Cf., entre outros, N. Abraham, L'Ecorce et le Noyau (A casca e c caroço), Aubier, Paris, 1978. Nossa interpretação, diferente dos seus procedi­n1entos, parte da mesma observação clínica de um "vazio psíquico" no depri· mido, que, por outro lado, André Green notou .

S6 VIDA .la MORTE IM PALAVJlA

- Casa? - responde ela -, não compreendo o que a senhora quer dizer, as palavras me faltam!

O seu discurso é volúvel, rápido, febril , mas tenso, numa excitação fria e abstrata. Ela não pára de se servir da lingua­gem: " Minha profissão de professora - diz ela - obriga-me a falar sem parar, mas eu explico a vida dos outros, não estou envolvida nisso; e mesmo quando falo da minha, é como se falasse de um estrangeiro. - O objeto da sua tristezà ela o car­rega inscrito na doi' de sua pele e de sua carne, c a~é na seda do seu "chemisier" que cola em seu corpo. Contudo, ele não passa na sua vida mental, ele foge da sua palavra, ou melhor, a palavra de Anne abandonou o pesar e a sua Coisa para construir a sua lógica e a s:~a coerência, desalojada, diva da. Como se foge de um sofrimento, jogando-se ''de corpo intei­ro" numa ocupação tão vitoriosa quanto insatisfatória .

Esse abismo que separa a linguagem da experiência afetiva no depressivo faz pensar num traumatismo narcísico f-íecoce. Ele po­deria ter derivado em psicose, mas uma defesa do superego, na rea­lidade, o estabilizou. Uma inteligência pouco comum e a identifi­cação secundária com ·uma instância ·paterna ou simbólica contri­buem para essa estabilização. Assim, o depressivo é um obervador lúcido, velando noite e dia por suas desgraças e inquietações, ~ssa obsessão inspetora deixando-o perpetuamente dissociado de sua vida afetiva no decorrer dos períodos "normais" que separam os acessos melancólicos. Entretanto, ele dá a impressão de que sua armad:tra simbólica não está integrada, que sua carapaça defensiva não está introjetada . A palavra do depressivo é uma máscara - bela facha· da, tàlhada numa "língua estrangeira".

O t om que faz a canção

Entretanto, se a palavra depressiva evita a significação frásica, o seu sentido não se calou completamente . As vezes ele se esquiva (~orno veremos no exemplo que se segue) no tom da voz que é pre· ctso saber entender, para nele decifrar o sentido do afeto . Traba­lhos sobre a modulação tonal da palavra deprimida nos ensinam e nos ensinarão muito sobre certos depressivos, que, no discurso, se mostram indiferentes, mas que, pelo contrário, guardam emotividade forte e variada, escondida na entonação; ou então sobre outros cujo "embotamento afetivo" é conduzid o até o registro tonal que

SOL .NEOilO 57

(paralelamente à sequencia frásica quebrada em "elipses não-reco­bráveis") permanece plano e sobrecarregado de silêncios. 18

Em cura analítica, essa importância do registro supra-segmen­ta! da palavra (entoação, ritmo) deveria conduzir o analista, por um lado, a interpretar a voz e, por outro, a desarticular a cadeia signi­ficante, vulgarizada e desvitalizada, para dela extrair o sentido es· condido infra-significante do discurso depressivo, que se dissimula nos fragmentos de lexemas, em sílabas ou grupos fônicos, semanti­zados, entretanto, de forma estranha.

Na análise, Anne se queixa de estados de abatimento, de desespero, de perda de gosto pela vida, que em geral a con· duzem a se retirar dias inteiros em sua cama , recusando-se a falar e a comer {podendo a anorexia se alternar com a buli­mia), pronta para engolir o tubo de soníferos, sem, contudo, jamais ter ultrapassado o limite fatídico. Entretanto; essa inte· lectual, perfeitamente inserida numa equipe de antropólogos, sempre desvaloriza a sua profissão e as suas realizações, dizen· do-se ''incapaz", "inútil", "indigna" etc . Bem no começo da cura, analisamos a relação conflitual que ela mantém com sua mãe, para constatar que a paciente operou uma verdadeira de­glutinação do objeto materno odiado, mas conservado assim no

18 Sobre este segundo aspecto dn voz depressiva desprovida de agitação e de unsieclade, constatamos uma baixa intensidade, uma monotonia melódica e certa rntí qualidade do timbre, poucos harmônicos. Assim M. Hamilton, A Rating Ecale in Depression (Escala de Valores na Depressão), in Journal o/ Neurology, Neuro:.urgery and P5ychiatry (Revista de Neurologia, Neurocirurgia c Psiquia­tria), n.• 23, 1960, pp. 56-62; P . Hardy, R . Jouvcnt, D. Widlõcher, Speech and Psyc:hopathology (Fala e Psicopatologia) in Language and Speech (Língua e Fala), vol. XXVIIJ, part. 1, 1985, pp. 57·79. Estes autores assinalam, em wbstância, um embotamento prosódico nos retardados. Em compensação, em clínica psicanalítica, ouvimos sobretudo o paciente depressivo da zona mais r,eurótica do que psicótica do conjunto melancólico-depressivo c nos períodos que se sucedem às crises pesadas em que, precisamente, a transferência é pos· ~ íve l; constatamos então um certo jogo com a monotonia e com as baixas fre· qüêndas e intensidades, mas também uma concentração da atenção nos valores vocais. Essa atribuição de uma significãncia ao registro supra-segmenta! parece ' 'salvar" o depressivo de um deslnveslímcnto total da palavra c conferir a certos fragmentos sonoros (sílabas ou grupos siltíbicos) um sentido afetivo de outro modo apagado da cadeia significante (como veremos no exemplo que se segue) . f.ssas observações completam, sem forçosamente contradízê-las, as observações psiquiátricas sobre a voz depressiva embotada.

S6 VIDA .la MORTE IM PALAVJlA

- Casa? - responde ela -, não compreendo o que a senhora quer dizer, as palavras me faltam!

O seu discurso é volúvel, rápido, febril , mas tenso, numa excitação fria e abstrata. Ela não pára de se servir da lingua­gem: " Minha profissão de professora - diz ela - obriga-me a falar sem parar, mas eu explico a vida dos outros, não estou envolvida nisso; e mesmo quando falo da minha, é como se falasse de um estrangeiro. - O objeto da sua tristezà ela o car­rega inscrito na doi' de sua pele e de sua carne, c a~é na seda do seu "chemisier" que cola em seu corpo. Contudo, ele não passa na sua vida mental, ele foge da sua palavra, ou melhor, a palavra de Anne abandonou o pesar e a sua Coisa para construir a sua lógica e a s:~a coerência, desalojada, diva da. Como se foge de um sofrimento, jogando-se ''de corpo intei­ro" numa ocupação tão vitoriosa quanto insatisfatória .

Esse abismo que separa a linguagem da experiência afetiva no depressivo faz pensar num traumatismo narcísico f-íecoce. Ele po­deria ter derivado em psicose, mas uma defesa do superego, na rea­lidade, o estabilizou. Uma inteligência pouco comum e a identifi­cação secundária com ·uma instância ·paterna ou simbólica contri­buem para essa estabilização. Assim, o depressivo é um obervador lúcido, velando noite e dia por suas desgraças e inquietações, ~ssa obsessão inspetora deixando-o perpetuamente dissociado de sua vida afetiva no decorrer dos períodos "normais" que separam os acessos melancólicos. Entretanto, ele dá a impressão de que sua armad:tra simbólica não está integrada, que sua carapaça defensiva não está introjetada . A palavra do depressivo é uma máscara - bela facha· da, tàlhada numa "língua estrangeira".

O t om que faz a canção

Entretanto, se a palavra depressiva evita a significação frásica, o seu sentido não se calou completamente . As vezes ele se esquiva (~orno veremos no exemplo que se segue) no tom da voz que é pre· ctso saber entender, para nele decifrar o sentido do afeto . Traba­lhos sobre a modulação tonal da palavra deprimida nos ensinam e nos ensinarão muito sobre certos depressivos, que, no discurso, se mostram indiferentes, mas que, pelo contrário, guardam emotividade forte e variada, escondida na entonação; ou então sobre outros cujo "embotamento afetivo" é conduzid o até o registro tonal que

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(paralelamente à sequencia frásica quebrada em "elipses não-reco­bráveis") permanece plano e sobrecarregado de silêncios. 18

Em cura analítica, essa importância do registro supra-segmen­ta! da palavra (entoação, ritmo) deveria conduzir o analista, por um lado, a interpretar a voz e, por outro, a desarticular a cadeia signi­ficante, vulgarizada e desvitalizada, para dela extrair o sentido es· condido infra-significante do discurso depressivo, que se dissimula nos fragmentos de lexemas, em sílabas ou grupos fônicos, semanti­zados, entretanto, de forma estranha.

Na análise, Anne se queixa de estados de abatimento, de desespero, de perda de gosto pela vida, que em geral a con· duzem a se retirar dias inteiros em sua cama , recusando-se a falar e a comer {podendo a anorexia se alternar com a buli­mia), pronta para engolir o tubo de soníferos, sem, contudo, jamais ter ultrapassado o limite fatídico. Entretanto; essa inte· lectual, perfeitamente inserida numa equipe de antropólogos, sempre desvaloriza a sua profissão e as suas realizações, dizen· do-se ''incapaz", "inútil", "indigna" etc . Bem no começo da cura, analisamos a relação conflitual que ela mantém com sua mãe, para constatar que a paciente operou uma verdadeira de­glutinação do objeto materno odiado, mas conservado assim no

18 Sobre este segundo aspecto dn voz depressiva desprovida de agitação e de unsieclade, constatamos uma baixa intensidade, uma monotonia melódica e certa rntí qualidade do timbre, poucos harmônicos. Assim M. Hamilton, A Rating Ecale in Depression (Escala de Valores na Depressão), in Journal o/ Neurology, Neuro:.urgery and P5ychiatry (Revista de Neurologia, Neurocirurgia c Psiquia­tria), n.• 23, 1960, pp. 56-62; P . Hardy, R . Jouvcnt, D. Widlõcher, Speech and Psyc:hopathology (Fala e Psicopatologia) in Language and Speech (Língua e Fala), vol. XXVIIJ, part. 1, 1985, pp. 57·79. Estes autores assinalam, em wbstância, um embotamento prosódico nos retardados. Em compensação, em clínica psicanalítica, ouvimos sobretudo o paciente depressivo da zona mais r,eurótica do que psicótica do conjunto melancólico-depressivo c nos períodos que se sucedem às crises pesadas em que, precisamente, a transferência é pos· ~ íve l; constatamos então um certo jogo com a monotonia e com as baixas fre· qüêndas e intensidades, mas também uma concentração da atenção nos valores vocais. Essa atribuição de uma significãncia ao registro supra-segmenta! parece ' 'salvar" o depressivo de um deslnveslímcnto total da palavra c conferir a certos fragmentos sonoros (sílabas ou grupos siltíbicos) um sentido afetivo de outro modo apagado da cadeia significante (como veremos no exemplo que se segue) . f.ssas observações completam, sem forçosamente contradízê-las, as observações psiquiátricas sobre a voz depressiva embotada.

58 VIDA E MORTE. DA PALAVJU

fundo dela mesma e tomado fonte de raiva contra si mesma e de sentimento de vazio interior. Contudo, eu tinha a impres­são, ou como diz Freud, a convicção contratransferencial, de que a troca verbal conduzia a uma racionalização dos sintomas, mas não à sua elaboração (Durcharbeitung). Anne confirmava mi­nha convicção: "Eu falo - dizia ela com freqüência - como à beira das palavras e tenho o sentimento de estar à beira da minha pele, mas o fundo do meu pesar permanece intocável."

Pude interpretar esses propósitos como recusa histérica da troca castradora comigo. Essa interpretação, entretanto, não me parecia suficiente, levando-se em conta a intensidade da queixa depressiva e da importância do silêncio que ora se ins­talava, ora f ragmentava o discurso de maneira "poét!ca", por momentos indecifráveis. Eu digo: ''A beira das palavras, mas no centro da voz, pois sua voz fica perturbada quando você me fala dessa tristeza incomunicável." Esta interpretação, cujo valor sedutor bem se compreende, pode ter , no caso de íJm paciente depressivo, o sentido de atravessar a aparência de­fensiva e vazia do significante lingüístico e de procurar o do­minio (Bemiichtigung) sobre o objeto arcaico (o pré-objeto, o Coisa) no registro das inscrições vocais. Ora, acontece que essa paciente, nos primeiros anos de sua vida, sofreu de doen­ças graves de pele e que, sem dúvida, foi privada tanto do con­tato com a pele da mãe quanto da identificação com n imagem do rosto matemo no espelho. Encadeio: "Não podendo tocar sua mãe, você se escondia debaixo de sua pele, à beira da pele'; e nesse esconderijo, você fechava o seu desejo e o seu ódio contra ela no som de sua voz, pois você ouvia a dela ao longe."

Estamos aqui nas regiões no narcisismo primário, onde se constitui a imagtm do tgo e onde, precisamente, a imagem do fut uro depressivo não chega a se consoHdar na representa­ção verbal . A razão disto é que o luto do objeto não é realizado nesta representação. Pelo contrário, o objeto está como que enterrado - e dominado - por afetos guardados de forma ciumenta e, eventualmente, em vocalizos. Penso que o ana­lista pode e deve penetrar até este .nível vocal do discurso, por sua interpretação, sem temer ser intruso. Dando um sentido aos afetos mantidos secretos por causa do domínio sobre o pré-objeto arcaico, a interpretação, ao mesmo tempo, reconhec(! esse afeto e também a linguagem secreta que o depressivo lhe

SOL NE010 S9

dá (aqui, a modulação vocal), abrindo-lhe uma via de passa­gem ao nível das palavras e dos processos secundários . Estes - ·portanto a linguagem -, até o momento considerados va­zios, pois cortados das inscrições afetivas e vocais, revitalizam­se e podem se tornar um espaço de desejo, isto é, de sentido para o sujeito·. ·

Um outro exemplo, extraído do discurso da mesma pa­ciente, mostrará o q uanto uma destruição aparente da cadeia significante a subtrai da recusa em que a deprimida se blo­queou e lhe confere as inscrições afetivas que a depressiva morre por manter secretas. De volta de férias na I tália, Anne conta-me um sonho. Há um processo, como o âe Barbie; eu faço a acusação, todo mundo se convence, Barbie é condenado. Ela se sente aliviada, como se a tivessem liherado de uma tortura possível por parte de um torcionário qualquer, mas ela não está lá, está em outro lugar, tudo isso parece-lhe oco, ela prefere dormir, soçobrar, morrer, jamais desperta~·. num sonho de dor que, contudo, a atrai irresistivelmente, "sem nenhuma imagem".. . Ouço a excitação maníaca em torno da tortura que toma Anne nas suas relações com sua mãe e, às vezes, com seus parceiros, nos intervalos de suas "depressões". Mas tam­bém ouço: "Estou em outro lugar, sonho de dor-doçura sem imagem", e penso em sua queixa depressiva de estar doente, de ser estéril. Digo: " Na superfície: torcionário . Mas, mais longe ou em outro lugar, lá onde está o seu pesar, talvez haja: torse­io-na'itrel pas naitre (torso-eu-nascer/ não nascer)."•

Decomponho a palavra - torcionário: em suma, eu a tor­turo, inflijo-lhe essa violência que ouço estar enterrada na pa· lavra, em geral desvitalizada, neutra, da própria Anne. Entre­tanto, essa tortura que faço aparecer no dia claro da palavra provém da minha cumplicidade com a sua dor: dnquilo que acre­dito ser minha escuta atenta, reconstituinte, gratificante, de suas inquietações não-nomeadas, desses buracos negros de dor, cujo sentido afetivo Anne conhece, mas cuja significação ela ignora. O torso, sem dúvida o seu, mas enrolado ao de sua mãe na paixão do fantasma inconsciente; dois torsos que não

• Jogo de palavras intraduzível. Torcionário, em francês é tortionnaire. Kris­te:-va parte da decomposição do termo original para inferir sobre o inconsciente dl." Anne . (N . da T .)

58 VIDA E MORTE. DA PALAVJU

fundo dela mesma e tomado fonte de raiva contra si mesma e de sentimento de vazio interior. Contudo, eu tinha a impres­são, ou como diz Freud, a convicção contratransferencial, de que a troca verbal conduzia a uma racionalização dos sintomas, mas não à sua elaboração (Durcharbeitung). Anne confirmava mi­nha convicção: "Eu falo - dizia ela com freqüência - como à beira das palavras e tenho o sentimento de estar à beira da minha pele, mas o fundo do meu pesar permanece intocável."

Pude interpretar esses propósitos como recusa histérica da troca castradora comigo. Essa interpretação, entretanto, não me parecia suficiente, levando-se em conta a intensidade da queixa depressiva e da importância do silêncio que ora se ins­talava, ora f ragmentava o discurso de maneira "poét!ca", por momentos indecifráveis. Eu digo: ''A beira das palavras, mas no centro da voz, pois sua voz fica perturbada quando você me fala dessa tristeza incomunicável." Esta interpretação, cujo valor sedutor bem se compreende, pode ter , no caso de íJm paciente depressivo, o sentido de atravessar a aparência de­fensiva e vazia do significante lingüístico e de procurar o do­minio (Bemiichtigung) sobre o objeto arcaico (o pré-objeto, o Coisa) no registro das inscrições vocais. Ora, acontece que essa paciente, nos primeiros anos de sua vida, sofreu de doen­ças graves de pele e que, sem dúvida, foi privada tanto do con­tato com a pele da mãe quanto da identificação com n imagem do rosto matemo no espelho. Encadeio: "Não podendo tocar sua mãe, você se escondia debaixo de sua pele, à beira da pele'; e nesse esconderijo, você fechava o seu desejo e o seu ódio contra ela no som de sua voz, pois você ouvia a dela ao longe."

Estamos aqui nas regiões no narcisismo primário, onde se constitui a imagtm do tgo e onde, precisamente, a imagem do fut uro depressivo não chega a se consoHdar na representa­ção verbal . A razão disto é que o luto do objeto não é realizado nesta representação. Pelo contrário, o objeto está como que enterrado - e dominado - por afetos guardados de forma ciumenta e, eventualmente, em vocalizos. Penso que o ana­lista pode e deve penetrar até este .nível vocal do discurso, por sua interpretação, sem temer ser intruso. Dando um sentido aos afetos mantidos secretos por causa do domínio sobre o pré-objeto arcaico, a interpretação, ao mesmo tempo, reconhec(! esse afeto e também a linguagem secreta que o depressivo lhe

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dá (aqui, a modulação vocal), abrindo-lhe uma via de passa­gem ao nível das palavras e dos processos secundários . Estes - ·portanto a linguagem -, até o momento considerados va­zios, pois cortados das inscrições afetivas e vocais, revitalizam­se e podem se tornar um espaço de desejo, isto é, de sentido para o sujeito·. ·

Um outro exemplo, extraído do discurso da mesma pa­ciente, mostrará o q uanto uma destruição aparente da cadeia significante a subtrai da recusa em que a deprimida se blo­queou e lhe confere as inscrições afetivas que a depressiva morre por manter secretas. De volta de férias na I tália, Anne conta-me um sonho. Há um processo, como o âe Barbie; eu faço a acusação, todo mundo se convence, Barbie é condenado. Ela se sente aliviada, como se a tivessem liherado de uma tortura possível por parte de um torcionário qualquer, mas ela não está lá, está em outro lugar, tudo isso parece-lhe oco, ela prefere dormir, soçobrar, morrer, jamais desperta~·. num sonho de dor que, contudo, a atrai irresistivelmente, "sem nenhuma imagem".. . Ouço a excitação maníaca em torno da tortura que toma Anne nas suas relações com sua mãe e, às vezes, com seus parceiros, nos intervalos de suas "depressões". Mas tam­bém ouço: "Estou em outro lugar, sonho de dor-doçura sem imagem", e penso em sua queixa depressiva de estar doente, de ser estéril. Digo: " Na superfície: torcionário . Mas, mais longe ou em outro lugar, lá onde está o seu pesar, talvez haja: torse­io-na'itrel pas naitre (torso-eu-nascer/ não nascer)."•

Decomponho a palavra - torcionário: em suma, eu a tor­turo, inflijo-lhe essa violência que ouço estar enterrada na pa· lavra, em geral desvitalizada, neutra, da própria Anne. Entre­tanto, essa tortura que faço aparecer no dia claro da palavra provém da minha cumplicidade com a sua dor: dnquilo que acre­dito ser minha escuta atenta, reconstituinte, gratificante, de suas inquietações não-nomeadas, desses buracos negros de dor, cujo sentido afetivo Anne conhece, mas cuja significação ela ignora. O torso, sem dúvida o seu, mas enrolado ao de sua mãe na paixão do fantasma inconsciente; dois torsos que não

• Jogo de palavras intraduzível. Torcionário, em francês é tortionnaire. Kris­te:-va parte da decomposição do termo original para inferir sobre o inconsciente dl." Anne . (N . da T .)

VIDA E MORTE DA PALA\IItA

se tocaram quando Anne crh bebê e que explodem agora, na raiva das palavras no momento das altercações entre duas mu­lheres. Ela - I o - quer nascer pela análise, dar-se um c utro corpo. Mas abraçada sem representação verbal ao torso da sua mãe, ela não consegue nomea.r esse desejo, não tem a significa­ção desse desejo. Ora, não ter a significação do desejo é não ter o próprio desejo. Ê ser prisioneiro do afeto, da Coisa ar­caiéa, das inscrições primárias dos afetos e das emoções. Pre­cisamente. àli é que reina a ambivalência e que o ódio pelíl Coisa-mãe se transforma imediatamente em desvalorização de si. . . Anne encadeia, confirmando minha interpretação: e la abandona a problemática maníaca da tortura e da perseguição para me falar de sua fonte depressiva. Nesse momento, é inva­dida pelo medo de ser estéril c pelo desejo subjacente de dar à luz uma menina: "Sonhei que do meu corpo saía uma menini­nha, retrato cuspido de minha mãe, e. no entanto, com fre­qüência tenho dito à senhora que quando fecho os olhos niio con­sigo imaginar o seu rosto, como se ela estivesse morta . Antes que eu nascesse e que ela me arrastasse nesta morte . Agor::l dou à luz e é ela que revive ... "

Aceleração e variedade

No deprimido, todavia, dissoc!ada dos representantes pulsionab e afetivos, a cadeia das representações lingüísticas pode revestir-se de uma grande originalidade associativa, paralela à rapidez dos ci­clos. O retardamento motor do depressivo pode ser acompanhado, con· trariamente a certas aparências de passividade c de retardamento mo­tor, de um processo cognitivo acelerado c criativo. como testemu­nham os estudos relativos às associações muito singulares e inventi· v as que deprimidos produzem a partir de 1 istas de palavras que lhes são submctidas.19 Essa hiperatividadc significante manifest~:~-se nota­damente por aproximações de campos scmânt!cos afastados c lembra os trocadilhos dcs hipomaníacos. Ela é coextensiva à hiperlucide7. cognitiva dos deprimidos, mas também à impossibilidade que o ma­níaco-depressivo tem de decidi r ou de escolher.

O tratamento pelo lítio, dominado desde os <Jno~ 60 pelo dina­marquês Schou. estabiliza a timia mas também a associatividade ver·

19 Cf. L. Pons. " lnflucnccs du Lithium Sur Les Fonctions Cognitivcs" (ln­rtuências do lítio sobre as runções cognitivas). in /.a Presse Méuicule \Revista Médica), 2, IV. 1963. XII. n ." 15. pp. 943-946 .

SOL NEORO 61

bal e, ao mesmo tempo que parece manter a originalidade do pro­cesso criador, o diminui e o toma menos produtivo.20 Assim, pode­ríamos dizer, com os pesquisadores que conduziram essas observa­ções, que o lítio interrompe o processo de variedade e fixa o sujeito no campo semântico de uma palavra, liga-o a uma significação e talvez o estabilize em torno de um referente-objeto. A contrario, desse teste (do qual se no.tará que ele se limita às depressões que respondem ao lítio) poderemos deduzir que certas formas de depres· são são acessos de acelerações associativas que desestabilizam o su­jeito e lhe oferecem uma fuga para o exterior da confrontação com uma significação estável ou com um objeto fixo.

Um passado que não passa

O tempo em que vivemos sendo o do nosso discurso, a pala­vra estranha, retardada, ou dissipada do melancólico o conduz a viver numa temporalidade descentrada. Ela não se escoa, o vetor antes/ depois não a governa, J:!ãO a dirige de um passado para uma finalidade. Maciço, pesado, sem dúvida traumático porque carrega­do de muita dor ou de muita alegria, um momento tapa o horizonte da temporalidade depressiva, ou melhor, tira-lhe qualquer horizonte, qualquer perspectiva. Fixado ao passado, regressando ao paraíso ou ao inferno de uma experiência não ultrapassável, o melancólico é uma memória estranha: tudo findou "ele parece dizer, mas eu per­manece fiel a esta coisa finda estou colado a ela, não há revolu­ção possível, não há futuro .. .' Um passado hipertrofiado, hiperbó­l!eo, ocupa todas as dimensões da continuidade psíquica. E essa ligação a uma memória sem fut!lro, sem dúvida, também é um meio de capitalizar o objeto narcísico, de incubá-lo no cercado de um túmulo pessoal sem saída. Essa particularidade da temporização me­lancólica é um dado essencial na base do qual podem se desenvol­ver perturbações concretas do ritmo nictemeral, assim como depen­dências precisas dos acessos depressivos em relação ao ritmo bioló­gico específico de um determinado indivíduo. ~ 1

Nos lembremos de que a idéia de encarar a dep,-essão como dcpendente···em relação a um tempo mais do que a um lugar cabe

20 I bid., p . 945. 21 C f . quantO) a isto, e entre outros estudos mais técnicos, a meditação psico­pa lológica de H. Tellenbach, De lu mé/ancolie (Da melancolia), P. U . F. , Paris, 1979.

VIDA E MORTE DA PALA\IItA

se tocaram quando Anne crh bebê e que explodem agora, na raiva das palavras no momento das altercações entre duas mu­lheres. Ela - I o - quer nascer pela análise, dar-se um c utro corpo. Mas abraçada sem representação verbal ao torso da sua mãe, ela não consegue nomea.r esse desejo, não tem a significa­ção desse desejo. Ora, não ter a significação do desejo é não ter o próprio desejo. Ê ser prisioneiro do afeto, da Coisa ar­caiéa, das inscrições primárias dos afetos e das emoções. Pre­cisamente. àli é que reina a ambivalência e que o ódio pelíl Coisa-mãe se transforma imediatamente em desvalorização de si. . . Anne encadeia, confirmando minha interpretação: e la abandona a problemática maníaca da tortura e da perseguição para me falar de sua fonte depressiva. Nesse momento, é inva­dida pelo medo de ser estéril c pelo desejo subjacente de dar à luz uma menina: "Sonhei que do meu corpo saía uma menini­nha, retrato cuspido de minha mãe, e. no entanto, com fre­qüência tenho dito à senhora que quando fecho os olhos niio con­sigo imaginar o seu rosto, como se ela estivesse morta . Antes que eu nascesse e que ela me arrastasse nesta morte . Agor::l dou à luz e é ela que revive ... "

Aceleração e variedade

No deprimido, todavia, dissoc!ada dos representantes pulsionab e afetivos, a cadeia das representações lingüísticas pode revestir-se de uma grande originalidade associativa, paralela à rapidez dos ci­clos. O retardamento motor do depressivo pode ser acompanhado, con· trariamente a certas aparências de passividade c de retardamento mo­tor, de um processo cognitivo acelerado c criativo. como testemu­nham os estudos relativos às associações muito singulares e inventi· v as que deprimidos produzem a partir de 1 istas de palavras que lhes são submctidas.19 Essa hiperatividadc significante manifest~:~-se nota­damente por aproximações de campos scmânt!cos afastados c lembra os trocadilhos dcs hipomaníacos. Ela é coextensiva à hiperlucide7. cognitiva dos deprimidos, mas também à impossibilidade que o ma­níaco-depressivo tem de decidi r ou de escolher.

O tratamento pelo lítio, dominado desde os <Jno~ 60 pelo dina­marquês Schou. estabiliza a timia mas também a associatividade ver·

19 Cf. L. Pons. " lnflucnccs du Lithium Sur Les Fonctions Cognitivcs" (ln­rtuências do lítio sobre as runções cognitivas). in /.a Presse Méuicule \Revista Médica), 2, IV. 1963. XII. n ." 15. pp. 943-946 .

SOL NEORO 61

bal e, ao mesmo tempo que parece manter a originalidade do pro­cesso criador, o diminui e o toma menos produtivo.20 Assim, pode­ríamos dizer, com os pesquisadores que conduziram essas observa­ções, que o lítio interrompe o processo de variedade e fixa o sujeito no campo semântico de uma palavra, liga-o a uma significação e talvez o estabilize em torno de um referente-objeto. A contrario, desse teste (do qual se no.tará que ele se limita às depressões que respondem ao lítio) poderemos deduzir que certas formas de depres· são são acessos de acelerações associativas que desestabilizam o su­jeito e lhe oferecem uma fuga para o exterior da confrontação com uma significação estável ou com um objeto fixo.

Um passado que não passa

O tempo em que vivemos sendo o do nosso discurso, a pala­vra estranha, retardada, ou dissipada do melancólico o conduz a viver numa temporalidade descentrada. Ela não se escoa, o vetor antes/ depois não a governa, J:!ãO a dirige de um passado para uma finalidade. Maciço, pesado, sem dúvida traumático porque carrega­do de muita dor ou de muita alegria, um momento tapa o horizonte da temporalidade depressiva, ou melhor, tira-lhe qualquer horizonte, qualquer perspectiva. Fixado ao passado, regressando ao paraíso ou ao inferno de uma experiência não ultrapassável, o melancólico é uma memória estranha: tudo findou "ele parece dizer, mas eu per­manece fiel a esta coisa finda estou colado a ela, não há revolu­ção possível, não há futuro .. .' Um passado hipertrofiado, hiperbó­l!eo, ocupa todas as dimensões da continuidade psíquica. E essa ligação a uma memória sem fut!lro, sem dúvida, também é um meio de capitalizar o objeto narcísico, de incubá-lo no cercado de um túmulo pessoal sem saída. Essa particularidade da temporização me­lancólica é um dado essencial na base do qual podem se desenvol­ver perturbações concretas do ritmo nictemeral, assim como depen­dências precisas dos acessos depressivos em relação ao ritmo bioló­gico específico de um determinado indivíduo. ~ 1

Nos lembremos de que a idéia de encarar a dep,-essão como dcpendente···em relação a um tempo mais do que a um lugar cabe

20 I bid., p . 945. 21 C f . quantO) a isto, e entre outros estudos mais técnicos, a meditação psico­pa lológica de H. Tellenbach, De lu mé/ancolie (Da melancolia), P. U . F. , Paris, 1979.

62 VIDA E MORTE. DA PALAVlU

a Kant . Refletindo sobre essa variante espedfica da depressão, que é a nostalgia, Kant afinnan que o nostálgico não deseja o lugar da sua juventude, mas sua própria juventude, que o seu desejo está à busca do tempo e não da coisa a ser reencontrada. A noção freu­diana de obieto psíquico, ao qual estaria fixado o depressivo, parti· cipa da mesma concepção - o objeto psíquico é um fato de memó­ria, pertence ao tempo perdido "à moda de Proust". É uma cons­trução subjetiva, c como tal, depende de uma memória, certamente inapre~nsível e refeita em cada verbalização atual, mas que, de re­pe1Ite, se instala, não num espaço físico, mas no espaço imaginário e simbólico do aparelho psíquico . D izer que o objeto da minha tristeza é menos esse vilarejo, essa mamãe ou esse amante q:.~.e me faltam aqui e agora, do que a representação incerta que deles guardo e que orquestro na câmara negra daquilo que, em conseqüência, se torna o meu túmulo psíquico, situa, de início, a minha inquieta­ção no imaginário. Habitante desse tempo truncado, o deprimido é necessariamente um habitante do imaginário.

Tal fenomenologia da linguagem e do tempo revela, nós o assi­nalamos várias vezes, um luto não-realizado do objeto materno .

Identificação projetiva ou onipotênckl

Para melhor nos darmos conta dela, precisamos voltar à noção de identificação projetivu proposta por Melanie Klein. A observa­ção das crianças muito jovens e também a dinâmica da psicose fazem supor que as operações psíquicas mais arcaicas são as projeções das boas e das más partes de um ainda não-ego num objeto ainda não separado dele, com o fim de exercer menos um ataque sobre o outro do que um domínio sobre ele, uma posse onipotente. Essa onipotência oral c anal talvez seja tanto mais intensa quanto certas particularidades biopsicológicas entravem a autonomia idealmente desejada do ego (dificuldades psicomotoras, perturbações da audição ou da visão, diversas doenças etc.). O comportamento materno ou

u Cf. E. Kant, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia sob o ponto de vista pragmático). citado por J. Starobinski, "Lc concept de nostalgic'' tO conceito de nostalgia), in Diogene, n.• 54, 1966, pp . 92·11 5. Faremos igual· r.1entc referência aos outros trabalhos de Starobinski sobre u melancolia e a depressão, que esclarecem nosso propósito, com pontos de vista históricos c filosóficos .

SOL NEGRO 63

paterno, superprotetor e ansioso, que escolheu a criança como uma prótese narcísica c que não deixa de englobá-la enquanto elemento reparador do psiquismo adulto, intensifica a tendência do lactente à onipotência.

Ora, o meio scmiótico pelo qual essa onipotência se exprime é uma semiologia pré-verbal: gestual, motora, vocal, olfativa, tátil, auditiva. Os processos primários dominam essa expressão da domi­nação arcaica .

O sentido onipotente

O sujeito de um sentido já está lá, mesmo se o sujeito da sign.i­ficação lingüística ainda não está construído e espera para produzir a posicão depressiva. O sentido. já instalado (que podemos supor estar apoiado por um superego precoce e tirânico) é feito de ritmos c de dispositivos gestuais, acústicos, fonatórios .em. que ~ praz~r ~e articula em séries sensoriais, que são uma pnmetra diferenc1açao em relação à Coisa, tanto excitante quanto ameaça.dor.a, e da co~­fusão auto-sensual . Assim se articula, em descontlnmdadc orgam­:zada o continuum do corpo em vias de se tornar um "corpo pró­prio':, exercendo um dominio precoce c inicial , flu~do mas podero~o, sobre as zonas erógenas confundjdas com o pré·Oh)eto, com a ~tsa materna. O que nos aparece no plano psicológico como uma ompo­tência é o poder dos ·ritmos semi6ticos qu~ traduzem .ut~a. pre!ença intensa do sent ido num pré-sujeito ainda incapaz de stgmftcaçao ·

O que chamamos de um sentido é a capacidade ~o infans de registrar o significante do desejo parental e de nele se mclutr a se~ próprio modo, isto é, manifestando as aptidões semióticas de q~e e capaz naquele momento do seu desenvolvimento e que lh~ ~rm~tem um domínio no nível dos processos primários, de um nao amda outro" (da éoisa) incluído nas zonas erógenas desse infans semioti­zante. Contudo, esse sentido onipotente permanece "letra morta" se não for investido na significação. Será o trabalho de interpretação analítica que irá buscar o sentido_ depressív.o _no tú~ul~ .em _que a tristeza o enclausurou com sua mae, para hga-lo à stgnlf1caçao dos obj~tos c dos desejos. T al interpretação destrona a oni~otência d~ sentido c equivale a uma elaboração da posição depresstva que fo1 denegada pelo sujeito com estrutura dept·cssiva.

Lembramos que a separação do objeto abre a fase dita depres· si v a. Perdendo mamãe e apoiando-me na denegação, eu a recupero

62 VIDA E MORTE. DA PALAVlU

a Kant . Refletindo sobre essa variante espedfica da depressão, que é a nostalgia, Kant afinnan que o nostálgico não deseja o lugar da sua juventude, mas sua própria juventude, que o seu desejo está à busca do tempo e não da coisa a ser reencontrada. A noção freu­diana de obieto psíquico, ao qual estaria fixado o depressivo, parti· cipa da mesma concepção - o objeto psíquico é um fato de memó­ria, pertence ao tempo perdido "à moda de Proust". É uma cons­trução subjetiva, c como tal, depende de uma memória, certamente inapre~nsível e refeita em cada verbalização atual, mas que, de re­pe1Ite, se instala, não num espaço físico, mas no espaço imaginário e simbólico do aparelho psíquico . D izer que o objeto da minha tristeza é menos esse vilarejo, essa mamãe ou esse amante q:.~.e me faltam aqui e agora, do que a representação incerta que deles guardo e que orquestro na câmara negra daquilo que, em conseqüência, se torna o meu túmulo psíquico, situa, de início, a minha inquieta­ção no imaginário. Habitante desse tempo truncado, o deprimido é necessariamente um habitante do imaginário.

Tal fenomenologia da linguagem e do tempo revela, nós o assi­nalamos várias vezes, um luto não-realizado do objeto materno .

Identificação projetiva ou onipotênckl

Para melhor nos darmos conta dela, precisamos voltar à noção de identificação projetivu proposta por Melanie Klein. A observa­ção das crianças muito jovens e também a dinâmica da psicose fazem supor que as operações psíquicas mais arcaicas são as projeções das boas e das más partes de um ainda não-ego num objeto ainda não separado dele, com o fim de exercer menos um ataque sobre o outro do que um domínio sobre ele, uma posse onipotente. Essa onipotência oral c anal talvez seja tanto mais intensa quanto certas particularidades biopsicológicas entravem a autonomia idealmente desejada do ego (dificuldades psicomotoras, perturbações da audição ou da visão, diversas doenças etc.). O comportamento materno ou

u Cf. E. Kant, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia sob o ponto de vista pragmático). citado por J. Starobinski, "Lc concept de nostalgic'' tO conceito de nostalgia), in Diogene, n.• 54, 1966, pp . 92·11 5. Faremos igual· r.1entc referência aos outros trabalhos de Starobinski sobre u melancolia e a depressão, que esclarecem nosso propósito, com pontos de vista históricos c filosóficos .

SOL NEGRO 63

paterno, superprotetor e ansioso, que escolheu a criança como uma prótese narcísica c que não deixa de englobá-la enquanto elemento reparador do psiquismo adulto, intensifica a tendência do lactente à onipotência.

Ora, o meio scmiótico pelo qual essa onipotência se exprime é uma semiologia pré-verbal: gestual, motora, vocal, olfativa, tátil, auditiva. Os processos primários dominam essa expressão da domi­nação arcaica .

O sentido onipotente

O sujeito de um sentido já está lá, mesmo se o sujeito da sign.i­ficação lingüística ainda não está construído e espera para produzir a posicão depressiva. O sentido. já instalado (que podemos supor estar apoiado por um superego precoce e tirânico) é feito de ritmos c de dispositivos gestuais, acústicos, fonatórios .em. que ~ praz~r ~e articula em séries sensoriais, que são uma pnmetra diferenc1açao em relação à Coisa, tanto excitante quanto ameaça.dor.a, e da co~­fusão auto-sensual . Assim se articula, em descontlnmdadc orgam­:zada o continuum do corpo em vias de se tornar um "corpo pró­prio':, exercendo um dominio precoce c inicial , flu~do mas podero~o, sobre as zonas erógenas confundjdas com o pré·Oh)eto, com a ~tsa materna. O que nos aparece no plano psicológico como uma ompo­tência é o poder dos ·ritmos semi6ticos qu~ traduzem .ut~a. pre!ença intensa do sent ido num pré-sujeito ainda incapaz de stgmftcaçao ·

O que chamamos de um sentido é a capacidade ~o infans de registrar o significante do desejo parental e de nele se mclutr a se~ próprio modo, isto é, manifestando as aptidões semióticas de q~e e capaz naquele momento do seu desenvolvimento e que lh~ ~rm~tem um domínio no nível dos processos primários, de um nao amda outro" (da éoisa) incluído nas zonas erógenas desse infans semioti­zante. Contudo, esse sentido onipotente permanece "letra morta" se não for investido na significação. Será o trabalho de interpretação analítica que irá buscar o sentido_ depressív.o _no tú~ul~ .em _que a tristeza o enclausurou com sua mae, para hga-lo à stgnlf1caçao dos obj~tos c dos desejos. T al interpretação destrona a oni~otência d~ sentido c equivale a uma elaboração da posição depresstva que fo1 denegada pelo sujeito com estrutura dept·cssiva.

Lembramos que a separação do objeto abre a fase dita depres· si v a. Perdendo mamãe e apoiando-me na denegação, eu a recupero

64 VIDA E MORTE DA PALAVRA

como signo, imagem, palavra.23 Entretanto, a criança onipotente não renuncia às delícias ambíguas da posição paranóide-esquizóide de identificação projetiva anterior, durante a qual ela instalava todos os seus movimentos psíquicos num outro indissociado, fusionante. Ou bem essa criança recusa a separação e o luto e, em vez de abordar a posição depressiva e a linguagem, ela se refugia numa posição passiva, na verdade esquizo-paranóide, dominada pela identificação projetiva - a recusa de falar, que subtende certos atrasos de lin­guagem, é, na realidade, uma imposição da onipotência e portanto do domínio primário sobre o objeto. Ou então, a criança encontra um compromisso pela recusa da denegação que, no caso geral, con­duz à elaboração do luto pela constituição de um sistema simbóEco (notadamente pela constituição da linguagem) . · O sujeito congela então seus afetos desagradáveis_como todos os outros, conservando­os num dentro psiquico assim formado, de uma vez por todas, como aflito e inacessível. Essa interioridade dolorosa, feita de marcas se­mióticas, mas não de signos,24 é o rosto invisível de Narciso, a fonte secreta de suas lágrimas. O muro da recusa da denegação separa então as emoções do sujeito das construções simbólicas que, contudo, ele adquire e mesmo, em geral, de forma brilhante, graças precisa­mente a essa negação redobrada. O melancólico, com o seu interior pesaroso e secreto. é um exilado em potencial, mas tambi m um intelectual capaz de fazer brilhantes construções. . . abstratas. A recusa da denegação no depressivo é a expressão lógica da {)nipo­tência. Pelo seu discurso vazio, ele garante para si um domínio inacessível, porque "semiótico" e não "'simbólico", sobre um objeto arcaico q~c assim permanece, para si mesmo c para todos, um enig­ma e um segredo .

A tristeza retém o ódio

Uma construção simbólica assim adquirida, uma subjetividade

2:; H. Segal, op. cit. Cf. aqui mesmo, p. 33 sq. 14 A propósito da distinção semiótico/simbólica, cf. nossa Révolution du lan­guge poétique (Revolução da linguagem poética), Seuil, Paris, 1974, c aqui mesmo, eap . I. p. 33, n.• 27. Jean Oury nota que, privado do Grande Outro, o melancólico busca referenciais indecifráveis e contudo vitais até o "ponto de horror" de seu encontro com o •'sem limite". (Cf. Jean ·Oury, "Violencc ct mélancolie" - Violência e melancolia), in La Violence - a violência, atas do Colóquio de Milão. !0/18, Paris, 1978, pp. 27 e 32.

SOL NEOIW 65

construída sobre tal base podem desmoronar facilmente quando a experiência de novas separações. ou de novas perdas, reaviva o objeto da recusa primária e lança por terra a onipotência que se preservara ao preço dessa recusa. O significante da linguagem, que era uma aparência, é então levado pelas emoções, como um dique pela vaga oceânica. Inscrição primária ~a perda que perdura aquém da recusa, o afeto submerge o sujeito. Meu afeto de tristeza é a última testemunha, conquanto muda, de que, apesar de tudo, perdi a Coisa arcaica do domínio onipotente. Essa tristeza é o último filtro da agressividade, a retenção narcísica do ódio que não é confessado, não por simples pudor moral ou do superego, mas porque na tris­teza o ego ainda é confundido com o outro, ele o traz em si, intro­jeta sua própria projeção onipotente e a desfruta. O pesar seria assim o negativo da onipotência, o indício primeiro e primário de que o outro me escapa, mas também de que o ego, por seu turno, não se aceita abandonado.

Esse desfraldamento do afeto e dos processos semióticos pri­mários entra em confronto com a armadura, que descrevemos como "estrangeira" ou "secundária", da linguagem no depressivo, da mes­ma forma que com as construções simbólicas (aprendizados, ideolo­gias. crenças). Retardamentos ou acelerações nela se manifestam, traduzindo o ritmo biofisiológico. O discurso não tem mais o poder de quebrar e ainda menos de modificar este ritmo mas, pelo contrá­rio, ele se deixa modificar pelo ritmo afetivo, a ponto de se apagar no mutismo (por excesso de retardamento ou por excesso de acelera­ção, tomando a escolha de ação impossível). Quando o combate da criação imaginária (arte, literatura) com a depressão se confronta precisamente com esse limite do simbólico e do biológico, consta­tamos que a narração ou o raciocínio são dominados pelos proces­sos primários. Os ritmos, as aliterações, as condensações modelam a transmissão de uma mensagem e de uma informação. A partir disto, seriam a poesia e, mais em geral, o ·estilo, que traz a sua marca secreta, testemunhas de uma depressão .(provisoriamente) vencida?

Assim, somos conduzidos a considerar pelo menos três parâ­metros para descrever as modificações psíquicas e, em particular, depressivas: os processos simbólicos (gramática e lóg!ca do discurso) e os processos semióticos (deslocamento, condensação, aliterações, ritmos vocais e gestuais etc.) com o seu escoramento, que são os ritmos biofisiológicos da transmissão da excitação. Quaisquer que sejam os fatores endógenos que condicionam estes últimos, e por

64 VIDA E MORTE DA PALAVRA

como signo, imagem, palavra.23 Entretanto, a criança onipotente não renuncia às delícias ambíguas da posição paranóide-esquizóide de identificação projetiva anterior, durante a qual ela instalava todos os seus movimentos psíquicos num outro indissociado, fusionante. Ou bem essa criança recusa a separação e o luto e, em vez de abordar a posição depressiva e a linguagem, ela se refugia numa posição passiva, na verdade esquizo-paranóide, dominada pela identificação projetiva - a recusa de falar, que subtende certos atrasos de lin­guagem, é, na realidade, uma imposição da onipotência e portanto do domínio primário sobre o objeto. Ou então, a criança encontra um compromisso pela recusa da denegação que, no caso geral, con­duz à elaboração do luto pela constituição de um sistema simbóEco (notadamente pela constituição da linguagem) . · O sujeito congela então seus afetos desagradáveis_como todos os outros, conservando­os num dentro psiquico assim formado, de uma vez por todas, como aflito e inacessível. Essa interioridade dolorosa, feita de marcas se­mióticas, mas não de signos,24 é o rosto invisível de Narciso, a fonte secreta de suas lágrimas. O muro da recusa da denegação separa então as emoções do sujeito das construções simbólicas que, contudo, ele adquire e mesmo, em geral, de forma brilhante, graças precisa­mente a essa negação redobrada. O melancólico, com o seu interior pesaroso e secreto. é um exilado em potencial, mas tambi m um intelectual capaz de fazer brilhantes construções. . . abstratas. A recusa da denegação no depressivo é a expressão lógica da {)nipo­tência. Pelo seu discurso vazio, ele garante para si um domínio inacessível, porque "semiótico" e não "'simbólico", sobre um objeto arcaico q~c assim permanece, para si mesmo c para todos, um enig­ma e um segredo .

A tristeza retém o ódio

Uma construção simbólica assim adquirida, uma subjetividade

2:; H. Segal, op. cit. Cf. aqui mesmo, p. 33 sq. 14 A propósito da distinção semiótico/simbólica, cf. nossa Révolution du lan­guge poétique (Revolução da linguagem poética), Seuil, Paris, 1974, c aqui mesmo, eap . I. p. 33, n.• 27. Jean Oury nota que, privado do Grande Outro, o melancólico busca referenciais indecifráveis e contudo vitais até o "ponto de horror" de seu encontro com o •'sem limite". (Cf. Jean ·Oury, "Violencc ct mélancolie" - Violência e melancolia), in La Violence - a violência, atas do Colóquio de Milão. !0/18, Paris, 1978, pp. 27 e 32.

SOL NEOIW 65

construída sobre tal base podem desmoronar facilmente quando a experiência de novas separações. ou de novas perdas, reaviva o objeto da recusa primária e lança por terra a onipotência que se preservara ao preço dessa recusa. O significante da linguagem, que era uma aparência, é então levado pelas emoções, como um dique pela vaga oceânica. Inscrição primária ~a perda que perdura aquém da recusa, o afeto submerge o sujeito. Meu afeto de tristeza é a última testemunha, conquanto muda, de que, apesar de tudo, perdi a Coisa arcaica do domínio onipotente. Essa tristeza é o último filtro da agressividade, a retenção narcísica do ódio que não é confessado, não por simples pudor moral ou do superego, mas porque na tris­teza o ego ainda é confundido com o outro, ele o traz em si, intro­jeta sua própria projeção onipotente e a desfruta. O pesar seria assim o negativo da onipotência, o indício primeiro e primário de que o outro me escapa, mas também de que o ego, por seu turno, não se aceita abandonado.

Esse desfraldamento do afeto e dos processos semióticos pri­mários entra em confronto com a armadura, que descrevemos como "estrangeira" ou "secundária", da linguagem no depressivo, da mes­ma forma que com as construções simbólicas (aprendizados, ideolo­gias. crenças). Retardamentos ou acelerações nela se manifestam, traduzindo o ritmo biofisiológico. O discurso não tem mais o poder de quebrar e ainda menos de modificar este ritmo mas, pelo contrá­rio, ele se deixa modificar pelo ritmo afetivo, a ponto de se apagar no mutismo (por excesso de retardamento ou por excesso de acelera­ção, tomando a escolha de ação impossível). Quando o combate da criação imaginária (arte, literatura) com a depressão se confronta precisamente com esse limite do simbólico e do biológico, consta­tamos que a narração ou o raciocínio são dominados pelos proces­sos primários. Os ritmos, as aliterações, as condensações modelam a transmissão de uma mensagem e de uma informação. A partir disto, seriam a poesia e, mais em geral, o ·estilo, que traz a sua marca secreta, testemunhas de uma depressão .(provisoriamente) vencida?

Assim, somos conduzidos a considerar pelo menos três parâ­metros para descrever as modificações psíquicas e, em particular, depressivas: os processos simbólicos (gramática e lóg!ca do discurso) e os processos semióticos (deslocamento, condensação, aliterações, ritmos vocais e gestuais etc.) com o seu escoramento, que são os ritmos biofisiológicos da transmissão da excitação. Quaisquer que sejam os fatores endógenos que condicionam estes últimos, e por

Vm. E MOitTE DA· PALA\IltA

mais poderosos que sejam os meios farmacológicos para estabelecer uma transmissão máxima da excitação nervosa, permanece o pro­blema da integração primária e sobretudo da integração secundária da excitação.

Neste ponto, precisamente, situa-se a intervenção da psicaná­lise. Nomear o prazer c o desprazer em seus ínfimos meandrcs - e isto no próprio centro da situação transferencial, que refaz as con­dições primitivas da onipotência e da separação simulada do objeto -resta nosso único meio de acesso a essa constituição paradoxal do sujeito, que é a melancolia . Paradoxal, de fato, pois o indivíduo, ao preço de uma denegação, abrira para si as portas do simbólico para poder fechá-las com o movimento da recusa, reservando-se o gozo não-nomeável de um afeto onipotente. A análise, então, talvez tenha uma chance de transformar essa subjetivação e de conferir um poder modificador para o discurso sobre as flutuações dos pro­cessos primários e até as transmissões bioenergéticas, favorecendo uma melhor integração das emoções semióticas no edifício simbólico.

Destino ocidental da tradução

Colocar a existência de um objeto originário, até mesmo de uma Coisa, para ser traduzido para além de um luto realizado, não é isto um fantasma de teórico melancólico?

1!. certo que o objeto originário, esse "em-si" que sempre resta por ser traduzido, a causa última da tradutibilidade, só existe para e pelo discurso e o sujeito já constituídos. É porq:te o traduzido já está lá que o · traduzível pode ser imaginado e posto como exce­dente ou incomensurável. ·Colocar a existência desta outra lingua· gem e mesmo de um outro da linguagem, até mesmo de um fora da linguagem, não é necessariamente :tma reserva para a metafísica ou para a teologia . Este postulado corresponde a uma existênc!a psíquica que a metafísica e a teoria ocidental talvez tenham tido o chance · e a audácia de representar. Uma exigência psíquica que, com certeza, não é universal: a civilização chinesa, por exemplo, não é uma civilização da tradutibilidade da coisa em si, mas sim da repetição e da variação des signos, isto é, da transcrição ..

A obsessão do objeto originário, do objeto a ser traduzido, supõe que uma certa adequação (certamente imperfeita) é conside­rada possível entre o signo e não o referente, mas sim a experiência não-verbal do referente na interação com o outro. Posso nomear certo. O Ser que me ultrapassa - incluindo o ser do afeto -

SOL N ECiJI.O 67

pode encontrar a· sua expressão adequada ou quase adequada . A aposta da tradutibilidade também .é uma aposta de dominar o objeto originário e, neste sentido, uma tentativa de combater a depressão (devida a um pré-objeto invasor do qual não posso realizar o luto) por uma cascata de signos destinada, precisamente, a captar o objeto de alegri a, de medo, de dor . A metafísica, com sua obsessão de tradutibilidade, é um discurso da dor dita e aliviada por essa própria nomeação. Podemos ignorar, recusar a Coisa originária, podemos ignorar a dor em proveito da leveza dos signos recopiados ou ale­grados, sem interior e sem verdade. A vantagem das civilizações que operam sobre este modelo consiste em torná-los aptos a marcar a imersão do sujeito no cosmos, a sua imanência mística com o mun· do. Mas, como me confessa um amigo chinês, tal cultura não tem meios diante da irrupção da dor . Essa falta é uma vantagem ou uma falha?

O homem ocidental, pelo contrário, está persuadido de poder traduzir sua mãe - com certeza ele acredita nisto, mas para tradu­zi-la, isto é, traí-la, transpô-la, liberar-se dela . Esse melancólico triunfa sobre sua tristeza de estar separado do objeto amado por um esforço incrível para dominar os signos, de maneira a fazê-los corresponder a vivências originárias, não-nomeáveis, traumáticas.

Mais ainda, e em definitivo, essa crença na tradutibilidade ("mamãe é nomeável, Deus é nomeável") conduz a um discurso for­temente individualizado, que evita os estereótipos e o clichê, tanto quanto a profusão de estilos pessoais . Mas com isto mesmo che· gamos à traição por excelência da Coisa única e em si (da Res di­vina); se todas as maneiras de nomeá-la são permitidas, a Coisa postulada em si não se dissolve em mil e uma maneiras de nomeá-la? A tradutibilidade postulada chega à multiplicidade das traduções possíveis. O melancólico potencial, que .é o sujeito ocidental, tor­nado tradutor obstinado, termina como jogador confesso ou como ateu potencial . A crença inicial na trad:.~ção transforma-se numa crença na performance estilística, para a qual o aquém do texto, o seu outro, mesmo originário, COI).ta menos do que a vitória do pró­prio texto.

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mais poderosos que sejam os meios farmacológicos para estabelecer uma transmissão máxima da excitação nervosa, permanece o pro­blema da integração primária e sobretudo da integração secundária da excitação.

Neste ponto, precisamente, situa-se a intervenção da psicaná­lise. Nomear o prazer c o desprazer em seus ínfimos meandrcs - e isto no próprio centro da situação transferencial, que refaz as con­dições primitivas da onipotência e da separação simulada do objeto -resta nosso único meio de acesso a essa constituição paradoxal do sujeito, que é a melancolia . Paradoxal, de fato, pois o indivíduo, ao preço de uma denegação, abrira para si as portas do simbólico para poder fechá-las com o movimento da recusa, reservando-se o gozo não-nomeável de um afeto onipotente. A análise, então, talvez tenha uma chance de transformar essa subjetivação e de conferir um poder modificador para o discurso sobre as flutuações dos pro­cessos primários e até as transmissões bioenergéticas, favorecendo uma melhor integração das emoções semióticas no edifício simbólico.

Destino ocidental da tradução

Colocar a existência de um objeto originário, até mesmo de uma Coisa, para ser traduzido para além de um luto realizado, não é isto um fantasma de teórico melancólico?

1!. certo que o objeto originário, esse "em-si" que sempre resta por ser traduzido, a causa última da tradutibilidade, só existe para e pelo discurso e o sujeito já constituídos. É porq:te o traduzido já está lá que o · traduzível pode ser imaginado e posto como exce­dente ou incomensurável. ·Colocar a existência desta outra lingua· gem e mesmo de um outro da linguagem, até mesmo de um fora da linguagem, não é necessariamente :tma reserva para a metafísica ou para a teologia . Este postulado corresponde a uma existênc!a psíquica que a metafísica e a teoria ocidental talvez tenham tido o chance · e a audácia de representar. Uma exigência psíquica que, com certeza, não é universal: a civilização chinesa, por exemplo, não é uma civilização da tradutibilidade da coisa em si, mas sim da repetição e da variação des signos, isto é, da transcrição ..

A obsessão do objeto originário, do objeto a ser traduzido, supõe que uma certa adequação (certamente imperfeita) é conside­rada possível entre o signo e não o referente, mas sim a experiência não-verbal do referente na interação com o outro. Posso nomear certo. O Ser que me ultrapassa - incluindo o ser do afeto -

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pode encontrar a· sua expressão adequada ou quase adequada . A aposta da tradutibilidade também .é uma aposta de dominar o objeto originário e, neste sentido, uma tentativa de combater a depressão (devida a um pré-objeto invasor do qual não posso realizar o luto) por uma cascata de signos destinada, precisamente, a captar o objeto de alegri a, de medo, de dor . A metafísica, com sua obsessão de tradutibilidade, é um discurso da dor dita e aliviada por essa própria nomeação. Podemos ignorar, recusar a Coisa originária, podemos ignorar a dor em proveito da leveza dos signos recopiados ou ale­grados, sem interior e sem verdade. A vantagem das civilizações que operam sobre este modelo consiste em torná-los aptos a marcar a imersão do sujeito no cosmos, a sua imanência mística com o mun· do. Mas, como me confessa um amigo chinês, tal cultura não tem meios diante da irrupção da dor . Essa falta é uma vantagem ou uma falha?

O homem ocidental, pelo contrário, está persuadido de poder traduzir sua mãe - com certeza ele acredita nisto, mas para tradu­zi-la, isto é, traí-la, transpô-la, liberar-se dela . Esse melancólico triunfa sobre sua tristeza de estar separado do objeto amado por um esforço incrível para dominar os signos, de maneira a fazê-los corresponder a vivências originárias, não-nomeáveis, traumáticas.

Mais ainda, e em definitivo, essa crença na tradutibilidade ("mamãe é nomeável, Deus é nomeável") conduz a um discurso for­temente individualizado, que evita os estereótipos e o clichê, tanto quanto a profusão de estilos pessoais . Mas com isto mesmo che· gamos à traição por excelência da Coisa única e em si (da Res di­vina); se todas as maneiras de nomeá-la são permitidas, a Coisa postulada em si não se dissolve em mil e uma maneiras de nomeá-la? A tradutibilidade postulada chega à multiplicidade das traduções possíveis. O melancólico potencial, que .é o sujeito ocidental, tor­nado tradutor obstinado, termina como jogador confesso ou como ateu potencial . A crença inicial na trad:.~ção transforma-se numa crença na performance estilística, para a qual o aquém do texto, o seu outro, mesmo originário, COI).ta menos do que a vitória do pró­prio texto.

. 111 .

Aspectos da depressão feminina .

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Aspectos da depressão feminina .

Os fragmentos que se seguem nos conduzem não para o univers0 ·da melancolia clínica, mas para as regiões neuróticas do conjunto melanc6Hco-depressivo. Neles constatamos a alternância entre de­pressão e ansiedade, depressão e atos perversos, perda do objeto e do sentido da palavra e dominação sadomasoquista sobre eles. Dado o fato de terem sido extraídos de discursos de mulheres, não é um simples acaso que possam justificar a maior freqüência, socio­logicamente atestada, de depressões femininas. Talvez este fato tam­bém revele um traço da sexualidade feminina: a sua incorporação à Coisa materna e suas menores facilidades na perversão reparadora.

Os fragmentos que se seguem nos conduzem não para o univers0 ·da melancolia clínica, mas para as regiões neuróticas do conjunto melanc6Hco-depressivo. Neles constatamos a alternância entre de­pressão e ansiedade, depressão e atos perversos, perda do objeto e do sentido da palavra e dominação sadomasoquista sobre eles. Dado o fato de terem sido extraídos de discursos de mulheres, não é um simples acaso que possam justificar a maior freqüência, socio­logicamente atestada, de depressões femininas. Talvez este fato tam­bém revele um traço da sexualidade feminina: a sua incorporação à Coisa materna e suas menores facilidades na perversão reparadora.

A SOLIDÃO CANIBALfSTICA

O corpo-túmulo ou a devoração onipotente

DESDE o seu nascimento Hélene sofria de graves· dificuldades motoras que necessitaram de várias intervenções cirúrgicas e que a imobilizaram na cama até a idade de três anos. Entretanto, o brilhante desenvolvimento intelectual da menina conduziu-a para um destino profissional não menos brilhante, tanto que nada subsiste dos antigos defeitos motores e do contexto familiar que, com toda a evidência, os alimentava.

Nada, a não ser os freqüentes acessos de depressão grave que não pareciam ser desencadeados pela realidade atual, mais próspera, da vida de Hélêne. Certas situações (falar para mais de uma pessoa, encontrar-se num lugar público, defender uma opinião que não é partilhada pelos interlocutores) provocavam nessa paciente um esta­do de embotamento: "Fico. colada ao chão, como que paralisada, perco a palavra, minha boca parece engessada, e minha cabeça, com­pletamente vazia. " Um sentimento de incapacidade total a invade, seguido de um abatimento total, que desliga Hélenc do mundo, faz com que se retire para o seu quarto, se derreta em lágrimas e fique durante longos dias sem palavras, sem pensamentos: "Como morta, mas nem mesmo tenho a idéia ou o desejo de me matar, é como se isto já tivesse ocorrido."

Nessas situações, "estar morta", para Hélenc, queria dizer uma experiência física, inicialmente indizível. Quando, mais tarde, ela tentou encontrar palavras que a descrevessem, falou de estados de peso artificial, de insensibilidade exaurida, de ausência sobre fundo de vertigem, de vazio cortado em relâmpagos negros. . . Mas essas palavras ainda pareciam muito imprecisas para o que ela sentia como uma paralisia total da psique c do corpo, uma dissociação irremediável entre ela mesma e o resto, assim como no interior da·

A SOLIDÃO CANIBALfSTICA

O corpo-túmulo ou a devoração onipotente

DESDE o seu nascimento Hélene sofria de graves· dificuldades motoras que necessitaram de várias intervenções cirúrgicas e que a imobilizaram na cama até a idade de três anos. Entretanto, o brilhante desenvolvimento intelectual da menina conduziu-a para um destino profissional não menos brilhante, tanto que nada subsiste dos antigos defeitos motores e do contexto familiar que, com toda a evidência, os alimentava.

Nada, a não ser os freqüentes acessos de depressão grave que não pareciam ser desencadeados pela realidade atual, mais próspera, da vida de Hélêne. Certas situações (falar para mais de uma pessoa, encontrar-se num lugar público, defender uma opinião que não é partilhada pelos interlocutores) provocavam nessa paciente um esta­do de embotamento: "Fico. colada ao chão, como que paralisada, perco a palavra, minha boca parece engessada, e minha cabeça, com­pletamente vazia. " Um sentimento de incapacidade total a invade, seguido de um abatimento total, que desliga Hélenc do mundo, faz com que se retire para o seu quarto, se derreta em lágrimas e fique durante longos dias sem palavras, sem pensamentos: "Como morta, mas nem mesmo tenho a idéia ou o desejo de me matar, é como se isto já tivesse ocorrido."

Nessas situações, "estar morta", para Hélenc, queria dizer uma experiência física, inicialmente indizível. Quando, mais tarde, ela tentou encontrar palavras que a descrevessem, falou de estados de peso artificial, de insensibilidade exaurida, de ausência sobre fundo de vertigem, de vazio cortado em relâmpagos negros. . . Mas essas palavras ainda pareciam muito imprecisas para o que ela sentia como uma paralisia total da psique c do corpo, uma dissociação irremediável entre ela mesma e o resto, assim como no interior da·

74 A.SP.ECTOS DA DI!PaBSSÃo FEMININA

quilo que deveria ter sido "ela". Ausência de sensações, perda da dor ou esvaziamento do sofrimento: um entorpecimento absoluto, mineral, astral, mas acompanhado da percepção, ela também quase física, de que esse "estar morta", por mais físico ou sensorial que fosse, também era uma nebulosa de pensamento, uma imaginação amorfa, uma representação confusa de alguma impotência implacá­vel. Realidade e ficção do ser da morte . Cadaverização e artifício . Impotência absoluta e, contudo, secretamente, toda-poderosa. Arti· ficio de se manter viva, mas. . . "além". Além da castração e da desintegração: estar como morta, fingir-se de morta, isto aparecia a Hélene q3ando ela podia falar disto, depois do fato, portanto, como uma "poiética" da sobrevivência, como uma vida invertida, enro­lada à desintegração imaginária e real a ponto de encarnar a morte como verdadeira. Nesse universo, engolir o tubo de sonífero não é uma escolha, mas um gesto que se impõe a partir de um outro lugar: um não-ato, mais do que um sinal de término, uma harmo­nização quase estética de sua completude fictícia "além".

Uma morte oceânica, total, engolia o mundo e a pessoa de Hélene numa passividade sobrecarregada, acéfala, imóveL Esse ocea­no letal podia se instalar por dias e semanas, sem interesse nem acesso a nenhuma exterioridade . Quando a imagem de um objeto ou o rosto de uma pessoa chegavam a se cristalizar ali, eram ime­diatamente percebidos corno precipitados de ódio, elementos contun· dentes ou hostis, desintegrantes e angustiantes, que ela não podia enfrentar de outra forma senão matando-os. A condenação à morte desses estranhos substituía então o ser morto, e o oceano letal trans· fonnava-se em vagas de angústia . Entretanto, era a angústia que mantinha Hélene viva. Era a sua dança vital, após e além do estu­por mórbido. Certamente dolorosa e insuportável, a angústia, con­tudo, dava-lhe acesso a uma certa realidade. Os rostos a serem mor­tos eram sobretudo rostos de crianças . Esta tentação insuportável a horrorizava r lhe proporcionava a impressão· de ser monstruosa, mas de ser: de sair do nada.

Rostos da criança impotente que ela foi e que, doravante, que­ria liquidar? Tinha-se sobretudo o sentimento de que o desejo de fazer morrer desencadeava-se somente quando o mundo dos outros, antes absorvido pelo ego letal na sua impotência toda-poderosa, conseguia se separar do englobamento em que a melancolia onírica o aprisionava. Confrontada então com os outros, sem contudo v~los · como tal, a deprimida continuava a nele se projetar: "Não mato

SOL NEOa.O 75

meus frustradores ou meus tiranos, mato o bebê deles, que eles abandonam."

Tal como uma Alice no país das dores, a depressiva não supor· ta o espelho. Sua imagem e a dos outros suscitam, no seu narcisis­mo ferido, a violência e o desejo de matar, do qual ela se protege atravessando o estanho do espelho e instalandcrse no outro mundo onde, pela exposição sem limites do seu pesar congelado, ela reen­contra uma completude alucinada. Além-túmulo, Prosérpina sobre· vive como sombra cega . O seu corpo já está em outro lugar, ausente, cadáver vivo. Em geral, ocorre-lhe não nutri-lo ou então, pelo con­trário, empanturrá-lo para melhor afastar-se dele. Através de seu olhar nebuloso e embaçado de lágrimas que não os vê e não se vê, ela saboreia a amarga doçura de ser abandonada por tantos ausentes. Preocupada em incubar no interior do seu corpo e de sua psique uma dor física e moral, Hélene, contudo, passeia entre os outros - quando deixa o seu leito-túmulo - como extraterrestre, cidadã inacessível do magnífico país da Morte, do qual ninguém poderá despojá-la.

No início de sua análise, Hélene estava em guerra com a sua mãe: desumana, artificial, ninfomaníaca, incapaz de ter algum sen­timento e, no dizer da paciente, só pensando no seu dinheiro ou em seduzir. Hélene lembrava-se de "irrupções" de sua mãe no seu quarto como de uma "violação, invasão de domicílio, um estupro", ou das conversas muito íntimas, muito claras - "na verdade, elas me pareciam obscenas" - que sua mãe lhe dirigia na presença de amigos e que a faziam enrubescer de vergonha. . . e de prazer .

Entretanto, atrás desse véu de agressividade erótica, descobri­mos uma outra relação entre a criança enferma e sua mãe. "Esfor­cei-me para imaginar o seu rosto, agora ou na minha infância, não a vejo. Estou sentada sobre alguém que me carrega, talvez sobre seus joelhos, mas, de fato, não é ninguém . Uma pessoa teria um rosto, uma voz, um olhar, uma cabeça. Ora, não percebo nada disto, somente um apoio, é tudo, nada mais do que isto." Arrisco uma interpretação : "O outro, talvez você o tenha assimilado em você, você quer o seu apoio, suas pernas, mas no resto, talvez ela fosse você."- "Tive um sonho", encadeia Hélene, ''estou subindo a escada daqui, ela está coberta de corpos que se pareciam com as pessoas da foto de casamento de meus pais . Eu mesma sou convidada para essas núpcias, é uma refeição de antropófagos, devo comer esses

74 A.SP.ECTOS DA DI!PaBSSÃo FEMININA

quilo que deveria ter sido "ela". Ausência de sensações, perda da dor ou esvaziamento do sofrimento: um entorpecimento absoluto, mineral, astral, mas acompanhado da percepção, ela também quase física, de que esse "estar morta", por mais físico ou sensorial que fosse, também era uma nebulosa de pensamento, uma imaginação amorfa, uma representação confusa de alguma impotência implacá­vel. Realidade e ficção do ser da morte . Cadaverização e artifício . Impotência absoluta e, contudo, secretamente, toda-poderosa. Arti· ficio de se manter viva, mas. . . "além". Além da castração e da desintegração: estar como morta, fingir-se de morta, isto aparecia a Hélene q3ando ela podia falar disto, depois do fato, portanto, como uma "poiética" da sobrevivência, como uma vida invertida, enro­lada à desintegração imaginária e real a ponto de encarnar a morte como verdadeira. Nesse universo, engolir o tubo de sonífero não é uma escolha, mas um gesto que se impõe a partir de um outro lugar: um não-ato, mais do que um sinal de término, uma harmo­nização quase estética de sua completude fictícia "além".

Uma morte oceânica, total, engolia o mundo e a pessoa de Hélene numa passividade sobrecarregada, acéfala, imóveL Esse ocea­no letal podia se instalar por dias e semanas, sem interesse nem acesso a nenhuma exterioridade . Quando a imagem de um objeto ou o rosto de uma pessoa chegavam a se cristalizar ali, eram ime­diatamente percebidos corno precipitados de ódio, elementos contun· dentes ou hostis, desintegrantes e angustiantes, que ela não podia enfrentar de outra forma senão matando-os. A condenação à morte desses estranhos substituía então o ser morto, e o oceano letal trans· fonnava-se em vagas de angústia . Entretanto, era a angústia que mantinha Hélene viva. Era a sua dança vital, após e além do estu­por mórbido. Certamente dolorosa e insuportável, a angústia, con­tudo, dava-lhe acesso a uma certa realidade. Os rostos a serem mor­tos eram sobretudo rostos de crianças . Esta tentação insuportável a horrorizava r lhe proporcionava a impressão· de ser monstruosa, mas de ser: de sair do nada.

Rostos da criança impotente que ela foi e que, doravante, que­ria liquidar? Tinha-se sobretudo o sentimento de que o desejo de fazer morrer desencadeava-se somente quando o mundo dos outros, antes absorvido pelo ego letal na sua impotência toda-poderosa, conseguia se separar do englobamento em que a melancolia onírica o aprisionava. Confrontada então com os outros, sem contudo v~los · como tal, a deprimida continuava a nele se projetar: "Não mato

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meus frustradores ou meus tiranos, mato o bebê deles, que eles abandonam."

Tal como uma Alice no país das dores, a depressiva não supor· ta o espelho. Sua imagem e a dos outros suscitam, no seu narcisis­mo ferido, a violência e o desejo de matar, do qual ela se protege atravessando o estanho do espelho e instalandcrse no outro mundo onde, pela exposição sem limites do seu pesar congelado, ela reen­contra uma completude alucinada. Além-túmulo, Prosérpina sobre· vive como sombra cega . O seu corpo já está em outro lugar, ausente, cadáver vivo. Em geral, ocorre-lhe não nutri-lo ou então, pelo con­trário, empanturrá-lo para melhor afastar-se dele. Através de seu olhar nebuloso e embaçado de lágrimas que não os vê e não se vê, ela saboreia a amarga doçura de ser abandonada por tantos ausentes. Preocupada em incubar no interior do seu corpo e de sua psique uma dor física e moral, Hélene, contudo, passeia entre os outros - quando deixa o seu leito-túmulo - como extraterrestre, cidadã inacessível do magnífico país da Morte, do qual ninguém poderá despojá-la.

No início de sua análise, Hélene estava em guerra com a sua mãe: desumana, artificial, ninfomaníaca, incapaz de ter algum sen­timento e, no dizer da paciente, só pensando no seu dinheiro ou em seduzir. Hélene lembrava-se de "irrupções" de sua mãe no seu quarto como de uma "violação, invasão de domicílio, um estupro", ou das conversas muito íntimas, muito claras - "na verdade, elas me pareciam obscenas" - que sua mãe lhe dirigia na presença de amigos e que a faziam enrubescer de vergonha. . . e de prazer .

Entretanto, atrás desse véu de agressividade erótica, descobri­mos uma outra relação entre a criança enferma e sua mãe. "Esfor­cei-me para imaginar o seu rosto, agora ou na minha infância, não a vejo. Estou sentada sobre alguém que me carrega, talvez sobre seus joelhos, mas, de fato, não é ninguém . Uma pessoa teria um rosto, uma voz, um olhar, uma cabeça. Ora, não percebo nada disto, somente um apoio, é tudo, nada mais do que isto." Arrisco uma interpretação : "O outro, talvez você o tenha assimilado em você, você quer o seu apoio, suas pernas, mas no resto, talvez ela fosse você."- "Tive um sonho", encadeia Hélene, ''estou subindo a escada daqui, ela está coberta de corpos que se pareciam com as pessoas da foto de casamento de meus pais . Eu mesma sou convidada para essas núpcias, é uma refeição de antropófagos, devo comer esses

76 ASPECTOS DA DEPRESSÃO F6~~A

corpos, esses pedaços de corpos, cabeças, a cabeça de minha mãe também. E horroroso."

Assimilar-se oralmente à mãe que se casa, que tem am homem, que foge. Possuí-la, mantê-Ia dentro de si mesma para jamais se separar dela . A onipotência de Hélene transparece através da más­cara de agressividade e sustenta a inexistência do outro no seu devaneio, assim como a dificuldade que ela sente de se colocar face a uma pessoa diferente dela, separada dela , na vida real.

Uma intervenção cirúrgica menor angustia ~élene a ponto de ela preferir correr o risco do agravamento da doença para não se expor à anestesia . "Este adormecimento é muito triste, não poderia suportá-lo. Bem entendido, vão me apalpar, mas não é isto que me dá medo. 1!. estranho, tenho o sentimento de que vou me encontrar terrivelmente só. Entretanto, é absurdo, porque na realidade, jamais terão cuidado tanto de mim." Talvez ela tenha o sentimento de que a " intervenção" cirúrgica (faço alusão a minhas "intervenções" in­terpretativas) lhe tirará alguém de muito próximo, alguém indispen· sável, que ela imagina ter fechado dentro de si e que, permanente· mente, lhe faz companhia? "Não vejo quem possa ser. Já lhe disse, não penso em ninguém, não há outro para mim, não vejo ninguém à minha volta, por mais que me lembre. . . Me esqueci de lhe dizer, fiz amor e tive enjôo . Vomitei e vi, como se estivesse entre o sonho e o despertar, algo como a cabeça de uma criança que caía no vaso sanitário, enquanto uma voz me chamava ao longe, mas se enganando, pelo nome de minha mãe." Hélene confirmava assim minha interpretação de ter encerrado um fantasma, a representação de sua mãe, dentro do seu corpo . E ela partia trôpega, como que perturbada por ter de desistir, mesmo que fosse em palavras, desse objeto aprisionado nela mesma e que, se viesse a lhe faltar, a mer­gulharia num pesar sem fim . Pontual e extraordinariamente regular , pela primeira vez em sua análise ela esquece a hora da sua pró­xima sessão. Na sessão seguinte, confessa que não se lembra de nada da anterior, à qual faltou: tudo é vazio, branco, ela se sente esvaziada e terrivelmente triste, nada tem sentido, ela volta a se encontrar nesses estados de estupor tão penosos ... Teria ela ten­tado fechar-me nela, no lugar dessa mãe que desalojamos? Aprisio· nar-me no seu corpo de forma que, misturadas uma à outra, não pudéssemos mais nos reencontrar, pois, por algum tempo, ela me havia englobado, ingurgitado, sepultado no seu corpo-túmulo imagi· nário, como fizera com sua mãe?

SOL NEOII.O 77

Perversa e frígida

Com freqüência Hélene se queixa do fato de que suas pala· vras, com as quais deseja me "tocar", na realidade são ocas e secas, " longe da verdadeira emoção": "Pode-se dizer qualquer coisa, talvez seja uma informação, mas isto não tem sentido, pelo menos para mim." Esta descrição do seu discurso faz com que pense no que ela chama de suas "orgias". Da adolescência até o início da sua análise, ela faz alternar os estados de prostração com " festins eró­ticos". "Faço tudo e qualquer coisa, sou o homem, a mulher, o animal, tudo o que quiserem, isto assombra as pessoas e me fazia gozar, creio, mas não era verdadeiramente eu. Era agradável, mas era uma outra."

A onipotência e a recusa da perda conduzem · Hélene a uma busca febril de satisfação: ela pode tudo, a ·todo-poderosa é ela. Triunfo narcísico e fáliico, essa atitude maníaca apareceu finalmente extenuante, porque barrava toda possibilidade de simbolização aos afetos negativos - o medo, o pesar, a dor .. .

Entretanto, quando a análise da onipotência deixou esses afe­tos acederem ao discurso, Hélene conheceu um período de frigidez . O objeto materno, forçosamente erótico, que de início era captado para ser aniquilado em Hélene, uma vez reencontrado e nomeado no decolTer da análise, sem dúvida, por um tempo, satisfez a pa­ciente. ''Eu a tenho em mim", parece dizer a frígida, "ela não me abandona, mas nenhuma outra pessoa pode tomar o seu lugar, sou impenetrável, minha vagina morreu." A frigidez, que é essen­cialmente vaginal e que o orgasmo clitoridiano, em parte, pode com­pensar trai uma captação imaginária , por parte da mulher frígida, de uma figura materna aprisionada analmente e transferida para a vagina-cloaca. Muitas mulheres sabem que, em seus sonhos, suas mães representam o amante ou o marido c vice-versa, com o qual/a qual elas não deixam de ajustar contas, sem satisfação, de possessão anal. Tal mãe imaginada como indispensável, satisfatória, invasora é, por isto mesmo, mortífera : ela desvitaliza sua filha e fecha-lhe todas as saídas. Mais a inda , u!Jla vez que é imaginada como alguém que açambarca o gozo que a filha lhe doara, mas sem devolver nada em seu lugar (sem fazer-lhe um filho) , essa mãe cnclausura a mulher frígida numa solidão imaginária, tanto afetiva quanto sen­sorial'. Seria preciso, por sua vez, que a parceira p:1desse ser ima· ginada como "mais.que-mãe" para, ao mesmo tempo, preencher o

76 ASPECTOS DA DEPRESSÃO F6~~A

corpos, esses pedaços de corpos, cabeças, a cabeça de minha mãe também. E horroroso."

Assimilar-se oralmente à mãe que se casa, que tem am homem, que foge. Possuí-la, mantê-Ia dentro de si mesma para jamais se separar dela . A onipotência de Hélene transparece através da más­cara de agressividade e sustenta a inexistência do outro no seu devaneio, assim como a dificuldade que ela sente de se colocar face a uma pessoa diferente dela, separada dela , na vida real.

Uma intervenção cirúrgica menor angustia ~élene a ponto de ela preferir correr o risco do agravamento da doença para não se expor à anestesia . "Este adormecimento é muito triste, não poderia suportá-lo. Bem entendido, vão me apalpar, mas não é isto que me dá medo. 1!. estranho, tenho o sentimento de que vou me encontrar terrivelmente só. Entretanto, é absurdo, porque na realidade, jamais terão cuidado tanto de mim." Talvez ela tenha o sentimento de que a " intervenção" cirúrgica (faço alusão a minhas "intervenções" in­terpretativas) lhe tirará alguém de muito próximo, alguém indispen· sável, que ela imagina ter fechado dentro de si e que, permanente· mente, lhe faz companhia? "Não vejo quem possa ser. Já lhe disse, não penso em ninguém, não há outro para mim, não vejo ninguém à minha volta, por mais que me lembre. . . Me esqueci de lhe dizer, fiz amor e tive enjôo . Vomitei e vi, como se estivesse entre o sonho e o despertar, algo como a cabeça de uma criança que caía no vaso sanitário, enquanto uma voz me chamava ao longe, mas se enganando, pelo nome de minha mãe." Hélene confirmava assim minha interpretação de ter encerrado um fantasma, a representação de sua mãe, dentro do seu corpo . E ela partia trôpega, como que perturbada por ter de desistir, mesmo que fosse em palavras, desse objeto aprisionado nela mesma e que, se viesse a lhe faltar, a mer­gulharia num pesar sem fim . Pontual e extraordinariamente regular , pela primeira vez em sua análise ela esquece a hora da sua pró­xima sessão. Na sessão seguinte, confessa que não se lembra de nada da anterior, à qual faltou: tudo é vazio, branco, ela se sente esvaziada e terrivelmente triste, nada tem sentido, ela volta a se encontrar nesses estados de estupor tão penosos ... Teria ela ten­tado fechar-me nela, no lugar dessa mãe que desalojamos? Aprisio· nar-me no seu corpo de forma que, misturadas uma à outra, não pudéssemos mais nos reencontrar, pois, por algum tempo, ela me havia englobado, ingurgitado, sepultado no seu corpo-túmulo imagi· nário, como fizera com sua mãe?

SOL NEOII.O 77

Perversa e frígida

Com freqüência Hélene se queixa do fato de que suas pala· vras, com as quais deseja me "tocar", na realidade são ocas e secas, " longe da verdadeira emoção": "Pode-se dizer qualquer coisa, talvez seja uma informação, mas isto não tem sentido, pelo menos para mim." Esta descrição do seu discurso faz com que pense no que ela chama de suas "orgias". Da adolescência até o início da sua análise, ela faz alternar os estados de prostração com " festins eró­ticos". "Faço tudo e qualquer coisa, sou o homem, a mulher, o animal, tudo o que quiserem, isto assombra as pessoas e me fazia gozar, creio, mas não era verdadeiramente eu. Era agradável, mas era uma outra."

A onipotência e a recusa da perda conduzem · Hélene a uma busca febril de satisfação: ela pode tudo, a ·todo-poderosa é ela. Triunfo narcísico e fáliico, essa atitude maníaca apareceu finalmente extenuante, porque barrava toda possibilidade de simbolização aos afetos negativos - o medo, o pesar, a dor .. .

Entretanto, quando a análise da onipotência deixou esses afe­tos acederem ao discurso, Hélene conheceu um período de frigidez . O objeto materno, forçosamente erótico, que de início era captado para ser aniquilado em Hélene, uma vez reencontrado e nomeado no decolTer da análise, sem dúvida, por um tempo, satisfez a pa­ciente. ''Eu a tenho em mim", parece dizer a frígida, "ela não me abandona, mas nenhuma outra pessoa pode tomar o seu lugar, sou impenetrável, minha vagina morreu." A frigidez, que é essen­cialmente vaginal e que o orgasmo clitoridiano, em parte, pode com­pensar trai uma captação imaginária , por parte da mulher frígida, de uma figura materna aprisionada analmente e transferida para a vagina-cloaca. Muitas mulheres sabem que, em seus sonhos, suas mães representam o amante ou o marido c vice-versa, com o qual/a qual elas não deixam de ajustar contas, sem satisfação, de possessão anal. Tal mãe imaginada como indispensável, satisfatória, invasora é, por isto mesmo, mortífera : ela desvitaliza sua filha e fecha-lhe todas as saídas. Mais a inda , u!Jla vez que é imaginada como alguém que açambarca o gozo que a filha lhe doara, mas sem devolver nada em seu lugar (sem fazer-lhe um filho) , essa mãe cnclausura a mulher frígida numa solidão imaginária, tanto afetiva quanto sen­sorial'. Seria preciso, por sua vez, que a parceira p:1desse ser ima· ginada como "mais.que-mãe" para, ao mesmo tempo, preencher o

78 ASPECTOS DÀ DEPRESSÃO FEloONINA

papel da "Coisa" e do "Objeto", para não ficar aquém da demanda narcisica, mas também e sobretudo para desalojá-la e conduzir a mulher a investir o seu auto-erotismo num gozo do outro {separado, simbólico, fálico).

Assim, dois gozos parecem ser possíveis para uma m:llher . Por um lado, o gozo fálico- competição ou identificação com o poder simbólico do parceiro - que mobiliza o clitóris. Por outro, um outro gozo que o fantasma imagina e realiza visando mais profun· damente ao espaço psíquico, mas também ao espaço do corpo. Este outro gozo exige que o objeto melancólico, que obstrui . o interior psíquico e corporal, seja literalmente liquefeito. Quem pode {az~lo? Um parceiro imaginado, capaz de dissolver a mã~ aprisionada em mim, dando-me o que ela pôde e sobretudo o que ela não pôde me dar, ao mesmo·· tempo que, entretanto, se mantém num lugar diferente, que não é mais o da mãe, mas daquele que pode me proporcionar o dom maior que ela jamais pôde me oferecer - umo nova vida. Um parceiro que não tem nem o papel do pai que gratifica sua filha de fonna idealizada, nem aquele do padrão sim· bólico que se trata de . atingir numa competição viril. O interior feminino (no sentido do espaço psíquico e; no nível da vivência corporal, da associação vagina-ânus) pode então deixar de ser a cripta que engloba a morte e que condiciona a (rigidez. A condena· ção à morte da mãe mortífera em mim confere ao parceiro os char­mes de um doador de vida, precisamente de um "mais-que-mãe". Ele não é uma outra mãe fálica, mas sobretudo uma reparação da mãe através de uma violência fálica que destrói o mau , mas que também dá e gratifica. O gozo dito vaginal que se segue é sim· bolicamente dependente, vemos isto, de uma relação com o Outro imagina.do não mais numa supervalorização fálíca, mas como re­constituinte do objeto narcisico e como capaz de assegurar o seu deslocamento para fora - dando um filho, e tornando-se ele pró­prio o traço de união entre o laço mãe-filho e o poder fálico, ou então favorecendo a vida simbólica da mulher amada.

Nada diz que esse outro gozo seja absolutamente necessário para a realização psíquica de uma mulher. Com muita freqüência, a compensação fálica, profissional ou materna, ou então o prazer clitoridiano são o disfarce mais ou menos estanque da frigidez . En­tretanto, se homens e mulheres atribuem um valor q:.~ase sagrado ao outro gozo, talvez seja porque ele é a linguagem do corpo femi· nino que, provisoriamente, triunfou sobre a depressão. Trata-se de

90L NEGRO 79

um triunfo sobre a morte, certamente não como último destino do indivíduo, mas sobre a morte imaginária da qual o ser humano pre­maturo é o jogo permanente, se sua mãe o abandona, o negligencia ou não o compreende. No fantasma feminino, esse gozo supõe o triunfo sobre a mãe mortífera, para que o interior se torne fonte de gratificação, sendo ao mesmo tempo, eventualmente, fonte de vida biológica, de concepção e de maternidade .

78 ASPECTOS DÀ DEPRESSÃO FEloONINA

papel da "Coisa" e do "Objeto", para não ficar aquém da demanda narcisica, mas também e sobretudo para desalojá-la e conduzir a mulher a investir o seu auto-erotismo num gozo do outro {separado, simbólico, fálico).

Assim, dois gozos parecem ser possíveis para uma m:llher . Por um lado, o gozo fálico- competição ou identificação com o poder simbólico do parceiro - que mobiliza o clitóris. Por outro, um outro gozo que o fantasma imagina e realiza visando mais profun· damente ao espaço psíquico, mas também ao espaço do corpo. Este outro gozo exige que o objeto melancólico, que obstrui . o interior psíquico e corporal, seja literalmente liquefeito. Quem pode {az~lo? Um parceiro imaginado, capaz de dissolver a mã~ aprisionada em mim, dando-me o que ela pôde e sobretudo o que ela não pôde me dar, ao mesmo·· tempo que, entretanto, se mantém num lugar diferente, que não é mais o da mãe, mas daquele que pode me proporcionar o dom maior que ela jamais pôde me oferecer - umo nova vida. Um parceiro que não tem nem o papel do pai que gratifica sua filha de fonna idealizada, nem aquele do padrão sim· bólico que se trata de . atingir numa competição viril. O interior feminino (no sentido do espaço psíquico e; no nível da vivência corporal, da associação vagina-ânus) pode então deixar de ser a cripta que engloba a morte e que condiciona a (rigidez. A condena· ção à morte da mãe mortífera em mim confere ao parceiro os char­mes de um doador de vida, precisamente de um "mais-que-mãe". Ele não é uma outra mãe fálica, mas sobretudo uma reparação da mãe através de uma violência fálica que destrói o mau , mas que também dá e gratifica. O gozo dito vaginal que se segue é sim· bolicamente dependente, vemos isto, de uma relação com o Outro imagina.do não mais numa supervalorização fálíca, mas como re­constituinte do objeto narcisico e como capaz de assegurar o seu deslocamento para fora - dando um filho, e tornando-se ele pró­prio o traço de união entre o laço mãe-filho e o poder fálico, ou então favorecendo a vida simbólica da mulher amada.

Nada diz que esse outro gozo seja absolutamente necessário para a realização psíquica de uma mulher. Com muita freqüência, a compensação fálica, profissional ou materna, ou então o prazer clitoridiano são o disfarce mais ou menos estanque da frigidez . En­tretanto, se homens e mulheres atribuem um valor q:.~ase sagrado ao outro gozo, talvez seja porque ele é a linguagem do corpo femi· nino que, provisoriamente, triunfou sobre a depressão. Trata-se de

90L NEGRO 79

um triunfo sobre a morte, certamente não como último destino do indivíduo, mas sobre a morte imaginária da qual o ser humano pre­maturo é o jogo permanente, se sua mãe o abandona, o negligencia ou não o compreende. No fantasma feminino, esse gozo supõe o triunfo sobre a mãe mortífera, para que o interior se torne fonte de gratificação, sendo ao mesmo tempo, eventualmente, fonte de vida biológica, de concepção e de maternidade .

MATAR OU SE MATAR: A CULPA ATUADA

O ato seria apenas condenável

A depressão feminina, às vezes, esconde~se sob uma atividade febril que dá à deprimida a aparência de uma mulher prática bem à vontade e que só pensa em se devotar a alguma coisa. Marie-Ange acrescenta a esta máscara, que sorrateiramente,. ou sem sabê-lo, mui­tas mulheres usam, vingança fria, um· verdadeiro complô mortífero, do qual ela própria se espanta de ser o cérebro e a arma, e que a faz sofrer porque ela o sente como um erro grave . Ao descobrir que seu marido a enganava, Marie-Ange consegue identificar sua rival e se entrega a uma série de maquinações mais ou menos in· fantis ou d iabólicas para, simplesmente, eliminar a importuna, que, no caso, é uma amiga e colega . Elas consistem sobretudo em colo· car soníferos e produtos prejudiciais à saúde nos cafés, chás e outras bebidas que Marie-Ange generosamente lhe oferece. Mas chega tam· bém a esvaziar os pneus do seu carro, a serrar os freios etc .

Uma certa embriaguez habita Marie-Ange quando ela empre­ende essas represálias. Esquece seu ciúme e sua dor e, ao mesmo tempo que tem vergonha dos seus atos, sente quase uma satisfação com eles. Cometer um erro a faz sofrer porque cometer um erro a faz gozar, e vice-versa. Fazer mal à sua rival, aturdi-la ou mesmo matá--la não é também uma maneira de se introduzir na vida da outra mulher, de fazê-la gozar até morrer? A violência de Marie­Ange confere-lhe um poder fálico que compensa a humilhação e, mais ainda, lhe dá a impressão de ser mais poderosa do que seu marido: mais decisiva, por assim dizer, sobre o corpo de sua amante. A recriminação ao adultério do marido é apenas uma su­perfície insignificante . Ao mesmo tempo que estava ferida pelo "erro" do seu cônjuge, não é a reprovação moral nem a queixa narcísica, infligida pelo seu marido faltoso, que anima o sofrimento e a vingança de Marie-Ange.

SOL NEGRO 81

De modo mais primário, qualquer possibilidade de agir parece apresentar-se, fundamentalmente, como uma transgressão, comÇ> um erro. Agir seria comprometer-~:e. e, quando o retardamento depres­sivo subjacente à inibição entrava qualquer possibilidade de reali zação, o único ato possível para esta mulher torna-se o erro maior: matar ou se matar. Imagina-se um intenso ciúme edipiano em rela­ção ao "ato originário" dos pais, sem dúvida sempre percebido e pensado como condenável: Uma sever:dadc precoce do superego, um domínio feroz sobre o Objeto-Coisa do desejo homossex:.tal ar­caico ... "Não ajo, e se ajo, isto é abominável, deve ser conde­nável."

Na vertente maníaca, essa paralisia da ação toma .o aspecto da atividade insignificante (e por isto mesmo relativamente pouco cul­pável), portanto possível, ou então ela aspira ao ato-erro maior.

Uma perversão brancu

A perda do objeto erótico {infidelidade ou abandono por parte do amante ou do marido, divórcio etc.) é ressentida por uma mu­lher como um ataque contra a sua genitalidade e, deste ponto de vista, equivale a 'Jma castração. Imediatamente, tal castração entro em ressonância com .a ameaça de destruição da integridade do corpo e da imagem, assim como da totalidade do aparelho psíquico. Ass!m, a castração feminina. não é des-erotizada, mas sim recoberta pela angústia narcisica que domina e abriga o erotismo como um segred-:; vergonhoso. Uma mulher, por mais que se esforce por não ter pênis a perder, sente-se perdida por inteiro - corpo e sobretudo alma -sob a ameaça da castração. Como se o seu falo fosse a sua psique, a perda do objeto erótico fragmenta e ameaça esvaziar toda sua vida psíquica. A perda, fora, é imediata c depressivamente vivida como um vazio dentro .

Isto significa que o vazio psíquico1 e ó afeto doloroso, que é n sua manifestação ínfima e contudo intensa, instalam-se na posição e em nome da perda inconfessável. O procedimento depressivo ins-

1• Somos devedores, em parricular,, aos trabalhos de A. Green, por t~r elabo­

rado a noção de "vazio psíquico". " L'analystc, la symbolisatiun ct l'abscnce tl<~ns la cure analyt ique" (0 analista , a simbolização c a ausência na cura ana­l ;tica), relatório do XXXIX Congresso Internacional de Psicanáiisé, Londres. 1975; Nurcisismo de vida, trarcisismo de morte.

MATAR OU SE MATAR: A CULPA ATUADA

O ato seria apenas condenável

A depressão feminina, às vezes, esconde~se sob uma atividade febril que dá à deprimida a aparência de uma mulher prática bem à vontade e que só pensa em se devotar a alguma coisa. Marie-Ange acrescenta a esta máscara, que sorrateiramente,. ou sem sabê-lo, mui­tas mulheres usam, vingança fria, um· verdadeiro complô mortífero, do qual ela própria se espanta de ser o cérebro e a arma, e que a faz sofrer porque ela o sente como um erro grave . Ao descobrir que seu marido a enganava, Marie-Ange consegue identificar sua rival e se entrega a uma série de maquinações mais ou menos in· fantis ou d iabólicas para, simplesmente, eliminar a importuna, que, no caso, é uma amiga e colega . Elas consistem sobretudo em colo· car soníferos e produtos prejudiciais à saúde nos cafés, chás e outras bebidas que Marie-Ange generosamente lhe oferece. Mas chega tam· bém a esvaziar os pneus do seu carro, a serrar os freios etc .

Uma certa embriaguez habita Marie-Ange quando ela empre­ende essas represálias. Esquece seu ciúme e sua dor e, ao mesmo tempo que tem vergonha dos seus atos, sente quase uma satisfação com eles. Cometer um erro a faz sofrer porque cometer um erro a faz gozar, e vice-versa. Fazer mal à sua rival, aturdi-la ou mesmo matá--la não é também uma maneira de se introduzir na vida da outra mulher, de fazê-la gozar até morrer? A violência de Marie­Ange confere-lhe um poder fálico que compensa a humilhação e, mais ainda, lhe dá a impressão de ser mais poderosa do que seu marido: mais decisiva, por assim dizer, sobre o corpo de sua amante. A recriminação ao adultério do marido é apenas uma su­perfície insignificante . Ao mesmo tempo que estava ferida pelo "erro" do seu cônjuge, não é a reprovação moral nem a queixa narcísica, infligida pelo seu marido faltoso, que anima o sofrimento e a vingança de Marie-Ange.

SOL NEGRO 81

De modo mais primário, qualquer possibilidade de agir parece apresentar-se, fundamentalmente, como uma transgressão, comÇ> um erro. Agir seria comprometer-~:e. e, quando o retardamento depres­sivo subjacente à inibição entrava qualquer possibilidade de reali zação, o único ato possível para esta mulher torna-se o erro maior: matar ou se matar. Imagina-se um intenso ciúme edipiano em rela­ção ao "ato originário" dos pais, sem dúvida sempre percebido e pensado como condenável: Uma sever:dadc precoce do superego, um domínio feroz sobre o Objeto-Coisa do desejo homossex:.tal ar­caico ... "Não ajo, e se ajo, isto é abominável, deve ser conde­nável."

Na vertente maníaca, essa paralisia da ação toma .o aspecto da atividade insignificante (e por isto mesmo relativamente pouco cul­pável), portanto possível, ou então ela aspira ao ato-erro maior.

Uma perversão brancu

A perda do objeto erótico {infidelidade ou abandono por parte do amante ou do marido, divórcio etc.) é ressentida por uma mu­lher como um ataque contra a sua genitalidade e, deste ponto de vista, equivale a 'Jma castração. Imediatamente, tal castração entro em ressonância com .a ameaça de destruição da integridade do corpo e da imagem, assim como da totalidade do aparelho psíquico. Ass!m, a castração feminina. não é des-erotizada, mas sim recoberta pela angústia narcisica que domina e abriga o erotismo como um segred-:; vergonhoso. Uma mulher, por mais que se esforce por não ter pênis a perder, sente-se perdida por inteiro - corpo e sobretudo alma -sob a ameaça da castração. Como se o seu falo fosse a sua psique, a perda do objeto erótico fragmenta e ameaça esvaziar toda sua vida psíquica. A perda, fora, é imediata c depressivamente vivida como um vazio dentro .

Isto significa que o vazio psíquico1 e ó afeto doloroso, que é n sua manifestação ínfima e contudo intensa, instalam-se na posição e em nome da perda inconfessável. O procedimento depressivo ins-

1• Somos devedores, em parricular,, aos trabalhos de A. Green, por t~r elabo­

rado a noção de "vazio psíquico". " L'analystc, la symbolisatiun ct l'abscnce tl<~ns la cure analyt ique" (0 analista , a simbolização c a ausência na cura ana­l ;tica), relatório do XXXIX Congresso Internacional de Psicanáiisé, Londres. 1975; Nurcisismo de vida, trarcisismo de morte.

P.2 ASPECTOS DA DEPRESSÃO FEMININA

creve-se a partir de e neste vazio. A atividade inócua, isenta de significação pode, de forma indiferente, tomar um curso mortífero (matar a rival que extasia o parceiro) ou um curso anódino (esgo­tar-se em cuidar da casa ou repassar as lições com as crianças). Ela permancçe sempre retida por um invólucro psíquico dolorido, anes­tesiada, como "morta".

Os primeiros tempos de análise das depressivas acolhem e res­peitam o seu vazio de mortas-vivas. Somente estabelecendo uma cumplicidade desembaraçada da t!rania do superego é que a análise permite que a vergonl1a seja dita e que a morte reencontre sua ins­tância de desejo de morte. O desejo de Marie-Ange de fazer (a outra) morrer para não fingir-se (ela mesma) de morta pode então 'ser contado como. um desejo sexual de gozar com a sua rival ou de fazê-la gozar. Po r este fato, a depressão aparece como o disfarce de uma perversão in6cua: sonhada, desejada, mesmo pensada, mas inconfessável e para sempre impossível. O procedimento depressi· vo, precisamente. faz economia da atuação perversa: ·ele esvazia a psique dolorosa e faz uma barragem para o sexo vivido como ver­gonhoso . A atividade transbordante da melancolia, um pouco hip· nóide, investe em segredo a perversão no que a lei tem de. mais implacável: na ooação, no dever, no destino e até na fatalidade da morte.

Por desvelar o segredo sexual (homossexual) do procedimento depressivo que faz o depressivo viver com a morte, a análise volta a dar ao desejo o seu lugar no espaço psíquico do paciente (a pulsão de morte não é o desejo de morte). Assim, ela demarca o espaço psíquico que se torm~ capaz de integrar a perda a título de objeto significá­vel ao mesmo tempo que erotizável. A separação aparece, doravante, não mais como uma ameaça de desintegração, mas como uma alter­nativa para qualquer outro - conflituoso, portador de Eros e de Tanatos, suscetível de ter sentido e não-sentido.

A mulher de Dom ]uan: triste ou terrorista

Marie-Ange tem uma irmã mais velha e vanos irmãos mais velhos do que ela. Sempre sentiu ciúmes desta irmã mais velh~. preferida pelo pai, mas de sua infância ela retém a certeza de ter sido abandonada por sua mãe, monopolizada por numerosas gravi­dezes sucessivas . Nenhum ódio parece ter se manifestado no pas· sado, não mais que agora, com relação à sua irmã e à sua mãe. Marie-Ange, pelo contrário, procedia como uma criança bem-<:om-

·801. NEGaO 83

portada, triste, sempre retirada. Tinha medo de sair e, quando sua mãe fazia compras, esperava ansiosa na janela. "M9rava na casa como se estivesse no seu lugar, conservava o seu odor, imaginava a sua presença, guardava-a comigo." Sua mãe achava que essa tristeza não era normal: "Essa cara de freira é falsa, ela esconde alguma coisa", desaprovava a matriarca, e suas palavras esfriavam ainda mais a menina, no fundo do seu esconderijo interior.

Marie-Ange levou muito tempo antes de me falar dos seus esta­dos depressivos atuais. Sob a superfície da professora primária sempre pontual, muito ocupada e impecável, apareceu uma mulher que, às vezes, tira longas licenças de doença, porque não quer, não pode sair de casa: para aprisionar qual presença fugidia?

Entretanto, ela consegue dominar seus estados de desconsolo e de paralisia total identificando-se com o personagem matemo, seja com a dona-de-casa superativa, ou mesmo - é assim que ela chega à atuação contra a sua rival -com a mãe fálica desejada, de quem ela queria ser a parceira homossexual passiva , ou então, inversa­mente, cujo corpo ela mesma desejaria abraçar . _pela condenação à morte . Assim, Marie-Ange me traz um sonho que a faz entrever a paixão com a qual se nutria o seu ódio por sua rival. Ela chega a abrir o carro da amante do seu marido, para ali esconder um explosivo. Mas, na verdade, não é um carro, é o leito de sua mãe, Marie·Ange está encolhida junto a ela e, bruscamente, percebe que essa mãe, que tão generosamente dava o seio ao bando de meninos que seguiam Marie-Ange, possuía um pênis .

O parceiro heterossexual de uma mulher, quando a relação se revela satisfatória para ela, em geral possui as qualidades de sua mãe . A depressiva só revoga esta regra de forma indire.ta. Seu parceiro preferido ou o seu marido é a mãe satisfatória, mas infiel. A desesperada pode então estar ligada ao seu Dom Juan de forma dramática, desesperada. Pois, além do fato de que ele lhe propor ciona a possibilidade de gozar com uma mãe infiel, Don · J uan sa· tisfaz o seu apetite ávido de outras mulheres. Suas amantes são as amantes dela. As atuações dele satisfazem a erotomania dela e lhe proporcionam um antidepressor, uma exaltação febril para além da dor . Se o desejo sexual subjacente a essa paixão fosse recalcado. o assassinato poderia tomar o lugar do abraço e a deprimida pode­ria transformar-se em terrorista.

Domesticar o pesar, não fugir imediatamente da tristeza, ma~ deixá-la se instalar por algum tempo, desabrochar mesmo e somente assim esvaziar-se: eis o que poderia ser uma das fases, certamente

P.2 ASPECTOS DA DEPRESSÃO FEMININA

creve-se a partir de e neste vazio. A atividade inócua, isenta de significação pode, de forma indiferente, tomar um curso mortífero (matar a rival que extasia o parceiro) ou um curso anódino (esgo­tar-se em cuidar da casa ou repassar as lições com as crianças). Ela permancçe sempre retida por um invólucro psíquico dolorido, anes­tesiada, como "morta".

Os primeiros tempos de análise das depressivas acolhem e res­peitam o seu vazio de mortas-vivas. Somente estabelecendo uma cumplicidade desembaraçada da t!rania do superego é que a análise permite que a vergonl1a seja dita e que a morte reencontre sua ins­tância de desejo de morte. O desejo de Marie-Ange de fazer (a outra) morrer para não fingir-se (ela mesma) de morta pode então 'ser contado como. um desejo sexual de gozar com a sua rival ou de fazê-la gozar. Po r este fato, a depressão aparece como o disfarce de uma perversão in6cua: sonhada, desejada, mesmo pensada, mas inconfessável e para sempre impossível. O procedimento depressi· vo, precisamente. faz economia da atuação perversa: ·ele esvazia a psique dolorosa e faz uma barragem para o sexo vivido como ver­gonhoso . A atividade transbordante da melancolia, um pouco hip· nóide, investe em segredo a perversão no que a lei tem de. mais implacável: na ooação, no dever, no destino e até na fatalidade da morte.

Por desvelar o segredo sexual (homossexual) do procedimento depressivo que faz o depressivo viver com a morte, a análise volta a dar ao desejo o seu lugar no espaço psíquico do paciente (a pulsão de morte não é o desejo de morte). Assim, ela demarca o espaço psíquico que se torm~ capaz de integrar a perda a título de objeto significá­vel ao mesmo tempo que erotizável. A separação aparece, doravante, não mais como uma ameaça de desintegração, mas como uma alter­nativa para qualquer outro - conflituoso, portador de Eros e de Tanatos, suscetível de ter sentido e não-sentido.

A mulher de Dom ]uan: triste ou terrorista

Marie-Ange tem uma irmã mais velha e vanos irmãos mais velhos do que ela. Sempre sentiu ciúmes desta irmã mais velh~. preferida pelo pai, mas de sua infância ela retém a certeza de ter sido abandonada por sua mãe, monopolizada por numerosas gravi­dezes sucessivas . Nenhum ódio parece ter se manifestado no pas· sado, não mais que agora, com relação à sua irmã e à sua mãe. Marie-Ange, pelo contrário, procedia como uma criança bem-<:om-

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portada, triste, sempre retirada. Tinha medo de sair e, quando sua mãe fazia compras, esperava ansiosa na janela. "M9rava na casa como se estivesse no seu lugar, conservava o seu odor, imaginava a sua presença, guardava-a comigo." Sua mãe achava que essa tristeza não era normal: "Essa cara de freira é falsa, ela esconde alguma coisa", desaprovava a matriarca, e suas palavras esfriavam ainda mais a menina, no fundo do seu esconderijo interior.

Marie-Ange levou muito tempo antes de me falar dos seus esta­dos depressivos atuais. Sob a superfície da professora primária sempre pontual, muito ocupada e impecável, apareceu uma mulher que, às vezes, tira longas licenças de doença, porque não quer, não pode sair de casa: para aprisionar qual presença fugidia?

Entretanto, ela consegue dominar seus estados de desconsolo e de paralisia total identificando-se com o personagem matemo, seja com a dona-de-casa superativa, ou mesmo - é assim que ela chega à atuação contra a sua rival -com a mãe fálica desejada, de quem ela queria ser a parceira homossexual passiva , ou então, inversa­mente, cujo corpo ela mesma desejaria abraçar . _pela condenação à morte . Assim, Marie-Ange me traz um sonho que a faz entrever a paixão com a qual se nutria o seu ódio por sua rival. Ela chega a abrir o carro da amante do seu marido, para ali esconder um explosivo. Mas, na verdade, não é um carro, é o leito de sua mãe, Marie·Ange está encolhida junto a ela e, bruscamente, percebe que essa mãe, que tão generosamente dava o seio ao bando de meninos que seguiam Marie-Ange, possuía um pênis .

O parceiro heterossexual de uma mulher, quando a relação se revela satisfatória para ela, em geral possui as qualidades de sua mãe . A depressiva só revoga esta regra de forma indire.ta. Seu parceiro preferido ou o seu marido é a mãe satisfatória, mas infiel. A desesperada pode então estar ligada ao seu Dom Juan de forma dramática, desesperada. Pois, além do fato de que ele lhe propor ciona a possibilidade de gozar com uma mãe infiel, Don · J uan sa· tisfaz o seu apetite ávido de outras mulheres. Suas amantes são as amantes dela. As atuações dele satisfazem a erotomania dela e lhe proporcionam um antidepressor, uma exaltação febril para além da dor . Se o desejo sexual subjacente a essa paixão fosse recalcado. o assassinato poderia tomar o lugar do abraço e a deprimida pode­ria transformar-se em terrorista.

Domesticar o pesar, não fugir imediatamente da tristeza, ma~ deixá-la se instalar por algum tempo, desabrochar mesmo e somente assim esvaziar-se: eis o que poderia ser uma das fases, certamente

S4 ASPECTOS · DA D.EPUSS4o I'EMnllNA .

passageira, mas indispensável, da análise. A riqueza da minha tristeza seria minha maneira de me proteger contra a morte - morte do outro desejado-rejeitado, minha própriá morte?

· Marie-Angc:: sufocara nela a desolação e a desvalorização nas quais o abandono materno, real ou imaginário, a deixava . A idéia de ser feia, incompetente e insignificante não a largava, mas era mais uma atmosfera do que uma idé!a, nada de claro, somente uma cor sombria de dia cinzento. Em compensação, o desejo de morte, de sua própria morte (por não poder se vingar da mãe), infiltrava-se nas suas fobias: medo de cair da janela, do elevador, de um rochedo ou da encosta de uma montanha. Medo de voltar a se encontrar no vazio, de morrer pelo vazio. Vertigem permanente. Marie-Ange dele se protege provisoriamente, deslocando" para a sua rival, que se supõe atordoar-se envenenada ou desaparecer num carro rodando a uma velocidade louca . Sua vida é salva ao preço da vida sacri­ficada da outra.

Em geral, o terrorismo dessa histeria depressiva manifesta-se visando à boca. V árias histórias de harém c de outros ciúmes femi­ninos consagraram a imagem da envenenadora como imagem privi· legiada do satanismo feminino . Entretanto, o fato de envenenar a bebida ou a comida revela, para além da feiticeira furiosa, uma menina privada de seio . E se é verdade que os meninos também o são, cada um sabe que o homem reencontra o seu paraísO perdido na relação heterossexual, mas também e sobretudo em díve!'$0s des­vios que lhe prodigalizam satisfações orais ou pela oralidade.

A atuação de uma mulher é mais inibida, menos elaborada e, em conseqüência, quando acontece, pode ser mais violenta . Pois, para uma mulher, a perda do objeto parece irremediável ~ o seu luto mais difícil, se não impossível . Então, os objetos de substitui­ção, os objetos perversos que deveriam conduzi-la ao pai, parecem­lhe irrisórios. Em geral, ela acede ao desejo heterossexual, recal­cando os prazeres arcaicos, até mesmo o próprio prazer: cede à heterossexualidade na frigidez . Marie-Ange quer o seu marido ser mente para ela, para ela mesma e para não gozar com ele: O acesso ao gozo opera-se então somente através do objeto perverso do ho­mem: Marie-Ange goza com a amante dele, e, quando seu marido não a tem, ele não a interessa mais . A perversão da depressiva é sorrateira, tem necessidade da tela intermediária da mulher-objeto do homem para procurar o outro sexo. Mas, uma vez instalado nesse caminho, o desejo extenuado da melancólica não tem mais freios: quer tudo, até o fim, até a morte.

SOL NI?OII.O 85

A partilha desse segredo mortífero com o analista não é so­mente um fato que põe à prova a sua confiabilidade ou a diferença do seu discurso em relação ao universo da lei, da condenação e da repressão . Essa confiança ("deixo-a partilh~tr do meu crime") é uma tentativa de captar o analista num gozo comum: o que a mãe recusava, o que a amante rouba. Ressaltando que essa confiança é uma tentativa de domínio sobre o anal.ista como objeto erótico, a interpretação mantém a paciente na verdade do seu desejo e de suas tentativas de manipulação. Mas seguindo uma ética que não se confunde com a da legislação · punitiva, o analista reconhece a realidade da posição depressiva e, afirmando a legitimidade simbó­lica da sua dor, permite que o paciente procure outros meios, sím­ból:cos ou imaginários, para elaborar seu sofrimento.

S4 ASPECTOS · DA D.EPUSS4o I'EMnllNA .

passageira, mas indispensável, da análise. A riqueza da minha tristeza seria minha maneira de me proteger contra a morte - morte do outro desejado-rejeitado, minha própriá morte?

· Marie-Angc:: sufocara nela a desolação e a desvalorização nas quais o abandono materno, real ou imaginário, a deixava . A idéia de ser feia, incompetente e insignificante não a largava, mas era mais uma atmosfera do que uma idé!a, nada de claro, somente uma cor sombria de dia cinzento. Em compensação, o desejo de morte, de sua própria morte (por não poder se vingar da mãe), infiltrava-se nas suas fobias: medo de cair da janela, do elevador, de um rochedo ou da encosta de uma montanha. Medo de voltar a se encontrar no vazio, de morrer pelo vazio. Vertigem permanente. Marie-Ange dele se protege provisoriamente, deslocando" para a sua rival, que se supõe atordoar-se envenenada ou desaparecer num carro rodando a uma velocidade louca . Sua vida é salva ao preço da vida sacri­ficada da outra.

Em geral, o terrorismo dessa histeria depressiva manifesta-se visando à boca. V árias histórias de harém c de outros ciúmes femi­ninos consagraram a imagem da envenenadora como imagem privi· legiada do satanismo feminino . Entretanto, o fato de envenenar a bebida ou a comida revela, para além da feiticeira furiosa, uma menina privada de seio . E se é verdade que os meninos também o são, cada um sabe que o homem reencontra o seu paraísO perdido na relação heterossexual, mas também e sobretudo em díve!'$0s des­vios que lhe prodigalizam satisfações orais ou pela oralidade.

A atuação de uma mulher é mais inibida, menos elaborada e, em conseqüência, quando acontece, pode ser mais violenta . Pois, para uma mulher, a perda do objeto parece irremediável ~ o seu luto mais difícil, se não impossível . Então, os objetos de substitui­ção, os objetos perversos que deveriam conduzi-la ao pai, parecem­lhe irrisórios. Em geral, ela acede ao desejo heterossexual, recal­cando os prazeres arcaicos, até mesmo o próprio prazer: cede à heterossexualidade na frigidez . Marie-Ange quer o seu marido ser mente para ela, para ela mesma e para não gozar com ele: O acesso ao gozo opera-se então somente através do objeto perverso do ho­mem: Marie-Ange goza com a amante dele, e, quando seu marido não a tem, ele não a interessa mais . A perversão da depressiva é sorrateira, tem necessidade da tela intermediária da mulher-objeto do homem para procurar o outro sexo. Mas, uma vez instalado nesse caminho, o desejo extenuado da melancólica não tem mais freios: quer tudo, até o fim, até a morte.

SOL NI?OII.O 85

A partilha desse segredo mortífero com o analista não é so­mente um fato que põe à prova a sua confiabilidade ou a diferença do seu discurso em relação ao universo da lei, da condenação e da repressão . Essa confiança ("deixo-a partilh~tr do meu crime") é uma tentativa de captar o analista num gozo comum: o que a mãe recusava, o que a amante rouba. Ressaltando que essa confiança é uma tentativa de domínio sobre o anal.ista como objeto erótico, a interpretação mantém a paciente na verdade do seu desejo e de suas tentativas de manipulação. Mas seguindo uma ética que não se confunde com a da legislação · punitiva, o analista reconhece a realidade da posição depressiva e, afirmando a legitimidade simbó­lica da sua dor, permite que o paciente procure outros meios, sím­ból:cos ou imaginários, para elaborar seu sofrimento.

UMA VIRGEM MÃE

Buraco negro

Parecia-Lhe que seus conflitos, abandonos, separações dos seus amantes não a atingiam, que ela não sentia nenhuma dor. Não mais .do que com a morte de sua mãe. . . Não era o caso de uma indiferença que suporia o domínio de si e da situação, ou então (e é o caso mais freqüente) wn recalcamento histérico da aflição e do desejo. Quando, nas sessões, lsabelle tentava reconstituir esses estados, ela falava de " ferimentos anestesiados", de "pesar entor­pecido" ou de "apagamento que contém tudo". Eu tinha a impressão de que ela arrumara no seu espaço psíquico uma dessas "criptas' ' de que falam Maria Torok e Nicolas Abraham, nas quais não havia nada, mas um nada em torno do qual organizava-se toda a identi­dade depressiva. Este nada era um absoluto . A dor, humilhante de tanto ter sido mantida secreta, nãcrnomeável e indizível, trans­formara-se em silêncio psíquico que não recalcava o ferimento, mas o substituía e, mais, ainda, condensando-o, devolvia-lhe uma inten­sidade exorbitante, imperceptível às sensações e às representações.

Nela, o humor melancólico não era senão ausências, esqui­vas, contemplações desvairadas e como que alucinadas daquilo que pôde ser uma aflição, mas que a dignidade do superego de Isabelle imediatamente transformou numa hipertrofia inabordável. Um nada que .não é o recalcamento nem o simples traço do afeto, mas que condensa num buraco negro - como a antimatéria cósmica invi­sível e esmagadora - o mal-estar sensorial, sexual, fantasrnático dos abandonos e das decepções . Castrações e ferimentos narcísicos, insatisfação sexual e impasses fantasmáticos nele se interpenetravam num peso, ao mesmo tempo extenuante e irreparável, organizando n sua subjetividade: por dentro, ela só estava machucada c parali· sada; por fora, só lhe restava a atuação ou ativismos de fachada .

SOL NEGltO 87

Isabelle tinha necessidade desse "buraco negro" da sua me. lancolia para construir, para fora; sua maternidade viva e suas atividades, como outras pes~oas se organizam em torno do recal· camenlo ou da clivagem. Era a coisa só dela, sua morada, o lar narcísico em que se arruinava tanto quanto se reabastecia.

lsabcllc decidiu ter um filho no momento mais sombrio de um de seus períodos depressivos. Decepcionada com seu marido, des­confiada do que lhe parecia ser a " inconsistência infantil" do seu amante, ela queria ter seu filho "para si mesma". Pouco lhe im­portava saber de quem era esse fi lho. "Tenho desejo da criança, niío do seu pai", refletia essa "virgem-mãe". Precisava de um "com· panheiro seguro": "Alguém que tivesse necessidade de mim, com o qual seria cúmplice, jamais nos deixaríamos, enfim, quase ... "

A criança antídoto da depressão está destinada a carregar um pesado encargo. A placidez, de fato virginal, de Isabetle grávida - nunca algum período de sua vida lhe parecera tão eufórico quanto o da sua gravidez - escondia uma tensão corporal perceptível a qualquer observador atento ao início desta análise. lsabelle não conseguia se relaxar no divã, mas, com a nuca esticada e os pés no chão ("para não estragar os seus bens", dizia ela), parecia pronta para saltar à espreita de qualquer ameaça. Seria a de ter sido engravidada pelo analista? A hipercinese de alguns recém-nas· cidos, sem dúvida, traduz a extrema tensão física e psíquica não· d ita, inconsciente, de suas mães.

Viver para morrer

A angústig de malformação do feto , habitual na . ma10na das mulheres grávidas, em lsabclle tornou·se de um paroxismo suic!da . Ela imaginava que o seu bebê morreria na hora do parto ou então nasceria com um grave defeito congênito. Então ela o matava antes de se suicidar , mãe e filho encontrando-se de novo reunidos, inse· paráveis na morte como na gravidez . O nascimento tão desejado transformava-se em enterro, e a imagem dos seus funerais exaltava a paciente, como se tivesse desejado o criança apenas para a morte. Ela dava à luz para a morte. A parada brutal da vida. que ela se preparava para dar, assim como a da sua própria vida, era desti­nada a lhe poupar qualquer preocupação, a aliviá-la dos aborreci· mc"ntos da existênc;a. O nascimento destruiria futuro e projeto:

9 desejo de ter filhos revelou-se ser um desejo narcísico de fusão letal: era uma morte do desejo. Graças a seu filho, lsabelle

UMA VIRGEM MÃE

Buraco negro

Parecia-Lhe que seus conflitos, abandonos, separações dos seus amantes não a atingiam, que ela não sentia nenhuma dor. Não mais .do que com a morte de sua mãe. . . Não era o caso de uma indiferença que suporia o domínio de si e da situação, ou então (e é o caso mais freqüente) wn recalcamento histérico da aflição e do desejo. Quando, nas sessões, lsabelle tentava reconstituir esses estados, ela falava de " ferimentos anestesiados", de "pesar entor­pecido" ou de "apagamento que contém tudo". Eu tinha a impressão de que ela arrumara no seu espaço psíquico uma dessas "criptas' ' de que falam Maria Torok e Nicolas Abraham, nas quais não havia nada, mas um nada em torno do qual organizava-se toda a identi­dade depressiva. Este nada era um absoluto . A dor, humilhante de tanto ter sido mantida secreta, nãcrnomeável e indizível, trans­formara-se em silêncio psíquico que não recalcava o ferimento, mas o substituía e, mais, ainda, condensando-o, devolvia-lhe uma inten­sidade exorbitante, imperceptível às sensações e às representações.

Nela, o humor melancólico não era senão ausências, esqui­vas, contemplações desvairadas e como que alucinadas daquilo que pôde ser uma aflição, mas que a dignidade do superego de Isabelle imediatamente transformou numa hipertrofia inabordável. Um nada que .não é o recalcamento nem o simples traço do afeto, mas que condensa num buraco negro - como a antimatéria cósmica invi­sível e esmagadora - o mal-estar sensorial, sexual, fantasrnático dos abandonos e das decepções . Castrações e ferimentos narcísicos, insatisfação sexual e impasses fantasmáticos nele se interpenetravam num peso, ao mesmo tempo extenuante e irreparável, organizando n sua subjetividade: por dentro, ela só estava machucada c parali· sada; por fora, só lhe restava a atuação ou ativismos de fachada .

SOL NEGltO 87

Isabelle tinha necessidade desse "buraco negro" da sua me. lancolia para construir, para fora; sua maternidade viva e suas atividades, como outras pes~oas se organizam em torno do recal· camenlo ou da clivagem. Era a coisa só dela, sua morada, o lar narcísico em que se arruinava tanto quanto se reabastecia.

lsabcllc decidiu ter um filho no momento mais sombrio de um de seus períodos depressivos. Decepcionada com seu marido, des­confiada do que lhe parecia ser a " inconsistência infantil" do seu amante, ela queria ter seu filho "para si mesma". Pouco lhe im­portava saber de quem era esse fi lho. "Tenho desejo da criança, niío do seu pai", refletia essa "virgem-mãe". Precisava de um "com· panheiro seguro": "Alguém que tivesse necessidade de mim, com o qual seria cúmplice, jamais nos deixaríamos, enfim, quase ... "

A criança antídoto da depressão está destinada a carregar um pesado encargo. A placidez, de fato virginal, de Isabetle grávida - nunca algum período de sua vida lhe parecera tão eufórico quanto o da sua gravidez - escondia uma tensão corporal perceptível a qualquer observador atento ao início desta análise. lsabelle não conseguia se relaxar no divã, mas, com a nuca esticada e os pés no chão ("para não estragar os seus bens", dizia ela), parecia pronta para saltar à espreita de qualquer ameaça. Seria a de ter sido engravidada pelo analista? A hipercinese de alguns recém-nas· cidos, sem dúvida, traduz a extrema tensão física e psíquica não· d ita, inconsciente, de suas mães.

Viver para morrer

A angústig de malformação do feto , habitual na . ma10na das mulheres grávidas, em lsabclle tornou·se de um paroxismo suic!da . Ela imaginava que o seu bebê morreria na hora do parto ou então nasceria com um grave defeito congênito. Então ela o matava antes de se suicidar , mãe e filho encontrando-se de novo reunidos, inse· paráveis na morte como na gravidez . O nascimento tão desejado transformava-se em enterro, e a imagem dos seus funerais exaltava a paciente, como se tivesse desejado o criança apenas para a morte. Ela dava à luz para a morte. A parada brutal da vida. que ela se preparava para dar, assim como a da sua própria vida, era desti­nada a lhe poupar qualquer preocupação, a aliviá-la dos aborreci· mc"ntos da existênc;a. O nascimento destruiria futuro e projeto:

9 desejo de ter filhos revelou-se ser um desejo narcísico de fusão letal: era uma morte do desejo. Graças a seu filho, lsabelle

88 ASPECTOS DA OI!PRESSÃO FEMININo'\

ia esquivar-se dos imprevistos das provas eróticas, das surpresas do prazer, das incertez.as do discurso de outrem . Tornando-se mãe, ia permanecer virgem. Abandonando o pai da cr ~ança, para viver como solteira sozinha em seus devaneios, sem necessidade nem ameaça de ninguém (ou então como casal imaginário com a sua analista ?), ela entrava para a maternidade como se entra para o convento. Isabelle preparava-se para se contemplar com complacência neste ser vivo, prometido para a morte, q·Je devia ser seu filho, tal como uma sombra dolorosa dela mesma de que enfim ela poderia cuidar e enterrar, enquanto ninguém poderia fazê-lo '·como se deve" para ela própria . A abnegação da mãe depressiva não deixa de ter algum triunfalismo paranóide .

No nascimento da pequena Alice, Isabellc achou-se como que bombardeada pela realidade. A icterícia neonatal do bebê c as pri­meiras doenças infantis, que foram de uma gravidade pouco comum, ameacavam transformar o fantasma de morte em atualidade insupor­tável: Com a ajuda da análise, sem dúvida fsabellc não soçobrou nas horas de torpor das parturientes. Sua dispo,ição depressiva transformou-se num combate renhido pela vida de sua filha, c:.~jo crescimento, doravante, ela acompanha com muita delicadeza, mas não sem tentação de ''chocá-la" .

Abnegação triunfalista

A melancolia inicial foi devorada pelos ''problemas de Alice". Todavia, sem desaparecer, ela encontrou um outro rosto. Foi me­tamorfoseada em domínio total, oral c anal, sobre o corpo da me­niP.a, cujo desenvolvimento assim ela retardava. Alimentar Alice, controlar suas refeições, pesá-la, rep~sá-la, completar o regime pres­crito por este ou aquele doutor com conselhos de tal livro ... Vigiar as fezes de Alice, até à idade escolar c depois, suas póõcs de ven­tre, suas diarréias, fazer clisteres. . . Vigiar o seu sono: qual é a duração nonnal de sono para uma criança de dois anos? E de três anos? De quatro? E esse balbucio, não é um grito anormal? A inquietação obcecada da mamãe ans!osa "clássica" foi multiplicada por lsabelle. Filha-mãe, não era ela responsável por tudo? Não era ela tudo o que essa "pobre Alice" tinha no mundo? Sua mãe, seu pai sua tia seu avô sua avó? Os. avós, achando esse nascimento po~co ortod~xo, torn;ram-se reservados em relação à " virgem-mãe" e, sem sabê·lo, forneciam uma ocasião a mais para a necessidade de onipotência de lsabelle.

90L NEORO 89

O orgulho da deprimida é incomensurável, não é o caso de não levá-lo em conta . Isabelle está pronta para se encarregar de todos os trabalhos, preocupações, deveres, aborrecimentos, mesmo defei-. tos (se alguém se atrevesse a encontrar um nela) , para não falar do seu sofrimento. Alice tornou-se um novo corta-palavra no universo já pouco loquaz de s:.~a mãe. Em nome do bem-estar da sua filha , era preciso que a mãe "agüentasse" : enfrentar, não se mostrar insu­ficiente ou perdedora .

Quanto tempo pode durar esse aprisionamento delicioso e tri· unfal da tristeza de estar só, do pesar de não ser? Em certas rnu· lheres, isto dura até que a criança não tenha mais necessidade dela, até que cresça suficientemente e a deixe . Então elas se encontram de novo abandonadas, alquebradas e desta vez sem o recurso de um novo parto. A gravidez c a maternidade terão sido um parên· tese na depressão, uma nova denegação dessa perda impossível.

Jsabelle, ela, não esperou tanto. Tinha o recurso verbal e erótico da transferênc!a: para chorar e desmoronar diante da sua analista, tentando renascer, não além, mas desta vez através do luto da analista, pronta a ouvir uma palavra magoada. A solidão uo· meada deixa-nos menos sozinhos se as palavras conseguirem se in· filtrar nos espasmos das lágrimas - contanto que encontre um des­tinatário para esse excesso de pesar que, até ali, esquivara-se às pa­lavras .

Pai excitado e pai ideal

Os sonhos e os fantasmas de lsabelle podiam dar a entender que ela fora vítima de uma sedução precoce por ·parte do pai ou de um outro adulto entre os seus conhecidos. Nenhuma lembrança precisa destacava-se claramente do discurso de Isabelle, para con­firmar ou invalidar esta hipótese, que sugeria tal imagem onírica, repetitiva, de um quarto fechado onde Isabelle está sozinha com um homem idoso, apertando-a irracionalmente contra a parede; ou aquela cena no escritório do pai, em que ambos ainda estão sozi­nhos ela tremendo menos de medo do que de emoção, enrubescida e tr~nspirando, este estado i ncompreensf vel dando-lhe vergonha. Sedução real ou desejo de ser seduzida? O pai de lsabelle parece ter sido um personagem fora do comum. Tendo passado de cam­ponês pobre a chefe de empresa, suscitava a admiração dos empre­gados, dos amigos, dos filhos e de lsabelle em particular . Entre­tanto, este homem com tendência para a . vitória tinha saltos de

88 ASPECTOS DA OI!PRESSÃO FEMININo'\

ia esquivar-se dos imprevistos das provas eróticas, das surpresas do prazer, das incertez.as do discurso de outrem . Tornando-se mãe, ia permanecer virgem. Abandonando o pai da cr ~ança, para viver como solteira sozinha em seus devaneios, sem necessidade nem ameaça de ninguém (ou então como casal imaginário com a sua analista ?), ela entrava para a maternidade como se entra para o convento. Isabelle preparava-se para se contemplar com complacência neste ser vivo, prometido para a morte, q·Je devia ser seu filho, tal como uma sombra dolorosa dela mesma de que enfim ela poderia cuidar e enterrar, enquanto ninguém poderia fazê-lo '·como se deve" para ela própria . A abnegação da mãe depressiva não deixa de ter algum triunfalismo paranóide .

No nascimento da pequena Alice, Isabellc achou-se como que bombardeada pela realidade. A icterícia neonatal do bebê c as pri­meiras doenças infantis, que foram de uma gravidade pouco comum, ameacavam transformar o fantasma de morte em atualidade insupor­tável: Com a ajuda da análise, sem dúvida fsabellc não soçobrou nas horas de torpor das parturientes. Sua dispo,ição depressiva transformou-se num combate renhido pela vida de sua filha, c:.~jo crescimento, doravante, ela acompanha com muita delicadeza, mas não sem tentação de ''chocá-la" .

Abnegação triunfalista

A melancolia inicial foi devorada pelos ''problemas de Alice". Todavia, sem desaparecer, ela encontrou um outro rosto. Foi me­tamorfoseada em domínio total, oral c anal, sobre o corpo da me­niP.a, cujo desenvolvimento assim ela retardava. Alimentar Alice, controlar suas refeições, pesá-la, rep~sá-la, completar o regime pres­crito por este ou aquele doutor com conselhos de tal livro ... Vigiar as fezes de Alice, até à idade escolar c depois, suas póõcs de ven­tre, suas diarréias, fazer clisteres. . . Vigiar o seu sono: qual é a duração nonnal de sono para uma criança de dois anos? E de três anos? De quatro? E esse balbucio, não é um grito anormal? A inquietação obcecada da mamãe ans!osa "clássica" foi multiplicada por lsabelle. Filha-mãe, não era ela responsável por tudo? Não era ela tudo o que essa "pobre Alice" tinha no mundo? Sua mãe, seu pai sua tia seu avô sua avó? Os. avós, achando esse nascimento po~co ortod~xo, torn;ram-se reservados em relação à " virgem-mãe" e, sem sabê·lo, forneciam uma ocasião a mais para a necessidade de onipotência de lsabelle.

90L NEORO 89

O orgulho da deprimida é incomensurável, não é o caso de não levá-lo em conta . Isabelle está pronta para se encarregar de todos os trabalhos, preocupações, deveres, aborrecimentos, mesmo defei-. tos (se alguém se atrevesse a encontrar um nela) , para não falar do seu sofrimento. Alice tornou-se um novo corta-palavra no universo já pouco loquaz de s:.~a mãe. Em nome do bem-estar da sua filha , era preciso que a mãe "agüentasse" : enfrentar, não se mostrar insu­ficiente ou perdedora .

Quanto tempo pode durar esse aprisionamento delicioso e tri· unfal da tristeza de estar só, do pesar de não ser? Em certas rnu· lheres, isto dura até que a criança não tenha mais necessidade dela, até que cresça suficientemente e a deixe . Então elas se encontram de novo abandonadas, alquebradas e desta vez sem o recurso de um novo parto. A gravidez c a maternidade terão sido um parên· tese na depressão, uma nova denegação dessa perda impossível.

Jsabelle, ela, não esperou tanto. Tinha o recurso verbal e erótico da transferênc!a: para chorar e desmoronar diante da sua analista, tentando renascer, não além, mas desta vez através do luto da analista, pronta a ouvir uma palavra magoada. A solidão uo· meada deixa-nos menos sozinhos se as palavras conseguirem se in· filtrar nos espasmos das lágrimas - contanto que encontre um des­tinatário para esse excesso de pesar que, até ali, esquivara-se às pa­lavras .

Pai excitado e pai ideal

Os sonhos e os fantasmas de lsabelle podiam dar a entender que ela fora vítima de uma sedução precoce por ·parte do pai ou de um outro adulto entre os seus conhecidos. Nenhuma lembrança precisa destacava-se claramente do discurso de Isabelle, para con­firmar ou invalidar esta hipótese, que sugeria tal imagem onírica, repetitiva, de um quarto fechado onde Isabelle está sozinha com um homem idoso, apertando-a irracionalmente contra a parede; ou aquela cena no escritório do pai, em que ambos ainda estão sozi­nhos ela tremendo menos de medo do que de emoção, enrubescida e tr~nspirando, este estado i ncompreensf vel dando-lhe vergonha. Sedução real ou desejo de ser seduzida? O pai de lsabelle parece ter sido um personagem fora do comum. Tendo passado de cam­ponês pobre a chefe de empresa, suscitava a admiração dos empre­gados, dos amigos, dos filhos e de lsabelle em particular . Entre­tanto, este homem com tendência para a . vitória tinha saltos de

90 ASPECTOS DA DEPRESSÃO FEMININA

humor terríveis, sob efeito do álcool sobretudo, do qual abusava cada vez mais com a idade. Essa instabilidade emotiva, a mãe de Isabelle, ao mesmo tempo, escondia-a, equilibrava c desprezava. Para a criança pequena, esse desprezo significava que a mãe desa­provava a sexualidade do pai, sua excitação excessiva, sua falta de controle. Em suma, um pai, ao mesmo tempo desejado e conde. nado. Numa certa medida, ele podia ser uma saída identificadora para a sua filha, um apoio na sua rivalidade e na sua decepção com a mãe, genitora sempre distraída por um outro bebê. Mas, para além da atração intelectual e social, esse pai também era um per­sonagem dcccpcionante: "Para mim, ele foi imediatamente desmis­tificado, não podia acreditar nele, como acreditam as pessoas de fora, era uma criatura de minha mãe, seu maior bebê ... "

Sem dúvida, a existência simbólica do pai aj:Jdou Isabelte a construir sua carapaça profissional, mas o homem erótico, pai ima­ginário, amante, oblativo c gratificante tornara-se sem credibHidade­Ele mostrava a emoção, as paixões, os prazeres sob o ângulo da crise, mas quão perigosa e destruidora. O traço de união entre o prazer e a dignidade simbólica que um pai imaginário assegura, con· duzindo seu filho de uma identificação primária para uma identifi· cação secundária, para lsabelle estava destruído.

Ela tinha então a escolha entre uma vida sexual paroxística c ... a "virgindade": entre a perversão e a abnegação . A experiên­cia com a primeira a retivera durante os seus anos de adolescência e de jovem mulher . Violentos, esgo~antes, esses "transbordamentos", como ela os chama, pontuavam a saída dos episódios depressivos. "Estava como que embriagada e depoi~ me achava vazia . Talvez eu seja como meu pai . Mas não quero a sua oscilação permanente entre o alto c o baixo . Prefiro a seren!dade, a . estabilidade, o sacri· fício, por assim dizer. Mas o sacrifício por minha filha, será na verdade um sacrifício? E uma alegria moderada, uma alegria per­manente __ . Enfim, um prazer bem-temperado, como o cravo."

Isabelle deu um filho ao seu pai ideal: não a esse pai q:Jc exibia um corpo ébrio, mas ao pai de corpo ausente, ou seja, a um pai digno, ao mestre, ao chefe_ O corpo masculino, o corpo excitado e embriagado é o objeto da mãe: Isabelle o deixará para essa rival abandônicn, pois, na competição oom a perversão presumida de sua mãe, imediatamente a menina reconheceu ser uma menor, uma per­dedora . Quanto a ela, escolheu o nome glorioso, e é precisamente como glorioso. e 'é precisamente como filh~:-mãe solteira que ela vai conseguir preservá-lo em sua perfeição intocável, dissociando·o do

SOL NEOllO 9t

corpo masculino excitado· "além da m:edida" e manipulado pela

outra mulher. d' · Se é verdade que essa paternidade em grande parte con tcto-

na a depressão de Isabelle, recalcando-a para ~ su_a mãe, da q~~l não poderia se desligar sem correr riscos (de excttaçao, de. de~equ_ah­brio), também é verdade que, por sua parte ideal, pela vttópa stm­bólica, um pai assim também dá à sua filha algumas armas,_ certa­mente ambíguas, para sair dessa situação. Toman~c;se a m.ae e o

- 1 belle at1·nge enfim um absoluto. Mas o pat tdeal extste em pa1, sa , • . . - 1 · ? outro bgar que não na abnegação de sua pr~pna ftlha-m~e _ so t~tra ·

Contudo, e em definitivo, e nem que se)a com um umco ftlho, lsabelle faz melhor do que sua mãe: pois não é verdade que, se ela - f muitos filhos ela faz tudo por um único? Entretanto, essa nao az , , . - . só . da

ultrapassagem imaginária da mãe só e uma sttuaçao prov; ~~a depressão. O luto continua a ser impossível, sob as apare~ctas do triunfo masoquista. O verdadeiro trabalho está por ser fetto, a~ra· vés do desligamento da criança ·e, finalmente, através do desbg~· mente da analista, para que uma mulher tente erúr~nta! o vazto no sentido, que é feito e desfeito com todas as suas ligaçoes e com

todos os seus objetos ...

90 ASPECTOS DA DEPRESSÃO FEMININA

humor terríveis, sob efeito do álcool sobretudo, do qual abusava cada vez mais com a idade. Essa instabilidade emotiva, a mãe de Isabelle, ao mesmo tempo, escondia-a, equilibrava c desprezava. Para a criança pequena, esse desprezo significava que a mãe desa­provava a sexualidade do pai, sua excitação excessiva, sua falta de controle. Em suma, um pai, ao mesmo tempo desejado e conde. nado. Numa certa medida, ele podia ser uma saída identificadora para a sua filha, um apoio na sua rivalidade e na sua decepção com a mãe, genitora sempre distraída por um outro bebê. Mas, para além da atração intelectual e social, esse pai também era um per­sonagem dcccpcionante: "Para mim, ele foi imediatamente desmis­tificado, não podia acreditar nele, como acreditam as pessoas de fora, era uma criatura de minha mãe, seu maior bebê ... "

Sem dúvida, a existência simbólica do pai aj:Jdou Isabelte a construir sua carapaça profissional, mas o homem erótico, pai ima­ginário, amante, oblativo c gratificante tornara-se sem credibHidade­Ele mostrava a emoção, as paixões, os prazeres sob o ângulo da crise, mas quão perigosa e destruidora. O traço de união entre o prazer e a dignidade simbólica que um pai imaginário assegura, con· duzindo seu filho de uma identificação primária para uma identifi· cação secundária, para lsabelle estava destruído.

Ela tinha então a escolha entre uma vida sexual paroxística c ... a "virgindade": entre a perversão e a abnegação . A experiên­cia com a primeira a retivera durante os seus anos de adolescência e de jovem mulher . Violentos, esgo~antes, esses "transbordamentos", como ela os chama, pontuavam a saída dos episódios depressivos. "Estava como que embriagada e depoi~ me achava vazia . Talvez eu seja como meu pai . Mas não quero a sua oscilação permanente entre o alto c o baixo . Prefiro a seren!dade, a . estabilidade, o sacri· fício, por assim dizer. Mas o sacrifício por minha filha, será na verdade um sacrifício? E uma alegria moderada, uma alegria per­manente __ . Enfim, um prazer bem-temperado, como o cravo."

Isabelle deu um filho ao seu pai ideal: não a esse pai q:Jc exibia um corpo ébrio, mas ao pai de corpo ausente, ou seja, a um pai digno, ao mestre, ao chefe_ O corpo masculino, o corpo excitado e embriagado é o objeto da mãe: Isabelle o deixará para essa rival abandônicn, pois, na competição oom a perversão presumida de sua mãe, imediatamente a menina reconheceu ser uma menor, uma per­dedora . Quanto a ela, escolheu o nome glorioso, e é precisamente como glorioso. e 'é precisamente como filh~:-mãe solteira que ela vai conseguir preservá-lo em sua perfeição intocável, dissociando·o do

SOL NEOllO 9t

corpo masculino excitado· "além da m:edida" e manipulado pela

outra mulher. d' · Se é verdade que essa paternidade em grande parte con tcto-

na a depressão de Isabelle, recalcando-a para ~ su_a mãe, da q~~l não poderia se desligar sem correr riscos (de excttaçao, de. de~equ_ah­brio), também é verdade que, por sua parte ideal, pela vttópa stm­bólica, um pai assim também dá à sua filha algumas armas,_ certa­mente ambíguas, para sair dessa situação. Toman~c;se a m.ae e o

- 1 belle at1·nge enfim um absoluto. Mas o pat tdeal extste em pa1, sa , • . . - 1 · ? outro bgar que não na abnegação de sua pr~pna ftlha-m~e _ so t~tra ·

Contudo, e em definitivo, e nem que se)a com um umco ftlho, lsabelle faz melhor do que sua mãe: pois não é verdade que, se ela - f muitos filhos ela faz tudo por um único? Entretanto, essa nao az , , . - . só . da

ultrapassagem imaginária da mãe só e uma sttuaçao prov; ~~a depressão. O luto continua a ser impossível, sob as apare~ctas do triunfo masoquista. O verdadeiro trabalho está por ser fetto, a~ra· vés do desligamento da criança ·e, finalmente, através do desbg~· mente da analista, para que uma mulher tente erúr~nta! o vazto no sentido, que é feito e desfeito com todas as suas ligaçoes e com

todos os seus objetos ...

IV A . beleza: o outro mundo do depressivo

IV A . beleza: o outro mundo do depressivo

O além realizado aqui mesmo

NoMEAR o sofrimento, exaltá-lo, dissecá-lo em seus menores com· ponentes é, sem dúvida, um meio de reabsorver o luto. Às vezes, de nele se deleitar, mas também de ultrapassá-lo, de passar para um outro, menos ardente, cada vez mais indiferente. . . Entretanto, as artes parecem indicar alguns processos que contornam o deleite e que, sem converter simplesmente o luto em mania, asseguram ao artista e ao especialista um dominio sublimatório . sobre n Coisa perdida . Inicialmente pela prosódia, essa linguagem além da lin­guagem que insere no signo o ritmo e as aliterações dos processos semióticos. Pela poli valência dos signos e dos símbolos também, que desestabiliza a nomeação e, acumulando em torno de um signo uma pluralidade de conotações, oferece ao sujeito uma chance de imaginar o não-sentido ou o verdadeiro sentido da Coisa. Enfim, por economia psíquica do perdão: identificação do locutor com um ideal acolhedor e benevolente, capaz de suprimir a ·culpabilidade da vingança ou a humilhação do ferimento narcísico que servem de base para o desespero do deprimido.

O belo pode ser triste? A beleza está associada de forma du­rável ao efêmero e portanto ao luto? Ou então o belo objeto é aquele que, de fonna incansável, volta depois das destruições e das guerras para testemunhar que existe uma sobrevivência à morte, que a imor­talidade é possível?

Freud toca de leve nessas questões num breve texto, Efêmero destino (1915-19 I 6), 1 inspirado num debate com dois amigos me-

1 RAsultats, Jdées, Problemes (Resul tados, Idéias, Problemas), 1. I , PUF, Paris, 1984, pp . 233-236; S . E., t. XIV, pp . 305-307; G . W ., pp . 35S.361.

O além realizado aqui mesmo

NoMEAR o sofrimento, exaltá-lo, dissecá-lo em seus menores com· ponentes é, sem dúvida, um meio de reabsorver o luto. Às vezes, de nele se deleitar, mas também de ultrapassá-lo, de passar para um outro, menos ardente, cada vez mais indiferente. . . Entretanto, as artes parecem indicar alguns processos que contornam o deleite e que, sem converter simplesmente o luto em mania, asseguram ao artista e ao especialista um dominio sublimatório . sobre n Coisa perdida . Inicialmente pela prosódia, essa linguagem além da lin­guagem que insere no signo o ritmo e as aliterações dos processos semióticos. Pela poli valência dos signos e dos símbolos também, que desestabiliza a nomeação e, acumulando em torno de um signo uma pluralidade de conotações, oferece ao sujeito uma chance de imaginar o não-sentido ou o verdadeiro sentido da Coisa. Enfim, por economia psíquica do perdão: identificação do locutor com um ideal acolhedor e benevolente, capaz de suprimir a ·culpabilidade da vingança ou a humilhação do ferimento narcísico que servem de base para o desespero do deprimido.

O belo pode ser triste? A beleza está associada de forma du­rável ao efêmero e portanto ao luto? Ou então o belo objeto é aquele que, de fonna incansável, volta depois das destruições e das guerras para testemunhar que existe uma sobrevivência à morte, que a imor­talidade é possível?

Freud toca de leve nessas questões num breve texto, Efêmero destino (1915-19 I 6), 1 inspirado num debate com dois amigos me-

1 RAsultats, Jdées, Problemes (Resul tados, Idéias, Problemas), 1. I , PUF, Paris, 1984, pp . 233-236; S . E., t. XIV, pp . 305-307; G . W ., pp . 35S.361.

96 A BELEZA: O OUT:RO MUNDO DO DEP~

lancólicos, dos quais um é poeta, durante um passeio. Ao pessi· mista, que desvaloriza o belo em razão do seu destino efêmero, Freud replica: "Muito pelo contrário, aumento de valor!" Todavia, a tristeza que o efêmero ~uscita em nós parece·lhe impenetrável. Ele dedara: .. [ . .. 1 para o psicólogo, o luto é um grande enigma [ . .. 1 mas por que esse desligamento dos objetos por par/e da libido deve ser um processo tão doloroso, nós não o compreendemos e não podemos deduzi-lo, atualmente, de nenhuma hipótese."

Pouco tempo depois, Luto e Melancolia (1917) proporá uma explicação da melancolia que, segundo o modelo do luto, seria de­vida à introjeção do objeto perdido, ao mesmo tempo amado e odiado, que evocamos mais acima.2 Mas aqui, no Efêmero destino, ligando os temas do luto, do efêmero e do belo, Freud s:tgere que a sublimação seria o contrapeso da perda, à qual a libido se liga de forma tão enigmática . Enigma do luto ou do belo? E qual o parentescÕ entre eles?

Certamente invisível antes que o luto do objeto de amor seja realizado, a beleza contudo permanece e, mais ainda, nos cativa: "A alta estima que temos pelos bens culturais [ . .. ] não terá sofrido com a experiência da fragilidade deles." Alguma coisa, portanto, não estaria atingida pela universalidade da morte: a beleza?

Seria o belo o objeto ideal, que jamais decepciona a libido? Ou então o belo objeto aparece como o reparador absoluto e indes­trutível do obj~to abandônico, situando·se de início num plano di· ferente deste terreno libidinal tão enigmaticamente adesivo e frau· dulento, em que se desenrola a ambigüidade do "bom" e do "mau" objeto? Em lugar da morte, e para não morrer da morte do outro, eu produzo - ou pelo menos penso fazê-lo - um artifício, um ideal, um "além" que minha psique produz para se colocar fora dela: êx-tase . Belo por poder substituir todos os valores psíquicos perecíveis .

A partir daí, o analista coloca-se, contudo, uma pergunta su· plementar: por qual processo psíquico, por qual modificação dos signos e dos materiais, a beleza consegue atravessar o drama que se desenrola entre perda e domínio sobre a própria perda-desvalo­rização-condenação à morte?

z Cf. supra, cap. I, p . 20 eSQ.

SOL NEOli.O 97

A dinâmica da sublimação, mobilizando os processos primários e a idealização, tece em torno do vazio depressivo e com ele um hipersigno. E a alegoria como magnificência do que não existe mais .• mas que, para mim, re-toma uma significação superior porque esto.u apto a refazer o nada, sempre de forma melh~r e numa harmo~ta inalterável, aqui e agora, e para a eternidade, vtsando a um terceuo ser . Significação sublime, em lugar e em nome do não-ser subjacente c implícito, é o artifício que substitui o efêmero. A beleza lhe é consubstanciai . Como as indumentárias femininas, que escondem depressões tenazes, a beleza se manüesta como o rosto admirável da perda, ela a metamorfoseia para fazê-la viver.

Uma recusa da perda? Pode ser: tal bele~a , ~ então p~recível e se eclipsa na morte, incapaz de conter o sutctd!O do art1sta ou então apagando-se das memórias no mesmo instante em que emerge. Mas não só.

Quaado pudemos atravessar nossas melancolias a ponto de nos interessarmos pela vida dos signos, a beleza também pode nos apa­nhar para testemunhar sobre alguém que, de fo~ma magnífica, en­controu o caminho real pelo qual o homem transcende a dor de estar separado: o caminho da palavra dada ao sofrimento, até ao grito, à música ao silêncio e ao riso. O magnífico seria mesmo o sonho impossÍvel, o outro mundo do depressivo, realizado aqui mesmo. Fora do espaço depressivo, o magnífico é outra coisa. além de um jogo?

Somente a sublimação resiste à morte. O belo objeto capaz de nos enfeitiçar no seu mundo nos parece mais digno de adesão do que qualquer causa amada ou odiada de ferimento ou de pesar. A depressão o reconhece e concorda em viver nele e para ele, mas essa adesão ao sublime não é mais libidinal. Ela já está desligada, dissociada, já integrou em si os traços da morte significada como indiferença, distração, leviandade . A beleza é artifício, ela é ima· ginária.

Seria alegórico o imaginário?

Há uma economia específica do discurso imaginário, tal qual ele se produziu no seio da tradição ocidental (herança da Antigui· dade grega e latina, do judaísmo e do cristianismo) em intimidade constitutiva com a depressão, ao mesmo tempo que em deslocamento necessário da depressão para um sentido possível . Como um traço de união estendido entre a Coisa e o Sentido, o não-nomeável e a

96 A BELEZA: O OUT:RO MUNDO DO DEP~

lancólicos, dos quais um é poeta, durante um passeio. Ao pessi· mista, que desvaloriza o belo em razão do seu destino efêmero, Freud replica: "Muito pelo contrário, aumento de valor!" Todavia, a tristeza que o efêmero ~uscita em nós parece·lhe impenetrável. Ele dedara: .. [ . .. 1 para o psicólogo, o luto é um grande enigma [ . .. 1 mas por que esse desligamento dos objetos por par/e da libido deve ser um processo tão doloroso, nós não o compreendemos e não podemos deduzi-lo, atualmente, de nenhuma hipótese."

Pouco tempo depois, Luto e Melancolia (1917) proporá uma explicação da melancolia que, segundo o modelo do luto, seria de­vida à introjeção do objeto perdido, ao mesmo tempo amado e odiado, que evocamos mais acima.2 Mas aqui, no Efêmero destino, ligando os temas do luto, do efêmero e do belo, Freud s:tgere que a sublimação seria o contrapeso da perda, à qual a libido se liga de forma tão enigmática . Enigma do luto ou do belo? E qual o parentescÕ entre eles?

Certamente invisível antes que o luto do objeto de amor seja realizado, a beleza contudo permanece e, mais ainda, nos cativa: "A alta estima que temos pelos bens culturais [ . .. ] não terá sofrido com a experiência da fragilidade deles." Alguma coisa, portanto, não estaria atingida pela universalidade da morte: a beleza?

Seria o belo o objeto ideal, que jamais decepciona a libido? Ou então o belo objeto aparece como o reparador absoluto e indes­trutível do obj~to abandônico, situando·se de início num plano di· ferente deste terreno libidinal tão enigmaticamente adesivo e frau· dulento, em que se desenrola a ambigüidade do "bom" e do "mau" objeto? Em lugar da morte, e para não morrer da morte do outro, eu produzo - ou pelo menos penso fazê-lo - um artifício, um ideal, um "além" que minha psique produz para se colocar fora dela: êx-tase . Belo por poder substituir todos os valores psíquicos perecíveis .

A partir daí, o analista coloca-se, contudo, uma pergunta su· plementar: por qual processo psíquico, por qual modificação dos signos e dos materiais, a beleza consegue atravessar o drama que se desenrola entre perda e domínio sobre a própria perda-desvalo­rização-condenação à morte?

z Cf. supra, cap. I, p . 20 eSQ.

SOL NEOli.O 97

A dinâmica da sublimação, mobilizando os processos primários e a idealização, tece em torno do vazio depressivo e com ele um hipersigno. E a alegoria como magnificência do que não existe mais .• mas que, para mim, re-toma uma significação superior porque esto.u apto a refazer o nada, sempre de forma melh~r e numa harmo~ta inalterável, aqui e agora, e para a eternidade, vtsando a um terceuo ser . Significação sublime, em lugar e em nome do não-ser subjacente c implícito, é o artifício que substitui o efêmero. A beleza lhe é consubstanciai . Como as indumentárias femininas, que escondem depressões tenazes, a beleza se manüesta como o rosto admirável da perda, ela a metamorfoseia para fazê-la viver.

Uma recusa da perda? Pode ser: tal bele~a , ~ então p~recível e se eclipsa na morte, incapaz de conter o sutctd!O do art1sta ou então apagando-se das memórias no mesmo instante em que emerge. Mas não só.

Quaado pudemos atravessar nossas melancolias a ponto de nos interessarmos pela vida dos signos, a beleza também pode nos apa­nhar para testemunhar sobre alguém que, de fo~ma magnífica, en­controu o caminho real pelo qual o homem transcende a dor de estar separado: o caminho da palavra dada ao sofrimento, até ao grito, à música ao silêncio e ao riso. O magnífico seria mesmo o sonho impossÍvel, o outro mundo do depressivo, realizado aqui mesmo. Fora do espaço depressivo, o magnífico é outra coisa. além de um jogo?

Somente a sublimação resiste à morte. O belo objeto capaz de nos enfeitiçar no seu mundo nos parece mais digno de adesão do que qualquer causa amada ou odiada de ferimento ou de pesar. A depressão o reconhece e concorda em viver nele e para ele, mas essa adesão ao sublime não é mais libidinal. Ela já está desligada, dissociada, já integrou em si os traços da morte significada como indiferença, distração, leviandade . A beleza é artifício, ela é ima· ginária.

Seria alegórico o imaginário?

Há uma economia específica do discurso imaginário, tal qual ele se produziu no seio da tradição ocidental (herança da Antigui· dade grega e latina, do judaísmo e do cristianismo) em intimidade constitutiva com a depressão, ao mesmo tempo que em deslocamento necessário da depressão para um sentido possível . Como um traço de união estendido entre a Coisa e o Sentido, o não-nomeável e a

98 A BELEZA: O OUTRO MUNDO DO DI!Pit.BSSIVO

proliferação dos signos, o afeto mútuo e a idealidade que o designa e ultrapassa, o imaginário não é a descrição objetiva que culminará na ciência, nem o idealismo teológico que se contentará em chegar à unicidade simbólica de um além . A experiência da melancolia nomeável abre o espaço de uma subjetividade necessariamente hete­rogênea, partilhada entre os dois pólos co-necessários e co-presentes da opacidade e do ideal. A opacidade das coisas, como a do corpo desabitado pela significação - corpo deprimido, pronto para o sui­cídio - transfere-se no sentido da obra, que se afirma, ao mesmo tempo, absoluto c corrompido, insustentável, impossível, de ser re­feito. Uma sutil alquimia dos signos então se impõe - musica1i.za­ção dos significantes, polifonia dos lexemas, desarticulação das uni­dades lexicais, sintáxicas, narrativas. . . - que é imediatamente vivida como uma metamorfose psíquica do ser falante entre as duas bordas do não-sentido e do sentido, de Satã e de Deus, da Queda e da Ressurreição ,

Contudo, sendo estas duas temáticas-limite mantidas, elas obtêm uma orquestração vertiginosa na economia imaginária . Ao mesmo tempo que lhe é necessária, elas se eclipsam nos momentos de crise dos valores que atingem os próprios fundamentos da civilização e só deixam, como único lugar para o desenrolar da melancolia, a única capacidade do significante de se encarregar tanto do sentido quanto de se reificar em nada.3

Apesar de ser intrínseco às categorias dicotômicas da UJetafísica ocidental (natureza/cultura, corpo/espírito, baixo/alto, espaço/ tem­po, quantidade/qualidade ... ) o universo imaginário enquanto tris­teza significada, mas também, ao contrário, como jubilição signifí­cante nostálgica de um não-sentido fundamental e nutriente, é con· tudo o próprio universo do possível. Possibilidade do mal como perversão e da morte como não-sentido último. Mas ainda, e por causa da significação mantida dessa elipse, possibilidade infinita de ressurreições, ambivalentes, polivalentes.

·s egundo Walter Benjamin, é a alegoria, poderosamente utiliza­da pelo barroco e em particular pelo Trauerspiel (literalmente: jogo

J Cf. infra, cap. V. pp . 131. 137; cap . VI, p. 181; e cap . VIII, pp . 230, 250, 260 . Ver, a propósito da melancolia c da arte, Marie-Claire Lambotte, Esthétique de la mélancolie (Estética da melancolia), Aubier, Paris, 1984.

SOL l'IECRO 99

de luto, jogo com o luto; comumente: drama trágico do barroco alemão), que realiza ao máximo a tensão melancólica.4

Deslocando-se entre o sentido recusado mas sempre presente, por exemplo, dos restos da Antiguidade (assim: Vênus ou a "coroa real") e o sentido próprío que o contexto espiritualista cristão con­fere a qualquer coisa, a alegoria .é uma tensão das liignificações entre sua depressão/depreciação e sua exaltação significante (Vênus tor­na-se alegoria do amor cristão). Ela confere um prazer significante ao significante perdido, um regozijo ressurrecional até à pedra e ao cadáver, afirmando-se assim como coextensiva à experiência subja­cente de uma melancolia nomeada: do gozo melancólico.

Entretanto, a alegorese (a gênese da alegoria) - por seu des­tino em Calderón, Shakespeare e até em Goethe e Hõlderlin, por sua essência antitética, pelo seu poder de ambigüidade c pela insta­bilidade do sentido que ela instala além do seu objetivo de dar um significado ao silêncio e às coisas mudas (aos da'imons antigos ou naturais) - revela que a figura simples da alegoria talvez seja uma fixação regional, no tempo e no espaço, de uma dinâmica mais am· pia: a própria dinâmica imaginária . Fetiche provisório, a alegoria

4 Cf . Walter Benjamin, Origine du drame baroque allemand, 1916-1925 {Ori­gem do drama barroco alemão), trad. franc., Flarnmarion, 1985: " A tristeza (Trauer) é a disposição do espírito na qual o sentimento dá uma vida nova, como uma máscara, para o mundo desertado, a fun de, ao vê-lo, gozar de um prazer misterioso. Todo sentimento está tigado a um objeto a prior i e sua feno­menologia é a apresentação deste objeto" (p . 150). Notaremos o laço estabele­cido entre a fenomenologia, pO( um lado, c o objeto reencontrado do senti­mento melancólico, por outro. Trata-se mesmo do sentimento melancólico sus­"ctível de ser nomeado, ma& o que dizer da perda do objeto e da indiferença ::o significante no melancólico? W. Benjamin não fala disto . "Semelhante a esses corpos que giram em sua queda, a intenção alegórica, saltando de símbolo em símbolo, tornar-se·ia presa da vertigem diante de sua insondável' profundi­dade, se precisamente, o mais extremo dos sfmbolos não a obrigasse a fazer um restabelecimento tal que tudo o que ela tem de obscuro, de afetado, de afastado de Deus não aparecesse mais senão como uma auto-ilusão [ ... } O l~aráter efêmero das coisas nele é menos significado, apresentado de forma ale­górica, do que oferecido como sendo ele próprio significante, como alegoria. Como alegoria da ressurreição . [ . .. J Esta é justamente a essência da profunda meditação melancólica: seus objetos últimos, onde ela acredita, de forma a mais total , assegurar-se do mundo depravado, transformando-se em alegoria, preenchem e negam o nada no qual se apresentam, da mesma forma que, no fim, a intenção não se imobiliza na contemplação fiel das ossadas, mas se volt.a, infiel, para a ressurreição'' (ibid ., pp . 250.251).

98 A BELEZA: O OUTRO MUNDO DO DI!Pit.BSSIVO

proliferação dos signos, o afeto mútuo e a idealidade que o designa e ultrapassa, o imaginário não é a descrição objetiva que culminará na ciência, nem o idealismo teológico que se contentará em chegar à unicidade simbólica de um além . A experiência da melancolia nomeável abre o espaço de uma subjetividade necessariamente hete­rogênea, partilhada entre os dois pólos co-necessários e co-presentes da opacidade e do ideal. A opacidade das coisas, como a do corpo desabitado pela significação - corpo deprimido, pronto para o sui­cídio - transfere-se no sentido da obra, que se afirma, ao mesmo tempo, absoluto c corrompido, insustentável, impossível, de ser re­feito. Uma sutil alquimia dos signos então se impõe - musica1i.za­ção dos significantes, polifonia dos lexemas, desarticulação das uni­dades lexicais, sintáxicas, narrativas. . . - que é imediatamente vivida como uma metamorfose psíquica do ser falante entre as duas bordas do não-sentido e do sentido, de Satã e de Deus, da Queda e da Ressurreição ,

Contudo, sendo estas duas temáticas-limite mantidas, elas obtêm uma orquestração vertiginosa na economia imaginária . Ao mesmo tempo que lhe é necessária, elas se eclipsam nos momentos de crise dos valores que atingem os próprios fundamentos da civilização e só deixam, como único lugar para o desenrolar da melancolia, a única capacidade do significante de se encarregar tanto do sentido quanto de se reificar em nada.3

Apesar de ser intrínseco às categorias dicotômicas da UJetafísica ocidental (natureza/cultura, corpo/espírito, baixo/alto, espaço/ tem­po, quantidade/qualidade ... ) o universo imaginário enquanto tris­teza significada, mas também, ao contrário, como jubilição signifí­cante nostálgica de um não-sentido fundamental e nutriente, é con· tudo o próprio universo do possível. Possibilidade do mal como perversão e da morte como não-sentido último. Mas ainda, e por causa da significação mantida dessa elipse, possibilidade infinita de ressurreições, ambivalentes, polivalentes.

·s egundo Walter Benjamin, é a alegoria, poderosamente utiliza­da pelo barroco e em particular pelo Trauerspiel (literalmente: jogo

J Cf. infra, cap. V. pp . 131. 137; cap . VI, p. 181; e cap . VIII, pp . 230, 250, 260 . Ver, a propósito da melancolia c da arte, Marie-Claire Lambotte, Esthétique de la mélancolie (Estética da melancolia), Aubier, Paris, 1984.

SOL l'IECRO 99

de luto, jogo com o luto; comumente: drama trágico do barroco alemão), que realiza ao máximo a tensão melancólica.4

Deslocando-se entre o sentido recusado mas sempre presente, por exemplo, dos restos da Antiguidade (assim: Vênus ou a "coroa real") e o sentido próprío que o contexto espiritualista cristão con­fere a qualquer coisa, a alegoria .é uma tensão das liignificações entre sua depressão/depreciação e sua exaltação significante (Vênus tor­na-se alegoria do amor cristão). Ela confere um prazer significante ao significante perdido, um regozijo ressurrecional até à pedra e ao cadáver, afirmando-se assim como coextensiva à experiência subja­cente de uma melancolia nomeada: do gozo melancólico.

Entretanto, a alegorese (a gênese da alegoria) - por seu des­tino em Calderón, Shakespeare e até em Goethe e Hõlderlin, por sua essência antitética, pelo seu poder de ambigüidade c pela insta­bilidade do sentido que ela instala além do seu objetivo de dar um significado ao silêncio e às coisas mudas (aos da'imons antigos ou naturais) - revela que a figura simples da alegoria talvez seja uma fixação regional, no tempo e no espaço, de uma dinâmica mais am· pia: a própria dinâmica imaginária . Fetiche provisório, a alegoria

4 Cf . Walter Benjamin, Origine du drame baroque allemand, 1916-1925 {Ori­gem do drama barroco alemão), trad. franc., Flarnmarion, 1985: " A tristeza (Trauer) é a disposição do espírito na qual o sentimento dá uma vida nova, como uma máscara, para o mundo desertado, a fun de, ao vê-lo, gozar de um prazer misterioso. Todo sentimento está tigado a um objeto a prior i e sua feno­menologia é a apresentação deste objeto" (p . 150). Notaremos o laço estabele­cido entre a fenomenologia, pO( um lado, c o objeto reencontrado do senti­mento melancólico, por outro. Trata-se mesmo do sentimento melancólico sus­"ctível de ser nomeado, ma& o que dizer da perda do objeto e da indiferença ::o significante no melancólico? W. Benjamin não fala disto . "Semelhante a esses corpos que giram em sua queda, a intenção alegórica, saltando de símbolo em símbolo, tornar-se·ia presa da vertigem diante de sua insondável' profundi­dade, se precisamente, o mais extremo dos sfmbolos não a obrigasse a fazer um restabelecimento tal que tudo o que ela tem de obscuro, de afetado, de afastado de Deus não aparecesse mais senão como uma auto-ilusão [ ... } O l~aráter efêmero das coisas nele é menos significado, apresentado de forma ale­górica, do que oferecido como sendo ele próprio significante, como alegoria. Como alegoria da ressurreição . [ . .. J Esta é justamente a essência da profunda meditação melancólica: seus objetos últimos, onde ela acredita, de forma a mais total , assegurar-se do mundo depravado, transformando-se em alegoria, preenchem e negam o nada no qual se apresentam, da mesma forma que, no fim, a intenção não se imobiliza na contemplação fiel das ossadas, mas se volt.a, infiel, para a ressurreição'' (ibid ., pp . 250.251).

100 A BELEZA : O OUTII.O MUNDO DO DEP~O

só serve para explicitar certos constituintes históricos e ideológicos do imaginário barroco . Contudo, para além de sua ancoragem con­creta, essa figura retórica descobre o que o imaginário ocidental tem de essencialmente tributário da perda (do luto) e da sua trans­formação, num entusiasmo ameaçado, frágil , danificado.~ Que rea­pareça como tal ou então que desapareça do imaginário, a alegoria inscreve-se na própria lógica do imaginário, que o seu esquematismo didático tem a vantagem de revelar de forma rude. Na verdade, recebemos a experiência imaginária não como um simbolismo teoló­gico, ou como um engajamento leigo, mas como um abrasamento do sentido morto por um excesso de sentido, em que o sujeito fa­lante primeiramente descobre o abrigo de um ideal, mas sobretudo a chance de tornar a jogá-lo na ilusão e na desilusão ...

A capacidade imaginária do homem ocidental, que se realiza sem o cristianismo, é a capacidade de transferir sentido ao próprio lugar onde se perdeu na morte e/ ou no não-sentido. Sobrevivência da idealização: imaginário é milagre, mas ao mesmo tempo é a sua pulverização: uma auto-ilusão, nada mais do que sonho e palavras, palavras, palavras . . . Ele afirma a onipotência da subjetividade pro· visória: a que sabe dizer até à morte.

s Cf. infra, cap. VI e VII .

v O Cristo morto de H olbein

100 A BELEZA : O OUTII.O MUNDO DO DEP~O

só serve para explicitar certos constituintes históricos e ideológicos do imaginário barroco . Contudo, para além de sua ancoragem con­creta, essa figura retórica descobre o que o imaginário ocidental tem de essencialmente tributário da perda (do luto) e da sua trans­formação, num entusiasmo ameaçado, frágil , danificado.~ Que rea­pareça como tal ou então que desapareça do imaginário, a alegoria inscreve-se na própria lógica do imaginário, que o seu esquematismo didático tem a vantagem de revelar de forma rude. Na verdade, recebemos a experiência imaginária não como um simbolismo teoló­gico, ou como um engajamento leigo, mas como um abrasamento do sentido morto por um excesso de sentido, em que o sujeito fa­lante primeiramente descobre o abrigo de um ideal, mas sobretudo a chance de tornar a jogá-lo na ilusão e na desilusão ...

A capacidade imaginária do homem ocidental, que se realiza sem o cristianismo, é a capacidade de transferir sentido ao próprio lugar onde se perdeu na morte e/ ou no não-sentido. Sobrevivência da idealização: imaginário é milagre, mas ao mesmo tempo é a sua pulverização: uma auto-ilusão, nada mais do que sonho e palavras, palavras, palavras . . . Ele afirma a onipotência da subjetividade pro· visória: a que sabe dizer até à morte.

s Cf. infra, cap. VI e VII .

v O Cristo morto de H olbein

"Um crente pode perder a fé"

HANS HOLBEIN, o Jovem (1497-1543), pinta em 1522 (a cama­da subjacente traz a data de 1521) um quadro perturbador, O Cristo morto, exposto no Museu de Basiléia, que parece ter impressionado imensamente Dostoievski . O príncipe Mychkine, em vão, tenta falar dele desde o início do Idiota,· mas somente por uma reviravolta poli· fônica da intriga ele percebe uma cópia do quadro em Rogojine e exclama "sob o impacto de uma súbita inspiração": "Este quadro! . .. Este quadro! Mas sabes que ao olhá-lo, um crente pode perder a fé?"1 Um pouco mais adjante, Hippolyte, um personagem secun· dário e que entretanto aparece em várias ocasioos como um duplo do narrador e de Mychkine, faz uma descrição surpreendente: "Ele representava o Cristo no momento da descida da Cruz. Se não me engano, os pintores têm o hábito de representar o Cristo na Cruz, ou depois da descida da Cruz com um reflexo de beleza sobre­natural no seu rosto . Eles se esforÇam para conservar-lhe es.ta bele­za mesmo no meio dos momentos mais atrozes. Não havia nada desta beleza no quadro de Rogo;ine; ·era a reprodução terminada de um cadáver hum.:zno trazendo a marca de sofrimentos sem número, suportados mesmo antes da crucificação; viam-se ali traços dos feri-· menJos, dos maus tratos e dos golpes que Ele agüentara dos seus guardas e do populacho quando Ele carregava a cruz e caía sob seu peso; enfim, traços dos ferimentos da crucificação a que foi subme­tido durante seis horas (pelo menos segundo os meus cálculos). Na verdade, era o rosto de um homem que se acabara de descer da cruz; guardava muita vida e calor; a rigidez ainda não havia feito o seu trabalho, de forma que o rosto do morto refletia seu sofrimen-

! Cf . Dostoievslú. O idiota .

"Um crente pode perder a fé"

HANS HOLBEIN, o Jovem (1497-1543), pinta em 1522 (a cama­da subjacente traz a data de 1521) um quadro perturbador, O Cristo morto, exposto no Museu de Basiléia, que parece ter impressionado imensamente Dostoievski . O príncipe Mychkine, em vão, tenta falar dele desde o início do Idiota,· mas somente por uma reviravolta poli· fônica da intriga ele percebe uma cópia do quadro em Rogojine e exclama "sob o impacto de uma súbita inspiração": "Este quadro! . .. Este quadro! Mas sabes que ao olhá-lo, um crente pode perder a fé?"1 Um pouco mais adjante, Hippolyte, um personagem secun· dário e que entretanto aparece em várias ocasioos como um duplo do narrador e de Mychkine, faz uma descrição surpreendente: "Ele representava o Cristo no momento da descida da Cruz. Se não me engano, os pintores têm o hábito de representar o Cristo na Cruz, ou depois da descida da Cruz com um reflexo de beleza sobre­natural no seu rosto . Eles se esforÇam para conservar-lhe es.ta bele­za mesmo no meio dos momentos mais atrozes. Não havia nada desta beleza no quadro de Rogo;ine; ·era a reprodução terminada de um cadáver hum.:zno trazendo a marca de sofrimentos sem número, suportados mesmo antes da crucificação; viam-se ali traços dos feri-· menJos, dos maus tratos e dos golpes que Ele agüentara dos seus guardas e do populacho quando Ele carregava a cruz e caía sob seu peso; enfim, traços dos ferimentos da crucificação a que foi subme­tido durante seis horas (pelo menos segundo os meus cálculos). Na verdade, era o rosto de um homem que se acabara de descer da cruz; guardava muita vida e calor; a rigidez ainda não havia feito o seu trabalho, de forma que o rosto do morto refletia seu sofrimen-

! Cf . Dostoievslú. O idiota .

104 O CtiSTO MOilTO DE HOLBEIN

to, como se continuasse a senti-lo (isto foi bem captado pelo artista) . Além de tudo, este rosto era de uma verdade impiedosa: tudo ali era natural, era mesmo o rosto de qualquer homem depois de torturas semelhantes .

Sei que, desde os primeiros séculos, a Igreja cristã professou que os sofrimentos do Cristo não foram simb6lico.s, mas reais, e que, na Cruz, seu corpo foi submetido, sem nenhuma restrição, às leis da natureza. O quadro representava portanto um rosto terrivelmen­te desfigurado pelos golpes, intumescido, coberto por atrozes e san­grentas equimoses, com os olhos abertos e marcados pelo brilho vítreo da morte, com as pupilas reviradas. Mas ·o mais estranho era a singular e apaixonante questão que a visão desse cadáver de supliciado sugeria: se todos seus discípulos, seus futuros apóstolos, as mulheres que o seguiram e que se mal1tiveram ao pé da Cruz, aqueles que depositaram fé n'Ele e que O adoravam, se todos os fiéis tiveram semelhante cadáver sob seus olhos (e certamente esse cadáver devia ser assim), como puderam eles acreditar, diante de tal visão, que o mártir ressuscitaria? Mesmo não querendo, dizemos: se a morte é uma coisa tão terrível, se as leis da natureza são tão poderosas, como podemos triunfar sobre elas? Como superá-las, quando elas não cederam então, diante d'Aquele mesmo que, du­rante sua vida, subjugara a natureza, que a fizera obedecer-lhe, que dissera "Talitha koumi!" e a menina se levantou, "Lázaro, saia!" e o morto saiu do sepulcro . Quando contemplamos esse quadro, imaginamos a natureza sob o aspecto de uma besta enorme, impla­cável e muda . Ou melhor, por mais inesperada que pareça a com­paração, seria mais justo, muito mais justo assimilá-la a uma enorme máquina de construção moderna, que, surda e insensível, teria estu­pidamente tragado, moído e engolido um grande Ser, um Ser sem preço, que vale sozinho, por toda a natureza, por todas as leis que a regem, por toda a terra, que talvez só tivesse sido criada para o aparecimento deste Ser!

Ora, o que esse quadro pareceu exprimir foi essa noção de uma forÇa obscura, insolente e estupidamente eterna, à qual tudo está su;eito, e que lhe domina, mesmo contra a sua vontcule . Os homens que cercavam o morto, embora o quadro não representasse nenhum deles, devem ter sentido uma angústia e uma consternação horrtveis, nessa noite que quebrava de uma só vez com todas as suas esperanças e quase com sua fé . Eles devem ter se separado, toma­dos por um terrível espanto, embora coda um deles levasse no fundo de si um pensamento prodigioso e hnpossível de ser desarraigado .

SOL :Ml!mO 103

E se o Mestre tivesse pôdido ver a sua própria imagem, na ~~s~era do suplício, teria Ele próprio podido camin~ar para a :rucrflxao e para a morte, como Ele o fez? Esta ainda e uma questao que,:em involuntariamente à mente quando se olha para esse quadro.

O homem de dor O quadro de Holbein representa um cadáver estendido num

pedestal coberto com um lençol maldobrado.~ De tamanho hum~n~, este cadáver pintado é representado de perftl, com a cabeça bget­ramente inclinada para o espectador, os cabelos espalhados sobre

0 lençol. O braço direito, visível, acompanha o corpo desc~rnado e torturado e a mão ultrapassa ligeiramente o pedestal . ? pelt? sal­tado esboça um triângulo no interior do retângulo mmto batxo. e alongado do nicho que constitui o plano do qu~. ~sse petto apresenta o traço sangrento de uma lança, e na ~ao v.eem-se os estigmas da crucifixão que endurecem o dedo médto esucad~ · Os traços dos pregos marcam os pés do Cristo . O rost~ do márt~r traz a expressão de uma dor sem esperança, o olhar vazio, o pedd agu· çado a tez verde-azulada são os de um homem realmente morto, do Cristo abandonado pelo Pai ("Pai, por que me abandonastes?") e sem promessa de Ressurreição.

A represent.ação sem disfarce da morte ·humana, o desnuda­mento quase anatômico do cadáver, comunica aos espectadores uma angústia insuportável diante da morte de Deus, aqui confundida com nossa própria morte, de tanto que está aus~nte a me~or su~es· tão de transcendência. Mais ainda, Hans Holbem renuncia aqm a qualquer fantasia arquitetura} e de composição. ~ laje tu~ular pesa sobre a parte superior do quadro, que só t_e~ . trmta :entimetros ~e altura' e acentua a impressão de morte dehmttVa: es~ cadáver nao se levantará mais . A própria mortalha, reduzida ao mínimo de do-

2 Ibid ., pp . 496-497 . Grifo nosso. . . l Em 1586, Basilius. Amerbach, fillio de Bonifactus Amubach, anugo de. Hol-bein advogado e colecionador na Basiléia, faz o inventário do quadro termmado uns ~essenta e cinco anos antes, escrevendo: "Cum titulo Jesus Naz.arenus Rex." A palavra "fudaeorum" é acrescentada e o texto colado na moldura atua~, que provavelmente data do fim do século XVI . Os anjos que portam os atrtbutos da paixão e que cercam a inscrição sllo atribuídos freqUentemente ao irmlo de Holbein 0 Jovem Ambr05ius Holbein . . . 1 d

• ' d lamstaa a 4 A proporção altura:largura é de 1:7, mas, contan o-se a P ac na margem inferior do quadro, observamos uma proporçio altura:largura de

1:9 .

104 O CtiSTO MOilTO DE HOLBEIN

to, como se continuasse a senti-lo (isto foi bem captado pelo artista) . Além de tudo, este rosto era de uma verdade impiedosa: tudo ali era natural, era mesmo o rosto de qualquer homem depois de torturas semelhantes .

Sei que, desde os primeiros séculos, a Igreja cristã professou que os sofrimentos do Cristo não foram simb6lico.s, mas reais, e que, na Cruz, seu corpo foi submetido, sem nenhuma restrição, às leis da natureza. O quadro representava portanto um rosto terrivelmen­te desfigurado pelos golpes, intumescido, coberto por atrozes e san­grentas equimoses, com os olhos abertos e marcados pelo brilho vítreo da morte, com as pupilas reviradas. Mas ·o mais estranho era a singular e apaixonante questão que a visão desse cadáver de supliciado sugeria: se todos seus discípulos, seus futuros apóstolos, as mulheres que o seguiram e que se mal1tiveram ao pé da Cruz, aqueles que depositaram fé n'Ele e que O adoravam, se todos os fiéis tiveram semelhante cadáver sob seus olhos (e certamente esse cadáver devia ser assim), como puderam eles acreditar, diante de tal visão, que o mártir ressuscitaria? Mesmo não querendo, dizemos: se a morte é uma coisa tão terrível, se as leis da natureza são tão poderosas, como podemos triunfar sobre elas? Como superá-las, quando elas não cederam então, diante d'Aquele mesmo que, du­rante sua vida, subjugara a natureza, que a fizera obedecer-lhe, que dissera "Talitha koumi!" e a menina se levantou, "Lázaro, saia!" e o morto saiu do sepulcro . Quando contemplamos esse quadro, imaginamos a natureza sob o aspecto de uma besta enorme, impla­cável e muda . Ou melhor, por mais inesperada que pareça a com­paração, seria mais justo, muito mais justo assimilá-la a uma enorme máquina de construção moderna, que, surda e insensível, teria estu­pidamente tragado, moído e engolido um grande Ser, um Ser sem preço, que vale sozinho, por toda a natureza, por todas as leis que a regem, por toda a terra, que talvez só tivesse sido criada para o aparecimento deste Ser!

Ora, o que esse quadro pareceu exprimir foi essa noção de uma forÇa obscura, insolente e estupidamente eterna, à qual tudo está su;eito, e que lhe domina, mesmo contra a sua vontcule . Os homens que cercavam o morto, embora o quadro não representasse nenhum deles, devem ter sentido uma angústia e uma consternação horrtveis, nessa noite que quebrava de uma só vez com todas as suas esperanças e quase com sua fé . Eles devem ter se separado, toma­dos por um terrível espanto, embora coda um deles levasse no fundo de si um pensamento prodigioso e hnpossível de ser desarraigado .

SOL :Ml!mO 103

E se o Mestre tivesse pôdido ver a sua própria imagem, na ~~s~era do suplício, teria Ele próprio podido camin~ar para a :rucrflxao e para a morte, como Ele o fez? Esta ainda e uma questao que,:em involuntariamente à mente quando se olha para esse quadro.

O homem de dor O quadro de Holbein representa um cadáver estendido num

pedestal coberto com um lençol maldobrado.~ De tamanho hum~n~, este cadáver pintado é representado de perftl, com a cabeça bget­ramente inclinada para o espectador, os cabelos espalhados sobre

0 lençol. O braço direito, visível, acompanha o corpo desc~rnado e torturado e a mão ultrapassa ligeiramente o pedestal . ? pelt? sal­tado esboça um triângulo no interior do retângulo mmto batxo. e alongado do nicho que constitui o plano do qu~. ~sse petto apresenta o traço sangrento de uma lança, e na ~ao v.eem-se os estigmas da crucifixão que endurecem o dedo médto esucad~ · Os traços dos pregos marcam os pés do Cristo . O rost~ do márt~r traz a expressão de uma dor sem esperança, o olhar vazio, o pedd agu· çado a tez verde-azulada são os de um homem realmente morto, do Cristo abandonado pelo Pai ("Pai, por que me abandonastes?") e sem promessa de Ressurreição.

A represent.ação sem disfarce da morte ·humana, o desnuda­mento quase anatômico do cadáver, comunica aos espectadores uma angústia insuportável diante da morte de Deus, aqui confundida com nossa própria morte, de tanto que está aus~nte a me~or su~es· tão de transcendência. Mais ainda, Hans Holbem renuncia aqm a qualquer fantasia arquitetura} e de composição. ~ laje tu~ular pesa sobre a parte superior do quadro, que só t_e~ . trmta :entimetros ~e altura' e acentua a impressão de morte dehmttVa: es~ cadáver nao se levantará mais . A própria mortalha, reduzida ao mínimo de do-

2 Ibid ., pp . 496-497 . Grifo nosso. . . l Em 1586, Basilius. Amerbach, fillio de Bonifactus Amubach, anugo de. Hol-bein advogado e colecionador na Basiléia, faz o inventário do quadro termmado uns ~essenta e cinco anos antes, escrevendo: "Cum titulo Jesus Naz.arenus Rex." A palavra "fudaeorum" é acrescentada e o texto colado na moldura atua~, que provavelmente data do fim do século XVI . Os anjos que portam os atrtbutos da paixão e que cercam a inscrição sllo atribuídos freqUentemente ao irmlo de Holbein 0 Jovem Ambr05ius Holbein . . . 1 d

• ' d lamstaa a 4 A proporção altura:largura é de 1:7, mas, contan o-se a P ac na margem inferior do quadro, observamos uma proporçio altura:largura de

1:9 .

J06 O CRISTO MORTO DE HOLBEIN

bras, toma mais pesada, por essa parcimônia de movimento, a im­pressão de rigidez e de frio de pedra .

O olhar do espectador penetra nesse caixão sem saída por baixo e segue o quadro da esquerda para a direita, para parar na pedra sob os pés do cadáver, inclinada em ângulo aberto para o público.

Qual era a destinação desse quadro de dimensões tão parti­culares? Pertence esse Cristo morto ao altar que Holbein executou para Hans Oberried em 1520-1521 e cujos dois painéis externos representavam a Paixão, estando o interior reservado à Natividade e à Adoração?5 Nada permite mantermos essa hipótese, que contudo não é inverossímil, levando-se em conta certos traços comuns com os painéis externos do altar destruído parcialmente durante o icono­clasmo basileu .

·Das diversas interpretações emitidas pela crítica , uma parece se destacar, parecendo hoje ser a mais verossímil . O quadro teria sido feito para uma predella que ficou sozinha e que devia ocupar um lugar superelevado em relação aos visitantes, que desfilavam de frente, de lado e da esquerda (por exemplo, a partir da nave central da igreja para a nave sul) . Encontram-se na região do Alto Reno igrejas que abrigavam nichos tumulares em que se acham expostos corpos crísticos esculpidós . O quadro de Holbein seria uma trans­posição para a pintura desses jazentes? Segundo uma hipótese, esse Cristo teria sido um revestimento de nicho de túmulo sagrado, aberto unicamente na Sexta-feira Santa e fechado nos outros dias do ano. Finalmente, e a partir da radiografia do quadro, F. Zschokke esta­beleceu que o Cristo morto encontrava-se inicialmente num nicho em forma de semicírculo, como um tubo . Desta posição data a ins­crição do ano, ao lado do pé direito, com a assinatura: H . H. DXXI. Um ano mais tarde, Holbein substitui esse nicho arqueado por um retangular e assina ·acima dos pés: MDXXII H.H. 6

O contexto biográfico e profissional no qual se situa esse Cristo no túmulo é igualmente interessante de ser lembrado . Holbein pinta uma série de Madonas (de 1520 a 1522), entre as quais a bela Vir-

5 Cf. Paul Ganz, The Painting$ of Hans Holbein (As pinturas de Hans Hol· bein), Phaidon Publishers lnc ., 1950, pP . 218-220. 6 Ct . Paul Ganz "Der Leiclmam Christ im grabe" (0 corpo de Cristo no túmulo), 1522, em Die Malefarmi Holbein in Base/ (''A família dos pintores Holbein na Basiléia .. ). Ausstellung im Kunstmuseum Basel zur Fünfhundert· jarhrfeier der Universitat Basel (exposição realizada no Museu de Arte da Basil~ia por ocasião dr.:: é:omemorações dos 500 anos da Universidade de & siJéia); pp. 188-190.

5IOL NEGRO I 07

gem de Solothurn . Em 1521 nasce seu primeiro filho, Phillippe . Também é uma época de intensa amizade com Erasmo, cujo retrato Holbein fará em 1523 .

O nascimento de uma criança - e a ameaça de morte pesando sobre ela mas sobrctudq sobre o pintor enquanto pai, que a nova geração deveria um dia repelir. A amizade de Erasmo ~ o abandono não somente do fana tismo, mas, entre alguns humanistas, da pró­pria fé . Um pequeno díptico do mesmo período, de inspiração gó­tica e realizado em "cores falsas", representa o Cristo como homem de dor, e Mater dolorosa (Basiléia, 1519-1520). O corpo do homem de dor, estranhamente atlético, musculoso e tenso, está sentado numa colunata: a mão encarquilhada diante do sexo parece ter um espas­mo; somente a cabeça inclinada, portan to uma coroa de espinhos e o rosto dolorido, com a boca aberta, exprimem um. sofrimento mór­bido para além do erotismo difuso. Dor de que paixão? O Deus· -homem seria doloroso, · isto é, assediado pela morte, porque ele é sexual; presa de uma paixão sexual?

Uma composição do isolamento

A iconografia italiana embeleza, ou pelo menos enobrece, o rosto do Cristo na Paixão, mas sobretudo ela o cerca de personagens mergulhados na dor tanto quanto na certeza da Ressurreição, como que para nos sugerir a alitude que nós mesmos devemos adotar diante da Paixão . Pelo contrário, Holbein deixa o cadáver estra­nhamente sozinho . Talvez seja esse isolamento -um jato de com­posição - que confira ao quadro a sua carga de melancolia maior , mais do que o fazem o desenho e o colorido. O sofrimento do Cristo é expresso, na verdade, por três elementos internos ao dese­nho e ao cromatismo: a cabeça curvada para trás, a crispação da mão direita que traz os estigmas, ª posição dos pés, estando o con­junto construído numa paleta escura cinza-verde-marrom . Contudo, esse realismo pungente pela sua própria parcimônia é acentuado ao máximo pela composição e pela posição do quadro: corpo estirado, sozinho, colocado acima dos espectadores e separado deles .

Separado de nós pelo pedestal, mas sem nenhuma saída para o céu, pois o teto do nicho desce baixo, o Cristo de Holbein· é um morto inacessível, longínquo, mas sem u m além . Uma maneira de ver a humanidade a distância, at6 na m orte . Como Erasmo viu a loucura com distância. Esta visão desemboca não na glória, ma~ na resistêncià . Uma outra, uma nova moral repousa nessa pintura .

J06 O CRISTO MORTO DE HOLBEIN

bras, toma mais pesada, por essa parcimônia de movimento, a im­pressão de rigidez e de frio de pedra .

O olhar do espectador penetra nesse caixão sem saída por baixo e segue o quadro da esquerda para a direita, para parar na pedra sob os pés do cadáver, inclinada em ângulo aberto para o público.

Qual era a destinação desse quadro de dimensões tão parti­culares? Pertence esse Cristo morto ao altar que Holbein executou para Hans Oberried em 1520-1521 e cujos dois painéis externos representavam a Paixão, estando o interior reservado à Natividade e à Adoração?5 Nada permite mantermos essa hipótese, que contudo não é inverossímil, levando-se em conta certos traços comuns com os painéis externos do altar destruído parcialmente durante o icono­clasmo basileu .

·Das diversas interpretações emitidas pela crítica , uma parece se destacar, parecendo hoje ser a mais verossímil . O quadro teria sido feito para uma predella que ficou sozinha e que devia ocupar um lugar superelevado em relação aos visitantes, que desfilavam de frente, de lado e da esquerda (por exemplo, a partir da nave central da igreja para a nave sul) . Encontram-se na região do Alto Reno igrejas que abrigavam nichos tumulares em que se acham expostos corpos crísticos esculpidós . O quadro de Holbein seria uma trans­posição para a pintura desses jazentes? Segundo uma hipótese, esse Cristo teria sido um revestimento de nicho de túmulo sagrado, aberto unicamente na Sexta-feira Santa e fechado nos outros dias do ano. Finalmente, e a partir da radiografia do quadro, F. Zschokke esta­beleceu que o Cristo morto encontrava-se inicialmente num nicho em forma de semicírculo, como um tubo . Desta posição data a ins­crição do ano, ao lado do pé direito, com a assinatura: H . H. DXXI. Um ano mais tarde, Holbein substitui esse nicho arqueado por um retangular e assina ·acima dos pés: MDXXII H.H. 6

O contexto biográfico e profissional no qual se situa esse Cristo no túmulo é igualmente interessante de ser lembrado . Holbein pinta uma série de Madonas (de 1520 a 1522), entre as quais a bela Vir-

5 Cf. Paul Ganz, The Painting$ of Hans Holbein (As pinturas de Hans Hol· bein), Phaidon Publishers lnc ., 1950, pP . 218-220. 6 Ct . Paul Ganz "Der Leiclmam Christ im grabe" (0 corpo de Cristo no túmulo), 1522, em Die Malefarmi Holbein in Base/ (''A família dos pintores Holbein na Basiléia .. ). Ausstellung im Kunstmuseum Basel zur Fünfhundert· jarhrfeier der Universitat Basel (exposição realizada no Museu de Arte da Basil~ia por ocasião dr.:: é:omemorações dos 500 anos da Universidade de & siJéia); pp. 188-190.

5IOL NEGRO I 07

gem de Solothurn . Em 1521 nasce seu primeiro filho, Phillippe . Também é uma época de intensa amizade com Erasmo, cujo retrato Holbein fará em 1523 .

O nascimento de uma criança - e a ameaça de morte pesando sobre ela mas sobrctudq sobre o pintor enquanto pai, que a nova geração deveria um dia repelir. A amizade de Erasmo ~ o abandono não somente do fana tismo, mas, entre alguns humanistas, da pró­pria fé . Um pequeno díptico do mesmo período, de inspiração gó­tica e realizado em "cores falsas", representa o Cristo como homem de dor, e Mater dolorosa (Basiléia, 1519-1520). O corpo do homem de dor, estranhamente atlético, musculoso e tenso, está sentado numa colunata: a mão encarquilhada diante do sexo parece ter um espas­mo; somente a cabeça inclinada, portan to uma coroa de espinhos e o rosto dolorido, com a boca aberta, exprimem um. sofrimento mór­bido para além do erotismo difuso. Dor de que paixão? O Deus· -homem seria doloroso, · isto é, assediado pela morte, porque ele é sexual; presa de uma paixão sexual?

Uma composição do isolamento

A iconografia italiana embeleza, ou pelo menos enobrece, o rosto do Cristo na Paixão, mas sobretudo ela o cerca de personagens mergulhados na dor tanto quanto na certeza da Ressurreição, como que para nos sugerir a alitude que nós mesmos devemos adotar diante da Paixão . Pelo contrário, Holbein deixa o cadáver estra­nhamente sozinho . Talvez seja esse isolamento -um jato de com­posição - que confira ao quadro a sua carga de melancolia maior , mais do que o fazem o desenho e o colorido. O sofrimento do Cristo é expresso, na verdade, por três elementos internos ao dese­nho e ao cromatismo: a cabeça curvada para trás, a crispação da mão direita que traz os estigmas, ª posição dos pés, estando o con­junto construído numa paleta escura cinza-verde-marrom . Contudo, esse realismo pungente pela sua própria parcimônia é acentuado ao máximo pela composição e pela posição do quadro: corpo estirado, sozinho, colocado acima dos espectadores e separado deles .

Separado de nós pelo pedestal, mas sem nenhuma saída para o céu, pois o teto do nicho desce baixo, o Cristo de Holbein· é um morto inacessível, longínquo, mas sem u m além . Uma maneira de ver a humanidade a distância, at6 na m orte . Como Erasmo viu a loucura com distância. Esta visão desemboca não na glória, ma~ na resistêncià . Uma outra, uma nova moral repousa nessa pintura .

108 O CIUSTO MORTO DE. HOLBE.IN

O desconsolo do Cristo aqui está no seu ponto máximo: aban­donado pelo Pai, está separado de todos nós. A menos que Holbein, espírito picante, mas que não parece ter ultrapassado os limites do ateísmo, tenha querido nos incluir diretamente, a nós - humanos, estrangeiros, espectadores -, nesse momento crucial da vida do Cristo. Sem outro intennediário, sugestão ou doutrinamento pictu­ral ou teológico senão nossa própria capacidade de imaginar a mor­te, somos levados a desabar no horror dessa cesura que é o fal~ cimento, ou a sonhar com um além invisível. Holbein nos abandona, como por um instante, o Cristo, se imaginou abandonado; ou, pelo contrário, ele nos convida a fazer do túmulo crístico um túmulo vivo, a participar dessa morte pintada e portanto a inclui-la em nossa própria vida? Para viver com ela e para fazê-la viver, pois se o corpo vivo, contrariamente ao cadáver rígido, é um corpo dan­çante, por se identificar com a morte, nossa vida não se toma uma "dança macabra" segundo a outra visão, bem conhecida, de Hol­bein?

Esse nicho fechado, esse caixão bem isolado, ao mesmo tempo nos recusa e nos convida . De fato, o cadáver ocupa todo o campo do quadro, sem que haja nenhuma referência baseada na Paixão . Nosso olhar segue o menor detalhe físico, ele está como pregado, crucificado, e se fixa na mão colocada no centro da composição. Se ele tenta fugir, rapidamente pára, bloqueado no rosto desolado ou nos pés que batem contra a pedra negra . Entretanto, esse enclau­suramento comporta duas escapadas.

Por um lado, a inserção.da data e da assinatura: MDXXII H. H. aos pés do Cristo . Essa colocação do nome do artista, ao qual em geral se acrescentava o do doador, era habitual na época. Contudo, é possível que, ao se prestar a este código, Holbein tenha se inse­rido, ele próprio, no drama do Morto . Sinal de humildade: o artista prostrado aos pés de Deus? Ou então sinal de igualdade? O nome do pintor não está mais baixo do que o corpo do Cristo, eles estão na mesma altura, imprensados no nicho, unidos na morte do homem, na morte como signo essencial da humanidade e do qual só sobre­viverá a criação efêmera de uma imagem traçada aqui e agora, em 1521 e 1522!

Por outro lado, há esses cabelos e essa mão que transbordam do pedestal como se pudessem oscilar em nossa direção, como se a moldura não retivesse o cadáver. Precisamente, esta moldura data do fim do século XVI e compreende um rebordo estreito que traz a inscrição Jesus Naz4renus Rex (/udaeorum) que invade o quadro.

IOL NEGAO 109

O rebordo, que parece ter feito parte <io quadro de Holbein, circun­da, entre as palavras da inscrição, cinco anjos que portam o~ instru· mentos do martírio: a flecha, a coroa de espinhos, o chtcote, a coluna de flagelação, a cruz. Integrado, bem mais tarde, nessa mol­dura simbólica, o quadro de Holbein reencontra seu sentido evan· g.élico, que comumente não apresenta em si mesmo e que provavel­mente o legitimou aos olhos dos seus compradores.

Mesmo que o quadro de Holbein tivesse sido concebido, ~rigi­nalmente, como uma predelúz de retábulo, ele permaneceu sozmho, sem que qualquer outro pa:nel fosse acrescentado a ele. Esse isola· menta, tão esplêndido quanto lúgubre, evita o simbolismo ~ristão tanto quanto a sobrecarga do gótico alemão, que combinava pmtura e escultura, mas também acrescentava painéis laterais ao retábulo, numa ambição d~ sincretismo e de movimentação das imagens. Diante dessa tradição que o precede imediatamente, Holbein isola, desbasta condensa, reduz .

A ~riginalidade de Holbein reside, portanto, numa visão da morte cr.ística desprovida de patético e de intimismo pela sua pró­pria banalidade. A humanização atinge assim o seu ponto mais alto: o ponto da extinção da glória na imagem. Quando o lúgubre resvala no qualquer, o signo mais perturbador é o mais comum . _Opondo-se ao entusiasmo gótico, a melancolia se inverte em humamsmo e em

parcimônia . . . . , . _ . Entretanto essa originalidade está fthada a tradtçao da tcono-

grafia cristã vi~da de Bizâncio.1 Numerosas representações do Cristo

7 Cf. mais adiante, p . 222. . Antes de Holbein encontramos essa representação do corpo estendtdo em

todo 0 seu comprimc~to, por exemplo, em Pietro Lor~ctti, Desci~a d~ Cruz, em Assis. Mesma posição, mas orientada para a d1reita, do Cnsto Jacente:, nas pinturas murais da igreja Blansingen, perto de Basiléia, datando de aprOXI­madamente 1450. Em torno de 1440, o mestre de Heures de Rohan apresenta uma figura rlgida e ensangüentada do Cristo ~orlo ,. mas aco_mpanhado da misericórdia de Maria . Aproximaremos desta séne a Ptet~ de Vtl~eneuv~, com o Cristo de perfiL (Cf. Walter Ueberwasser, ''Holbems, Chnstus m der Grabnish" - O Cristo no tt1mulo de Holbein. in Festchrift für Werner Noack - edição comemorativa pata Werner Noack, I 925. p . 125 sg.) . .

Notemos também o Cristo no túmulo, esculpido na catedral de Fnburgo, e uma outra escultura de 1430, na catedral de Freising, representando o Cristo jacente com uma posição do corpo e com proporções inteiramente ~emelhantes às do quadro de Ho\bein, com exceção, bem entendido, do conhectmento ana­tômico do corpo, próprio ao artista renascentista .

108 O CIUSTO MORTO DE. HOLBE.IN

O desconsolo do Cristo aqui está no seu ponto máximo: aban­donado pelo Pai, está separado de todos nós. A menos que Holbein, espírito picante, mas que não parece ter ultrapassado os limites do ateísmo, tenha querido nos incluir diretamente, a nós - humanos, estrangeiros, espectadores -, nesse momento crucial da vida do Cristo. Sem outro intennediário, sugestão ou doutrinamento pictu­ral ou teológico senão nossa própria capacidade de imaginar a mor­te, somos levados a desabar no horror dessa cesura que é o fal~ cimento, ou a sonhar com um além invisível. Holbein nos abandona, como por um instante, o Cristo, se imaginou abandonado; ou, pelo contrário, ele nos convida a fazer do túmulo crístico um túmulo vivo, a participar dessa morte pintada e portanto a inclui-la em nossa própria vida? Para viver com ela e para fazê-la viver, pois se o corpo vivo, contrariamente ao cadáver rígido, é um corpo dan­çante, por se identificar com a morte, nossa vida não se toma uma "dança macabra" segundo a outra visão, bem conhecida, de Hol­bein?

Esse nicho fechado, esse caixão bem isolado, ao mesmo tempo nos recusa e nos convida . De fato, o cadáver ocupa todo o campo do quadro, sem que haja nenhuma referência baseada na Paixão . Nosso olhar segue o menor detalhe físico, ele está como pregado, crucificado, e se fixa na mão colocada no centro da composição. Se ele tenta fugir, rapidamente pára, bloqueado no rosto desolado ou nos pés que batem contra a pedra negra . Entretanto, esse enclau­suramento comporta duas escapadas.

Por um lado, a inserção.da data e da assinatura: MDXXII H. H. aos pés do Cristo . Essa colocação do nome do artista, ao qual em geral se acrescentava o do doador, era habitual na época. Contudo, é possível que, ao se prestar a este código, Holbein tenha se inse­rido, ele próprio, no drama do Morto . Sinal de humildade: o artista prostrado aos pés de Deus? Ou então sinal de igualdade? O nome do pintor não está mais baixo do que o corpo do Cristo, eles estão na mesma altura, imprensados no nicho, unidos na morte do homem, na morte como signo essencial da humanidade e do qual só sobre­viverá a criação efêmera de uma imagem traçada aqui e agora, em 1521 e 1522!

Por outro lado, há esses cabelos e essa mão que transbordam do pedestal como se pudessem oscilar em nossa direção, como se a moldura não retivesse o cadáver. Precisamente, esta moldura data do fim do século XVI e compreende um rebordo estreito que traz a inscrição Jesus Naz4renus Rex (/udaeorum) que invade o quadro.

IOL NEGAO 109

O rebordo, que parece ter feito parte <io quadro de Holbein, circun­da, entre as palavras da inscrição, cinco anjos que portam o~ instru· mentos do martírio: a flecha, a coroa de espinhos, o chtcote, a coluna de flagelação, a cruz. Integrado, bem mais tarde, nessa mol­dura simbólica, o quadro de Holbein reencontra seu sentido evan· g.élico, que comumente não apresenta em si mesmo e que provavel­mente o legitimou aos olhos dos seus compradores.

Mesmo que o quadro de Holbein tivesse sido concebido, ~rigi­nalmente, como uma predelúz de retábulo, ele permaneceu sozmho, sem que qualquer outro pa:nel fosse acrescentado a ele. Esse isola· menta, tão esplêndido quanto lúgubre, evita o simbolismo ~ristão tanto quanto a sobrecarga do gótico alemão, que combinava pmtura e escultura, mas também acrescentava painéis laterais ao retábulo, numa ambição d~ sincretismo e de movimentação das imagens. Diante dessa tradição que o precede imediatamente, Holbein isola, desbasta condensa, reduz .

A ~riginalidade de Holbein reside, portanto, numa visão da morte cr.ística desprovida de patético e de intimismo pela sua pró­pria banalidade. A humanização atinge assim o seu ponto mais alto: o ponto da extinção da glória na imagem. Quando o lúgubre resvala no qualquer, o signo mais perturbador é o mais comum . _Opondo-se ao entusiasmo gótico, a melancolia se inverte em humamsmo e em

parcimônia . . . . , . _ . Entretanto essa originalidade está fthada a tradtçao da tcono-

grafia cristã vi~da de Bizâncio.1 Numerosas representações do Cristo

7 Cf. mais adiante, p . 222. . Antes de Holbein encontramos essa representação do corpo estendtdo em

todo 0 seu comprimc~to, por exemplo, em Pietro Lor~ctti, Desci~a d~ Cruz, em Assis. Mesma posição, mas orientada para a d1reita, do Cnsto Jacente:, nas pinturas murais da igreja Blansingen, perto de Basiléia, datando de aprOXI­madamente 1450. Em torno de 1440, o mestre de Heures de Rohan apresenta uma figura rlgida e ensangüentada do Cristo ~orlo ,. mas aco_mpanhado da misericórdia de Maria . Aproximaremos desta séne a Ptet~ de Vtl~eneuv~, com o Cristo de perfiL (Cf. Walter Ueberwasser, ''Holbems, Chnstus m der Grabnish" - O Cristo no tt1mulo de Holbein. in Festchrift für Werner Noack - edição comemorativa pata Werner Noack, I 925. p . 125 sg.) . .

Notemos também o Cristo no túmulo, esculpido na catedral de Fnburgo, e uma outra escultura de 1430, na catedral de Freising, representando o Cristo jacente com uma posição do corpo e com proporções inteiramente ~emelhantes às do quadro de Ho\bein, com exceção, bem entendido, do conhectmento ana­tômico do corpo, próprio ao artista renascentista .

110 O CRISTO Y.OKTO DE HOLBEJN

morto espalham-se pela Europa central, por volta de 1500, sob a influência da mística dominicana, cujos grandes representantes na Alemanha são Mestre Eckart (1260-1327), Jean Taluer (1300-1361) e sobretudo Henri de Berg, dito Suso (1295-1366).8

Grünewald e Mantegna

Compararemos também a vtsao de Holbein com a do Cristo morto de Grünewald do retábulo de Jssenheim {1512-1515), trans­portado para Colmar em 1794. A parte central, representando a

Crucifixão, mostra um Cristo que traz as marcas parox.ísticas do martírio (a coroa de espinhos, a cruz, os inumeráveis ferimentos) até a putrefação da carne. O expressionismo gótico atinge aqui um apogeu na manifestação da dor . O Cristo de Griinewald, no entan­to, não é reduzido ao isolamento, como o de Holbeln. O mundo humano ao qual ele pertertce .ali está representado pela Virgem que cai nos braços de São João Evangelista, por Maria Madalena e pot São João Batista, que introduzem a comiseração na imagem.9

Ora, a predella do mesmo retábulo de Colmar pintado por Grü· newald apresenta um Cristo bastante diferente daquele da Crucifi· xão. Trata-se de uma Inumação ou Lamentação. As linhas hori­zontais substituem a verticalidade da Crucifixão, e o cadáver pa­rece mais elegíaco do que trágico: um corpo pesado, apaziguado, de uma calma lúgubre. Holbein poderia simplesmente ter invertido este corpo do Cristo de Grünewald agonizante, colocando os pés para a direita e eliminando os personagens dos três pranteadores (Ma-dale­na, a Virgem, São João). Mais sóbrio do que a Crucifixão, a La­mentação de Grünewald já oferece a possibilidade de uma transição da arte gótica para Holbein. No entanto, é certo que Holbein vai ainda mais longe do que esse apaziguamento momentâneo do mestre de Colmar. Fazer quadros de modo mais pungente que Grünewald

~ A propósito do sentimento religioso na Alemanha no fim da Idade Média e de sua influência na pintura, cf. Louis R~au, Mathias Griinewald et Ie reta­ble de Colmar (Mathias Grüncwald e o retábulo de Colmar), ed. Berger-Lcvrault, 1920. 9 Cf. W. Pinder, Holbein le Jeune et la Fin de l'art gothique allemand (Hol­bein o Jovem c o fim da arte gótica alemã), 2.• ed ., Colônia, 1951 .

SOL NEGRO 111

unicamente com os meios do realismo despojado é tão mais um combate contra o pintor-pai, que parece que Grünewald se inspiro:.! muito em Holbeín, o Velho, que se instalara em Issenheim, onde morreu em 1526.10 Holbein acalma totalmente a tormenta gótica, e, ao mesmo tempo em que esbarra no maneirismo nascente, do qual é contemporâneo, sua arte dá provas de um classicismo que evita a sufocação para uma forma rapidamente despojada de lastro. Ele impõe à imagem o peso da dor humana .

Enfim, o célebre Cristo in scruto de Mantegna (1480?, museu Brera, Milão) pode :ser considerado como o ancestral dessa visão quase anatômica do Cristo morto . A planta dos pés virada para os espectadores e numa perspectiva encurtada, em Mantegna o cadáver se impõe com uma brutalidade que chega às ra!as do obsceno. En· tretanto, as duas mulheres que aparecem no ângulo superior esquer­do do quadro de Mantegna introduzem a dor e a compaixão que, precisamente, Holbein reserva ao bani-las do espetáculo ou então ao suscitá-las sem outro intermediário senão o apelo inv!sível para a nossa identificação humana, excessivamente humana, com o Filho morto. Como se Holbein tivesse integrado a dor gót!ca de inspiração dominicana, filtrada pelo . sentimentalismo de Suso, tal como a ma· nifesta o expressionismo de Grünewald, aliviando-a dos seus exces­sos, ao mesmo tempo que da presença divina que pesa enormemen­te, culpabilizante e expiatória sobre o imaginário de Grünewald . Como se Holbeín ainda tivesse retomado a lição anatômica e paci­ficadora de Mantegna e do catolicismo italiano, menos sensível ao pecado do homem do que ao seu perdão e mais influenciado pelo êxtase bucólico e embelezador dos franciscanos do que pela valo­rização moral da dor, feita pelos dominicanos. Entretanto, sempre atento ao espírito gótico, Holbein preserva o sofrimento, humani­zando-o, mas sem seguir a via italiana de denegação da dor e de exaltação da soberba da carne ou da beleza do além . Holbein está numa outra dimensão: ele vulgariza a paixão do Crucü!cado para tomá-la mais acessível a nós. Esse gesto de humanização, que não deixa de ter alguma ironia para com a transcendência, sugere uma imensa misericórdia para com a nossa morte. Segundo a lenda, seria o cadáver de um judeu recolhido no Reno que teria servido de mo·

delo para Holbein ...

to Cf. W . Ueberwasscr, op. cit .

110 O CRISTO Y.OKTO DE HOLBEJN

morto espalham-se pela Europa central, por volta de 1500, sob a influência da mística dominicana, cujos grandes representantes na Alemanha são Mestre Eckart (1260-1327), Jean Taluer (1300-1361) e sobretudo Henri de Berg, dito Suso (1295-1366).8

Grünewald e Mantegna

Compararemos também a vtsao de Holbein com a do Cristo morto de Grünewald do retábulo de Jssenheim {1512-1515), trans­portado para Colmar em 1794. A parte central, representando a

Crucifixão, mostra um Cristo que traz as marcas parox.ísticas do martírio (a coroa de espinhos, a cruz, os inumeráveis ferimentos) até a putrefação da carne. O expressionismo gótico atinge aqui um apogeu na manifestação da dor . O Cristo de Griinewald, no entan­to, não é reduzido ao isolamento, como o de Holbeln. O mundo humano ao qual ele pertertce .ali está representado pela Virgem que cai nos braços de São João Evangelista, por Maria Madalena e pot São João Batista, que introduzem a comiseração na imagem.9

Ora, a predella do mesmo retábulo de Colmar pintado por Grü· newald apresenta um Cristo bastante diferente daquele da Crucifi· xão. Trata-se de uma Inumação ou Lamentação. As linhas hori­zontais substituem a verticalidade da Crucifixão, e o cadáver pa­rece mais elegíaco do que trágico: um corpo pesado, apaziguado, de uma calma lúgubre. Holbein poderia simplesmente ter invertido este corpo do Cristo de Grünewald agonizante, colocando os pés para a direita e eliminando os personagens dos três pranteadores (Ma-dale­na, a Virgem, São João). Mais sóbrio do que a Crucifixão, a La­mentação de Grünewald já oferece a possibilidade de uma transição da arte gótica para Holbein. No entanto, é certo que Holbein vai ainda mais longe do que esse apaziguamento momentâneo do mestre de Colmar. Fazer quadros de modo mais pungente que Grünewald

~ A propósito do sentimento religioso na Alemanha no fim da Idade Média e de sua influência na pintura, cf. Louis R~au, Mathias Griinewald et Ie reta­ble de Colmar (Mathias Grüncwald e o retábulo de Colmar), ed. Berger-Lcvrault, 1920. 9 Cf. W. Pinder, Holbein le Jeune et la Fin de l'art gothique allemand (Hol­bein o Jovem c o fim da arte gótica alemã), 2.• ed ., Colônia, 1951 .

SOL NEGRO 111

unicamente com os meios do realismo despojado é tão mais um combate contra o pintor-pai, que parece que Grünewald se inspiro:.! muito em Holbeín, o Velho, que se instalara em Issenheim, onde morreu em 1526.10 Holbein acalma totalmente a tormenta gótica, e, ao mesmo tempo em que esbarra no maneirismo nascente, do qual é contemporâneo, sua arte dá provas de um classicismo que evita a sufocação para uma forma rapidamente despojada de lastro. Ele impõe à imagem o peso da dor humana .

Enfim, o célebre Cristo in scruto de Mantegna (1480?, museu Brera, Milão) pode :ser considerado como o ancestral dessa visão quase anatômica do Cristo morto . A planta dos pés virada para os espectadores e numa perspectiva encurtada, em Mantegna o cadáver se impõe com uma brutalidade que chega às ra!as do obsceno. En· tretanto, as duas mulheres que aparecem no ângulo superior esquer­do do quadro de Mantegna introduzem a dor e a compaixão que, precisamente, Holbein reserva ao bani-las do espetáculo ou então ao suscitá-las sem outro intermediário senão o apelo inv!sível para a nossa identificação humana, excessivamente humana, com o Filho morto. Como se Holbein tivesse integrado a dor gót!ca de inspiração dominicana, filtrada pelo . sentimentalismo de Suso, tal como a ma· nifesta o expressionismo de Grünewald, aliviando-a dos seus exces­sos, ao mesmo tempo que da presença divina que pesa enormemen­te, culpabilizante e expiatória sobre o imaginário de Grünewald . Como se Holbeín ainda tivesse retomado a lição anatômica e paci­ficadora de Mantegna e do catolicismo italiano, menos sensível ao pecado do homem do que ao seu perdão e mais influenciado pelo êxtase bucólico e embelezador dos franciscanos do que pela valo­rização moral da dor, feita pelos dominicanos. Entretanto, sempre atento ao espírito gótico, Holbein preserva o sofrimento, humani­zando-o, mas sem seguir a via italiana de denegação da dor e de exaltação da soberba da carne ou da beleza do além . Holbein está numa outra dimensão: ele vulgariza a paixão do Crucü!cado para tomá-la mais acessível a nós. Esse gesto de humanização, que não deixa de ter alguma ironia para com a transcendência, sugere uma imensa misericórdia para com a nossa morte. Segundo a lenda, seria o cadáver de um judeu recolhido no Reno que teria servido de mo·

delo para Holbein ...

to Cf. W . Ueberwasscr, op. cit .

112 O CRISTO MOitTO DE HOLBEIN

A mesma verve, meio macabra, meio irônica,11 encontrará des­ta vez seu apogeu num franco grotesco quando, em 1524, Holbein passa um tempo no sul da França e recebe, em Lyon, a encomenda dos editores Melchior e Gaspard Treschel para uma Danse macabre, série de gravuras em madeira. Essa dança da Morte, desenhada por Holbein e gravada por Hans Lutzelburger, é editada em Lyon em 1538 . Ela será copiada e difundida em toda a Europa oferecendo à humanidade renascentista uma representação ao mesm'o tempo de­vastadora e grotesca de si mesma, que retoma em imagem o tom de François Villon. Dos recém-nascidos da plebe até os papas, im­peradores, arcebispos, abades, cavalheiros, burgueses, apaixona· dos ... : toda a espécie humana é apanhada pela morte. Enlaçado com a Morte, ninguém escapa ao seu abraço, certamente fatal mas cuja . angústia esconde aqui a sua força depressiva para mos:rar o desafio no sarcasmo ou a ameaça de um sorriso que zomba dela, sem triunfalismo, como se nos soubéssemos perdidos, rindo.

A morte diante do Renascimento

Facilmente imaginamos o homem renascentista tal como o dei­xou Rabelais: grandioso, talvez um pouco engraçado à maneira de Panurgo, mas francamente lançado para a felicidade e para a sabe­doria da divina garrafa. Holbein, em compensação, nos propõe uma outra visão: a do homem sujeito à morte, do homem beijando a Morte, absorvendo-a no seu próprio ser, integrando-a não como uma condição de sua glória nem como uma conseqüência de sua natu­reza pecadora, mas como a essência última de sua realidade dessa­cralizada, que é o fundamento de uma nova dignidade. Por isto mesmo, a imagem da morte crística e humana, em Holbein, é cúm­plice íntima do Elogio da loucura (1511) de Erasmo, de quem Hol-

11 O tema da Morte atravessa a Idade Média e encontra uma acolhida parti· cular nos países nórdicos. Pelo contrário, no prólogo do Decamerão, Boccacio proscreve qualquer interesse pela lúgubre personagem e exalta a alegria de viver .

Em compensação, Thomas More, que Holbein conheceu por íntennédio de Erasmo, fala da morte como Holbein poderia tê-lo feito a partir do seu Cristo morto: "Fazemos brincadeiras e acreditamos que a morte está bem longe. Ela está escondida no mais secreto de nossos órgãos . Pois, desde o momento em que fostes posto no mundo, a vida e a morte caminham com o mesmo passo." (Cf. A. Lerfoy, Ho/bein, Albin Michel, Paris, 1941, p. 85.) Sabemos que Sha- . kespeare prima pelo entrelaçamento trágico e feérico dos temas da morte.

SOL NEGRO 113

bein se tornou, em 1523, o amigo, o ilustrador, o retratista. O ho­mem atinge uma nova dimensão porque reconhece sua loucura e olha sua morte de frente - mas talvez também seus riscos mentais, seus riscos de morte psíquica. Não necessariamente a dimensão do ateísmo, mas com toda certeza a de uma conduta desiludida, serena e digna. Como um quadro de Holbein .

A aflição protestante

A Reforma influenciou tal concepção da morte e, mais parti· cularmente, tal valorização da morte do Cristo em detrimento de qualquer alusão à Redenção e à Ressurreição? Sabemos que o cato· licismo tende a acentuar uma "visão beatífica" da morte crístlca, deslizando pelos horrores da Paixão e privilegiando o fato de Cristo, desde sempre, ter sabido da sua Ressurreição (S. 22, 29 e seguin· tes). Calvino, pelo contrário, insiste na formidabilis abysis em que Jesus está mergulhado na hora da sua morte, descendo ao fundo do pecado e do inferno. Lutero já se descrevia como um melancó­lico, que dependia da influência de Saturno e do diabo: "Eu, Marti­nho Lutero, nasci sob .os astros mais desfavoráveis, provavelmente sob Saturno", diz ele em 1532 . "Onde se encontra um melancó­lico, o diabo preparou o banho [ ... ] Por experiência, aprendi como devemos nos conduzir nas tentações . Quem é assaltado pela tristeza, pelo desespero e por outras aflições do coração, quem tem um verme na consciência, primeira deve se ater à consolação da Palavra divina, para comer e beber, e buscar a companhia e a conversa de pessoas felizes em Deus e cristãs. Assim tudo irá melhor. ''12

Desde as suas 95 teses contra as indulgências (1517), Martinho Lutero formula um apelo místico pelo sofrimento como meio de acesso ao céu. E se a idéia da geração do homem através da graça está presente ao lado desta imersão na dor, apesar disto a intensi­dade da fé é medida com a capacidade de contrição. Assim: ({Esta é a razão pela qual a expiação continua, enquanto durar o ódio por si mesmo (em outras palavras, a verdadeira penitência interior), a saber, até a entrada do reino dos céus" (tese IV); "Deus nunca atri­bui a culpa ao homem sem obrigá-lo, ao mesmo tempo, a se humi-

12 M . Luther, Tischereden in der Mathersischen Sammlung (Coletânea de dis­cursos sobre a Matesis), t. I, n.• 122 .

112 O CRISTO MOitTO DE HOLBEIN

A mesma verve, meio macabra, meio irônica,11 encontrará des­ta vez seu apogeu num franco grotesco quando, em 1524, Holbein passa um tempo no sul da França e recebe, em Lyon, a encomenda dos editores Melchior e Gaspard Treschel para uma Danse macabre, série de gravuras em madeira. Essa dança da Morte, desenhada por Holbein e gravada por Hans Lutzelburger, é editada em Lyon em 1538 . Ela será copiada e difundida em toda a Europa oferecendo à humanidade renascentista uma representação ao mesm'o tempo de­vastadora e grotesca de si mesma, que retoma em imagem o tom de François Villon. Dos recém-nascidos da plebe até os papas, im­peradores, arcebispos, abades, cavalheiros, burgueses, apaixona· dos ... : toda a espécie humana é apanhada pela morte. Enlaçado com a Morte, ninguém escapa ao seu abraço, certamente fatal mas cuja . angústia esconde aqui a sua força depressiva para mos:rar o desafio no sarcasmo ou a ameaça de um sorriso que zomba dela, sem triunfalismo, como se nos soubéssemos perdidos, rindo.

A morte diante do Renascimento

Facilmente imaginamos o homem renascentista tal como o dei­xou Rabelais: grandioso, talvez um pouco engraçado à maneira de Panurgo, mas francamente lançado para a felicidade e para a sabe­doria da divina garrafa. Holbein, em compensação, nos propõe uma outra visão: a do homem sujeito à morte, do homem beijando a Morte, absorvendo-a no seu próprio ser, integrando-a não como uma condição de sua glória nem como uma conseqüência de sua natu­reza pecadora, mas como a essência última de sua realidade dessa­cralizada, que é o fundamento de uma nova dignidade. Por isto mesmo, a imagem da morte crística e humana, em Holbein, é cúm­plice íntima do Elogio da loucura (1511) de Erasmo, de quem Hol-

11 O tema da Morte atravessa a Idade Média e encontra uma acolhida parti· cular nos países nórdicos. Pelo contrário, no prólogo do Decamerão, Boccacio proscreve qualquer interesse pela lúgubre personagem e exalta a alegria de viver .

Em compensação, Thomas More, que Holbein conheceu por íntennédio de Erasmo, fala da morte como Holbein poderia tê-lo feito a partir do seu Cristo morto: "Fazemos brincadeiras e acreditamos que a morte está bem longe. Ela está escondida no mais secreto de nossos órgãos . Pois, desde o momento em que fostes posto no mundo, a vida e a morte caminham com o mesmo passo." (Cf. A. Lerfoy, Ho/bein, Albin Michel, Paris, 1941, p. 85.) Sabemos que Sha- . kespeare prima pelo entrelaçamento trágico e feérico dos temas da morte.

SOL NEGRO 113

bein se tornou, em 1523, o amigo, o ilustrador, o retratista. O ho­mem atinge uma nova dimensão porque reconhece sua loucura e olha sua morte de frente - mas talvez também seus riscos mentais, seus riscos de morte psíquica. Não necessariamente a dimensão do ateísmo, mas com toda certeza a de uma conduta desiludida, serena e digna. Como um quadro de Holbein .

A aflição protestante

A Reforma influenciou tal concepção da morte e, mais parti· cularmente, tal valorização da morte do Cristo em detrimento de qualquer alusão à Redenção e à Ressurreição? Sabemos que o cato· licismo tende a acentuar uma "visão beatífica" da morte crístlca, deslizando pelos horrores da Paixão e privilegiando o fato de Cristo, desde sempre, ter sabido da sua Ressurreição (S. 22, 29 e seguin· tes). Calvino, pelo contrário, insiste na formidabilis abysis em que Jesus está mergulhado na hora da sua morte, descendo ao fundo do pecado e do inferno. Lutero já se descrevia como um melancó­lico, que dependia da influência de Saturno e do diabo: "Eu, Marti­nho Lutero, nasci sob .os astros mais desfavoráveis, provavelmente sob Saturno", diz ele em 1532 . "Onde se encontra um melancó­lico, o diabo preparou o banho [ ... ] Por experiência, aprendi como devemos nos conduzir nas tentações . Quem é assaltado pela tristeza, pelo desespero e por outras aflições do coração, quem tem um verme na consciência, primeira deve se ater à consolação da Palavra divina, para comer e beber, e buscar a companhia e a conversa de pessoas felizes em Deus e cristãs. Assim tudo irá melhor. ''12

Desde as suas 95 teses contra as indulgências (1517), Martinho Lutero formula um apelo místico pelo sofrimento como meio de acesso ao céu. E se a idéia da geração do homem através da graça está presente ao lado desta imersão na dor, apesar disto a intensi­dade da fé é medida com a capacidade de contrição. Assim: ({Esta é a razão pela qual a expiação continua, enquanto durar o ódio por si mesmo (em outras palavras, a verdadeira penitência interior), a saber, até a entrada do reino dos céus" (tese IV); "Deus nunca atri­bui a culpa ao homem sem obrigá-lo, ao mesmo tempo, a se humi-

12 M . Luther, Tischereden in der Mathersischen Sammlung (Coletânea de dis­cursos sobre a Matesis), t. I, n.• 122 .

114 O ·CRISTO MORTO DE. HOLBEIN

lhar em tudo diante do padre, seu vigário" (tese VII): "A verdadei­ra contrição procura as aflições e gosta delas. A generosidade nas indulgências abranda-as e as torna odiosas, pelo menos momenta­neamente" (tese XL); "E preciso exortar os cristãos a seguir fiel­mente o seu chefe, que é o Cristo, ~través das penas, da morte, do inferno mesmo" (tese XCIV) .

Lucas Cranach torna-se o pintor oficial dos reformados, en­quanto Dürer envia a Lutero uma série de suas gravuras religiosas. Mas um humanista como Erasmo, no início, mostra-se prudente para com o Refonnador . Em seguida, fica cada vez mais reticente para com as mudanças radicais propostas em Cativeiro IU1 Babilônia e em particular em relação à tese ele Lutero segundo a qual a vontade humana é escrava do diabo e de Deus. Erasmo partilhava da posi­ção occamista do livre arbítrio como meio de acesso à salvaÇão.13

Muito provavelmente, Holbein devia se sentir mais próximo de seu amigo Erasmo do que de Lutero.

O iconoclasmo e o minimalismo

Teólogos da Reforma, como Andreas Karlstadt, Ludwig Haet­zer, Gabriel Zwilling, Huldreich Zwingli e outros, assim como o próprio Lutero, embora de maneira mais ambígua, partem numa verdadeira g-Jerra contra as imagens e outras formas ou objetos de representação que não fossem a palavra ou o som.'4

Cidade burguesa, mas também cidade religiosa florescente, Ba­siléia foi invadida pelo iconoclasmo protestante de 1521-1523 . Como reação ao que pensavam ser os excessos e abusos materialistas e pa· ganistas do papado, os reformadores de Wittenberg saqueiam as

n Cf. Erasme, De libero arbítrio (Sobre o livre arbítrio) e a resposta de Lu-1ero, De servo arbitrio (Sobre o arbítrio servil). Cf. John M. Todd, Martin Luther, a Biographical Study (Martinho Lutero, um estudo biográfico), The Newman Press, 1964; e R. H . Fife, The Revolt of Martin Luther (A revolta de Martinho Lutero), Columbia Univcrsity Prcss, 1957. 14 Cf. Carl C. Christensen, Art and the Reformation in Gernumy (Arte e a Reforma na Alemanha), Ohio Univ. Press, 1979; Charles Garsíde, Jr . Zwigli t•nd the Arts (Zwigli e as artes), New Haven, Yale Univ. Press, 1966. Notrr mos, na mesma tradição, o lconoclasmo aumentado de Henri Comeille Agrippa de Nettesheim, Traité sur l'incertitude aussi bien que la vaniM des sciences et des arts (Tratado sobre a incerteza assim como a vaidade nas ciências e nas artes), trad . francesa Leiden, 1726.

SOL NEOao 115

igrejas, pilham e destroem as imagens e qualquer representação ma­terial da fé. Em 1525 a guerra dos camponeses é a ocasião para novas destruições das obras de arte . Uma grande " idolomaquia" ocorreu na Basiléia em 1529 . Sem ser um católico fervoroso, Hol­bein sofre como artista que, além do mais, pintou Virgens admirá· veis: A Virgem e a Criança (Basiléia, 1514), A Virgem e a Criança sob um p6rtico renascentista (Londres, 1515), Natividade e Adora­ção (Friburgo, 1520-1521), A adoração dos magos (Friburgo, 1520-1521), A Madona de Solothum (1521) e, mais tarde, A Madona de Darmstadt, pintada para o burgomestre Meyer (1526-1530). O cli­ma iconoclasta da Basiléia faz o pintor fugir : ele parte para a In­glaterra munido de uma carta de Erasmo (provavelmente em 1526), que o apresenta a Tbomas More com a célebre passagem: "Aqui as artes estão frias; ele parte para a Inglaterra para rabiscar alguns anjinhos ."15

Notaremos, entretanto, que nos dois campos - reformador e humanista - manifesta-se uma tendência a acentuar o confronto do homem com o sofrimento e a morte, prova de verdade e desafio ao mercantilismo superficial da Igreja oficial.

Contudo, mais ainda do que seu ilustre amigo Erasmo e con­trariamente ao mártir da fé católica que Thomas More se tornará no fim de sua vida. é provável que Holbein deva ter vivido uma verdadeira revolução. até mesmo uma erosão da crença. Ao mesmo tempo que conservava as aparências, essa reabsorção da fé na sere­nidade estrita de um oficio parece tê-lo conduzido a integrar, a seu modo, diversos aspectos das correntes religiosas e filosóficas do seu tempo - do ceticismo à rejeição da idolatria - e a reconstruir para si, pelos meios da arte, uma nova visão da humanidade. A marca do sofrimento (assim o Retrato da mulher do pintor com seus dois filhos mais velhos, 1528, Museu da Basiléia, ou o díptico Amerbach - Cristo das àores e Maria, Mãe das dores - de 1519-1520) e, mais ainda, o horizonte inimaginável e invisível da morte (Os Em­baixadores, 1533, comportam a anamorfose de um imenso crânio na parte de baixo do quadro) impõem-se a Holbein como a prova cen­tral do novo homem e, sem dúvida, do próprio artista. Nada lhes parece mais desejável, os valores desmoronam, estão acabrunhados? Pois bem, podemos tornar belo este estado, podemos tornar desejá·

15 Cf. Carl C. Christensen. op. cit., p . 169.

114 O ·CRISTO MORTO DE. HOLBEIN

lhar em tudo diante do padre, seu vigário" (tese VII): "A verdadei­ra contrição procura as aflições e gosta delas. A generosidade nas indulgências abranda-as e as torna odiosas, pelo menos momenta­neamente" (tese XL); "E preciso exortar os cristãos a seguir fiel­mente o seu chefe, que é o Cristo, ~través das penas, da morte, do inferno mesmo" (tese XCIV) .

Lucas Cranach torna-se o pintor oficial dos reformados, en­quanto Dürer envia a Lutero uma série de suas gravuras religiosas. Mas um humanista como Erasmo, no início, mostra-se prudente para com o Refonnador . Em seguida, fica cada vez mais reticente para com as mudanças radicais propostas em Cativeiro IU1 Babilônia e em particular em relação à tese ele Lutero segundo a qual a vontade humana é escrava do diabo e de Deus. Erasmo partilhava da posi­ção occamista do livre arbítrio como meio de acesso à salvaÇão.13

Muito provavelmente, Holbein devia se sentir mais próximo de seu amigo Erasmo do que de Lutero.

O iconoclasmo e o minimalismo

Teólogos da Reforma, como Andreas Karlstadt, Ludwig Haet­zer, Gabriel Zwilling, Huldreich Zwingli e outros, assim como o próprio Lutero, embora de maneira mais ambígua, partem numa verdadeira g-Jerra contra as imagens e outras formas ou objetos de representação que não fossem a palavra ou o som.'4

Cidade burguesa, mas também cidade religiosa florescente, Ba­siléia foi invadida pelo iconoclasmo protestante de 1521-1523 . Como reação ao que pensavam ser os excessos e abusos materialistas e pa· ganistas do papado, os reformadores de Wittenberg saqueiam as

n Cf. Erasme, De libero arbítrio (Sobre o livre arbítrio) e a resposta de Lu-1ero, De servo arbitrio (Sobre o arbítrio servil). Cf. John M. Todd, Martin Luther, a Biographical Study (Martinho Lutero, um estudo biográfico), The Newman Press, 1964; e R. H . Fife, The Revolt of Martin Luther (A revolta de Martinho Lutero), Columbia Univcrsity Prcss, 1957. 14 Cf. Carl C. Christensen, Art and the Reformation in Gernumy (Arte e a Reforma na Alemanha), Ohio Univ. Press, 1979; Charles Garsíde, Jr . Zwigli t•nd the Arts (Zwigli e as artes), New Haven, Yale Univ. Press, 1966. Notrr mos, na mesma tradição, o lconoclasmo aumentado de Henri Comeille Agrippa de Nettesheim, Traité sur l'incertitude aussi bien que la vaniM des sciences et des arts (Tratado sobre a incerteza assim como a vaidade nas ciências e nas artes), trad . francesa Leiden, 1726.

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igrejas, pilham e destroem as imagens e qualquer representação ma­terial da fé. Em 1525 a guerra dos camponeses é a ocasião para novas destruições das obras de arte . Uma grande " idolomaquia" ocorreu na Basiléia em 1529 . Sem ser um católico fervoroso, Hol­bein sofre como artista que, além do mais, pintou Virgens admirá· veis: A Virgem e a Criança (Basiléia, 1514), A Virgem e a Criança sob um p6rtico renascentista (Londres, 1515), Natividade e Adora­ção (Friburgo, 1520-1521), A adoração dos magos (Friburgo, 1520-1521), A Madona de Solothum (1521) e, mais tarde, A Madona de Darmstadt, pintada para o burgomestre Meyer (1526-1530). O cli­ma iconoclasta da Basiléia faz o pintor fugir : ele parte para a In­glaterra munido de uma carta de Erasmo (provavelmente em 1526), que o apresenta a Tbomas More com a célebre passagem: "Aqui as artes estão frias; ele parte para a Inglaterra para rabiscar alguns anjinhos ."15

Notaremos, entretanto, que nos dois campos - reformador e humanista - manifesta-se uma tendência a acentuar o confronto do homem com o sofrimento e a morte, prova de verdade e desafio ao mercantilismo superficial da Igreja oficial.

Contudo, mais ainda do que seu ilustre amigo Erasmo e con­trariamente ao mártir da fé católica que Thomas More se tornará no fim de sua vida. é provável que Holbein deva ter vivido uma verdadeira revolução. até mesmo uma erosão da crença. Ao mesmo tempo que conservava as aparências, essa reabsorção da fé na sere­nidade estrita de um oficio parece tê-lo conduzido a integrar, a seu modo, diversos aspectos das correntes religiosas e filosóficas do seu tempo - do ceticismo à rejeição da idolatria - e a reconstruir para si, pelos meios da arte, uma nova visão da humanidade. A marca do sofrimento (assim o Retrato da mulher do pintor com seus dois filhos mais velhos, 1528, Museu da Basiléia, ou o díptico Amerbach - Cristo das àores e Maria, Mãe das dores - de 1519-1520) e, mais ainda, o horizonte inimaginável e invisível da morte (Os Em­baixadores, 1533, comportam a anamorfose de um imenso crânio na parte de baixo do quadro) impõem-se a Holbein como a prova cen­tral do novo homem e, sem dúvida, do próprio artista. Nada lhes parece mais desejável, os valores desmoronam, estão acabrunhados? Pois bem, podemos tornar belo este estado, podemos tornar desejá·

15 Cf. Carl C. Christensen. op. cit., p . 169.

116 O ~STO MOJ.TO DB HOLBEIN

vel o retrato do próprio desejo, de forma que o que podia parecer uma demissão ou um desabamento mortifero será percebido, dora­vante, como uma dignidade harmoniosa .

Do ponto de vista pictural, estamos aqui diante de uma prova maior. Trata-se de devolver forma e cor ao irrepresentável, conce­bido não como uma profusão erótica (tal como ela aparece na arte italiana, até na representação da paixão do Cristo e nela em pa.rtí­cular), mas do irrepresentável concebido como eclipse dos meios de representação no limiar de sua extinção na morte . O ascetismo cromático e de composição de Holbein traduz essa competição da forma com a morte, nem esquivada, nem embelezada, mas fixada em sua visibilidade mínima, em sua manifestação limite que a dor e a melancolia constituem .

Retomando à Basiléia em 1528, depois de sua viagem à In­glaterra, em 1530 Holbeín converte-se à religião reformada, peàindo, como testemunham os registros do recrutamento, "uma melhor ex­plicação da Santa Comunhão antes de se engajar". Essa conversão, fundada na "razão e na informação", como nota F . Salx,1t1 é exem· piar do laço que ele mantém com os luteranos. Alguns dos seus desenhos . manifestam uma nítida opção por um espírito de reforma na Igreja, mas sem aderir ao fanatismo do próprio Reformador . Assim, no Christ.us vera lux, no díptico sobre Leão X, na capa da primeira Bíblia luterana que apareceu na Basiléia e nas ilustrações para o Antigo Testamento de L~tero, Holbein exprime muito mais uma opinião pessoal do que ilustra o dogma ambiente. Numa gra­vura em made!ra representando Lutero, o Reformador aparece como um Hercules Germanicus, mas, na realidade, o pintor representa o seu medo, o seu horror, e uma atrocitas do fanatisrno.17 O universo de Erasmo parece J.he convir mais do que o de Lutero. Conhece­mos o célebre retrato ( 1523) que Holbein faz do autor do Elogio da loucura, fixando para a posteridade a imagem definitiva do huma­nista; quando pensamos em Erasmo, não o vemos sempre sob os traços que dele nos deixou Holbein, o Jovem? Ainda mais próximo dos nossos propósitos, evocaremos a familiaridade dos dois homens com a morte .

16 Cf. F . Saxl, Holbein and the Reformation (Holbein e a Reforma), Lectures (Palestras), vol. I, p. 273, Londres, Warburg lnstitute, Uni v. of London, 1957 . 17 lbid., p . 282.

SOL NEG-.0 117

"Mors ultima linea rerum"

A célebre série de Holbein, já mencionada, e a Dança macabra exploram, com uma variedade extraordinária, o tema aparentemente limitado de uma pessoa que beija a Morte. Mas que diversidade, que imensidade de espaço no interior dessas miniaturas e desse assunto tão reduzidos! Holbein retomou o mesmo tema numa capa de adaga, inserindo os dançarinos mortais num espaço côncavo e fechado. Também é o caso das Iniciais ilustradas de cenas de dança macabra, em que cada letra está acompanhada de uma figura huma­na combatendo a Morte. Como não ligar essa presença obsessiva e menos pesada da Morte em Holbein ao fato de que o patrono de seu amigo Erasmo foi o deus romano Terminus, e que a divisa de sua medalha trazendo a imagem d~ste deus dizia: "Terminus con­cedo nulli" ou "Concedo nulli Terminus", "Não me movimento em nada", assim como ''Não esqueça que uma longa vida termina" (em grego) e "A morte é o último limite de q-..alquer coisa" (em latim)? Mors ultima linea rerum, de fato, podia ser a divisa do Cristo morto de Basiléia, se não fosse a divisa de . . . Horácio e de Erasm,o.18

Com freqüência se insistiu na frieza, na discrição, no aspec~o artesanal mesmo da arte de Holbein.19 ~ verdade que a evoluçao do estatuto do pintor, na sua época, preside a essa mudança de estilo que caracteriza o afrouxamento dos laços com o ateliê, a preo­cupação de fazer carreira, am certo apagamento biográfico em pro­veito do maneirismo nascente, apaixonado pela afetação, pelas su­perfícies planas e pelas inclinações que, no entanto, ele sabe ligar ao seu sentido de espaço. O iconoclasmo dos reformados também passou por isto. Holbein reprova-o, foge mesmo dele, trocando a Basiléia pela Inglaterra, mas sem optar, com isto, por nenhuma exaltação, pois na verdade ele absorve o espírito do seu tempo ~ um espírito de despojamento, de demolição, de minimalismo sutil . Seria inexato reduzir esse movimento de época a uma opção pessoal

1s Cf. Erwin Panofski , "Erasmus and the visual arts" (Erasmo e ~ artes vi­suais), Joumal of the Warburg and Courtau/d lnstllutes (Revl.sta dos Institutos Warburg e Courtauld), 32 (1969), pp . 22(}.227. Como Tenn•pus, Erasmo n~o cede diante de nada; ou ainda, segundo uma outra interprelação, é a pr6pr1a Morte, como Terminus, que não cede. 19 Cf. Pierre Vaisse, Holbein le Jeune (Holbein ~: Jovem), Rizzoli, 1971, Flam-marion, Paris, 1972.

116 O ~STO MOJ.TO DB HOLBEIN

vel o retrato do próprio desejo, de forma que o que podia parecer uma demissão ou um desabamento mortifero será percebido, dora­vante, como uma dignidade harmoniosa .

Do ponto de vista pictural, estamos aqui diante de uma prova maior. Trata-se de devolver forma e cor ao irrepresentável, conce­bido não como uma profusão erótica (tal como ela aparece na arte italiana, até na representação da paixão do Cristo e nela em pa.rtí­cular), mas do irrepresentável concebido como eclipse dos meios de representação no limiar de sua extinção na morte . O ascetismo cromático e de composição de Holbein traduz essa competição da forma com a morte, nem esquivada, nem embelezada, mas fixada em sua visibilidade mínima, em sua manifestação limite que a dor e a melancolia constituem .

Retomando à Basiléia em 1528, depois de sua viagem à In­glaterra, em 1530 Holbeín converte-se à religião reformada, peàindo, como testemunham os registros do recrutamento, "uma melhor ex­plicação da Santa Comunhão antes de se engajar". Essa conversão, fundada na "razão e na informação", como nota F . Salx,1t1 é exem· piar do laço que ele mantém com os luteranos. Alguns dos seus desenhos . manifestam uma nítida opção por um espírito de reforma na Igreja, mas sem aderir ao fanatismo do próprio Reformador . Assim, no Christ.us vera lux, no díptico sobre Leão X, na capa da primeira Bíblia luterana que apareceu na Basiléia e nas ilustrações para o Antigo Testamento de L~tero, Holbein exprime muito mais uma opinião pessoal do que ilustra o dogma ambiente. Numa gra­vura em made!ra representando Lutero, o Reformador aparece como um Hercules Germanicus, mas, na realidade, o pintor representa o seu medo, o seu horror, e uma atrocitas do fanatisrno.17 O universo de Erasmo parece J.he convir mais do que o de Lutero. Conhece­mos o célebre retrato ( 1523) que Holbein faz do autor do Elogio da loucura, fixando para a posteridade a imagem definitiva do huma­nista; quando pensamos em Erasmo, não o vemos sempre sob os traços que dele nos deixou Holbein, o Jovem? Ainda mais próximo dos nossos propósitos, evocaremos a familiaridade dos dois homens com a morte .

16 Cf. F . Saxl, Holbein and the Reformation (Holbein e a Reforma), Lectures (Palestras), vol. I, p. 273, Londres, Warburg lnstitute, Uni v. of London, 1957 . 17 lbid., p . 282.

SOL NEG-.0 117

"Mors ultima linea rerum"

A célebre série de Holbein, já mencionada, e a Dança macabra exploram, com uma variedade extraordinária, o tema aparentemente limitado de uma pessoa que beija a Morte. Mas que diversidade, que imensidade de espaço no interior dessas miniaturas e desse assunto tão reduzidos! Holbein retomou o mesmo tema numa capa de adaga, inserindo os dançarinos mortais num espaço côncavo e fechado. Também é o caso das Iniciais ilustradas de cenas de dança macabra, em que cada letra está acompanhada de uma figura huma­na combatendo a Morte. Como não ligar essa presença obsessiva e menos pesada da Morte em Holbein ao fato de que o patrono de seu amigo Erasmo foi o deus romano Terminus, e que a divisa de sua medalha trazendo a imagem d~ste deus dizia: "Terminus con­cedo nulli" ou "Concedo nulli Terminus", "Não me movimento em nada", assim como ''Não esqueça que uma longa vida termina" (em grego) e "A morte é o último limite de q-..alquer coisa" (em latim)? Mors ultima linea rerum, de fato, podia ser a divisa do Cristo morto de Basiléia, se não fosse a divisa de . . . Horácio e de Erasm,o.18

Com freqüência se insistiu na frieza, na discrição, no aspec~o artesanal mesmo da arte de Holbein.19 ~ verdade que a evoluçao do estatuto do pintor, na sua época, preside a essa mudança de estilo que caracteriza o afrouxamento dos laços com o ateliê, a preo­cupação de fazer carreira, am certo apagamento biográfico em pro­veito do maneirismo nascente, apaixonado pela afetação, pelas su­perfícies planas e pelas inclinações que, no entanto, ele sabe ligar ao seu sentido de espaço. O iconoclasmo dos reformados também passou por isto. Holbein reprova-o, foge mesmo dele, trocando a Basiléia pela Inglaterra, mas sem optar, com isto, por nenhuma exaltação, pois na verdade ele absorve o espírito do seu tempo ~ um espírito de despojamento, de demolição, de minimalismo sutil . Seria inexato reduzir esse movimento de época a uma opção pessoal

1s Cf. Erwin Panofski , "Erasmus and the visual arts" (Erasmo e ~ artes vi­suais), Joumal of the Warburg and Courtau/d lnstllutes (Revl.sta dos Institutos Warburg e Courtauld), 32 (1969), pp . 22(}.227. Como Tenn•pus, Erasmo n~o cede diante de nada; ou ainda, segundo uma outra interprelação, é a pr6pr1a Morte, como Terminus, que não cede. 19 Cf. Pierre Vaisse, Holbein le Jeune (Holbein ~: Jovem), Rizzoli, 1971, Flam-marion, Paris, 1972.

lt8 O CUSTO MORTO DE HOLBEIN

pela melancolia, mesmo se ela transparece na expressão dos perso­nagens de países ou de meios sociais diversificados que ele prefere pintar . Entretanto, esses traços de caráter e de época convergem: eles chegam a situar a representação no último limite do represen· tável , apreendido com o máximo de exatidão e o mínimo de entu· siasmo, à beira da indiferença ... De fato, tanto em arte como em amizade, Holbein não é um engajado. A desgraça do seu amigo Thomas More não o incomoda e ele permanece junto a Henr!que VIJ1 . O próprio Erasmo fica chocado com esse cinismo, que talvez não passe de um desligamento, tanto estético quanto psicológico: frieza e paralisia emotiva do melancólico. No complemento a uma carta a Boniface Amerbach, de 22 de março de 1533, Erasmo quei· xa-se daqueles, entre os quais Holbein. que abusam do seu patrocí­nio. aproveitam-se de seus hóspedes e decepcionam as pessoas às quais ele o recomendou.20

Cínico ou desligado

Holbein inimigo dos iconoclastas, Holbein que escapara à des­truição das imagens pelo furor dos protestantes na Basiléia, era um iconoclasta dos ideais: o distanciado, o desligado, o ironista realiza· do, uma espécie de a-moralista por aversão a qualquer fonna de pressão? Um adepto da de-pressão desiludida, até a extinção de todo artifício no próprio centro do artifício, tristemente, escrupulosamente afetado? Estimado no século XIX, decepcionante para os artistas do século XX, talvez o desc.ubramos mais perto de nós à luz meio irônica, meio lúgubre, meio desesperada, meio cínica do seu CriSJo Morto? Sem dúvida, viver com a morte e sorrir dela para represen­tá-la não abre o caminho da moral humanista do Bem, não mais do que o mártir, o da fé reformada, mas anuncia muito mais o a-mora­lismo do técnico sem amanhã, que procura uma beleza entre o des­pojamento e o lucro. Paradoxalmente, dessa aridez, desse deserto em que toda beleza deveria estar ausente, ele condensa a perturba­ção em obra-prima de cores. formas, espaços ...

Na verdade, esse minimalismo continua sendo de uma pode­rosa seriedade expressiva, que se apreende bem comparando-o à tris-

2.1 Cf. E . Panofski , " Erasmus and the visual arts" (Erasmo e as artes visuais), op . cit. , p. 220 .

SOL )ltGltO 119

teza majestosa, mas altiva, incomunicável e um pouco artificial, do Cristo morto jansenísta de Philippe de Champaigne, no Louvre?1

Em suma, nem católico, nem protestante, nem humanista? Ami­go de Erasmo e de Thomas More, mas depois muito à vontade com seu mtmtgo feroz e sanguinário, Henrique VIII. Fugindo dos pro­testantes da Basiléia, mas aceitando também seus elogios ao voltar da primeira viagem à Inglaterra e, ~alvez, convertido à religião re­formada. Pronto a permanecer na Basiléia, mas partindo de novo para a Inglaterra, para se tornar pintor oficial de um rei tirano que executou muitos de seus antigos amigos, cujo retrato ele fizera com atenção . Seguindo essa história da qual Holbein não nos deixou nenhum comentário biográfico, fllosófico ou metafísico (contraria­mente a Dürer, por exemplo), escrutando os rostos severos de seus modelos, sombrios e sem disfarces, tratados sem nenhuma compla­cência, acreditamos perceber o caráter e a posição estética de um verista desiludido.

A perda da ilusão pode ser bela?

No seio de uma Europa transtornada, a procura da verdade moral é acompanhada por um excesso de ambas as partes, enquanto o gosto realista de uma classe de comerciantes, artesãos e navega­dores faz advir o reino de um rigor estrito, mas já corruptível pelo ouro. Nesse mundo de verdades simples e frágeis, o artista recusa­-se a dar um olhar embelezador . Se embeleza o cenário ou a roupa, bane a ilusão da apreensão do caráter. Uma idéia nova nasce na Europa, uma idéia pictural paradoxal: a de que a verdade. é severa, às vezes triste, em geral melancólica . Esta verdade também pode ser uma beleza? A aposta de Holbein, além da melancolia, é a de dizer: sim.

21 O Cristo morto deitado na mortalha, de Philippe de Champaigne (antes de 1654), lembra a obra de Holbein pela solidão do Salvador . O pintor suprimiu a Virgem presente na estampa de J. Bonasono, segundo Rafael, que é a fonte de Champaigne . Entretanto, ao mesmo tempo que se aproxima de Holbein também pelo rigor e pela sobriedade do colorido, Ph . de Champaigne penna­nece igualmente mais fiel aos textos sagrados (mostrando as feridas tradicio­nais do Cristo, a coroa de espinhos etc.) e mais frio, distante, mesmo empe­dernido. O espírito jansenista é lido nessa visão, assim como as recomendações dos teólogos do fim do século XVI (Borthini, Palcoti, Gilio) para evitar a ex­pressão da dor. (Cf . Bemard Dorival, Philippe de Champaigne (1602-1674), 2 vols .• Ed. Léonce Laguet, 1978 .)

lt8 O CUSTO MORTO DE HOLBEIN

pela melancolia, mesmo se ela transparece na expressão dos perso­nagens de países ou de meios sociais diversificados que ele prefere pintar . Entretanto, esses traços de caráter e de época convergem: eles chegam a situar a representação no último limite do represen· tável , apreendido com o máximo de exatidão e o mínimo de entu· siasmo, à beira da indiferença ... De fato, tanto em arte como em amizade, Holbein não é um engajado. A desgraça do seu amigo Thomas More não o incomoda e ele permanece junto a Henr!que VIJ1 . O próprio Erasmo fica chocado com esse cinismo, que talvez não passe de um desligamento, tanto estético quanto psicológico: frieza e paralisia emotiva do melancólico. No complemento a uma carta a Boniface Amerbach, de 22 de março de 1533, Erasmo quei· xa-se daqueles, entre os quais Holbein. que abusam do seu patrocí­nio. aproveitam-se de seus hóspedes e decepcionam as pessoas às quais ele o recomendou.20

Cínico ou desligado

Holbein inimigo dos iconoclastas, Holbein que escapara à des­truição das imagens pelo furor dos protestantes na Basiléia, era um iconoclasta dos ideais: o distanciado, o desligado, o ironista realiza· do, uma espécie de a-moralista por aversão a qualquer fonna de pressão? Um adepto da de-pressão desiludida, até a extinção de todo artifício no próprio centro do artifício, tristemente, escrupulosamente afetado? Estimado no século XIX, decepcionante para os artistas do século XX, talvez o desc.ubramos mais perto de nós à luz meio irônica, meio lúgubre, meio desesperada, meio cínica do seu CriSJo Morto? Sem dúvida, viver com a morte e sorrir dela para represen­tá-la não abre o caminho da moral humanista do Bem, não mais do que o mártir, o da fé reformada, mas anuncia muito mais o a-mora­lismo do técnico sem amanhã, que procura uma beleza entre o des­pojamento e o lucro. Paradoxalmente, dessa aridez, desse deserto em que toda beleza deveria estar ausente, ele condensa a perturba­ção em obra-prima de cores. formas, espaços ...

Na verdade, esse minimalismo continua sendo de uma pode­rosa seriedade expressiva, que se apreende bem comparando-o à tris-

2.1 Cf. E . Panofski , " Erasmus and the visual arts" (Erasmo e as artes visuais), op . cit. , p. 220 .

SOL )ltGltO 119

teza majestosa, mas altiva, incomunicável e um pouco artificial, do Cristo morto jansenísta de Philippe de Champaigne, no Louvre?1

Em suma, nem católico, nem protestante, nem humanista? Ami­go de Erasmo e de Thomas More, mas depois muito à vontade com seu mtmtgo feroz e sanguinário, Henrique VIII. Fugindo dos pro­testantes da Basiléia, mas aceitando também seus elogios ao voltar da primeira viagem à Inglaterra e, ~alvez, convertido à religião re­formada. Pronto a permanecer na Basiléia, mas partindo de novo para a Inglaterra, para se tornar pintor oficial de um rei tirano que executou muitos de seus antigos amigos, cujo retrato ele fizera com atenção . Seguindo essa história da qual Holbein não nos deixou nenhum comentário biográfico, fllosófico ou metafísico (contraria­mente a Dürer, por exemplo), escrutando os rostos severos de seus modelos, sombrios e sem disfarces, tratados sem nenhuma compla­cência, acreditamos perceber o caráter e a posição estética de um verista desiludido.

A perda da ilusão pode ser bela?

No seio de uma Europa transtornada, a procura da verdade moral é acompanhada por um excesso de ambas as partes, enquanto o gosto realista de uma classe de comerciantes, artesãos e navega­dores faz advir o reino de um rigor estrito, mas já corruptível pelo ouro. Nesse mundo de verdades simples e frágeis, o artista recusa­-se a dar um olhar embelezador . Se embeleza o cenário ou a roupa, bane a ilusão da apreensão do caráter. Uma idéia nova nasce na Europa, uma idéia pictural paradoxal: a de que a verdade. é severa, às vezes triste, em geral melancólica . Esta verdade também pode ser uma beleza? A aposta de Holbein, além da melancolia, é a de dizer: sim.

21 O Cristo morto deitado na mortalha, de Philippe de Champaigne (antes de 1654), lembra a obra de Holbein pela solidão do Salvador . O pintor suprimiu a Virgem presente na estampa de J. Bonasono, segundo Rafael, que é a fonte de Champaigne . Entretanto, ao mesmo tempo que se aproxima de Holbein também pelo rigor e pela sobriedade do colorido, Ph . de Champaigne penna­nece igualmente mais fiel aos textos sagrados (mostrando as feridas tradicio­nais do Cristo, a coroa de espinhos etc.) e mais frio, distante, mesmo empe­dernido. O espírito jansenista é lido nessa visão, assim como as recomendações dos teólogos do fim do século XVI (Borthini, Palcoti, Gilio) para evitar a ex­pressão da dor. (Cf . Bemard Dorival, Philippe de Champaigne (1602-1674), 2 vols .• Ed. Léonce Laguet, 1978 .)

120 O CRISTO MOllTO DE HOLBEIN

A perda da ilusão, metamorfoseada em beleza, é particularmen· te sensível nos retratos femininos. A serenidade um pouco ator­mentada da Madona de Solothurn, cujo p rotótipo fo i a mulher do pintor, sucede-se a representação francamente desolada e abatida da esposa no Retrato da mulher do pintor com seus dois filhos mais velhos {Basiléia, 1528). Os retratos femininos feitos na Inglaterra não suprimem esse principio de despojamento até a desolação . Cer­tamente, a história do reinado sob Henrique VIII se presta a isto, mas enquanto o povo temia seu rei, adorando-o, Holbein retém uma visão enfadonha da sua época . Como em efeito a série das esposas, cuja delicadeza dos traços e o vigor do caráter variam, mas que conservam a mesma rigidez um pouco assustada ou sombria: Ana Bolena, Jane Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard . Até o pe· queno Eduardo, príncipe de Gales (1539), cujas pálpebras baixadas banham de pesar contido as faces inchadas da inocência infantil. Talvez, somente a malícia leve - ou seria ironia mais do que pra­zer? - de Vênus e o Amor (1526) e de Laís de Corinto (Basiléia, 1526), cujo protótipo seria a mulher ilegítima do ~intor, escapam a essa severidade, sem com isto conduzir o pincel do artista basileu ao reino da sensualidade jovial e despreocupada. Entre os retratos masculinos, a doçura da inteligência em Erasmo ou excepcionalmen· te a elegância de uma beleza aristocrática e, ela também, inteira· mente intelectual em Bonifacius Amerbach (Basiléia, 1519} e a sen· sualidade em Benedikt von Hertenstein .(Nova York, Metropolitan Museum, 1517) cortam a visão de uma humanidade sempre já no túmulo . Vocês não vêem a morte? Procurem bem, ela está no tra· çado do desenho, na composição, está metamorfoseada no volume dos objetos, dos rostos, dos corpos: como a anamorfose de um crânio aos pés dos Embaixadores Jean de Linteville e Georges de Selve (Londres, 1533), quando não está abertamente, com os Dois crânios num nicho de janela (Basiléia, 1517).22

Um dispêndio de cores e de formas compostas

Não se trata de afirmar que Holbein foi um melancólico, nem que ele pintou melancólicos . Mais profundamente, parece-nos, a tra­vés de sua obra (incluindo temas e execuções picturais), que um

22 Cf. Paul Ganz, Tire Paintings of Hans Holbein (As pinturas de Hans Ho)­bein), op. cit .

SOL NEGilO ~ 21

momento melancólico (uma real ou imaginária perda de sentido, um desespero real ou imaginário, uma demolição real ou imaginária dos valores simbólicos e até do valor da vida) mobiEza a sua atividade estética, que triunfa sobre essa latência melancólica, ao mesmo tem­po em que guarda o seu traço . Supôs-se que o jovem Holbein tivesse uma atividade erótica secreta e intensa, baseando-se no fato de que Magdalena Offenburg foi o protótipo de sua Vênus de Basiléia (an-

. tes de 1526) e de sua Laís de Corinto c em seus dois filhos ilegíti­mos, que deixou em Londres. Charles Patin foi o primeiro a insistir na vida dissipada de Holbein, na sua edição do Elogio da loucura, de Erasmo, de 1676, na Basiléia . Rudo!f e Maria Wittkower deram fé a esta afirmação e fizeram dele ''um esbanjador": ele teria gasto somas consideráveis. recebidas, supunha-se, na corte de Henrique VIII, para comprar roupas opulentas c extravagantes, a ponto de só deixar ínfimos legados aos seus herdeiros ... 21 Nenhum documen­to sério permite infirmar ou afirmar essas suposições biográficas, a não ser a lenda da vida dissipada da própria Magdalena Offcnburg. Por outro lado, R. e M. Wittkower recusam-se a levar em conside­ração a obra do pintor c consideram como negligenciávcl o fato de seus quadros não refletirem nada da dissipação erótica e monetária que lhe atribuem . Na nossa perspectiva, este traço de caráter -contanto seja confirmado - não invalida em nada o foco de­pressivo que a obra reflete e domina. A economia da depressão apóia-se num objeto onipotente, Coisa monopolizante mais do que pólo do desejo metonímico, que ''explicaria" a tendência a se pro­teger dela entre outras por um dispêndio das sensações, das satis­fações, das paixões, tão exaltado. quanto agressivo, tão inebriante quanto indiferente. Notaremos, entretanto, que o traço comum des­ses dispêndios é um desligamento - livrar-:;e dek ir para ouh"o lugar, para o estrangeiro, para outros ... A possibilidade de mani­festar os processos primários com espontaneidade e controle, com arte, parece contudo ser o meio mais e[icaz de triunfar sobre o luto latente. Em outros tc1 mos, o " dispêndio" controlado e dominado de cores, sons c de palavras impõe-se como um recurso essencial ao sujeito-artista, paralelo à <oua "vida de boêmio", à "criminalidadc"

Zl Cf. R . e M. Wittlcower, f..es Enfants de Sotume, psychologie et compor­rement des artistes de rAntiquité à la Révolution française (Os filhos de Satur­no, psicologia e comportamento dos artistas da Anti~nidade à Revolução Fran­cesa), trad . franc . Macula, 1985.

120 O CRISTO MOllTO DE HOLBEIN

A perda da ilusão, metamorfoseada em beleza, é particularmen· te sensível nos retratos femininos. A serenidade um pouco ator­mentada da Madona de Solothurn, cujo p rotótipo fo i a mulher do pintor, sucede-se a representação francamente desolada e abatida da esposa no Retrato da mulher do pintor com seus dois filhos mais velhos {Basiléia, 1528). Os retratos femininos feitos na Inglaterra não suprimem esse principio de despojamento até a desolação . Cer­tamente, a história do reinado sob Henrique VIII se presta a isto, mas enquanto o povo temia seu rei, adorando-o, Holbein retém uma visão enfadonha da sua época . Como em efeito a série das esposas, cuja delicadeza dos traços e o vigor do caráter variam, mas que conservam a mesma rigidez um pouco assustada ou sombria: Ana Bolena, Jane Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard . Até o pe· queno Eduardo, príncipe de Gales (1539), cujas pálpebras baixadas banham de pesar contido as faces inchadas da inocência infantil. Talvez, somente a malícia leve - ou seria ironia mais do que pra­zer? - de Vênus e o Amor (1526) e de Laís de Corinto (Basiléia, 1526), cujo protótipo seria a mulher ilegítima do ~intor, escapam a essa severidade, sem com isto conduzir o pincel do artista basileu ao reino da sensualidade jovial e despreocupada. Entre os retratos masculinos, a doçura da inteligência em Erasmo ou excepcionalmen· te a elegância de uma beleza aristocrática e, ela também, inteira· mente intelectual em Bonifacius Amerbach (Basiléia, 1519} e a sen· sualidade em Benedikt von Hertenstein .(Nova York, Metropolitan Museum, 1517) cortam a visão de uma humanidade sempre já no túmulo . Vocês não vêem a morte? Procurem bem, ela está no tra· çado do desenho, na composição, está metamorfoseada no volume dos objetos, dos rostos, dos corpos: como a anamorfose de um crânio aos pés dos Embaixadores Jean de Linteville e Georges de Selve (Londres, 1533), quando não está abertamente, com os Dois crânios num nicho de janela (Basiléia, 1517).22

Um dispêndio de cores e de formas compostas

Não se trata de afirmar que Holbein foi um melancólico, nem que ele pintou melancólicos . Mais profundamente, parece-nos, a tra­vés de sua obra (incluindo temas e execuções picturais), que um

22 Cf. Paul Ganz, Tire Paintings of Hans Holbein (As pinturas de Hans Ho)­bein), op. cit .

SOL NEGilO ~ 21

momento melancólico (uma real ou imaginária perda de sentido, um desespero real ou imaginário, uma demolição real ou imaginária dos valores simbólicos e até do valor da vida) mobiEza a sua atividade estética, que triunfa sobre essa latência melancólica, ao mesmo tem­po em que guarda o seu traço . Supôs-se que o jovem Holbein tivesse uma atividade erótica secreta e intensa, baseando-se no fato de que Magdalena Offenburg foi o protótipo de sua Vênus de Basiléia (an-

. tes de 1526) e de sua Laís de Corinto c em seus dois filhos ilegíti­mos, que deixou em Londres. Charles Patin foi o primeiro a insistir na vida dissipada de Holbein, na sua edição do Elogio da loucura, de Erasmo, de 1676, na Basiléia . Rudo!f e Maria Wittkower deram fé a esta afirmação e fizeram dele ''um esbanjador": ele teria gasto somas consideráveis. recebidas, supunha-se, na corte de Henrique VIII, para comprar roupas opulentas c extravagantes, a ponto de só deixar ínfimos legados aos seus herdeiros ... 21 Nenhum documen­to sério permite infirmar ou afirmar essas suposições biográficas, a não ser a lenda da vida dissipada da própria Magdalena Offcnburg. Por outro lado, R. e M. Wittkower recusam-se a levar em conside­ração a obra do pintor c consideram como negligenciávcl o fato de seus quadros não refletirem nada da dissipação erótica e monetária que lhe atribuem . Na nossa perspectiva, este traço de caráter -contanto seja confirmado - não invalida em nada o foco de­pressivo que a obra reflete e domina. A economia da depressão apóia-se num objeto onipotente, Coisa monopolizante mais do que pólo do desejo metonímico, que ''explicaria" a tendência a se pro­teger dela entre outras por um dispêndio das sensações, das satis­fações, das paixões, tão exaltado. quanto agressivo, tão inebriante quanto indiferente. Notaremos, entretanto, que o traço comum des­ses dispêndios é um desligamento - livrar-:;e dek ir para ouh"o lugar, para o estrangeiro, para outros ... A possibilidade de mani­festar os processos primários com espontaneidade e controle, com arte, parece contudo ser o meio mais e[icaz de triunfar sobre o luto latente. Em outros tc1 mos, o " dispêndio" controlado e dominado de cores, sons c de palavras impõe-se como um recurso essencial ao sujeito-artista, paralelo à <oua "vida de boêmio", à "criminalidadc"

Zl Cf. R . e M. W ittlcower, f..es Enfants de Sotume, psychologie et compor­rement des artistes de rAntiquité à la Révolution française (Os filhos de Satur­no, psicologia e comportamento dos artistas da Anti~nidade à Revolução Fran­cesa), trad . franc . Macula, 1985.

122 O CRISTO MORTO DE HOLBE.IN

ou à "dissipação'' que alterna com "a avareza" que constatamos no comportamento desses artistas jogadores. Portanto, paralelamente ao comportamento, o estilo artístico afirma-se como um meio de atra­vessar a perda do outro c do sentido: meio ma:s poderoso do que qualquer outro, porque o mais autônomo (qualquer que seja o me­cenas, o pintor não é o dono de sua obra?), mas, de fato e funda­mentalmente, análogo ou complementar ao comportamento, pois res­ponde à mesma necessidade psíquica de enfrentar a separação, o vazio, a morte. A vida do artista, a começar por ele mesmo, não é considerada como -uma obra de arte?

A morte de Jesus

Momento dcprcss:vo: tudo morre. Deus morre, cu morro. · Mas como 'Deus pode morrer? Voltemos, em poucas palavras,

ao sentido evangélico da morte de Jesus . Numero!.'as, complexas c contraditórias são as representações teológicas, herméticas c dog­máticas do "mistério da Redenção". O analista não po:ierá se con­formar com i~so, mas poderá tentar, interrogando-as, revelar o sen­tido do texto tal como se revela perante a sua própria escuta.

Certas palavras de Jesus anunc:am sua morte violenta, sem alusão à salvação; outra·s, pelo contrário, parecem estar a serviço da Ressurreição.~•

O "serviço" que,_ no contexto de Lucas, é um "serviço de me­sa", torna-se uma "remissão", um ''resgate" (lytron) em Marcos.1'

Este deslizamento semântico e-sclarece bem o estatuto do "sacrifí-

21 Assim, por um lado: "A taça que bebo, vós a bebereis, c o batismo de que wu batizado, dele sereis batizados" (Me, X, 39; Mil, XX, 23); "Vim lançar o fogo sobre a terra, c como gostaria que já estivesse aceso. Mas tenho que ser batizado de um batismo, e como estou angustiado até que ele seja consumado'' (Lc, XII, 49s); c sobretudo u célebre frase que assina a morte de sua cspe­r&nça, "E/i, E/i, lema sabaqthani": "Meu Deus, meu Deus, por que me aban­donastes?" (Mtt, XXVII, 26; Me, XV, 35}.

Por Óutro lado, o anúncio da boa nova; "Porque o filho do homem veio, não para ser servido, mas para servir, e para dar sua vida como resgate pela multidão". (Me, X, 42-45). ''Estou entre vocês no lugar daquele que serve" (Lc, XXII, 25-27). 25 C f. X.-Léon Dufour, La mort rédcmptrice du Crist selon le Nouveau Testament (A morte redentora de Cristo segundo o Novo Testamento) in Mort pour nos péchés (Morte por nossos pecados}, publ. das Faculdades Universitá­rias Saint-Louis, Bruxelas, 1979, pp. t 1-45.

SOL NEG.ItO 123

cio" crístico. Aquele que dá de comer é o que paga com a sua pes­soa e desaparece para fazer viver. Sua morte não é um sacrifício nem uma dejeção, mas uma descont:nuidade vivificante, mais pró­xima da nutrição <lo que da simples destruição de um valor ou do abandono de um objeto decaído. Com esses textos, realiz.a-~c visivel­mente uma mudança da concepção do sacrifício, que pretende esta­belecer um elo entre os homens e Dcills por intermédio de um do<~· dor. Se é verdade que o dom implica a privação por parte daquelt; que doa, que se doa, o acento recai muito mais sobre o elo, sobre a ass:milação ·("servir à ,mesa") c sobre os benefícios reconciliató­rios desta operação.

De fato, o único rito que o Cristo lega aos ,seus discípulos c fiéis a partir da Ceia é aquele, oral, da Eucaristia. Para ela, o. sacri· fício (e com -ele a morte e a melancolia) está '·aujgehoben'': destruí· do c ultrapassaúo.26 Numerosos comentários discutem a tese de Ren6 Girard ,27 que postula uma abolição do sacrifício por J csus e no cris­tianismo, pondo fim, assim, ao próprio sagrado.

No sentido dessa ultrapassagem vai a signif!cação que podemos tirar da palavra "expiar": expiare, do grego hifaskomai, do hebrai­co kipper, que implica mais uma reconciEaçi:io ("mostrar-se favorá­vel a alguém, deixar-se reconciliar por Deus") do que o fato de "submeter-se a un. castigo". De fato. podemos fa7.er remontar o sentido de "reconciliar" ao grego allassô ("tornar-se outro", '•mudar em relação a alguém"). Isto conduz. a ver no "sacrifício" cr!stão expiatório mais a oferenda de um dom aceitável e aceito do que a violência do sangue derramado. Essa transformação generosa da ''vítima" em "oferenda'' salvadora e mediadora sob o domínio de um Deus amante no seu princípio é, sem d\Ív!da, especificamente cristã. Ela representa uma novidade que os mundos grego e judeu ignoraram, quando não a consideraram, à luz dos seus próprios cul­tos, como escandalosa.

Entretanto, não poderíamos nos . esquecer de que toda uma tra· dição cristã ascética, martirizante c sacrific;al engrandeceu o asçecto vitimário desse dom, crotizando ao máximo a dor e o sofrimento, tanto físico quanto moral. Esta tradição seria um simples desvio

26 Cf. A. Vcrgote, "La Mort Rédcmptrice du Christ à la lumiere de l'Anthro· pologíe" (A morte redentora de Cristo à luz da Antropologia), ibid., p. 68. 27 Des choses cachées clepuis /e commencernent du monde (As coisas esçondi­aas desde o início do mundo), Grassct. Paris, 1983.

122 O CRISTO MORTO DE HOLBE.IN

ou à "dissipação'' que alterna com "a avareza" que constatamos no comportamento desses artistas jogadores. Portanto, paralelamente ao comportamento, o estilo artístico afirma-se como um meio de atra­vessar a perda do outro c do sentido: meio ma:s poderoso do que qualquer outro, porque o mais autônomo (qualquer que seja o me­cenas, o pintor não é o dono de sua obra?), mas, de fato e funda­mentalmente, análogo ou complementar ao comportamento, pois res­ponde à mesma necessidade psíquica de enfrentar a separação, o vazio, a morte. A vida do artista, a começar por ele mesmo, não é considerada como -uma obra de arte?

A morte de Jesus

Momento dcprcss:vo: tudo morre. Deus morre, cu morro. · Mas como 'Deus pode morrer? Voltemos, em poucas palavras,

ao sentido evangélico da morte de Jesus . Numero!.'as, complexas c contraditórias são as representações teológicas, herméticas c dog­máticas do "mistério da Redenção". O analista não po:ierá se con­formar com i~so, mas poderá tentar, interrogando-as, revelar o sen­tido do texto tal como se revela perante a sua própria escuta.

Certas palavras de Jesus anunc:am sua morte violenta, sem alusão à salvação; outra·s, pelo contrário, parecem estar a serviço da Ressurreição.~•

O "serviço" que,_ no contexto de Lucas, é um "serviço de me­sa", torna-se uma "remissão", um ''resgate" (lytron) em Marcos.1'

Este deslizamento semântico e-sclarece bem o estatuto do "sacrifí-

21 Assim, por um lado: "A taça que bebo, vós a bebereis, c o batismo de que wu batizado, dele sereis batizados" (Me, X, 39; Mil, XX, 23); "Vim lançar o fogo sobre a terra, c como gostaria que já estivesse aceso. Mas tenho que ser batizado de um batismo, e como estou angustiado até que ele seja consumado'' (Lc, XII, 49s); c sobretudo u célebre frase que assina a morte de sua cspe­r&nça, "E/i, E/i, lema sabaqthani": "Meu Deus, meu Deus, por que me aban­donastes?" (Mtt, XXVII, 26; Me, XV, 35}.

Por Óutro lado, o anúncio da boa nova; "Porque o filho do homem veio, não para ser servido, mas para servir, e para dar sua vida como resgate pela multidão". (Me, X, 42-45). ''Estou entre vocês no lugar daquele que serve" (Lc, XXII, 25-27). 25 C f. X.-Léon Dufour, La mort rédcmptrice du Crist selon le Nouveau Testament (A morte redentora de Cristo segundo o Novo Testamento) in Mort pour nos péchés (Morte por nossos pecados}, publ. das Faculdades Universitá­rias Saint-Louis, Bruxelas, 1979, pp. t 1-45.

SOL NEG.ItO 123

cio" crístico. Aquele que dá de comer é o que paga com a sua pes­soa e desaparece para fazer viver. Sua morte não é um sacrifício nem uma dejeção, mas uma descont:nuidade vivificante, mais pró­xima da nutrição <lo que da simples destruição de um valor ou do abandono de um objeto decaído. Com esses textos, realiz.a-~c visivel­mente uma mudança da concepção do sacrifício, que pretende esta­belecer um elo entre os homens e Dcills por intermédio de um do<~· dor. Se é verdade que o dom implica a privação por parte daquelt; que doa, que se doa, o acento recai muito mais sobre o elo, sobre a ass:milação ·("servir à ,mesa") c sobre os benefícios reconciliató­rios desta operação.

De fato, o único rito que o Cristo lega aos ,seus discípulos c fiéis a partir da Ceia é aquele, oral, da Eucaristia. Para ela, o. sacri· fício (e com -ele a morte e a melancolia) está '·aujgehoben'': destruí· do c ultrapassaúo.26 Numerosos comentários discutem a tese de Ren6 Girard ,27 que postula uma abolição do sacrifício por J csus e no cris­tianismo, pondo fim, assim, ao próprio sagrado.

No sentido dessa ultrapassagem vai a signif!cação que podemos tirar da palavra "expiar": expiare, do grego hifaskomai, do hebrai­co kipper, que implica mais uma reconciEaçi:io ("mostrar-se favorá­vel a alguém, deixar-se reconciliar por Deus") do que o fato de "submeter-se a un. castigo". De fato. podemos fa7.er remontar o sentido de "reconciliar" ao grego allassô ("tornar-se outro", '•mudar em relação a alguém"). Isto conduz. a ver no "sacrifício" cr!stão expiatório mais a oferenda de um dom aceitável e aceito do que a violência do sangue derramado. Essa transformação generosa da ''vítima" em "oferenda'' salvadora e mediadora sob o domínio de um Deus amante no seu princípio é, sem d\Ív!da, especificamente cristã. Ela representa uma novidade que os mundos grego e judeu ignoraram, quando não a consideraram, à luz dos seus próprios cul­tos, como escandalosa.

Entretanto, não poderíamos nos . esquecer de que toda uma tra· dição cristã ascética, martirizante c sacrific;al engrandeceu o asçecto vitimário desse dom, crotizando ao máximo a dor e o sofrimento, tanto físico quanto moral. Esta tradição seria um simples desvio

26 Cf. A. Vcrgote, "La Mort Rédcmptrice du Christ à la lumiere de l'Anthro· pologíe" (A morte redentora de Cristo à luz da Antropologia), ibid., p. 68. 27 Des choses cachées clepuis /e commencernent du monde (As coisas esçondi­aas desde o início do mundo), Grassct. Paris, 1983.

124 O CRISTO MORTO D.E HOLB.EIN

medieval que traía o "verdadeiro sentido" dos Evangelhos? Isto seria fazer pouco-caso da angústia enunciada pelo próprio Cristo, segundo os evangelistas . Como compreendê-la, quando ela se afirma maciçamente ao lado da segurança oblativa de um dom ablativo a um pai ablativo, ele também, igualmente presente no texto evan­gélico?

Hiato e identificação

A interrupção, mesmo que momentânea, do laço que une o Cristo ao seu Pai e à vida, introduz na representação mítica do Sujeito uma descontinuidade fundamental e psiquicamente necessá­ria. Essa cesura, algumas pessoas falaram de "hiato",28 dá uma imagem, ao mesmo tempo que um relato, a várias separações que constroem a vida psíquica do indivíduo. Ela dá imagem e relato a certos cataclismos psíquicos que espreitam, com maior ou menor freqüência, o equilíbrio presumido dos indivíduos. Assim, a psica­nálise reconhece e rememora, como condição sine qua non da auto­nomização, uma série de separações (Hegel falava de um "trabalho do negativo"): nascimento, desmame, separação, frustração, castração. Reais, imaginárias ou simbólicas, estas operações estruturam neces­sariamente nossa individuação . A sua não-realização ou foraclu­são conduz à confusão psicótica; sua dramatização, pelo contrário, é fonte de angústia exorbitante e destrutiva . Por ter encenado essa ruptura no próprio coração do Sujeito absoluto, que é o Cristo, por tê-la representado como uma Paixão inversamente solidária de sua Ressurreição, de sua glória e de sua eternidade, o cristianismo con­duz à consciência os dramas essenciais internos ao devir de cada indivíduo. Assim;.ele se dá um enorme poder catártico .

Além dessa imaginação de uma diacronia dramática, a morte do Cristo oferece um apoio imaginário à angústia catastrófica irrepre­sentável, própria dos melancólicos. Sabemos quão a fase dita "de­pressiva" é essencial para que a criança entre na ordem dos símbo­los e na dos signos lingüísticos . Essa depressão - tristeza da sepa· ração como condição para a representação de qualquer coisa ausente - retoma e acompanha nossas atividades simból'icas, quando não é a exaltação, o seu inverso, que as recobre. Uma suspensão do sen-

!I Cf. Urs von BaJihasar, La Gloire et la Croix {A Glória e a Cruz). t. 111, 2. ta Nouvellc: Alliancc (A Nova Aliança), Aubier, Paris, 1975.

SOL NEGRO 125

t ido, uma noite sem esperança, o eclipse das perspectivas e até da vida reacendem então na memória a lembrança das separações trau­máticas e nos mergulham num estado de abandono. " Pai, por que me abandonastes?" Por outro lado~ a depressão grave ou a melan­colia clínica paroxística representam um verdadeiro in temo para · o homem moderno, convencido de ter que e de poder realizar todos seus desejos de objetos e de valores . O desamparo crístíCQ oferece uma elaboração imaginária para esse inferno . Para o indivíduo, ele faz eco dos seus instantes insuportáveis d_e perda de sentido, de perda de sentido da vida.

O postulado segundo o qual o Cristo morreu "por nós todos" aparece com freqüência ns tex.tos.29 Hiper, peri, anti: as fórmulas significam não somente "por nossa causa" mas "a nosso favor", ''em nosso lugar".30 Elas remontam aos cantos do Servidor de Javé (IV canto de Isaías na Bíblia) e, mais antigamente, à noção he­bra:ca de "gâ'al", ''libertar resgatando bens e pessoas que se torna­ram propriedade estrangeira". Assim a redenção (remissão, liber­tação) implica uma substituição entre o Salvador e os fiéis, que também pôde se prestar a numerosas interpretações. Contudo. uma delas se impõe à leitura literal do analista: a que convida para uma identificação imaginária . A identüicação não significa delegação ou alívio do peso dos pecados na figura do Messias. Pelo contrário, ela convida os indivíduos a estarem totalmente implicados nos sofri­mentos do Cristo, no hiato que ele sofre e, bem entendido, na espe­rança de sua salvação. A partir dessa identificação, certamente muito antropológ:ca e psicológica . aos olhos da teologia estrita, o homem, contudo, é dotado de um poderoso dispositivo simbólico que lhe permite viver sua morte e sua ressurreição, até no seu co~ físico, graças ao poder da unificação imaginária - e dos seus efei­tos reais - com o Sujeito absoluto (o Cristo).

Uma verdadeira iniciação é assim contruída no próprio centro do cristianismo, retomando o sentido intrapsíquico profundc dos ritos de iniciação anteriores ou estranhos à sua orbe c dando-lhes uma significação nova. Tanto aqui como ali, a morte - a do antigo corpo,

29 Cf. Rom, v. 8: "O Cristo morreu por nós, enquanto ainda éramos pecad~ res.'' E também: Rom, Vlll, 32; Ep., V, 2 Me, X, 45: "0 Filho do homem "e i o dar sua vida como resgate (/ytron) para (anti) a multidão." Cf. também Mt, XX, 28; Mt, XXVI, 28; Me, XIV, 24, Lc, XXII, 19, 1 P, 11, 21-24 . lO C f . X.-Léon Dufour, op. cit.

124 O CRISTO MORTO D.E HOLB.EIN

medieval que traía o "verdadeiro sentido" dos Evangelhos? Isto seria fazer pouco-caso da angústia enunciada pelo próprio Cristo, segundo os evangelistas . Como compreendê-la, quando ela se afirma maciçamente ao lado da segurança oblativa de um dom ablativo a um pai ablativo, ele também, igualmente presente no texto evan­gélico?

Hiato e identificação

A interrupção, mesmo que momentânea, do laço que une o Cristo ao seu Pai e à vida, introduz na representação mítica do Sujeito uma descontinuidade fundamental e psiquicamente necessá­ria. Essa cesura, algumas pessoas falaram de "hiato",28 dá uma imagem, ao mesmo tempo que um relato, a várias separações que constroem a vida psíquica do indivíduo. Ela dá imagem e relato a certos cataclismos psíquicos que espreitam, com maior ou menor freqüência, o equilíbrio presumido dos indivíduos. Assim, a psica­nálise reconhece e rememora, como condição sine qua non da auto­nomização, uma série de separações (Hegel falava de um "trabalho do negativo"): nascimento, desmame, separação, frustração, castração. Reais, imaginárias ou simbólicas, estas operações estruturam neces­sariamente nossa individuação . A sua não-realização ou foraclu­são conduz à confusão psicótica; sua dramatização, pelo contrário, é fonte de angústia exorbitante e destrutiva . Por ter encenado essa ruptura no próprio coração do Sujeito absoluto, que é o Cristo, por tê-la representado como uma Paixão inversamente solidária de sua Ressurreição, de sua glória e de sua eternidade, o cristianismo con­duz à consciência os dramas essenciais internos ao devir de cada indivíduo. Assim;.ele se dá um enorme poder catártico .

Além dessa imaginação de uma diacronia dramática, a morte do Cristo oferece um apoio imaginário à angústia catastrófica irrepre­sentável, própria dos melancólicos. Sabemos quão a fase dita "de­pressiva" é essencial para que a criança entre na ordem dos símbo­los e na dos signos lingüísticos . Essa depressão - tristeza da sepa· ração como condição para a representação de qualquer coisa ausente - retoma e acompanha nossas atividades simból'icas, quando não é a exaltação, o seu inverso, que as recobre. Uma suspensão do sen-

!I Cf. Urs von BaJihasar, La Gloire et la Croix {A Glória e a Cruz). t. 111, 2. ta Nouvellc: Alliancc (A Nova Aliança), Aubier, Paris, 1975.

SOL NEGRO 125

t ido, uma noite sem esperança, o eclipse das perspectivas e até da vida reacendem então na memória a lembrança das separações trau­máticas e nos mergulham num estado de abandono. " Pai, por que me abandonastes?" Por outro lado~ a depressão grave ou a melan­colia clínica paroxística representam um verdadeiro in temo para · o homem moderno, convencido de ter que e de poder realizar todos seus desejos de objetos e de valores . O desamparo crístíCQ oferece uma elaboração imaginária para esse inferno . Para o indivíduo, ele faz eco dos seus instantes insuportáveis d_e perda de sentido, de perda de sentido da vida.

O postulado segundo o qual o Cristo morreu "por nós todos" aparece com freqüência ns tex.tos.29 Hiper, peri, anti: as fórmulas significam não somente "por nossa causa" mas "a nosso favor", ''em nosso lugar".30 Elas remontam aos cantos do Servidor de Javé (IV canto de Isaías na Bíblia) e, mais antigamente, à noção he­bra:ca de "gâ'al", ''libertar resgatando bens e pessoas que se torna­ram propriedade estrangeira". Assim a redenção (remissão, liber­tação) implica uma substituição entre o Salvador e os fiéis, que também pôde se prestar a numerosas interpretações. Contudo. uma delas se impõe à leitura literal do analista: a que convida para uma identificação imaginária . A identüicação não significa delegação ou alívio do peso dos pecados na figura do Messias. Pelo contrário, ela convida os indivíduos a estarem totalmente implicados nos sofri­mentos do Cristo, no hiato que ele sofre e, bem entendido, na espe­rança de sua salvação. A partir dessa identificação, certamente muito antropológ:ca e psicológica . aos olhos da teologia estrita, o homem, contudo, é dotado de um poderoso dispositivo simbólico que lhe permite viver sua morte e sua ressurreição, até no seu co~ físico, graças ao poder da unificação imaginária - e dos seus efei­tos reais - com o Sujeito absoluto (o Cristo).

Uma verdadeira iniciação é assim contruída no próprio centro do cristianismo, retomando o sentido intrapsíquico profundc dos ritos de iniciação anteriores ou estranhos à sua orbe c dando-lhes uma significação nova. Tanto aqui como ali, a morte - a do antigo corpo,

29 Cf. Rom, v. 8: "O Cristo morreu por nós, enquanto ainda éramos pecad~ res.'' E também: Rom, Vlll, 32; Ep., V, 2 Me, X, 45: "0 Filho do homem "e i o dar sua vida como resgate (/ytron) para (anti) a multidão." Cf. também Mt, XX, 28; Mt, XXVI, 28; Me, XIV, 24, Lc, XXII, 19, 1 P, 11, 21-24 . lO C f . X.-Léon Dufour, op. cit.

126 O CRISTO W.ORTO DE HOLBEIN

para dar lugar ao novo, a sua morte para a glória, a morte do velho homem para o corpo pneumático - está no centro da experiência. Mas, se ex.!stc iniciação cristã, ela é inteiramente do registro do imaginário. Ao mesmo tempo que abre a gama inteira das identifi­cações completas (reais e simbólicas), nada comporta nenhuma prova ritual diferente da palavra e dos signos da Eucar!stia. Deste ponto de vista, as. manifestações paroxísticas e realistas do ascetismo e do dorismo são, na verdade, extremos. Além disto, e sobretudo, o im­plícito do amor e, em conseqüência, o da reconcil:ação e· o do perdão transformam completamente o alcance da iniciação cristã, aureolao· do-a com uma glória e uma esperança inabaláveis para aqueles que crêem. A fé cristã aparece então como um antídoto para o hiato c a depressão, com o hiato ·e a depressão c a partir deles .

Seda o voluntarismo do superego o que mantém essa ímagem do Pai ablativo, ou a comemoração de uma figura paterna arcaica oriunda do paraíso das identificações primárias? O perdão inerente à Redenção condensa morte e ressurreição e se apresenta como uma das ocorrências mais interessantes e mais inovadoras da lógica trini· tária. A alavanca deste vínculo parece ser a identificação primária: o dom o?lativo oral e já simbólico entre o Pai e o Filho.

Por razões ind~viduais, ou então pelo esmagamento histórico da autoridade política ou metafísica que é a nossa paternidade social, essa dinâmica da identificação primária com o fundamento da idea­Ezação pode ser dificultad.a: pode parecer estar privada de signifi­cação, ilusória e falsa. Então, s6 perdura o sentido do mecanismo mais profundo, representado pela cruz: o da cesura, da desconti­nuidade, da depressão.

Holbein transformou-se no pintor desse cristianismo liberto de sua onda portadora antidepress!va, que é a identificação com um além gratificante? De qualquer modo, ele nos conduz ao limite últi· mo da crença, ao limiar do não-sentido. Somente a forma - a arte -volta a dar uma serenidade a esse eclipse do perdão, refugiando-se o amor e a salvação na performance da obra. A redenção seria sim· plesmente o rigor de uma técnica estrita.

Representar a "cisão"

Hegel ressaltou o duplo movimento da morte no crtstlanismo: por um lado, há uma morte natural do corpo natural; por outro, ela é o "maior amor'', a "renúncia suprema de si para o Outro''. Ele vê nisso uma "vitória sobre o túmulo, o sheol", uma "morte da

SOL NEGRO 127

morte", e insiste na dialét!ca própria desta lógica: "Esse movímen to negativo que só convém ao Espírito como tal é a sua conversão inte­rior. sua transformação [ ... ] resolvendo-se o fim no esplendor, na festa que é a acolhida do ser humano na Idéia divina.'':n Hegel assi­nala quais foram as conseqüências desse movimento sobre a repre­sentação. Uma vez que a morte é apresentada como natural, mas que :só se realiza caso se identifique com sua alterklade, que é a Idéia divina, assistimos a uma "prodigiosa união dos extremos absolutos", a "uma alienação suprema da Idéia divina { ... ] 'Deus morreu, o próprio Deus morreu' é uma representação prodigiosa, terrível, que apresenta à representação o abismo mais profundo da cisão".32

Conduzir a representação ao centro dessa cisão (morte natural e amor divino) é uma aposta que não se poderia fazer sem oscilar para uma ou oulra beira: a arte gótica, sob a influência dominicana, favorecerá a representação patética da morte natural; a arte italia­na, sob influência franciscana, exaltará, na sua beleza sexual dos corpos luminosos e das composições harmoniosas, a glória do além, tornada visível na glória do sublime. O Cristo morto de Holbein é uma das raras, se não a única realização que se mantém no próprio lugar dessa cisão da representação de que fala Hegel. O erótico gótico da dor paroxística está ausente, assim como dele está ausente a pr,omessa do além ou a exaltação renascente da natureza. Perma­nece a corda bamba - como o cadáver representado - de uma imaginária econômica, parc:moniosa, da dor retida no recolhimento solit<ário do artista e do espectador. A essa tristeza serena, desilu­dida, nos limites do insign!ficante, corresponde uma arte pictural de uma sobriedade e de um despojamento máximo. Nenhuma festa cromática, mas um domínio da harmonia e da medida.

Podemos ainda pintar quando os elos que nos ligavam aos cor­pos e ao sentido se quebram? Podemos ainda pintar quando o de­se;o, que é um elo, desmorona? Podemos ainda pintar quando nos identificamos não com o desejo, mas com a cisão , que é a verdade da vida psíquica humana, cisão que a morte representa para o ima­ginário e que a melancolia veicuta enquanto sintoma? A resposta de Holbein é sim . Entre o classicismo e o maneirismo, o seu mini·

Jl Cf. Hegel. l .cçons sur la philosophie de la religion (Lições sobre a filoso[io da religião), 111 parte, Vrin, Paris, 1964, pp . 151-157. 32 Jbid., p. 152. Grifo nosso .

126 O CRISTO W.ORTO DE HOLBEIN

para dar lugar ao novo, a sua morte para a glória, a morte do velho homem para o corpo pneumático - está no centro da experiência. Mas, se ex.!stc iniciação cristã, ela é inteiramente do registro do imaginário. Ao mesmo tempo que abre a gama inteira das identifi­cações completas (reais e simbólicas), nada comporta nenhuma prova ritual diferente da palavra e dos signos da Eucar!stia. Deste ponto de vista, as. manifestações paroxísticas e realistas do ascetismo e do dorismo são, na verdade, extremos. Além disto, e sobretudo, o im­plícito do amor e, em conseqüência, o da reconcil:ação e· o do perdão transformam completamente o alcance da iniciação cristã, aureolao· do-a com uma glória e uma esperança inabaláveis para aqueles que crêem. A fé cristã aparece então como um antídoto para o hiato c a depressão, com o hiato ·e a depressão c a partir deles .

Seda o voluntarismo do superego o que mantém essa ímagem do Pai ablativo, ou a comemoração de uma figura paterna arcaica oriunda do paraíso das identificações primárias? O perdão inerente à Redenção condensa morte e ressurreição e se apresenta como uma das ocorrências mais interessantes e mais inovadoras da lógica trini· tária. A alavanca deste vínculo parece ser a identificação primária: o dom o?lativo oral e já simbólico entre o Pai e o Filho.

Por razões ind~viduais, ou então pelo esmagamento histórico da autoridade política ou metafísica que é a nossa paternidade social, essa dinâmica da identificação primária com o fundamento da idea­Ezação pode ser dificultad.a: pode parecer estar privada de signifi­cação, ilusória e falsa. Então, s6 perdura o sentido do mecanismo mais profundo, representado pela cruz: o da cesura, da desconti­nuidade, da depressão.

Holbein transformou-se no pintor desse cristianismo liberto de sua onda portadora antidepress!va, que é a identificação com um além gratificante? De qualquer modo, ele nos conduz ao limite últi· mo da crença, ao limiar do não-sentido. Somente a forma - a arte -volta a dar uma serenidade a esse eclipse do perdão, refugiando-se o amor e a salvação na performance da obra. A redenção seria sim· plesmente o rigor de uma técnica estrita.

Representar a "cisão"

Hegel ressaltou o duplo movimento da morte no crtstlanismo: por um lado, há uma morte natural do corpo natural; por outro, ela é o "maior amor'', a "renúncia suprema de si para o Outro''. Ele vê nisso uma "vitória sobre o túmulo, o sheol", uma "morte da

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morte", e insiste na dialét!ca própria desta lógica: "Esse movímen to negativo que só convém ao Espírito como tal é a sua conversão inte­rior. sua transformação [ ... ] resolvendo-se o fim no esplendor, na festa que é a acolhida do ser humano na Idéia divina.'':n Hegel assi­nala quais foram as conseqüências desse movimento sobre a repre­sentação. Uma vez que a morte é apresentada como natural, mas que :só se realiza caso se identifique com sua alterklade, que é a Idéia divina, assistimos a uma "prodigiosa união dos extremos absolutos", a "uma alienação suprema da Idéia divina { ... ] 'Deus morreu, o próprio Deus morreu' é uma representação prodigiosa, terrível, que apresenta à representação o abismo mais profundo da cisão".32

Conduzir a representação ao centro dessa cisão (morte natural e amor divino) é uma aposta que não se poderia fazer sem oscilar para uma ou oulra beira: a arte gótica, sob a influência dominicana, favorecerá a representação patética da morte natural; a arte italia­na, sob influência franciscana, exaltará, na sua beleza sexual dos corpos luminosos e das composições harmoniosas, a glória do além, tornada visível na glória do sublime. O Cristo morto de Holbein é uma das raras, se não a única realização que se mantém no próprio lugar dessa cisão da representação de que fala Hegel. O erótico gótico da dor paroxística está ausente, assim como dele está ausente a pr,omessa do além ou a exaltação renascente da natureza. Perma­nece a corda bamba - como o cadáver representado - de uma imaginária econômica, parc:moniosa, da dor retida no recolhimento solit<ário do artista e do espectador. A essa tristeza serena, desilu­dida, nos limites do insign!ficante, corresponde uma arte pictural de uma sobriedade e de um despojamento máximo. Nenhuma festa cromática, mas um domínio da harmonia e da medida.

Podemos ainda pintar quando os elos que nos ligavam aos cor­pos e ao sentido se quebram? Podemos ainda pintar quando o de­se;o, que é um elo, desmorona? Podemos ainda pintar quando nos identificamos não com o desejo, mas com a cisão , que é a verdade da vida psíquica humana, cisão que a morte representa para o ima­ginário e que a melancolia veicuta enquanto sintoma? A resposta de Holbein é sim . Entre o classicismo e o maneirismo, o seu mini·

Jl Cf. Hegel. l .cçons sur la philosophie de la religion (Lições sobre a filoso[io da religião), 111 parte, Vrin, Paris, 1964, pp . 151-157. 32 Jbid., p. 152. Grifo nosso .

128 ·o CIUSTO M<JRTO DE HOLBEIN

malismo é a metáfora da cisão: entre v!da e morte, sentido e não­·sentido, uma réplica íntima e tênue de nossas melancolias.

Antes de Hegel e Freud, Pascal confirma essa invisibilidade do sepulcro. Para ele, o túmulo seria o lugar escondido do Cristo. Todos o olham na cruz, mas, no túmulo, ele se esquiva dos olhos do sepulcro. Para ele, o túmulo seria o lugar escondido do Cristo, dos inimigos, e somente os santos o vêem para acompanhá-lo numa agonia que é um repouso. "Sepulcro de Jesus Cristo - Jesus Cristo estava morto, mas visto na cruz. Ele está morto e escondido no sepulcro.

Jesus Cristo só foi sepultado pelos santos. Jesus Cristo não fez nenhum milagre no sepulcro. Somente os santos entram ali. E ali onde Jesus adquire uma nova vida, não na cruz. É o último mistério -da Paixão e da Redenção . Jesus Cristo não teve nenhum lugar para repousar, senão no

sepulcro . Seus inimigos só deixaram de atormentá-lo no sepulcro."33

Ver a morte de Jesus é portanto urna maneira de lhe dar sen­tido, de devolvê-la à vida . Mas no túmulo de Basiltia, o Cristo de Holbein está sozinho . Quem o vê? Não há santos. Bem entendido, há o pintor . E nós mesmos . Para soçobrar na morte, ou talvez para vê-la em sua beleza mínima e terrível, limite inerente à vida . "Jesus no dissabor [ ... J Jesus existindo na agonia e nas maiores pena:;, rezemos por mais tempo."34

· A pintura no lugar da prece? A contemplação do quadro talvez substitua a prece no lugar crítico de sua emergência: lá onde o não­·sentido torna-se significante, enquanto a morte aparece terrível e vivível . .

Como esse túmulo invisível de Pascal, a morte é irrepresentável no inconsciente freudiano. Contudo, dissemos, ela ali se marca pelo intervalo, o branco, a descontinuidade ou a destruição da represen· tação.35 Como conseqüência, à capacidade imaginária do ego, a morte anuncia-se como tal pelo isolamento dos signos ou por sua banali­zação até a extinção: é o minimalismo de Holbein . Mas em Juta com o vitalismo erótico do ego e com a profusão jubilatória dos

13 Cf. Pascal, PenSilrtlentos, Jesus Cristo. ,. Cf. Pascal, Pensamentos, O Mistério de Jesus. !5 Cf. wpra, cap. I, p . 36 s.q.

801 NEGa.O 129

signos exaltantes ou mórbidos que traduzem a presença de Eros , a morte torna-se realismo distante, ou melhor, ironia rangente: é a "dança macabra" e a dissipação desiludida, infusas no estilo do pin­tor. O ego erotiza e significa a obsessiva presença da Morte, mar­cando com isolamento, vazio ou com riso absurdo sua própria scgu· rança imaginária que o mantém vivo, isto é, ancorado no jogo das formas. Pelo avesso, as imagens e as identidades - decalques desse ego triunfante - encontram-se marcados por uma tristeza inacessível.

Com os olhos cheios dessa visão do invisível, olhemos ainda uma vez a humanidade l.)ue Holbe!n criou: heróis dos tempos mo­dernos, eles se mantêm estritos, sóbrios e direitos. Secretos tam­bém: verdadeiros dentro do possível e, contudo, indecifráveis. Ne­nhum movimento que trai o gozo. Nenhuma elevação exaltada para o além . Nada senão a sóbria dificuldade de estar em pé aqui na Terra. Eles permanecem simplesmente retos em tomo de um vazio que os torna estranhamente sozinhos. Seguros. E próximos.

128 ·o CIUSTO M<JRTO DE HOLBEIN

malismo é a metáfora da cisão: entre v!da e morte, sentido e não­·sentido, uma réplica íntima e tênue de nossas melancolias.

Antes de Hegel e Freud, Pascal confirma essa invisibilidade do sepulcro. Para ele, o túmulo seria o lugar escondido do Cristo. Todos o olham na cruz, mas, no túmulo, ele se esquiva dos olhos do sepulcro. Para ele, o túmulo seria o lugar escondido do Cristo, dos inimigos, e somente os santos o vêem para acompanhá-lo numa agonia que é um repouso. "Sepulcro de Jesus Cristo - Jesus Cristo estava morto, mas visto na cruz. Ele está morto e escondido no sepulcro.

Jesus Cristo só foi sepultado pelos santos. Jesus Cristo não fez nenhum milagre no sepulcro. Somente os santos entram ali. E ali onde Jesus adquire uma nova vida, não na cruz. É o último mistério -da Paixão e da Redenção . Jesus Cristo não teve nenhum lugar para repousar, senão no

sepulcro . Seus inimigos só deixaram de atormentá-lo no sepulcro."33

Ver a morte de Jesus é portanto urna maneira de lhe dar sen­tido, de devolvê-la à vida . Mas no túmulo de Basiltia, o Cristo de Holbein está sozinho . Quem o vê? Não há santos. Bem entendido, há o pintor . E nós mesmos . Para soçobrar na morte, ou talvez para vê-la em sua beleza mínima e terrível, limite inerente à vida . "Jesus no dissabor [ ... J Jesus existindo na agonia e nas maiores pena:;, rezemos por mais tempo."34

· A pintura no lugar da prece? A contemplação do quadro talvez substitua a prece no lugar crítico de sua emergência: lá onde o não­·sentido torna-se significante, enquanto a morte aparece terrível e vivível . .

Como esse túmulo invisível de Pascal, a morte é irrepresentável no inconsciente freudiano. Contudo, dissemos, ela ali se marca pelo intervalo, o branco, a descontinuidade ou a destruição da represen· tação.35 Como conseqüência, à capacidade imaginária do ego, a morte anuncia-se como tal pelo isolamento dos signos ou por sua banali­zação até a extinção: é o minimalismo de Holbein . Mas em Juta com o vitalismo erótico do ego e com a profusão jubilatória dos

13 Cf. Pascal, PenSilrtlentos, Jesus Cristo. ,. Cf. Pascal, Pensamentos, O Mistério de Jesus. !5 Cf. wpra, cap. I, p . 36 s.q.

801 NEGa.O 129

signos exaltantes ou mórbidos que traduzem a presença de Eros , a morte torna-se realismo distante, ou melhor, ironia rangente: é a "dança macabra" e a dissipação desiludida, infusas no estilo do pin­tor. O ego erotiza e significa a obsessiva presença da Morte, mar­cando com isolamento, vazio ou com riso absurdo sua própria scgu· rança imaginária que o mantém vivo, isto é, ancorado no jogo das formas. Pelo avesso, as imagens e as identidades - decalques desse ego triunfante - encontram-se marcados por uma tristeza inacessível.

Com os olhos cheios dessa visão do invisível, olhemos ainda uma vez a humanidade l.)ue Holbe!n criou: heróis dos tempos mo­dernos, eles se mantêm estritos, sóbrios e direitos. Secretos tam­bém: verdadeiros dentro do possível e, contudo, indecifráveis. Ne­nhum movimento que trai o gozo. Nenhuma elevação exaltada para o além . Nada senão a sóbria dificuldade de estar em pé aqui na Terra. Eles permanecem simplesmente retos em tomo de um vazio que os torna estranhamente sozinhos. Seguros. E próximos.

VI Nerval, El Desdichado

VI Nerval, El Desdichado

EL DESDICHADO

t Sou o tenebroso, o viúvo, o inconsolado 2 O príncipe na torre abolida de Aquitânia; 3 Morta minha única estrela, meu alaúde constelado 4 Porta o sol negro da melancolia .

5 Na noite tumular, tu que me consolaste, 6 Traga-me o Pa·usílipo e o mar dJtália, 7 A flor que tanto comprazia meu coração triste, 8 E o parreira! onde o pâmpano à vinha se alia _

9 Serei Amor ou Febo, Lusignan ou Byron? 10 Minha fronte está rubra, ainda: dos be!jos da que reina; 11 Dormi na grutà onde verdeja a sirena,

17. E por duas vezes, vivo, atravessei o Aqueron, 13 Modulando e cantando na lira Otféi~. 14 Os suspiros da santa e os gritos feéricos.

1 exto conforme a versão aparecida em Le Mousquetaire de 10 de dezembro de 1853. ·

EL DESDICHADO

1 Sou o tenebroso -o viúvo - o inconsolado, 2 O príncipe na torre abolida de Aquitânia; 3 Morta minha única estrela - meu alaúde constelado 4 Porta o Sol negro da ·Melancolia _

5 Na noite tumular, tu que me consolaste , 6 Traga-me o . Pausílipo e o mar d'ltália, 7 A flor que agradava tanto ao meu coração triste, ':! E o parreira! onde o pâmpano à Iosa se alia .

9 Serei Amor ou Febo? ... Lusignan ou Byron? 10 Minha fronte está rubra, ainda, dos be:jos da que reina; 11 Sonhei na gruta em que nada a sirena,

12 E por duas vezes, vencedor, atravessei o Aqueron: 13 Modulando alternadamente. na lira Orféica, 14 Os suspiros da santa e os gritos feéricos.

Texto confol'me a edição de Les filies clu jeu (1854) .

EL DESDICHADO

t Sou o tenebroso, o viúvo, o inconsolado 2 O príncipe na torre abolida de Aquitânia; 3 Morta minha única estrela, meu alaúde constelado 4 Porta o sol negro da melancolia .

5 Na noite tumular, tu que me consolaste, 6 Traga-me o Pa·usílipo e o mar dJtália, 7 A flor que tanto comprazia meu coração triste, 8 E o parreira! onde o pâmpano à vinha se alia _

9 Serei Amor ou Febo, Lusignan ou Byron? 10 Minha fronte está rubra, ainda: dos be!jos da que reina; 11 Dormi na grutà onde verdeja a sirena,

17. E por duas vezes, vivo, atravessei o Aqueron, 13 Modulando e cantando na lira Otféi~. 14 Os suspiros da santa e os gritos feéricos.

1 exto conforme a versão aparecida em Le Mousquetaire de 10 de dezembro de 1853. ·

EL DESDICHADO

1 Sou o tenebroso -o viúvo - o inconsolado, 2 O príncipe na torre abolida de Aquitânia; 3 Morta minha única estrela - meu alaúde constelado 4 Porta o Sol negro da ·Melancolia _

5 Na noite tumular, tu que me consolaste , 6 Traga-me o . Pausílipo e o mar d'ltália, 7 A flor que agradava tanto ao meu coração triste, ':! E o parreira! onde o pâmpano à Iosa se alia .

9 Serei Amor ou Febo? ... Lusignan ou Byron? 10 Minha fronte está rubra, ainda, dos be:jos da que reina; 11 Sonhei na gruta em que nada a sirena,

12 E por duas vezes, vencedor, atravessei o Aqueron: 13 Modulando alternadamente. na lira Orféica, 14 Os suspiros da santa e os gritos feéricos.

Texto confol'me a edição de Les filies clu jeu (1854) .

"Estou sozinho, estou viúvo, e sobre mim a noite cai."

Victor Hugo, Booz.

é a melancolia que se torna sua musa.''

Gérard de Nerval, A Alex.andn Dumas .

Bl Desdichado e Arthnis, escritos eDJ. tinta vermelha, foram envia· dos a Alexandre Dumas por uma carta de Nerval, de 14 de no­vembro de 1853. A primeira publicação de El Desdichado apare­ceu no Le Mousquetaire, em 10 de dezep1bro de 1853, apresentada por um artigo de Dumas. Uma segunda variante é . conhecida peta edição das Filies du leu em 1854. O manuscrito do mesmo texto, pertencente a Paul Eluard, traz o título de O Destitw e não se dis­tingue, em essência, da variante de Filies du fw.

Após sua crise de loucura, em maio de 1853, Gérard de Nerval (1808-1855) parte para· a sua Valésia natal (Chaali~,· Senlis, Loisy, Mortefontaine) para procurar refúgio nostálgico e ·apaziguamento! Este ser errante infatigável, que não se cansa de sulcar o sul da França, a Alemanha, a Áustria e o Oriente, curva--se por um tempo na cripta de um · passado que o persegue. Em agosto, voltam os sintomas: nós o encontramos, arqueólogo ameaçado, visitando a ga· leria de osteologia do Jardim Botânico e, sob a chuva, persuadido a assistir ao dilúvio . O túmulo, o esqueleto, o afluxo da morte decididamente, não deixam de assediá-lo. Neste contexto, El Desdi- . chado é a sua Arca de Noé. Se é provisória, ela lhe assegura con­tudo uma identidade flu ida, enigmática, encantatória . Ainda desta vez, Orfeu continua vencedor do Príncipe Negro.

O tit.ulo El Desdichado logo assinala a ·estranheza do texto que se segue, mas sua sonoridade espanhola, aguda . . c estridente, para além do sentido pesaroso da pàlavra, sobressai com o voc.alismo sombreado e discreto da língua francesa, e parece anunciar algum triunfo no ·próprio centro das trevas.

Quem é El Desdichado? Por um lado, Nerval pôde tomar o nome de Ivanhoé, de Walter Scott (cap. VIII); ele designa um dos cavaleiros do tei João, que lhe tirou a posse do castelo que lhe

Cf. Jeanne Moulín, Ll!s Chimeres, Ed~ (As quimeras, exegeses), Droz, Paris . No yerio de 1854, alguns meses aotea. do suicídio, parece que Nerv~ fez uma peregrinação ao túmulo de sua mie em Glopu, na Alemanha, seBUida de uma recaída .

"Estou sozinho, estou viúvo, e sobre mim a noite cai."

Victor Hugo, Booz.

é a melancolia que se torna sua musa.''

Gérard de Nerval, A Alex.andn Dumas .

Bl Desdichado e Arthnis, escritos eDJ. tinta vermelha, foram envia· dos a Alexandre Dumas por uma carta de Nerval, de 14 de no­vembro de 1853. A primeira publicação de El Desdichado apare­ceu no Le Mousquetaire, em 10 de dezep1bro de 1853, apresentada por um artigo de Dumas. Uma segunda variante é . conhecida peta edição das Filies du leu em 1854. O manuscrito do mesmo texto, pertencente a Paul Eluard, traz o título de O Destitw e não se dis­tingue, em essência, da variante de Filies du fw.

Após sua crise de loucura, em maio de 1853, Gérard de Nerval (1808-1855) parte para· a sua Valésia natal (Chaali~,· Senlis, Loisy, Mortefontaine) para procurar refúgio nostálgico e ·apaziguamento! Este ser errante infatigável, que não se cansa de sulcar o sul da França, a Alemanha, a Áustria e o Oriente, curva--se por um tempo na cripta de um · passado que o persegue. Em agosto, voltam os sintomas: nós o encontramos, arqueólogo ameaçado, visitando a ga· leria de osteologia do Jardim Botânico e, sob a chuva, persuadido a assistir ao dilúvio . O túmulo, o esqueleto, o afluxo da morte decididamente, não deixam de assediá-lo. Neste contexto, El Desdi- . chado é a sua Arca de Noé. Se é provisória, ela lhe assegura con­tudo uma identidade flu ida, enigmática, encantatória . Ainda desta vez, Orfeu continua vencedor do Príncipe Negro.

O tit.ulo El Desdichado logo assinala a ·estranheza do texto que se segue, mas sua sonoridade espanhola, aguda . . c estridente, para além do sentido pesaroso da pàlavra, sobressai com o voc.alismo sombreado e discreto da língua francesa, e parece anunciar algum triunfo no ·próprio centro das trevas.

Quem é El Desdichado? Por um lado, Nerval pôde tomar o nome de Ivanhoé, de Walter Scott (cap. VIII); ele designa um dos cavaleiros do tei João, que lhe tirou a posse do castelo que lhe

Cf. Jeanne Moulín, Ll!s Chimeres, Ed~ (As quimeras, exegeses), Droz, Paris . No yerio de 1854, alguns meses aotea. do suicídio, parece que Nerv~ fez uma peregrinação ao túmulo de sua mie em Glopu, na Alemanha, seBUida de uma recaída .

136 NEilVAL, EL DESDICHADO

legara Ricardo Coração de Leão . O infeliz deserdado escolheu então ornar seu escudo com um carvalho desenraizado e com a divisa "El Desdichado". Por outro lado, indicou.se uma "fonte francesa para o Desdichado": dom Blaz Desdichado, personagem do Diable boiteux de Lesage, que enlouqueceu depois que, por falta de des­cendentes, teve que entregar sua fortuna à família de sua mulher após o falecimento desta.2 Se é verdade que para numerosos leito­res franceses o espanhol "el desdichado" é traduzido por "deserda­do", a lexicografia estrita manterá a afirmação de que o termo sig­nifica mais precisamente "desafortunado", "infeliz", "miserável". Nerval, contudo, parece ater-se a "deserdado" - aliás é a escolha que Alexandre Dumas faz em sua tradução de 1 vanhoé. :É também o termo pelo qual o poeta designa a si mesmo num outro contexto ("Assim, eu, o brilhante comediante de há pouco, o príncipe igno­rado, o atrUlnte misterioso, o deserdado, o banido da alegria, o belo tenebroso [ .. . )".)3

"Coisa" ou "objeto" perdidos

Deserdado de quê? De súbito, uma privação inicial é assim .indicada: contudo, privação não de um "bem" ou de um "objeto", que constituem uma herança material e transm~ssível, mas de um território não-nomeável, que se poderia evocar ou invocar, estranha­mente, do exterior, de um exílio constitutivo. Essa "qualquer coisa" seria anterior ao "objeto'' díscem ível: horizonte secreto e intocável de nossos amores e de nossos desejos, para o imaginário ela toma a consistência de uma mãe arcaica que, entretanto, nenhuma imagem precisa consegue englobar. A busca incansável de amantes ou, no plano religioso, o acúmulo de divindades femininas ou de deusas­mães que as religiões orientais e, em particular, o Egito prodigali­zam, indicam o aspecto inapreensível desta Coisa necessar!amente perdida para que o "sujeito" separado do "objeto" se torne um ser falante .

Se o melancólico não deixa de exercer um domínio tanto amo· roso quanto odioso sobre essa Coisa, o poeta encontra o meio enig-

2 Cf. Kier, citad'o por Jacques Dhaenens, Le destin d'Orphée (O destino de Orfeu), El Desdichado, de Gérard de Nerval, Minard, Paris, 1972. 3 Cf. "Alexandre Dumas", in Oeuvres Completes (Obras Completas), t . I, La i'léiade, Gallimard, Paris, pp. 175·176.

101. NEOAO 137

mático de estar, ao mesmo tempo, sob a sua dependênc!a e ... em outro lugar . Deserdado, privado desse paraíso perdido, ele é desa­fortunado; contudo, a escrita é o estranho meio de dominar este infortúnio, instalando nela um "eu" que domina os dois lados da privação: tanto as trevas do desconsolado quanto o " beijo da que reina".

"Eu" afirma-se então no terreno do artifício:- não há lugar para o "eu" senão no jogo, no teatro, sob a máscara das identidades possíveis, tão extravagantes, prestigiosas, míticas, épicas, históricas, esotéricas quanto inacreditáveis. Triunfantes, mas também incertas .

Esse "eu" que costura e assegura o primeiro verso: "Sou o tenebroso, - o viúvo - o inconsolado" designa, por um saber tão certo quanto iluminado por uma necessidade alucinatória, a condi· ção necessária do ato poético. Tomar a palavra, colocar-se, esta· belecer-se na ficção legal que é a atividade simbólica é, na ver· dade, perder a Coisa .

Doravante, o dilema será o seguinte: os traços desta Coisa per· dida vencerão aquele que fala , ou então ele conseguirá vencê-los, integrá-los, incorporá-los ao seu discurso, tornado canto, de tanto pegar a Coisa? Em outros termos: são as bacantes que devoram Orfeu ou é este que vence aquelas na sua encantação, como numa antro­pofagia simbólica?

Sou aquilo que não existe ·

A oscilação será permanente . Depo!s dessa incrível afirmação de presença e de certeza. que lembra a segurança de Victor Hugo, de um patriarca a quem a solidão não perturba, mas pacifica ("Estou sozinho, estou viúvo e sobre mim a noite cai'/, eis-nos de novo no infortúnio. Os atributos desse .. Eu" triunfal são atributos negativos; privado de luz, de esposa, de consolação, ele é aquele que não existe. Ele é "tenebroso", "viúvo", " inconsolado" .

O interesse de Nerval pela alquimia e pelo esoterismo torna perfeitamente verossímil a interpretação de Le Breton, segundo a qual os primeiros versos de El Desdichado seguem a ordem das cartas do tarô (cartas XV, XVI , XVII). O obscuro seria o grande demônio do inf~mo (a XV carta do tarô é a do diabo), poderia muito bem ser também esse Plutão alquimista, que morreu solteiro, cuja defor-

136 NEilVAL, EL DESDICHADO

legara Ricardo Coração de Leão . O infeliz deserdado escolheu então ornar seu escudo com um carvalho desenraizado e com a divisa "El Desdichado". Por outro lado, indicou.se uma "fonte francesa para o Desdichado": dom Blaz Desdichado, personagem do Diable boiteux de Lesage, que enlouqueceu depois que, por falta de des­cendentes, teve que entregar sua fortuna à família de sua mulher após o falecimento desta.2 Se é verdade que para numerosos leito­res franceses o espanhol "el desdichado" é traduzido por "deserda­do", a lexicografia estrita manterá a afirmação de que o termo sig­nifica mais precisamente "desafortunado", "infeliz", "miserável". Nerval, contudo, parece ater-se a "deserdado" - aliás é a escolha que Alexandre Dumas faz em sua tradução de 1 vanhoé. :É também o termo pelo qual o poeta designa a si mesmo num outro contexto ("Assim, eu, o brilhante comediante de há pouco, o príncipe igno­rado, o atrUlnte misterioso, o deserdado, o banido da alegria, o belo tenebroso [ .. . )".)3

"Coisa" ou "objeto" perdidos

Deserdado de quê? De súbito, uma privação inicial é assim .indicada: contudo, privação não de um "bem" ou de um "objeto", que constituem uma herança material e transm~ssível, mas de um território não-nomeável, que se poderia evocar ou invocar, estranha­mente, do exterior, de um exílio constitutivo. Essa "qualquer coisa" seria anterior ao "objeto'' díscem ível: horizonte secreto e intocável de nossos amores e de nossos desejos, para o imaginário ela toma a consistência de uma mãe arcaica que, entretanto, nenhuma imagem precisa consegue englobar. A busca incansável de amantes ou, no plano religioso, o acúmulo de divindades femininas ou de deusas­mães que as religiões orientais e, em particular, o Egito prodigali­zam, indicam o aspecto inapreensível desta Coisa necessar!amente perdida para que o "sujeito" separado do "objeto" se torne um ser falante .

Se o melancólico não deixa de exercer um domínio tanto amo· roso quanto odioso sobre essa Coisa, o poeta encontra o meio enig-

2 Cf. Kier, citad'o por Jacques Dhaenens, Le destin d'Orphée (O destino de Orfeu), El Desdichado, de Gérard de Nerval, Minard, Paris, 1972. 3 Cf. "Alexandre Dumas", in Oeuvres Completes (Obras Completas), t . I, La i'léiade, Gallimard, Paris, pp. 175·176.

101. NEOAO 137

mático de estar, ao mesmo tempo, sob a sua dependênc!a e ... em outro lugar . Deserdado, privado desse paraíso perdido, ele é desa­fortunado; contudo, a escrita é o estranho meio de dominar este infortúnio, instalando nela um "eu" que domina os dois lados da privação: tanto as trevas do desconsolado quanto o " beijo da que reina".

"Eu" afirma-se então no terreno do artifício:- não há lugar para o "eu" senão no jogo, no teatro, sob a máscara das identidades possíveis, tão extravagantes, prestigiosas, míticas, épicas, históricas, esotéricas quanto inacreditáveis. Triunfantes, mas também incertas .

Esse "eu" que costura e assegura o primeiro verso: "Sou o tenebroso, - o viúvo - o inconsolado" designa, por um saber tão certo quanto iluminado por uma necessidade alucinatória, a condi· ção necessária do ato poético. Tomar a palavra, colocar-se, esta· belecer-se na ficção legal que é a atividade simbólica é, na ver· dade, perder a Coisa .

Doravante, o dilema será o seguinte: os traços desta Coisa per· dida vencerão aquele que fala , ou então ele conseguirá vencê-los, integrá-los, incorporá-los ao seu discurso, tornado canto, de tanto pegar a Coisa? Em outros termos: são as bacantes que devoram Orfeu ou é este que vence aquelas na sua encantação, como numa antro­pofagia simbólica?

Sou aquilo que não existe ·

A oscilação será permanente . Depo!s dessa incrível afirmação de presença e de certeza. que lembra a segurança de Victor Hugo, de um patriarca a quem a solidão não perturba, mas pacifica ("Estou sozinho, estou viúvo e sobre mim a noite cai'/, eis-nos de novo no infortúnio. Os atributos desse .. Eu" triunfal são atributos negativos; privado de luz, de esposa, de consolação, ele é aquele que não existe. Ele é "tenebroso", "viúvo", " inconsolado" .

O interesse de Nerval pela alquimia e pelo esoterismo torna perfeitamente verossímil a interpretação de Le Breton, segundo a qual os primeiros versos de El Desdichado seguem a ordem das cartas do tarô (cartas XV, XVI , XVII). O obscuro seria o grande demônio do inf~mo (a XV carta do tarô é a do diabo), poderia muito bem ser também esse Plutão alquimista, que morreu solteiro, cuja defor-

138 Nl!JtVAL, EL Dt!.SDICIUDO

midade fazia as deusas fugirem (donde viúvo}, ~presentando a terra no fundo de um vaso de onde se origina toda operação quúnica.4

Entrelanto, essas referências, que constituem a ideologia de Ner· val, estão inseridas numa trama poética: desenraizadas, transpostas, elas obtêm uma multivalência de conotações, em geral, indefinidas.

4 Foi possível estabelecer uma correspondência bastante exata e surpreendente entre os três primeiros versos de El Desdichado c o tomo VIII do Monde Pri­mitif, analysé et comparé avec le monde moderne (Mundo primitivo, analisado e comparado ao mundo moderno), de Court de Bcbelin (1781) . Da mesma fonna, encontram-se fontes para os cinco sonetos das Chimeres ("El Desdícha­do", "Myrtho", "Horus", "Antéros", "Artêmis") em Les jables égyptiennes et grecques (Fábulas egípcias e gregas) (1758) de dom Antoine-Joseph Pemety, religioso beneditino da congregação de Saint-Maur. Nerval também deve ter lido o DictiQnnaire mytlw-hermetique (Dicionário mito-hen néticu) de dom Per­nety. Reportaremos à obra de Nerval estas passagens de Pemety: "A verda­deira chave da obra é esse negrume no início das suas operações [ .. . ] . O ne­grume é o verdadeiro sinal de uma solução perfeita. Então a matéria se dissolve em pó mais fino [ ... ] que os átomos que esvoaçam, aos raios de sol, e os seus átomos transfonnaJIKC em água pennaneote".

"Os Filósofos deram a essa dissolução os nomes de morte [ ... ] inferno, thrtaros, trevas, noite [ ... ] túmulo [ ... ) melancolia [ ... ] sol eclipsado ou .xlipse do sof e da lua [ ... ] . Por fim, eles a designaram por todos os nomes que podem exprimir ou designar a corrupção, a dissolução e o negrume. Foi d a que forneceu aos Filósofos matéria para tantas alegorias sobre os mortos e oo túmulos ... " (F.E .G. , t. I, pp. 154-155. grifo nosso). Pemety se refere a esses propósitos de Raymond Lullc quanto ao assunto do negrume: "Deixem putrefar o corpo do sol durante treze dias, no fim dos quais a dissolução se lom ará negra como tinta: mas o seu interior será vermelho como um rubi ou ou como uma pedra de carbúnculo . Tomem entiío esse sol tenebroso e ~bs­curecido pelos abraços de sua irmã ou de sua mãe, e coloquem-no numa cucúr­bita ... " (F .E.G . , t. 11, p . 136) . Sua definição da melancolia é a seguinte: "Melancolia significa a putrefação da matéria[ ... ] . Deu-se esse nome à matéria em negro, sem dúvida porque a cor negra tem algo de triste, e que o humor do corpo humano, chamado de melancolia, é olhado como uma bflis negra e recozida, que causa vapores tristes e lúgubres" (Dictionnaire mytho-hermétique. p . 289). "A tristeza e a melancolia [ ... ] também é um dos nomes que os Adeptos dão à sua matéria chegada ao negro" (F . E .G . , t. 11, p . 300).

Essas correspondências entre o texto de Ncrval e o corpo alqufmico foram estabelecidas por Gecrges Le Breton, "La Clé des Chimeres: L'Aichimie" (A chave das quimeras: a alquimia), in Fontaine, n.• 44, 1945, pp. 441-460. Cf. também do mesmo autor "L'Aichlmie dans Aurélia: les mémorables" (A alqui­mia em Aurélia: os memoráveis), ibid., n.• 45, pp. 687-706. Numerosas obras foram consagradas a Nerval e o esoterismo, entre as quais Jean Richer, Expé­rience et création, Paris. Hachette, 1963; François Constant. "Le solei! noir ct l'étoile rçswscitée" (0 sol negro e a estrela ressuscitada), IA Tour Saint-facques. n. os 13-14, janeiro-abril de 1958 etc.

SOL NEGill' 139

A polivalênc:a do simbolismo no interior dessa nova ordem simbó­lica . que é o poema, ligada à rigidez dos símbolos no seio da~ doutrinas c:sult:ricas, confere à linguagem de Ncrval um duplo pri· vilégio: por um lado, assegurar um sentido estável tanto quanto uma comunidade secreta, onde o inconsolado é ouvido, aceito, e, em suma, consolado; por outro, abandonar esse sentido monova­lente e essa própria comunidade, para chegar o mais próximo pos­sível do objeto de pesar especificamente nervaliano, através da in­certeza da nomeação. Antes de atingir esse nível de eclipse do sen­tido, em que a Enguagem poética acompanha o eclipse do sujeito melancólico que soçobra no objeto perdido, sigamos as operações logicamente identificáveis do texto de Nerval.

Inversão e duplo

O atributo "tenebroso" harmoniza-se tanto com o Príncipe das trevas, já evocado pelo tarô, quanto com a noite privada de clari­dade . Ele evoca a cumpEcidade do melancólico com o mundo da sotnbra e do desespe~.

O ''sol negro" (verso 4) retoma o campo semântico de " tene­broso", mas o inverte como uma luva: a sombra jorra numa ela· ridade solar que permanece, contudo, deslumbrante de invisibili­dade negra.

O "viúvo" é o primeiro sinal que indica o .luto: o humor tene· broso seria então a conseqüênc!a da perda da esposa? O manus­crito Eluard acrescenta a essa ·passagem uma nota: "outrora: Mau­solo?", que substitui uma inscrição rasurad~t: "u Príncipe/ morto•· ou "o poema"? Mausolo foi esse rei grego do século IV que se casou com sua irmã Artemísia e morreu antes dela . Se o viúvo fosse Mausolo, ele seria incestuoso: esposo de sua irmã, de sua mãe. . . de uma Co!sa erótica familiar e familial . A ambivalência desse personagem confunde-se ainda mais pelo uso que dele faz Nerval: primeiro a morrer, não pode ser viúvo, mas deixa uma viúva, sua irmã Artemísia. Nerval, no soneto Artêmis, tnasculin iza o nome de Artenúsia em Artêmis, e joga talvez com os dois pro­tagonistas do casal corno se fossem duplos um do outro: intercambiá­veis, mas também, e por conseqüência, de uma sexualidade impre­cisa, quase andrógina. Eis-nos num ponto extremamente conden­sado do pru~esso poético em Ncrval: a viúva Artemísia identifica-se com o se~ duplv {irmão + marido) morto, ela é ele, portanto "viú­vo", e essa identificação, a colocação do outro em cripta, a insta-

138 Nl!JtVAL, EL Dt!.SDICIUDO

midade fazia as deusas fugirem (donde viúvo}, ~presentando a terra no fundo de um vaso de onde se origina toda operação quúnica.4

Entrelanto, essas referências, que constituem a ideologia de Ner· val, estão inseridas numa trama poética: desenraizadas, transpostas, elas obtêm uma multivalência de conotações, em geral, indefinidas.

4 Foi possível estabelecer uma correspondência bastante exata e surpreendente entre os três primeiros versos de El Desdichado c o tomo VIII do Monde Pri­mitif, analysé et comparé avec le monde moderne (Mundo primitivo, analisado e comparado ao mundo moderno), de Court de Bcbelin (1781) . Da mesma fonna, encontram-se fontes para os cinco sonetos das Chimeres ("El Desdícha­do", "Myrtho", "Horus", "Antéros", "Artêmis") em Les jables égyptiennes et grecques (Fábulas egípcias e gregas) (1758) de dom Antoine-Joseph Pemety, religioso beneditino da congregação de Saint-Maur. Nerval também deve ter lido o DictiQnnaire mytlw-hermetique (Dicionário mito-hen néticu) de dom Per­nety. Reportaremos à obra de Nerval estas passagens de Pemety: "A verda­deira chave da obra é esse negrume no início das suas operações [ .. . ] . O ne­grume é o verdadeiro sinal de uma solução perfeita. Então a matéria se dissolve em pó mais fino [ ... ] que os átomos que esvoaçam, aos raios de sol, e os seus átomos transfonnaJIKC em água pennaneote".

"Os Filósofos deram a essa dissolução os nomes de morte [ ... ] inferno, thrtaros, trevas, noite [ ... ] túmulo [ ... ) melancolia [ ... ] sol eclipsado ou .xlipse do sof e da lua [ ... ] . Por fim, eles a designaram por todos os nomes que podem exprimir ou designar a corrupção, a dissolução e o negrume. Foi d a que forneceu aos Filósofos matéria para tantas alegorias sobre os mortos e oo túmulos ... " (F.E .G. , t. I, pp. 154-155. grifo nosso). Pemety se refere a esses propósitos de Raymond Lullc quanto ao assunto do negrume: "Deixem putrefar o corpo do sol durante treze dias, no fim dos quais a dissolução se lom ará negra como tinta: mas o seu interior será vermelho como um rubi ou ou como uma pedra de carbúnculo . Tomem entiío esse sol tenebroso e ~bs­curecido pelos abraços de sua irmã ou de sua mãe, e coloquem-no numa cucúr­bita ... " (F .E.G . , t. 11, p . 136) . Sua definição da melancolia é a seguinte: "Melancolia significa a putrefação da matéria[ ... ] . Deu-se esse nome à matéria em negro, sem dúvida porque a cor negra tem algo de triste, e que o humor do corpo humano, chamado de melancolia, é olhado como uma bflis negra e recozida, que causa vapores tristes e lúgubres" (Dictionnaire mytho-hermétique. p . 289). "A tristeza e a melancolia [ ... ] também é um dos nomes que os Adeptos dão à sua matéria chegada ao negro" (F . E .G . , t. 11, p . 300).

Essas correspondências entre o texto de Ncrval e o corpo alqufmico foram estabelecidas por Gecrges Le Breton, "La Clé des Chimeres: L'Aichimie" (A chave das quimeras: a alquimia), in Fontaine, n.• 44, 1945, pp. 441-460. Cf. também do mesmo autor "L'Aichlmie dans Aurélia: les mémorables" (A alqui­mia em Aurélia: os memoráveis), ibid., n.• 45, pp. 687-706. Numerosas obras foram consagradas a Nerval e o esoterismo, entre as quais Jean Richer, Expé­rience et création, Paris. Hachette, 1963; François Constant. "Le solei! noir ct l'étoile rçswscitée" (0 sol negro e a estrela ressuscitada), IA Tour Saint-facques. n. os 13-14, janeiro-abril de 1958 etc.

SOL NEGill' 139

A polivalênc:a do simbolismo no interior dessa nova ordem simbó­lica . que é o poema, ligada à rigidez dos símbolos no seio da~ doutrinas c:sult:ricas, confere à linguagem de Ncrval um duplo pri· vilégio: por um lado, assegurar um sentido estável tanto quanto uma comunidade secreta, onde o inconsolado é ouvido, aceito, e, em suma, consolado; por outro, abandonar esse sentido monova­lente e essa própria comunidade, para chegar o mais próximo pos­sível do objeto de pesar especificamente nervaliano, através da in­certeza da nomeação. Antes de atingir esse nível de eclipse do sen­tido, em que a Enguagem poética acompanha o eclipse do sujeito melancólico que soçobra no objeto perdido, sigamos as operações logicamente identificáveis do texto de Nerval.

Inversão e duplo

O atributo "tenebroso" harmoniza-se tanto com o Príncipe das trevas, já evocado pelo tarô, quanto com a noite privada de clari­dade . Ele evoca a cumpEcidade do melancólico com o mundo da sotnbra e do desespe~.

O ''sol negro" (verso 4) retoma o campo semântico de " tene­broso", mas o inverte como uma luva: a sombra jorra numa ela· ridade solar que permanece, contudo, deslumbrante de invisibili­dade negra.

O "viúvo" é o primeiro sinal que indica o .luto: o humor tene· broso seria então a conseqüênc!a da perda da esposa? O manus­crito Eluard acrescenta a essa ·passagem uma nota: "outrora: Mau­solo?", que substitui uma inscrição rasurad~t: "u Príncipe/ morto•· ou "o poema"? Mausolo foi esse rei grego do século IV que se casou com sua irmã Artemísia e morreu antes dela . Se o viúvo fosse Mausolo, ele seria incestuoso: esposo de sua irmã, de sua mãe. . . de uma Co!sa erótica familiar e familial . A ambivalência desse personagem confunde-se ainda mais pelo uso que dele faz Nerval: primeiro a morrer, não pode ser viúvo, mas deixa uma viúva, sua irmã Artemísia. Nerval, no soneto Artêmis, tnasculin iza o nome de Artenúsia em Artêmis, e joga talvez com os dois pro­tagonistas do casal corno se fossem duplos um do outro: intercambiá­veis, mas também, e por conseqüência, de uma sexualidade impre­cisa, quase andrógina. Eis-nos num ponto extremamente conden­sado do pru~esso poético em Ncrval: a viúva Artemísia identifica-se com o se~ duplv {irmão + marido) morto, ela é ele, portanto "viú­vo", e essa identificação, a colocação do outro em cripta, a insta-

140 NERVAL, EL OESCHCHAOO

!ação do túmulo do outro em si. seria o equivalente do poema. (De fato, alguns acreditam ler sob a rasura a palavra "poema".) O texto como mauso!éu?

O termo "inconsolado", mais do que "inconsolável", sugere uma temporalidade paradoxal: aquele que fala não foi consolado no passado, e o efeito dessa frustração dura até o presente . En· quanto "inconsolável" nos instalaria no presente; "inconsolado" vira esse presente para o passado onde o t.rauma ocorreu . O presente é irreparável, sem nenhuma esperança de consolação.

Mem6ria imaginária

O ''príncipe da Aquitânia", sem dúvida, é Maifre de Aquitânia, que perseguido por Pepino, o Breve, esconde-se nas florestas do Périgord. Em sua genealogia mítica, parcialmente publicada por Aristide Marie, depois na íntegra por Richer,5 Nerval identifica-se com uma linhagem prestigiosa e faz sua família Labrunie descender dos cavaleiros de Oto: um dos seus ramos seria originário do Pé­rigord, exatamente como o príncipe da Aquitânia. Ele precisa tam· bém que Broun ou Brunn significa torre e estufa de cevada. Os brasões dos Labrunie, que possuiriam três castelos à beira do rio Dordogne, teriam três torres de prata, mas também estrelas e meias­-luas que evocam o Oriente, da mesma forma que a "estrela" e o "alaúde constelado" citados mais adiante no texto.

A polivalência do símbolo de Aquitânia - região das águas -, acrescentaremos uma nota de Nerval a George Sand (citada por Richer), onde se lê: Gaston Phoebus D'Aquitaine, cujo sentido escr térico seria o de u.m iniciado solar. Notaremos mais simplesmente, com Jacques Dhaenens,6 que a Aquitânia é a região dos trovadores e que, evocando assim o Príncipe Negro, o viúvo enceta sua meta· morfose, através do seu canto cortês, em Orfeu ... Contudo, ainda estamos no campo da ~onstatação pesarosa: "abolida" confirma o sentido de destruição, de privação e de falta que se tece desde o iní­cio do texto. Como observou bm.ile Nou1et,7 o sinta.gma " na torre ab(}-

5 Cf. Jean Richer, Explrience et Création (Experiência e Criação), op. cit., pp . 33-38. 6 Le destin d'Orphéc (0 destino de Orfcu). op. cit. 7 Cf. Emile Noulct, Etudes littéraires, l"hermétisme de la poésie française mo­clerne (Estudos literários, o hermetismo da poesia francesa moderna). México 1944 .

SOL NEGRO 141

lida" funciona como um "único grupo mental" e confere ao prín­cipe da Aquitânia um atributo complexo, em que as palavras se fundem e as sílabas se destacam numa litania: " na-torre-a-bo-li-da",* a 5er entt:mlida tamb~m como anagrama de Labrunie. Em.:untra-:~e

três vezes a palavra "abolida" em Nerval e E. Neulet observa que esta palavra rara impôs-se a Ma.llanné, que a emprega seis vezes nos seus poemas.

Príncipe desapossado, sujeito glorioso de um passado destruí· do, El Desdichado pertence a uma história, mas a uma história decaída. Seu passado sem futuro não é um passado histórico: é apenas uma memória, tanto mais presente quanto for sem futuro .

O verse seguinte reata com o trauma pessoal: ''a torre aboli· da", essa altura que doravánte falta, foi uma "estrela", hoje morta . O astro é a imagem da musa, também de um universo elevado, do cosmos, ainda mais alto do que a torre medieval, ou do dest:no doravante partido. Com Jacques Geninasca,8 reteremos o espaço alta­neiro, elevado, estelar dessa primeira quadra onde o poeta se man· tém com seu alaúde igualmente constelado, como se fosse a versão negativa do celeste e artista Apolo . Provavelmente a "estrela" é também o que chamamos de uma "star" - Jenny Colon, morta em 1842, catalisou várias crises em Nerval. Por identificar-se com essa ''estrela morta", dispersá-la no seu canto, como réplica sonora de Orfeu devorado pelas bacantes, é que se constitui o "alaúde constelado" . A arte poética afirma-se como a memória de uma har· mania póstuma, ·mas também por uma ressonância pitagórica, como a metáfora da harmon!a universal .

No limiar do invisível e do ·visível

Dessa absorção da "estrela morta" no "alaúde" resulta o ''sol negro da melancolia". Para além dos seus alcances alquímicos já citados, a metáfora do " sol negro" resume bem a força ofuscante do humor pesaroso: um afeto opressivo e lúcido impõe o fato ine· lutável da morte, que é a morte da amada e de si mesmo, identi­ficado com a desaparecida (o poeta é "vi~vo" da "estrela").

~ Cf. Jacques Geninasca, "EI Desdichado", in Archives nervaliennes (Arquivos uervalianos), n." 59, Paris, pp . 9-53 . • Em frat~cês: "à-la-tour-a·bo-Jie" . (N . da T .)

140 NERVAL, EL OESCHCHAOO

!ação do túmulo do outro em si. seria o equivalente do poema. (De fato, alguns acreditam ler sob a rasura a palavra "poema".) O texto como mauso!éu?

O termo "inconsolado", mais do que "inconsolável", sugere uma temporalidade paradoxal: aquele que fala não foi consolado no passado, e o efeito dessa frustração dura até o presente . En· quanto "inconsolável" nos instalaria no presente; "inconsolado" vira esse presente para o passado onde o t.rauma ocorreu . O presente é irreparável, sem nenhuma esperança de consolação.

Mem6ria imaginária

O ''príncipe da Aquitânia", sem dúvida, é Maifre de Aquitânia, que perseguido por Pepino, o Breve, esconde-se nas florestas do Périgord. Em sua genealogia mítica, parcialmente publicada por Aristide Marie, depois na íntegra por Richer,5 Nerval identifica-se com uma linhagem prestigiosa e faz sua família Labrunie descender dos cavaleiros de Oto: um dos seus ramos seria originário do Pé­rigord, exatamente como o príncipe da Aquitânia. Ele precisa tam· bém que Broun ou Brunn significa torre e estufa de cevada. Os brasões dos Labrunie, que possuiriam três castelos à beira do rio Dordogne, teriam três torres de prata, mas também estrelas e meias­-luas que evocam o Oriente, da mesma forma que a "estrela" e o "alaúde constelado" citados mais adiante no texto.

A polivalência do símbolo de Aquitânia - região das águas -, acrescentaremos uma nota de Nerval a George Sand (citada por Richer), onde se lê: Gaston Phoebus D'Aquitaine, cujo sentido escr térico seria o de u.m iniciado solar. Notaremos mais simplesmente, com Jacques Dhaenens,6 que a Aquitânia é a região dos trovadores e que, evocando assim o Príncipe Negro, o viúvo enceta sua meta· morfose, através do seu canto cortês, em Orfeu ... Contudo, ainda estamos no campo da ~onstatação pesarosa: "abolida" confirma o sentido de destruição, de privação e de falta que se tece desde o iní­cio do texto. Como observou bm.ile Nou1et,7 o sinta.gma " na torre ab(}-

5 Cf. Jean Richer, Explrience et Création (Experiência e Criação), op. cit., pp . 33-38. 6 Le destin d'Orphéc (0 destino de Orfcu). op. cit. 7 Cf. Emile Noulct, Etudes littéraires, l"hermétisme de la poésie française mo­clerne (Estudos literários, o hermetismo da poesia francesa moderna). México 1944 .

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lida" funciona como um "único grupo mental" e confere ao prín­cipe da Aquitânia um atributo complexo, em que as palavras se fundem e as sílabas se destacam numa litania: " na-torre-a-bo-li-da",* a 5er entt:mlida tamb~m como anagrama de Labrunie. Em.:untra-:~e

três vezes a palavra "abolida" em Nerval e E. Neulet observa que esta palavra rara impôs-se a Ma.llanné, que a emprega seis vezes nos seus poemas.

Príncipe desapossado, sujeito glorioso de um passado destruí· do, El Desdichado pertence a uma história, mas a uma história decaída. Seu passado sem futuro não é um passado histórico: é apenas uma memória, tanto mais presente quanto for sem futuro .

O verse seguinte reata com o trauma pessoal: ''a torre aboli· da", essa altura que doravánte falta, foi uma "estrela", hoje morta . O astro é a imagem da musa, também de um universo elevado, do cosmos, ainda mais alto do que a torre medieval, ou do dest:no doravante partido. Com Jacques Geninasca,8 reteremos o espaço alta­neiro, elevado, estelar dessa primeira quadra onde o poeta se man· tém com seu alaúde igualmente constelado, como se fosse a versão negativa do celeste e artista Apolo . Provavelmente a "estrela" é também o que chamamos de uma "star" - Jenny Colon, morta em 1842, catalisou várias crises em Nerval. Por identificar-se com essa ''estrela morta", dispersá-la no seu canto, como réplica sonora de Orfeu devorado pelas bacantes, é que se constitui o "alaúde constelado" . A arte poética afirma-se como a memória de uma har· mania póstuma, ·mas também por uma ressonância pitagórica, como a metáfora da harmon!a universal .

No limiar do invisível e do ·visível

Dessa absorção da "estrela morta" no "alaúde" resulta o ''sol negro da melancolia". Para além dos seus alcances alquímicos já citados, a metáfora do " sol negro" resume bem a força ofuscante do humor pesaroso: um afeto opressivo e lúcido impõe o fato ine· lutável da morte, que é a morte da amada e de si mesmo, identi­ficado com a desaparecida (o poeta é "vi~vo" da "estrela").

~ Cf. Jacques Geninasca, "EI Desdichado", in Archives nervaliennes (Arquivos uervalianos), n." 59, Paris, pp . 9-53 . • Em frat~cês: "à-la-tour-a·bo-Jie" . (N . da T .)

142 NllllVAL, EL DBs.&ICHADO

Entretanto, esse afeto invasor, que 1mga o universo celeste de um Apolo escondido, ou que se ignora como tal, tenta encontrar sua manifestação. O verbo "porta" indica essa eclosão, essa chegada aos signos das trevas, enquanto o termo erudito "melaucoÜa" vem tes­temunhar o esforço de domínio consciente e de significação precisa. Anunciado em sua carta a Alexandre Dumas, evocada em Aurélia ("Um ser c.:e uma grandeza desmedida, - homem ou mulher, não sei -, rodopiava penosamente acima do espaço [ . . . ] Sws cores eram vermelho-<llaranjadas e suas asas brilhavam com mil reflexos furta-cor. Ve~tido com uma túnica longa de pregas antigas, ele s~ assemelha ao Anjo da Melancolia, de Albrecht Dürer"),9 a Melan­colia pertence ao espaço celeste. Ela metamorfoseia as trevas c:m vennelho ou em sol, que certamente permanece negro, mas que não deixa de ser sol, fonte de claridade deslumbrante. A introspecção de Nerval parece indicar que o fato de nomear a melancolia o situa no limiar de uma experiência crucial: na crista entre aparição e desapa­rição, abolição e canto, não-sentido e signos. Podemos ler a referência de Nerval à metamorfose alquímica mais como uma metáfora que designa essa experiência limítrofe do psiquismo em luta (o alaúde )* com a assimbolia tenebrosa do que como uma descrição paracientifica da realidade física ou química .

Quem ~s?

A segunda estrofe conduz o leitor das alturas celestes e cons­teladas para a " noite do túmulo". Esse universo subterrâneo e no· turno retoma o humor sombrio do tenebroso, mas gradativamente metamorfoseia-se da quadra num universo de consolação, de aiianç3 luminosa e vital . O '' eu" altivo e principesco do espaço cósm!co inerte (a "estrela", o "sol" da primeira estrofe) encontra, na se· gunda estrofe, o seu parceiro: um "tu" aparece pela primeira vez, iniciando a consolação, a luz e o aparecimento de uma vida vegetal . A estrela do teto celeste doravante é um interlocutor: um tu que jaz por dentro .

A ambigüidade constante, as inversões permanentes do univer­so nervaliano merecem ser salientadas: elas completam a instabili-

9 In O. C., La Pléiade, Gallimard, 1952, p. 366. "' Em francês: "luth". (N. da T .)

SOL NEO'aO 143

dade do seu simbol!smo e revelam a ambigüidade do objeto, mas também da posição melancólica.

Quem é esse "tudo"?, perguntam-se os especialistas e as respos·· tas afluem: Aurélia, a santa, Artemísia-Artêmis, Jenny Colon, a mãe morta. . . O irresolvível encadeamento dessas figuras, reais e imaginárias, volta a fugir para a posição da "Coisa" arcaica - p(é­-objeto inapreensível, de um luto endêmico para todo ser falante c atração suicida para o depressivo.

Entretanto- e esta não é a menor das ambigüidades - , esse "tu'', que o poeta só encontra na "noite do túmulo", é consolador somente e precisamente neste lugar . Por reencontrá-la em seu túmu­lo, por identificar-se com o seu corpo morto, mas talvez também por reencontrá-la realmente, por intermédio do suicidio, "eu" en­contra uma consolação. O paradoxo desse movimento (somente o suicídio permite que eu me reúna ao ser perdido, somente o suicídio me pacifica) pode ser apreendido pelo interior da placidez, da sere­nidade e dessa forma de feli c!dade que envolve ce.rtos suicidas, uma vez tomada a decisão fatal. Uma completude narcísica parece cons­truir-se imaginariamente, supriroinçlo a angústia .c11tastr6fica de per­da e satisfazendo assim o sujeito consternado: ele não tem ma:s razões para se desolar, é consolado pela reunião com o ser querido na morte . Esta torna-se então a experiência fantasmática de um retomo ao paraíso perdido - notar-se-á o passado em " tu, que me consolaste".

Doravante, o túmulo se ilumina: o poeta ali reencontra a baía luminosa de Nápoles, que se chama PausOipo (em grego, pausilypon s!gnifica "cessação da tristeza"), e um espaço aquático, ondulante, maternal ("o mar• d'Itália"). À polivalência desse universo líquido. luminoso, italiano - em oposição ao universo apolíneo ou medieval , interestelar e mineral da primeira· estrofe, acrescentaremos inicial­mente o fato de . que Nerval tentou se suicidar no Pausílipo, por amor a Jenny Colon.10 Além disto, a relação estabelecida por Hoff­man entre "Aurélic e o quadro de Santa Rosalie" encontra-se con· firmada por Nerval, que contemplou durante sua estada em Nápo-

• Jogo com as palavras mãe (m~re) e mar (me r) . (N . da T.) 10 Cf. "Lettres à )enny Collon" (Cartas a Jenny Collon), in O .C .• t. l, op cit .• p . 726 sq .

142 NllllVAL, EL DBs.&ICHADO

Entretanto, esse afeto invasor, que 1mga o universo celeste de um Apolo escondido, ou que se ignora como tal, tenta encontrar sua manifestação. O verbo "porta" indica essa eclosão, essa chegada aos signos das trevas, enquanto o termo erudito "melaucoÜa" vem tes­temunhar o esforço de domínio consciente e de significação precisa. Anunciado em sua carta a Alexandre Dumas, evocada em Aurélia ("Um ser c.:e uma grandeza desmedida, - homem ou mulher, não sei -, rodopiava penosamente acima do espaço [ . . . ] Sws cores eram vermelho-<llaranjadas e suas asas brilhavam com mil reflexos furta-cor. Ve~tido com uma túnica longa de pregas antigas, ele s~ assemelha ao Anjo da Melancolia, de Albrecht Dürer"),9 a Melan­colia pertence ao espaço celeste. Ela metamorfoseia as trevas c:m vennelho ou em sol, que certamente permanece negro, mas que não deixa de ser sol, fonte de claridade deslumbrante. A introspecção de Nerval parece indicar que o fato de nomear a melancolia o situa no limiar de uma experiência crucial: na crista entre aparição e desapa­rição, abolição e canto, não-sentido e signos. Podemos ler a referência de Nerval à metamorfose alquímica mais como uma metáfora que designa essa experiência limítrofe do psiquismo em luta (o alaúde )* com a assimbolia tenebrosa do que como uma descrição paracientifica da realidade física ou química .

Quem ~s?

A segunda estrofe conduz o leitor das alturas celestes e cons­teladas para a " noite do túmulo". Esse universo subterrâneo e no· turno retoma o humor sombrio do tenebroso, mas gradativamente metamorfoseia-se da quadra num universo de consolação, de aiianç3 luminosa e vital . O '' eu" altivo e principesco do espaço cósm!co inerte (a "estrela", o "sol" da primeira estrofe) encontra, na se· gunda estrofe, o seu parceiro: um "tu" aparece pela primeira vez, iniciando a consolação, a luz e o aparecimento de uma vida vegetal . A estrela do teto celeste doravante é um interlocutor: um tu que jaz por dentro .

A ambigüidade constante, as inversões permanentes do univer­so nervaliano merecem ser salientadas: elas completam a instabili-

9 In O. C., La Pléiade, Gallimard, 1952, p. 366. "' Em francês: "luth". (N. da T .)

SOL NEO'aO 143

dade do seu simbol!smo e revelam a ambigüidade do objeto, mas também da posição melancólica.

Quem é esse "tudo"?, perguntam-se os especialistas e as respos·· tas afluem: Aurélia, a santa, Artemísia-Artêmis, Jenny Colon, a mãe morta. . . O irresolvível encadeamento dessas figuras, reais e imaginárias, volta a fugir para a posição da "Coisa" arcaica - p(é­-objeto inapreensível, de um luto endêmico para todo ser falante c atração suicida para o depressivo.

Entretanto- e esta não é a menor das ambigüidades - , esse "tu'', que o poeta só encontra na "noite do túmulo", é consolador somente e precisamente neste lugar . Por reencontrá-la em seu túmu­lo, por identificar-se com o seu corpo morto, mas talvez também por reencontrá-la realmente, por intermédio do suicidio, "eu" en­contra uma consolação. O paradoxo desse movimento (somente o suicídio permite que eu me reúna ao ser perdido, somente o suicídio me pacifica) pode ser apreendido pelo interior da placidez, da sere­nidade e dessa forma de feli c!dade que envolve ce.rtos suicidas, uma vez tomada a decisão fatal. Uma completude narcísica parece cons­truir-se imaginariamente, supriroinçlo a angústia .c11tastr6fica de per­da e satisfazendo assim o sujeito consternado: ele não tem ma:s razões para se desolar, é consolado pela reunião com o ser querido na morte . Esta torna-se então a experiência fantasmática de um retomo ao paraíso perdido - notar-se-á o passado em " tu, que me consolaste".

Doravante, o túmulo se ilumina: o poeta ali reencontra a baía luminosa de Nápoles, que se chama PausOipo (em grego, pausilypon s!gnifica "cessação da tristeza"), e um espaço aquático, ondulante, maternal ("o mar• d'Itália"). À polivalência desse universo líquido. luminoso, italiano - em oposição ao universo apolíneo ou medieval , interestelar e mineral da primeira· estrofe, acrescentaremos inicial­mente o fato de . que Nerval tentou se suicidar no Pausílipo, por amor a Jenny Colon.10 Além disto, a relação estabelecida por Hoff­man entre "Aurélic e o quadro de Santa Rosalie" encontra-se con· firmada por Nerval, que contemplou durante sua estada em Nápo-

• Jogo com as palavras mãe (m~re) e mar (me r) . (N . da T.) 10 Cf. "Lettres à )enny Collon" (Cartas a Jenny Collon), in O .C .• t. l, op cit .• p . 726 sq .

144 NEkVAL, EL DESDrCHAOO

les (outubro de 1834) a "imagem de Santa Rosália'' ornando a morada de uma amante anônima.11

Uma flor, uma santa: a mãe?

A vlrgcm Rosália reúne o simbolismo de uma pureza feminina cristã às já mencionadas conotações esotéricas do texto. Esse con· j .. mto de pensamentos parece confirmado pela nota "Jardins do Va­ticano", que Nerval insere no manuscrito Eluard no verso 8: "onde o pâmpano à rosa se alia (Rosália).""'

A conotação floral do nome da santa torna-se explícita no verso 7: "A flor que tanto comprazia ao meu coração triste." A estrela morta da estrofe precedente (verso 3) ressuscita em flor no me:o da identificação entre o poeta e a morta. Essa identificação é evocada na metáfora da "parreira", rede trepadeira, interpene­tração de galhos e de folhas que "alia" o pãmpano e a rosa e que, além disto, evoca Baco ou Dionísio, deus de uma embriaguez amo­rosa vegetal oposto a Apolo, negro astral da primeira estrofe. No­temos que para certos comentaristas modernos, Dionísio é menos uma divindade fál!ca do que aquele que, no seu corpo e na sua embriaguez dançante, traduz uma cumplicidade, até mesmo uma identificação íntima, com a feminilidadeY

O ''pâmpano" báquico e a "rosa" mística, Dionís!o e Vênus, Baco e Ariana. . . podemos imaginar uma série de casais místicos implicitamente evocados nessa reunião tumular e ressurrecional. Nos lembremos de que Nerval designou a Virgem Maria com:> "Rosa branca" e, entre outras, As Cida/isas: "Onde estão as apaixonaC:as? I Estão no túmulo:/ Estão mais felizes,/ numa es:ada mais bela!/ r ... ) ó branca noiva!/ ó jovem virgem em /lor/"13 .

A "flor" pode ser lida como a flor em que se metamorfoseou Narciso melancólico, enfim consolado por seu afogamento na fonte­·imagem. Ela é também "miosótis": 14 a estranha consonância desta

H Cf. Jean Guillaume, Aurélia, prolégomene à une edition critique (Auré­lia, prolegômeno a uma edição crítica), Presses Universitaires de Namur, 1972. •• Em francês, "ou te pampre à la rose s'allie" (Rosalie). (N. da T.) ll Cf. M. Détienne, Dionysos à ciel ouvert (Dionysos a céu aberto), Ha­l'hette, Paris, 1986. u In O.C., t. I, op. cit., p. 57. ~~ Aurélia, in O.C .• t. I, op. cít., p. 413.

SOL NEOII.O 145

palavra evoca o artifício do poema ("uma resposta fez-se ouvir numa doce linguagem") ao mesmo tempo que invoca a memória daqueles que amarão o escritor ("Não me esqueçam!"). Indiquemos enfim uma possibilidade semântica .desse universo floral apenso à evoca­ção do outro: a mãe de Nerval, morta quando ele tinha dois anos, chamava-se Marie Antoinette Marguerite Laurent, chamada usual­mente de Laurence: uma santa e uma flor (margarida, Iourenço), enquanto o verdadeiro nome de Jenny Colon era... Margarida. Havia o suficiente para nutrir uma "rosa mística".

Ancoliti e hesitação: quem sou?

Fusão consoladora, mas também fusão letal; completude lumi­nosa obtida pela aliança com a rosa, mas também noite do túmulo; tentação do su!cídio, mas também ressurreição floral. . . Quando Nerval relê seu texto, essa conjunção de contrários aparece-lhe como uma "loucura"?

No verso 7, ele nota (remetendo à "flor" no manuscrito Eluard: "ancolia" - símbolo da tristeza para uns, emblema da loucura para outros. Melancolia/ ancolia. Esta rima convida, uma vez mais, a ler a similitude e a oposição entre as duas primeiras estrofes: a tr!steza mineral ( 1.• estrofe) superpõe-se a uma fusão mortífera, mas também loucamente atraente como a promessa de uma outra vida, para além do túmulo (2.a estrofe).

O primeiro terceto explicita a incerteza do "eu". Inicialmente triunfal, em seguida aliado ào "tu", agora ele se interroga - "Sou?" Ponto de inversão do soneto, momento de dúvida e de lucidez . O poeta busca, entre do:s, sua identidade específica, num registro que podemos supor ser um terceiro, nem apolíneo nem dionisíaco, nem consternado nem embriagado. Por um tempo, a forma interrogativa nos retira do universo quase alucinatório das duas quadras, de suas conotações versáteis e irresolvíveis. e a hora da escolha: trata-se do Amor, isto é, de Eros, amante de Psique (revocação da segunda quadra) ou então de Feb<>-Apolo (revocação da primeira quadra), que, segundo as Metamorfoses de Ovídio, persegue a ninfa Dafne? Esta escapa-lhe para transformar-se em louro e nos lembramos da transfonnação floral evocada na segunda quadra. Trata-se de um amante satisfeito ou frustrado?

Quanto a Lusignan D'Agenais, seria ancestral de Labrunie, se­gundo a fiHação imaginária de Nerval, prostrado pela fuga de sua mulher-serpente Melusina . Biron faz-nos remontar a um ancestral

144 NEkVAL, EL DESDrCHAOO

les (outubro de 1834) a "imagem de Santa Rosália'' ornando a morada de uma amante anônima.11

Uma flor, uma santa: a mãe?

A vlrgcm Rosália reúne o simbolismo de uma pureza feminina cristã às já mencionadas conotações esotéricas do texto. Esse con· j .. mto de pensamentos parece confirmado pela nota "Jardins do Va­ticano", que Nerval insere no manuscrito Eluard no verso 8: "onde o pâmpano à rosa se alia (Rosália).""'

A conotação floral do nome da santa torna-se explícita no verso 7: "A flor que tanto comprazia ao meu coração triste." A estrela morta da estrofe precedente (verso 3) ressuscita em flor no me:o da identificação entre o poeta e a morta. Essa identificação é evocada na metáfora da "parreira", rede trepadeira, interpene­tração de galhos e de folhas que "alia" o pãmpano e a rosa e que, além disto, evoca Baco ou Dionísio, deus de uma embriaguez amo­rosa vegetal oposto a Apolo, negro astral da primeira estrofe. No­temos que para certos comentaristas modernos, Dionísio é menos uma divindade fál!ca do que aquele que, no seu corpo e na sua embriaguez dançante, traduz uma cumplicidade, até mesmo uma identificação íntima, com a feminilidadeY

O ''pâmpano" báquico e a "rosa" mística, Dionís!o e Vênus, Baco e Ariana. . . podemos imaginar uma série de casais místicos implicitamente evocados nessa reunião tumular e ressurrecional. Nos lembremos de que Nerval designou a Virgem Maria com:> "Rosa branca" e, entre outras, As Cida/isas: "Onde estão as apaixonaC:as? I Estão no túmulo:/ Estão mais felizes,/ numa es:ada mais bela!/ r ... ) ó branca noiva!/ ó jovem virgem em /lor/"13 .

A "flor" pode ser lida como a flor em que se metamorfoseou Narciso melancólico, enfim consolado por seu afogamento na fonte­·imagem. Ela é também "miosótis": 14 a estranha consonância desta

H Cf. Jean Guillaume, Aurélia, prolégomene à une edition critique (Auré­lia, prolegômeno a uma edição crítica), Presses Universitaires de Namur, 1972. •• Em francês, "ou te pampre à la rose s'allie" (Rosalie). (N. da T.) ll Cf. M. Détienne, Dionysos à ciel ouvert (Dionysos a céu aberto), Ha­l'hette, Paris, 1986. u In O.C., t. I, op. cit., p. 57. ~~ Aurélia, in O.C .• t. I, op. cít., p. 413.

SOL NEOII.O 145

palavra evoca o artifício do poema ("uma resposta fez-se ouvir numa doce linguagem") ao mesmo tempo que invoca a memória daqueles que amarão o escritor ("Não me esqueçam!"). Indiquemos enfim uma possibilidade semântica .desse universo floral apenso à evoca­ção do outro: a mãe de Nerval, morta quando ele tinha dois anos, chamava-se Marie Antoinette Marguerite Laurent, chamada usual­mente de Laurence: uma santa e uma flor (margarida, Iourenço), enquanto o verdadeiro nome de Jenny Colon era... Margarida. Havia o suficiente para nutrir uma "rosa mística".

Ancoliti e hesitação: quem sou?

Fusão consoladora, mas também fusão letal; completude lumi­nosa obtida pela aliança com a rosa, mas também noite do túmulo; tentação do su!cídio, mas também ressurreição floral. . . Quando Nerval relê seu texto, essa conjunção de contrários aparece-lhe como uma "loucura"?

No verso 7, ele nota (remetendo à "flor" no manuscrito Eluard: "ancolia" - símbolo da tristeza para uns, emblema da loucura para outros. Melancolia/ ancolia. Esta rima convida, uma vez mais, a ler a similitude e a oposição entre as duas primeiras estrofes: a tr!steza mineral ( 1.• estrofe) superpõe-se a uma fusão mortífera, mas também loucamente atraente como a promessa de uma outra vida, para além do túmulo (2.a estrofe).

O primeiro terceto explicita a incerteza do "eu". Inicialmente triunfal, em seguida aliado ào "tu", agora ele se interroga - "Sou?" Ponto de inversão do soneto, momento de dúvida e de lucidez . O poeta busca, entre do:s, sua identidade específica, num registro que podemos supor ser um terceiro, nem apolíneo nem dionisíaco, nem consternado nem embriagado. Por um tempo, a forma interrogativa nos retira do universo quase alucinatório das duas quadras, de suas conotações versáteis e irresolvíveis. e a hora da escolha: trata-se do Amor, isto é, de Eros, amante de Psique (revocação da segunda quadra) ou então de Feb<>-Apolo (revocação da primeira quadra), que, segundo as Metamorfoses de Ovídio, persegue a ninfa Dafne? Esta escapa-lhe para transformar-se em louro e nos lembramos da transfonnação floral evocada na segunda quadra. Trata-se de um amante satisfeito ou frustrado?

Quanto a Lusignan D'Agenais, seria ancestral de Labrunie, se­gundo a fiHação imaginária de Nerval, prostrado pela fuga de sua mulher-serpente Melusina . Biron faz-nos remontar a um ancestral

146 NEilVAL, EL I>ESOICHADO

dos duques de Biron, o cruzado Elie de Gontaut, da Tercei.ra Cru­zada; ou talvez a Lorde Byron - Nerval confunde a ortografia Biron-Byron!5

Qual a relação exata no interior das duas díades (Amor e Febo, Lusignan e Biron), mas também entre si? Trata-se de uma enumeração de amantes mais ou menos infelizes na procura de uma amante sempre incompreensível; ou então de dois tipos de amantes, u m satisfeito, o outro desesperado? As exegeses acumu­lam-se e divergem, uns optando pela enumeração, outros pelo quiasma.

Entretanto, a polivalência essenc!al da semântica nervaliana (assim, entre outras: "Se ia morena ou loura/ E preciso escolher? I O Deus do Mundo,/ é o Praz!?r")16 conduz a pensar que aqui tam­bém as relações lógicas são. incertas. Talvez à imagem dessa bor­boleta, cuja incerteza fascinante o escritor traça assim: "A borbo­leta/ flor sem haste,/ Que rodopia,/ Que se colhe numa rede; / Na natureza infinita,/ Harmonia/ Entre a planta e o pássaro! ... •m

Decididamente, os nomes próprios acumulados nesse terceto11

talvez funcionem muito mais como indícios de identidades diversas. Se essas "pessoas" nomeadas pertencem ao mesmo universo do amor e da perda, elas sugerem - através da identificação do poeta com elas - uma dispersão do "eu", tão amoroso quanto poético, numa "constelação" de identidades incompreensíveis. Não é certo q ue, para Nerval, esses personagens tiveram a densidade semântica de sua origem mito!ógica ou medieval. A acumulação litân!ca , aluci­natória de seus nomes próprios faz supor que eles podiam ter ape­nas valor de indícios, fragmentados e impossíveis de serem unifi­cados, da Coisa perdida .

Uma violência subjacente

Mal essa interrogação sobre a própria identidade é esboçada. o verso 10 lembra a dependência daquele que fala em relação à sua rainha: o "eu" interrogador não é soberano, ele tem uma soberana ("Minha fronte está rubra ainda do beijo da que reina"). Evocação

15 Cf. }acques Dhaenens, op. cit., p. 49. tf Chanson gothique (Canção gótica), in O . C ., t. I, op . cit ., p. 59. 17 Les papillons (As borboletas), in O.C ., t. I , op. cit., p. 53 . Jt Conferir também, mais adiante, p . 1.51 .

SOl. NEORO 147

alquímica do rei e da rainha e de sua união, rubor, signo de infâmia e do assassinato ("As vezes tenho de Caím o implacável rubor!"), eis-nos de novo mergulhados num universo ambíguo: a fronte traz a lembrança do beijo da amada e signHica assim a alegria amorosa, ao mesmo tempo que o vermelho lembra o sangue de um assassi­nato e, para além de Abel e Caim, significa a violência destruidora do amor arcaico, o ódio subjacente à paixão dos amantes, a vingança e a perseguição que seus idílios motivam. O Anteros poderoso do melancólico fervilha sob um Eros irrequieto: "Perguntas por que te­nho tanta raiva no coração/ [ ... ] Sim, .sou daqueles que o Vinga­dor inspira,/ Ele me marcou a fronte com seu lábio irritado,/ Sob a palidez de Abel, ai de mim! ensangüentada,/ às vezes de Caím, tenho o implacável rubor!" 14

A palidez do desesperado esconde a raiva vingadora e incon­fessável de si mesmo, de sua violênc!a assassina para com sua na­morada? Se essa agressividade é anunciada no verso 10, ela não é asswnida por aquele que fala. h projetada: não sou eu, mas sim o beijo da rainha que fere, corta, ensangüenta. lmediatamente de­pois, essa irrupção da violência é suspensa, e o sonhador aparece numa enseada protegida, refúgio uterino ou berço balouçante. A rainha vermelha metamodoseia-se em sereia que nada ou "verdeja" (versão do Mousquetaire). Nota-se o valor floral, vital, ressurrecional da segunda quadra, assim como as freqüentes oposições, em Nerval, do vennelho e do verde. O vermelho afirma-se como metáfora da revolta, do fogo insurrecional . Ele é de Caim, diabólico, infernal, enquanto o verde é santo e as vidrarias góticas o atribuem a São João .20 E preciso insistir ainda uma vez na função real da amante, tanto mais dominadora quanto não dominada, ocupando todo o lugar da autoridade e da paternidade, e por isto mesmo gozando de uma dominação incontestável sobre o tenebroso: ela é a rainha de Sabá, fsis, Maria, rainha da Igreja ... ? Diante dela, somente o ato da escrita é implicitamente senhor e vingador: lembremos de q ue o soneto é escrito em tinta vermelha .

Só encontramos, portanto, uma simples e fraca alusão a desejo sexual e à sua ambivalência . O )aço erótico, é verdade, conduz ao seu paroxismo os conflitos do individuo, que sente como destrui~ dores tanto a sexualidade quanto o discurso que pode designá-la .

19 Antéros, in O .C., t. I. op. cit ., p . 34 . l(l Cf. Jacques Dbaen~ns. op. cir. , p . 59.

146 NEilVAL, EL I>ESOICHADO

dos duques de Biron, o cruzado Elie de Gontaut, da Tercei.ra Cru­zada; ou talvez a Lorde Byron - Nerval confunde a ortografia Biron-Byron!5

Qual a relação exata no interior das duas díades (Amor e Febo, Lusignan e Biron), mas também entre si? Trata-se de uma enumeração de amantes mais ou menos infelizes na procura de uma amante sempre incompreensível; ou então de dois tipos de amantes, u m satisfeito, o outro desesperado? As exegeses acumu­lam-se e divergem, uns optando pela enumeração, outros pelo quiasma.

Entretanto, a polivalência essenc!al da semântica nervaliana (assim, entre outras: "Se ia morena ou loura/ E preciso escolher? I O Deus do Mundo,/ é o Praz!?r")16 conduz a pensar que aqui tam­bém as relações lógicas são. incertas. Talvez à imagem dessa bor­boleta, cuja incerteza fascinante o escritor traça assim: "A borbo­leta/ flor sem haste,/ Que rodopia,/ Que se colhe numa rede; / Na natureza infinita,/ Harmonia/ Entre a planta e o pássaro! ... •m

Decididamente, os nomes próprios acumulados nesse terceto11

talvez funcionem muito mais como indícios de identidades diversas. Se essas "pessoas" nomeadas pertencem ao mesmo universo do amor e da perda, elas sugerem - através da identificação do poeta com elas - uma dispersão do "eu", tão amoroso quanto poético, numa "constelação" de identidades incompreensíveis. Não é certo q ue, para Nerval, esses personagens tiveram a densidade semântica de sua origem mito!ógica ou medieval. A acumulação litân!ca , aluci­natória de seus nomes próprios faz supor que eles podiam ter ape­nas valor de indícios, fragmentados e impossíveis de serem unifi­cados, da Coisa perdida .

Uma violência subjacente

Mal essa interrogação sobre a própria identidade é esboçada. o verso 10 lembra a dependência daquele que fala em relação à sua rainha: o "eu" interrogador não é soberano, ele tem uma soberana ("Minha fronte está rubra ainda do beijo da que reina"). Evocação

15 Cf. }acques Dhaenens, op. cit., p. 49. tf Chanson gothique (Canção gótica), in O . C ., t. I, op . cit ., p. 59. 17 Les papillons (As borboletas), in O.C ., t. I , op. cit., p. 53 . Jt Conferir também, mais adiante, p . 1.51 .

SOl. NEORO 147

alquímica do rei e da rainha e de sua união, rubor, signo de infâmia e do assassinato ("As vezes tenho de Caím o implacável rubor!"), eis-nos de novo mergulhados num universo ambíguo: a fronte traz a lembrança do beijo da amada e signHica assim a alegria amorosa, ao mesmo tempo que o vermelho lembra o sangue de um assassi­nato e, para além de Abel e Caim, significa a violência destruidora do amor arcaico, o ódio subjacente à paixão dos amantes, a vingança e a perseguição que seus idílios motivam. O Anteros poderoso do melancólico fervilha sob um Eros irrequieto: "Perguntas por que te­nho tanta raiva no coração/ [ ... ] Sim, .sou daqueles que o Vinga­dor inspira,/ Ele me marcou a fronte com seu lábio irritado,/ Sob a palidez de Abel, ai de mim! ensangüentada,/ às vezes de Caím, tenho o implacável rubor!" 14

A palidez do desesperado esconde a raiva vingadora e incon­fessável de si mesmo, de sua violênc!a assassina para com sua na­morada? Se essa agressividade é anunciada no verso 10, ela não é asswnida por aquele que fala. h projetada: não sou eu, mas sim o beijo da rainha que fere, corta, ensangüenta. lmediatamente de­pois, essa irrupção da violência é suspensa, e o sonhador aparece numa enseada protegida, refúgio uterino ou berço balouçante. A rainha vermelha metamodoseia-se em sereia que nada ou "verdeja" (versão do Mousquetaire). Nota-se o valor floral, vital, ressurrecional da segunda quadra, assim como as freqüentes oposições, em Nerval, do vennelho e do verde. O vermelho afirma-se como metáfora da revolta, do fogo insurrecional . Ele é de Caim, diabólico, infernal, enquanto o verde é santo e as vidrarias góticas o atribuem a São João .20 E preciso insistir ainda uma vez na função real da amante, tanto mais dominadora quanto não dominada, ocupando todo o lugar da autoridade e da paternidade, e por isto mesmo gozando de uma dominação incontestável sobre o tenebroso: ela é a rainha de Sabá, fsis, Maria, rainha da Igreja ... ? Diante dela, somente o ato da escrita é implicitamente senhor e vingador: lembremos de q ue o soneto é escrito em tinta vermelha .

Só encontramos, portanto, uma simples e fraca alusão a desejo sexual e à sua ambivalência . O )aço erótico, é verdade, conduz ao seu paroxismo os conflitos do individuo, que sente como destrui~ dores tanto a sexualidade quanto o discurso que pode designá-la .

19 Antéros, in O .C., t. I. op. cit ., p . 34 . l(l Cf. Jacques Dbaen~ns. op. cir. , p . 59.

148 NER.VAL, EL DESDICHAOO

Compreende-se que o recolhimento melancólico seja uma fuga face aos perigos do erotismo.

Tal evitação da sexualidade e de sua nomeação confirma a hipótese segundo a qual a «estrela" do El Desdichado está mais pró­xima da Coisa arcaica do que de um objeto de desejo. Contudo, e embora tal evitação pareça necessária para o equilíbrio psíquico de algumas pessoas, podemos nos perguntar se, por barrar-se assim o caminho em direção ao outro (certamente ameaçador, mas que tam­bém assegura as condições de instalação dos limites do ego), o in­divíduo não se condena ao túmulo da Coisa. Somente a sublima­ção. sem elaboração dos conteúdos eróticos e tanáticos, parece ser­v!r de fraco recurso diante das tendências regressivas que dissol­vem os elos e conduzem à morte.

A via freudiana, pelo contrário, visa a organizar (em todas as circunstâncias e quaisquer que sejam as dificuldades nas persona· lidades ditas narcísicas) o advento e a formulação do desejo sexual . Esta pretensão, em geral depreciada, como sendo reducionista, pelos detratores da psicanálise, impõe-se - sob a ótica dessas conside· rações sobre o imaginário melancólico - como uma opção ética, pois o desejo sexual rwmeado assegura o ordenamento do sujeito para o outro e, em conseqüência, para o sentido - para o sentido da vida.

Eu conto

O poeta, contudo, volta de sua descida aos infernos. Por duas vezes ele atravessa o Aqueron (Aqueronte), pennanecendo "vivo" (versão Le Mousquetaire) e ''vencedor" (versão Les Filies du feu), e as duas travessias evocam as duas grandes crises anteriores de lou­cura, em Nerval.

Por ter absorvido uma Eurídice não-nomeada no seu canto e nos acordes de sua lira, ele retoma por sua conta o pronome "eu". Menós rígido do que no primeiro verso e além da incerteza do verso 9, esse "eu"~ no fim do soneto, é um "eu" que conta uma história. O passado int,ocável e violento, negro e vennelho, mas também o sonho verdejante de uma ressurreição letal modularam­se num artifício que comporta a distância temporal ("tenho ... atra­vessado") • e pertence a uma outra realidade, a da lira. O além

• Em francês, "j'ai .. . traversé". (N . da T .)

SOL NEGRO 149

do inferno melancólico seria assim um relato modulado e cantado, uma integração da prosódia na narração, aqui somente iniciada .

Nerval não precisa a causa, o móvel que o conduziu a essa miraculosa modificação ("Por duas vezes, venc-edor, atravessei o Aqueron"), mas revela a economia de sua metamorfose, que consiste em transpor para a sua melod!a e seu canto "os suspiros da santa e os gritos feéricos". Primeiramente, o personagem da amada é des­dobrado: ideal e sexual, branca e vermelha, Rosalie e Melusine, a virgem e a rainha, a espiritual e a carnal, Adrienne e J enny etc. Além disto, e ainda mais, essas mulheres são, doravantc, sons leva­dos por personagens numa hist6ria que conta um passado. Nem seres não-nomeáveis que jazem no fundo de um simbolismo poliva­lente, nem objetos míticos de uma paixão destruidora, elas tentam se transformar em protagonistas imaginários de um relato catártico que se esforça por nomear, diferenciando-os, as amb!güidades e os prazeres_ Os «suspiros" e os "gritos" conotam o gozo, e distingui­mos o amor idealizante (a "santa") da paixão erótica (a "fada").

Para um salto no universo 6rfico do artifíc!o (da sublimação), o tenebroso só retém uma sonoridade lúgubre ou passional da ex­periência e do objeto traumático do luto. Toca assim, pelos pró­prios componentes da linguagem, na Coisa perdida. Seu discurso identifica-se com ela, absorve-a, modifica-a, transfonna-a: ele tira Eurídice do inferno melancólico e volta a lhe dar uma nova exis­tência no seu canto-texto .

O re-nascimento dos dois, do "viúvo .. e da "estrela"-"ílor", não é nada mais do que o poema fortificado pelo início de uma posição narrativa. Aquele imaginário possui a economia de uma ressurreição.

Entretanto, o relato nervaliano é simplesmente sugerido em E/ Desdichado. Nos outros poemas permanece disperso e sempre lacunar. Nos textos em prosa, para manter seu difícil movimento em direção a um objetivo e a uma mensagem limitada. ele recorre ao subterfúgio da viagem cu da real!dade biográfica de um perso­nagem literário, cujas aventuras ele retoma . Aurélia é o exemplo mesmo dessa dispersão narrativa, tecida de devaneios, desdobramen­tos, refleAões. de faltas de acabamento ...

Não poderíamos falar de "derrota" diante desse caleidoscópio narrativo deslumbrante, qúe ptefigura as experiências modernas de decomposição romanesca . Entretanto, o encadeamento narrativo, que, para além da certeza da sintaxe, constrói o espaço e o tempo e revela o domínio de um julgamento existencial sobre os impre­vistos e os conflitos, está longe de ser o lugar favorito de Nerval.

148 NER.VAL, EL DESDICHAOO

Compreende-se que o recolhimento melancólico seja uma fuga face aos perigos do erotismo.

Tal evitação da sexualidade e de sua nomeação confirma a hipótese segundo a qual a «estrela" do El Desdichado está mais pró­xima da Coisa arcaica do que de um objeto de desejo. Contudo, e embora tal evitação pareça necessária para o equilíbrio psíquico de algumas pessoas, podemos nos perguntar se, por barrar-se assim o caminho em direção ao outro (certamente ameaçador, mas que tam­bém assegura as condições de instalação dos limites do ego), o in­divíduo não se condena ao túmulo da Coisa. Somente a sublima­ção. sem elaboração dos conteúdos eróticos e tanáticos, parece ser­v!r de fraco recurso diante das tendências regressivas que dissol­vem os elos e conduzem à morte.

A via freudiana, pelo contrário, visa a organizar (em todas as circunstâncias e quaisquer que sejam as dificuldades nas persona· lidades ditas narcísicas) o advento e a formulação do desejo sexual . Esta pretensão, em geral depreciada, como sendo reducionista, pelos detratores da psicanálise, impõe-se - sob a ótica dessas conside· rações sobre o imaginário melancólico - como uma opção ética, pois o desejo sexual rwmeado assegura o ordenamento do sujeito para o outro e, em conseqüência, para o sentido - para o sentido da vida.

Eu conto

O poeta, contudo, volta de sua descida aos infernos. Por duas vezes ele atravessa o Aqueron (Aqueronte), pennanecendo "vivo" (versão Le Mousquetaire) e ''vencedor" (versão Les Filies du feu), e as duas travessias evocam as duas grandes crises anteriores de lou­cura, em Nerval.

Por ter absorvido uma Eurídice não-nomeada no seu canto e nos acordes de sua lira, ele retoma por sua conta o pronome "eu". Menós rígido do que no primeiro verso e além da incerteza do verso 9, esse "eu"~ no fim do soneto, é um "eu" que conta uma história. O passado int,ocável e violento, negro e vennelho, mas também o sonho verdejante de uma ressurreição letal modularam­se num artifício que comporta a distância temporal ("tenho ... atra­vessado") • e pertence a uma outra realidade, a da lira. O além

• Em francês, "j'ai .. . traversé". (N . da T .)

SOL NEGRO 149

do inferno melancólico seria assim um relato modulado e cantado, uma integração da prosódia na narração, aqui somente iniciada .

Nerval não precisa a causa, o móvel que o conduziu a essa miraculosa modificação ("Por duas vezes, venc-edor, atravessei o Aqueron"), mas revela a economia de sua metamorfose, que consiste em transpor para a sua melod!a e seu canto "os suspiros da santa e os gritos feéricos". Primeiramente, o personagem da amada é des­dobrado: ideal e sexual, branca e vermelha, Rosalie e Melusine, a virgem e a rainha, a espiritual e a carnal, Adrienne e J enny etc. Além disto, e ainda mais, essas mulheres são, doravantc, sons leva­dos por personagens numa hist6ria que conta um passado. Nem seres não-nomeáveis que jazem no fundo de um simbolismo poliva­lente, nem objetos míticos de uma paixão destruidora, elas tentam se transformar em protagonistas imaginários de um relato catártico que se esforça por nomear, diferenciando-os, as amb!güidades e os prazeres_ Os «suspiros" e os "gritos" conotam o gozo, e distingui­mos o amor idealizante (a "santa") da paixão erótica (a "fada").

Para um salto no universo 6rfico do artifíc!o (da sublimação), o tenebroso só retém uma sonoridade lúgubre ou passional da ex­periência e do objeto traumático do luto. Toca assim, pelos pró­prios componentes da linguagem, na Coisa perdida. Seu discurso identifica-se com ela, absorve-a, modifica-a, transfonna-a: ele tira Eurídice do inferno melancólico e volta a lhe dar uma nova exis­tência no seu canto-texto .

O re-nascimento dos dois, do "viúvo .. e da "estrela"-"ílor", não é nada mais do que o poema fortificado pelo início de uma posição narrativa. Aquele imaginário possui a economia de uma ressurreição.

Entretanto, o relato nervaliano é simplesmente sugerido em E/ Desdichado. Nos outros poemas permanece disperso e sempre lacunar. Nos textos em prosa, para manter seu difícil movimento em direção a um objetivo e a uma mensagem limitada. ele recorre ao subterfúgio da viagem cu da real!dade biográfica de um perso­nagem literário, cujas aventuras ele retoma . Aurélia é o exemplo mesmo dessa dispersão narrativa, tecida de devaneios, desdobramen­tos, refleAões. de faltas de acabamento ...

Não poderíamos falar de "derrota" diante desse caleidoscópio narrativo deslumbrante, qúe ptefigura as experiências modernas de decomposição romanesca . Entretanto, o encadeamento narrativo, que, para além da certeza da sintaxe, constrói o espaço e o tempo e revela o domínio de um julgamento existencial sobre os impre­vistos e os conflitos, está longe de ser o lugar favorito de Nerval.

150 NERVAL, EL DI!SDICHADO

Qualquer relato já supõe uma identidade estabilizada pelo Edipo e que, tendo realizado o seu luto da Coisa, pode encadear suas aven­turas através das derrotas e das conquistas sobre os "objetos" do desejo. Se esta é a lógica interna do relato, compreendemos que a narração parece muito "secundária", mu:to esquemática, muito dispensável para captar a incandescência do "sol negro" em Nerval.

A prosódia será então o primeiro e fundamental filtro que pe­neirará na linguagem o tormento e a alegria do "príncipe negro". Filtro frág~I. mas em geral único. Não ouvimos, para além das significações múltiplas e contraditórias das palavras e das constru­ções sintáxicas, o gesto vocal definitivo? Desde as primeiras alitera­ções, r:tmos, melodias, a transposição do corpo falante impõe-se em wa presença glótica e oral. T: tenebroso, Aquitânia, torre, estrela, morta, "luth", constelado, porta; BR-PR-TR: tenebroso, príncipe, torre, morta, porta; S: sou, inconsolado, príncipe, sozinho, conste­lado, sol; ON: inconsolado, constelado, melancolia ...

Repetitiva, em geral monótona, essa prosódia21 impõe à fluidez afetiva um diagrama tão estrito a ser decifrado (ela supõe conhe­cimentos exatos de mitologia ou de esoterismo) quanto flexível e indeciso, por sua própria característica alusiva. Quem são o prín· cipe da Aquitânia, a "única estrela morta", Febo, Lusignan, Biron ... ? Podemos sabê-lo, sabemos, as interpretações se amontoam ou diver· gem ... Mas o soneto também pode ser lido sem que o leitor comum saiba nada desses referentes, deixando-se simplesmente tomar ape· nas pela coerência fônica e rítmica, que limita tudo, permi­tindo-lhes as associações livres inspiradas por cada palavra ou nome própr:o.

Compreende-se assim · que o triunfo sobre a melancolia está tan· to na constituição de uma família simbólica (ancestral. personagem mítico, comunidade esotérica) quanto na construção de um objeto simbólico independente: o soneto. Construção devida ao autor, ela substitui o ideal perdido da mesma forma que transfigura as trevas tristes em canto lírico cativante, "os suspiros da santa e os gritos fe­éricos". O pólo nostálgico - "minha única estrela" - transforma­se em vozes femininas incorporadas nessa antropofagia simbólica que é a composição do poema, na prosódia criada pelo artista.

21 Cf. M. Jcanncret, La Lettre perdue, écriture et fo/ie dans l'oeuvre de Ner­Fal (A carta perdida, escrita e loucura na obra de Nerval), Flammarion, Paris, 1978.

SOL NEGRI.l !51

Interpretaremos num sentido análogo a presença abundante de no­mes próprios nos textos e, em particular, nas poesias de Nerval.

Nomes-indícios: é

A série de nomes próprios tenta tomar o lugar deixado vazio pela falta de um único nome. Nome paterno ou Nome de Deus . " Ó, meu pai!/ és tu que sinto em mim mesmo?/ Tens poder de viver e de vencer a morte? I Terias sucumbido sob um último esforço/ Desse anjo das noites que o tl11átema fulminou . .. I Pois me sinto inteiramente sozinho a chorar e a sofrer,/ Infelizmente, e se eu morrer, é que tudo vai morrer!"12

Esta lamúria crística na primeira pessoa assemelha-se muito à queixa biográfica de um órfão ou daquele a quem falta o apoio paterno (Mme. Labrunie morre em 1810, o pai de Nerval, Etienne Labrunie, é ferido em Wilna, em 1812) . O Cristo abandonado por seu pai, a paixão do Cristo que desce sozinho aos infernos, atrai Nerval e ele o interpreta como um sinal, no próprio seio da religião cristã, da " morte de Deus" proclamada por João Paulo, que Nerval cita com-o epígrafe. Abandonado pelo p.ai, que por esse fato anula toda a sua onipotência, o Cristo morre e arrasta toda criatura nesse abismo.

O melancólico nervaliano identifica-se com o Cristo abando­nado pelo Pai, é um ateu que parece não acreditar mais no mito desse "louco, .esse insensato sublime .. . Esse !caro esqueci.:o que subia aos céus".23 Em Nerval, tratar-se-ia desse niilismo que sacode a Europa de João Paulo a Dostoievski e a Níetzsche, e que faz re­tumbar, até à epigrafe do Cristo das Olilveiras, a célebre palavra de João Paulo: "Deus morreu! o céu está vazio . .. I Chorai! crianças, não tendes mais pai!"? O poeta, identificado com o Cristo, parece sugeri-lo: " 'Não, Deus ·não existe!' Eles estavam dormindo. Meus amigos, vocês sabem da notícia? Toquei com minha fronJe a abó­bada eterna;/ Estou sangrando, estou partido, estou sofrendo por muitos dias!/ Irmãos, eu lhes enganava: Abismo! abismo! abismo!/ Falta Deus no altar onde sou a vítima . .. I 'Deus não existe! Deus não existe mais!' Mas eles continuavam dormindo! . .. "24

12 ú Christ des Oliviérs (0 Cristo das Oliveiras), in O. C. , t. J, op. cit., p . 37. 2l lbid ., p . 38 . 24 lbid., p. 36.

150 NERVAL, EL DI!SDICHADO

Qualquer relato já supõe uma identidade estabilizada pelo Edipo e que, tendo realizado o seu luto da Coisa, pode encadear suas aven­turas através das derrotas e das conquistas sobre os "objetos" do desejo. Se esta é a lógica interna do relato, compreendemos que a narração parece muito "secundária", mu:to esquemática, muito dispensável para captar a incandescência do "sol negro" em Nerval.

A prosódia será então o primeiro e fundamental filtro que pe­neirará na linguagem o tormento e a alegria do "príncipe negro". Filtro frág~I. mas em geral único. Não ouvimos, para além das significações múltiplas e contraditórias das palavras e das constru­ções sintáxicas, o gesto vocal definitivo? Desde as primeiras alitera­ções, r:tmos, melodias, a transposição do corpo falante impõe-se em wa presença glótica e oral. T: tenebroso, Aquitânia, torre, estrela, morta, "luth", constelado, porta; BR-PR-TR: tenebroso, príncipe, torre, morta, porta; S: sou, inconsolado, príncipe, sozinho, conste­lado, sol; ON: inconsolado, constelado, melancolia ...

Repetitiva, em geral monótona, essa prosódia21 impõe à fluidez afetiva um diagrama tão estrito a ser decifrado (ela supõe conhe­cimentos exatos de mitologia ou de esoterismo) quanto flexível e indeciso, por sua própria característica alusiva. Quem são o prín· cipe da Aquitânia, a "única estrela morta", Febo, Lusignan, Biron ... ? Podemos sabê-lo, sabemos, as interpretações se amontoam ou diver· gem ... Mas o soneto também pode ser lido sem que o leitor comum saiba nada desses referentes, deixando-se simplesmente tomar ape· nas pela coerência fônica e rítmica, que limita tudo, permi­tindo-lhes as associações livres inspiradas por cada palavra ou nome própr:o.

Compreende-se assim · que o triunfo sobre a melancolia está tan· to na constituição de uma família simbólica (ancestral. personagem mítico, comunidade esotérica) quanto na construção de um objeto simbólico independente: o soneto. Construção devida ao autor, ela substitui o ideal perdido da mesma forma que transfigura as trevas tristes em canto lírico cativante, "os suspiros da santa e os gritos fe­éricos". O pólo nostálgico - "minha única estrela" - transforma­se em vozes femininas incorporadas nessa antropofagia simbólica que é a composição do poema, na prosódia criada pelo artista.

21 Cf. M. Jcanncret, La Lettre perdue, écriture et fo/ie dans l'oeuvre de Ner­Fal (A carta perdida, escrita e loucura na obra de Nerval), Flammarion, Paris, 1978.

SOL NEGRI.l !51

Interpretaremos num sentido análogo a presença abundante de no­mes próprios nos textos e, em particular, nas poesias de Nerval.

Nomes-indícios: é

A série de nomes próprios tenta tomar o lugar deixado vazio pela falta de um único nome. Nome paterno ou Nome de Deus . " Ó, meu pai!/ és tu que sinto em mim mesmo?/ Tens poder de viver e de vencer a morte? I Terias sucumbido sob um último esforço/ Desse anjo das noites que o tl11átema fulminou . .. I Pois me sinto inteiramente sozinho a chorar e a sofrer,/ Infelizmente, e se eu morrer, é que tudo vai morrer!"12

Esta lamúria crística na primeira pessoa assemelha-se muito à queixa biográfica de um órfão ou daquele a quem falta o apoio paterno (Mme. Labrunie morre em 1810, o pai de Nerval, Etienne Labrunie, é ferido em Wilna, em 1812) . O Cristo abandonado por seu pai, a paixão do Cristo que desce sozinho aos infernos, atrai Nerval e ele o interpreta como um sinal, no próprio seio da religião cristã, da " morte de Deus" proclamada por João Paulo, que Nerval cita com-o epígrafe. Abandonado pelo p.ai, que por esse fato anula toda a sua onipotência, o Cristo morre e arrasta toda criatura nesse abismo.

O melancólico nervaliano identifica-se com o Cristo abando­nado pelo Pai, é um ateu que parece não acreditar mais no mito desse "louco, .esse insensato sublime .. . Esse !caro esqueci.:o que subia aos céus".23 Em Nerval, tratar-se-ia desse niilismo que sacode a Europa de João Paulo a Dostoievski e a Níetzsche, e que faz re­tumbar, até à epigrafe do Cristo das Olilveiras, a célebre palavra de João Paulo: "Deus morreu! o céu está vazio . .. I Chorai! crianças, não tendes mais pai!"? O poeta, identificado com o Cristo, parece sugeri-lo: " 'Não, Deus ·não existe!' Eles estavam dormindo. Meus amigos, vocês sabem da notícia? Toquei com minha fronJe a abó­bada eterna;/ Estou sangrando, estou partido, estou sofrendo por muitos dias!/ Irmãos, eu lhes enganava: Abismo! abismo! abismo!/ Falta Deus no altar onde sou a vítima . .. I 'Deus não existe! Deus não existe mais!' Mas eles continuavam dormindo! . .. "24

12 ú Christ des Oliviérs (0 Cristo das Oliveiras), in O. C. , t. J, op. cit., p . 37. 2l lbid ., p . 38 . 24 lbid., p. 36.

)32 NERVAL, ~L DESOICHADO

Mas talvez sua filosofia ainda seja um cristianismo imanente coberto de esoterismo . Ele substitui o Deus morto pelo Deus escon­dido, não do jansenismo, mas de uma espiritualidade difusa, últ:mo refúgio de uma identi<lade psíquica catastroficamente angustiada: "Em geral, no ser obscuro habita um Deus escondido:/ E, como um olho nascente coberto per suas pálpebras./ Um puro espírito desenvolve-se sob a crosta das pedras. "25

A acumulação dos nomes próprios (que se referem a persona­gens históricos, míticos e sobretudo esotéricos) realiza essa nomea­ção impossível do Uno e, em seguida, sua pulverização, enfim, seu retorno em direção à região obscura da Coisa não-nomeável. Isto equivale a dizer que não estamos aqui no debate interno do mono­teísmo judeu ou cristão, sobre a possibilidade ou não de nomear Deus, sobre a unicidade ou a multiplicidade de seus nomes . Na subjetividade nervaliana, a crise da nomeação e da autoridade, ga­rantia da unicidade subjetiva, é mais profunda.

Estando o Uno ou o Seu Nome considerado morto ou negado, apresenta-se a possibilidade de substituí-lo por séries de filiações imaginárias . Essas famílias ou fraternidades ou duplos míticos, eso­téricos ou históricos que Nerval impõe febrilmente em lugar do Uno parecem ter, contudo, e definitivamente, um valor encantató­rio, conjuratório, ritual. Mais do que seu referente concreto, esses nomes próprios indicam, mais do que s!gnificam, uma presença abundante, incontornável, não-nomeável, como se fossem a anáfora do objeto único: não o ''equivalente simbólico" da mãe, mas o dêictico "isso", vazio de significação. Os nomes próprios são os gestos que apontam o ser perdido do qual. primeiramente, escapa o "sol negro da melancolia", antes que o objeto erótico, separado do sujeito enlutado, se instale, ao mesmo tempo que o artifício dos signos da línguagem que transpõe esse objeto para o plano simbó­lico. Afinal e para além do seu valor ideológico, o poema integra essas anáforas ao título de signos sem significado, de infra-, de supra-signos que, para além da comunicação, tentam tocar o objeto morto ou intocável, apropriar-se do ser não-nomeável. Assim, por­tanto, a sofisticação de· um saber politeísta tem por função última conduzir-nos ao limiar da nomeação, à beira do não-simbolizado.

Por representar-se esse não-simbolizado como um objeto mater· no, fonte de pesar e de nostalgia, mas também dz veneração ritual,

lS lbid .• p . 39 .

SOL NEGJI.IJ 153

0 imagmano melancólico o sublima e se mune de uma pro~eção contra o desmoronamento na assimbolia . Nerval formula ass1m o triunfo provisório dessa verdadeira parreira de nomes pró?r~os. iça­dos do abismo da "Coisa" perdida: "Por muito tempo gntel, mvo­cando minha mãe pelos nomes dados às divinckldes antigas."26

Comemorar o luto

Assim, o passado melancólico não passa. O do po~ta t~mbém não. Ele é o historiador permanente não tanto de sua htstórta re?l, mas dos acontecimentos simbólicos que conduziram seu corpo à sJg­nificação ou que ameaçam de naufrágio a sua consciência.

O poema nervaliano tem assim uma função altamente mnemó­tica ("uma prece à deusa Mnemósina" - escreve ele em Aurélia_),n no sentido de uma comemoração da gênese dos símbolos e da VIda fantasmática em textos que se tornam a única vida "real" do artista: ''Aqui começou para mim o que chamarei de expansão do sonho na vida real- A partir desse momento, às vezes tudo tomava um aspecto duplo . .. ~>2$ Numa passagem de Aurélia, seguiremos, por exemplo, o encadeamento das seguintes seqüências: mor~e da ~ulher (mãe) amada, identificação com esta e com a morte, m~talaçao de um espaço de solidão psíquica sustentado pela percepçao de uma forma bissexual ou assexuat, e enfim explosão da tristeza que a menção da Melancolia de Dürer resume . A passagem seguinte pode ser interpretada como uma comemoração da ''posição depressiva" cara aos kleinianos :29 ". • • vi diante de mim uma mulher de tez pálida. olhos encovados, que me parecia ter os traços de Aurélia · Eu me disse: 'E a sua morte ou a minha que me está sendo an~n-ciada!' [ . .. ] Vagava .num vasto eài/ício composto de vánas salas [ . .. ] Um .ser desmesuradamente grande - homem ou mulher não sei - rodopiava penosamente acima do espaço [ · · · 1 Assem;lhava-se ao Anjo da Melancolia, de Albrecht Dürer . - Não pude me impedir de soltar gritos de pavor, que me aco;daram em sobressalto."» A s!mbólica da linguagem e, de forma mats forte, do

26 Fragme11ts du manuscrit d'Aurélia (Fragmento·s do manuscrito de Aurélia). in O .C .• t. I, op. cit., p . 421. n Aurélia, op. cit .• p . 366 . v> I bid., p . 361. 29 Cf. supra, cap . I , p . 28 sq, 3l sq . X~ Aurélia, op. cit ., p . ~66.

)32 NERVAL, ~L DESOICHADO

Mas talvez sua filosofia ainda seja um cristianismo imanente coberto de esoterismo . Ele substitui o Deus morto pelo Deus escon­dido, não do jansenismo, mas de uma espiritualidade difusa, últ:mo refúgio de uma identi<lade psíquica catastroficamente angustiada: "Em geral, no ser obscuro habita um Deus escondido:/ E, como um olho nascente coberto per suas pálpebras./ Um puro espírito desenvolve-se sob a crosta das pedras. "25

A acumulação dos nomes próprios (que se referem a persona­gens históricos, míticos e sobretudo esotéricos) realiza essa nomea­ção impossível do Uno e, em seguida, sua pulverização, enfim, seu retorno em direção à região obscura da Coisa não-nomeável. Isto equivale a dizer que não estamos aqui no debate interno do mono­teísmo judeu ou cristão, sobre a possibilidade ou não de nomear Deus, sobre a unicidade ou a multiplicidade de seus nomes . Na subjetividade nervaliana, a crise da nomeação e da autoridade, ga­rantia da unicidade subjetiva, é mais profunda.

Estando o Uno ou o Seu Nome considerado morto ou negado, apresenta-se a possibilidade de substituí-lo por séries de filiações imaginárias . Essas famílias ou fraternidades ou duplos míticos, eso­téricos ou históricos que Nerval impõe febrilmente em lugar do Uno parecem ter, contudo, e definitivamente, um valor encantató­rio, conjuratório, ritual. Mais do que seu referente concreto, esses nomes próprios indicam, mais do que s!gnificam, uma presença abundante, incontornável, não-nomeável, como se fossem a anáfora do objeto único: não o ''equivalente simbólico" da mãe, mas o dêictico "isso", vazio de significação. Os nomes próprios são os gestos que apontam o ser perdido do qual. primeiramente, escapa o "sol negro da melancolia", antes que o objeto erótico, separado do sujeito enlutado, se instale, ao mesmo tempo que o artifício dos signos da línguagem que transpõe esse objeto para o plano simbó­lico. Afinal e para além do seu valor ideológico, o poema integra essas anáforas ao título de signos sem significado, de infra-, de supra-signos que, para além da comunicação, tentam tocar o objeto morto ou intocável, apropriar-se do ser não-nomeável. Assim, por­tanto, a sofisticação de· um saber politeísta tem por função última conduzir-nos ao limiar da nomeação, à beira do não-simbolizado.

Por representar-se esse não-simbolizado como um objeto mater· no, fonte de pesar e de nostalgia, mas também dz veneração ritual,

lS lbid .• p . 39 .

SOL NEGJI.IJ 153

0 imagmano melancólico o sublima e se mune de uma pro~eção contra o desmoronamento na assimbolia . Nerval formula ass1m o triunfo provisório dessa verdadeira parreira de nomes pró?r~os. iça­dos do abismo da "Coisa" perdida: "Por muito tempo gntel, mvo­cando minha mãe pelos nomes dados às divinckldes antigas."26

Comemorar o luto

Assim, o passado melancólico não passa. O do po~ta t~mbém não. Ele é o historiador permanente não tanto de sua htstórta re?l, mas dos acontecimentos simbólicos que conduziram seu corpo à sJg­nificação ou que ameaçam de naufrágio a sua consciência.

O poema nervaliano tem assim uma função altamente mnemó­tica ("uma prece à deusa Mnemósina" - escreve ele em Aurélia_),n no sentido de uma comemoração da gênese dos símbolos e da VIda fantasmática em textos que se tornam a única vida "real" do artista: ''Aqui começou para mim o que chamarei de expansão do sonho na vida real- A partir desse momento, às vezes tudo tomava um aspecto duplo . .. ~>2$ Numa passagem de Aurélia, seguiremos, por exemplo, o encadeamento das seguintes seqüências: mor~e da ~ulher (mãe) amada, identificação com esta e com a morte, m~talaçao de um espaço de solidão psíquica sustentado pela percepçao de uma forma bissexual ou assexuat, e enfim explosão da tristeza que a menção da Melancolia de Dürer resume . A passagem seguinte pode ser interpretada como uma comemoração da ''posição depressiva" cara aos kleinianos :29 ". • • vi diante de mim uma mulher de tez pálida. olhos encovados, que me parecia ter os traços de Aurélia · Eu me disse: 'E a sua morte ou a minha que me está sendo an~n-ciada!' [ . .. ] Vagava .num vasto eài/ício composto de vánas salas [ . .. ] Um .ser desmesuradamente grande - homem ou mulher não sei - rodopiava penosamente acima do espaço [ · · · 1 Assem;lhava-se ao Anjo da Melancolia, de Albrecht Dürer . - Não pude me impedir de soltar gritos de pavor, que me aco;daram em sobressalto."» A s!mbólica da linguagem e, de forma mats forte, do

26 Fragme11ts du manuscrit d'Aurélia (Fragmento·s do manuscrito de Aurélia). in O .C .• t. I, op. cit., p . 421. n Aurélia, op. cit .• p . 366 . v> I bid., p . 361. 29 Cf. supra, cap . I , p . 28 sq, 3l sq . X~ Aurélia, op. cit ., p . ~66.

154 NERVAL, EL DESDICHADO

texto substitui o pavor e triunfa por um tempo sobre a morte do outro ou de si mesmo.

Variações do "duplo"

Viúvo ou poeta, ser estelar ou tumular, identificado com a morte ou vencedor órfico - estas são apenas algumas das ambi­güidades que a leitura de El Desdichado nos revela e que impõem o desdobramento como figura central do imaginário nervaliano.

Longe de recalcar o desprazer que a perda do objeto provoca (perda arcaica ou perda atual), o melancólico instala em si a Coisa ou o objeto perdidos, identificando-se, por um lado, com os aspectos benéficos da perda c, por outro, com os seus aspectos maléficos. Eis-nos diante de uma primeira condição do desdobramento do seu ego, iniciando uma série de identificações contraditórias que o tra­balho do imaginário tentará conciliar: juiz tirânico e vítima, ideal inacessível cu doente irrecuperável etc. As figuras vão se suceder, encontrar-se, perseguir-se ou se amar, cuidar-se, rejeitar-se. Irmãos, amigos ou inimigos, os duplos poderão engajar uma verdadeira dra­maturgia da homossexualidade.

Contudo, quando um dos personagens tiver se identificado com o sexo feminino do objeto perdido, a tentativa de conciliação para além da divagem desembocará numa feminilização do locutor ou na androginia: '"A partir desse momento, às vezes tudo tomava um aspecto duplo . .. '131 Aurélia, "uma dama que eu amara por muito tempo", morreu. Mas "eu me digo: E a sua morte ou a minha que me está sendo anunciada."32 Tendo encontrado o busto funerário de Aurélia, o narrador retraça o estado melancólico provocado nele pela notícia da sua doença: "Eu mesmo acreditava só ter pouco tempo de vida [ ... ] Além do mais, ela me pertencia muito mais na morte do que na sua vida."13 Ela e ele, a vida e a morte, são aqui entidades que se refletem em espelho, intercambiáveis.

Após uma evocação da criação em gestação, de animais pré­históricos e de cataclismos diversos ("Em todo lugar morria, cho­rava ou enlanguescia a imagem sofredora da Mãe eterna)/4 vem um

31 Ibid., p. 367. ·'1 lbid., p. 365. u lbid., p. 378. }4 lbid .• p. 383.

SOL NEGRO 155

outro duplo. Trata-se de um príncipe do Oriente cujo rosto é o do locutor: "Era irtteiramente a minha forma idealizada e aumentada. "a:;

Não podendo se unir a Aurélia, o narrador a metamorfoseia em duplo ideal e, desta vez, masculino: "O homem é duplo, dizia-me. - Sinto dois homens em mim.':aG Contudo, espectador e ator, lo­cutor e o que responde, encontram a dialética projetiva do bom e do mau: "De qualquer forma, o outro me é hostil." A idealização transforma-se em perseguição e acarreta um "duplo sentido" a tudo o que o narrador entende ... Por estar habitado p{)r esse mau duplo, por um "mau gênio que tomara meu lugar no mundo das almas", o amante de Aurélia reduplica seu desespero. Cúmulo da infeli­cidade, ele imagina que o seu duplo "devia esposar Aurélia" -"logo um arrebatamento se apossou de mim", enquanto por todos os lados zomba-se de sua impotência . Conseqüência desse dramático desdobramento, gritos femininos c palavras. estranhas - outros indí­cios do desdobramento, desta vez sexual c verbal - dilaceram o sonho nervaliano.31 O encontro, sob uma parreira, de uma mulher que é o duplo físico de Aurélia, mergulha·o de novo na idéia de que deve morrer para ir ao seu encontro, como se ela fosse o alter · ego da morte.3~

Os episódios de desdobramento encadeiam-se c variam, mas todos convergem para a celebração d~ duas figt!lras fundamentais: a Mãe universal, 1sis ou Maria, e para a apologia do Cristo, de quem o narrador deseja ser o último duplo. ''Uma espécie de coro misterioso chega aos meus ouvidos; vozes infantis repetiam em coro: Cristo! Cristo! Cristo! [ ... ] 'Mas o Cristo não existe mais', diziil­·me.'"39 O narrador desce aos infernos como o Cristo, e o texto pára nessa imagem, romo se ele não estivesse certo do perdão e da res­surreição.

Na verdade, o tema do perdão impõe-se nas últimas páginas de Aurélia: culpado por não ter chorado seus velhos pais de forma tão intensa quanto chorou ''essa mulher", o poeta não pode esperar o perdão. Entretanto, ''o perdão do Cristo também foi pronunciado para ti!"..o Assim, a aspiração ao perdão, uma tentativa de aderir à

l' lbid .• p o 384. lf Ibid., p . 385. 37 Ibid ., p. 388. 3S Ibid., p. 399. l~ lbid., pp. 401-4Q2 "' lbid., p . 415 .

154 NERVAL, EL DESDICHADO

texto substitui o pavor e triunfa por um tempo sobre a morte do outro ou de si mesmo.

Variações do "duplo"

Viúvo ou poeta, ser estelar ou tumular, identificado com a morte ou vencedor órfico - estas são apenas algumas das ambi­güidades que a leitura de El Desdichado nos revela e que impõem o desdobramento como figura central do imaginário nervaliano.

Longe de recalcar o desprazer que a perda do objeto provoca (perda arcaica ou perda atual), o melancólico instala em si a Coisa ou o objeto perdidos, identificando-se, por um lado, com os aspectos benéficos da perda c, por outro, com os seus aspectos maléficos. Eis-nos diante de uma primeira condição do desdobramento do seu ego, iniciando uma série de identificações contraditórias que o tra­balho do imaginário tentará conciliar: juiz tirânico e vítima, ideal inacessível cu doente irrecuperável etc. As figuras vão se suceder, encontrar-se, perseguir-se ou se amar, cuidar-se, rejeitar-se. Irmãos, amigos ou inimigos, os duplos poderão engajar uma verdadeira dra­maturgia da homossexualidade.

Contudo, quando um dos personagens tiver se identificado com o sexo feminino do objeto perdido, a tentativa de conciliação para além da divagem desembocará numa feminilização do locutor ou na androginia: '"A partir desse momento, às vezes tudo tomava um aspecto duplo . .. '131 Aurélia, "uma dama que eu amara por muito tempo", morreu. Mas "eu me digo: E a sua morte ou a minha que me está sendo anunciada."32 Tendo encontrado o busto funerário de Aurélia, o narrador retraça o estado melancólico provocado nele pela notícia da sua doença: "Eu mesmo acreditava só ter pouco tempo de vida [ ... ] Além do mais, ela me pertencia muito mais na morte do que na sua vida."13 Ela e ele, a vida e a morte, são aqui entidades que se refletem em espelho, intercambiáveis.

Após uma evocação da criação em gestação, de animais pré­históricos e de cataclismos diversos ("Em todo lugar morria, cho­rava ou enlanguescia a imagem sofredora da Mãe eterna)/4 vem um

31 Ibid., p. 367. ·'1 lbid., p. 365. u lbid., p. 378. }4 lbid .• p. 383.

SOL NEGRO 155

outro duplo. Trata-se de um príncipe do Oriente cujo rosto é o do locutor: "Era irtteiramente a minha forma idealizada e aumentada. "a:;

Não podendo se unir a Aurélia, o narrador a metamorfoseia em duplo ideal e, desta vez, masculino: "O homem é duplo, dizia-me. - Sinto dois homens em mim.':aG Contudo, espectador e ator, lo­cutor e o que responde, encontram a dialética projetiva do bom e do mau: "De qualquer forma, o outro me é hostil." A idealização transforma-se em perseguição e acarreta um "duplo sentido" a tudo o que o narrador entende ... Por estar habitado p{)r esse mau duplo, por um "mau gênio que tomara meu lugar no mundo das almas", o amante de Aurélia reduplica seu desespero. Cúmulo da infeli­cidade, ele imagina que o seu duplo "devia esposar Aurélia" -"logo um arrebatamento se apossou de mim", enquanto por todos os lados zomba-se de sua impotência . Conseqüência desse dramático desdobramento, gritos femininos c palavras. estranhas - outros indí­cios do desdobramento, desta vez sexual c verbal - dilaceram o sonho nervaliano.31 O encontro, sob uma parreira, de uma mulher que é o duplo físico de Aurélia, mergulha·o de novo na idéia de que deve morrer para ir ao seu encontro, como se ela fosse o alter · ego da morte.3~

Os episódios de desdobramento encadeiam-se c variam, mas todos convergem para a celebração d~ duas figt!lras fundamentais: a Mãe universal, 1sis ou Maria, e para a apologia do Cristo, de quem o narrador deseja ser o último duplo. ''Uma espécie de coro misterioso chega aos meus ouvidos; vozes infantis repetiam em coro: Cristo! Cristo! Cristo! [ ... ] 'Mas o Cristo não existe mais', diziil­·me.'"39 O narrador desce aos infernos como o Cristo, e o texto pára nessa imagem, romo se ele não estivesse certo do perdão e da res­surreição.

Na verdade, o tema do perdão impõe-se nas últimas páginas de Aurélia: culpado por não ter chorado seus velhos pais de forma tão intensa quanto chorou ''essa mulher", o poeta não pode esperar o perdão. Entretanto, ''o perdão do Cristo também foi pronunciado para ti!"..o Assim, a aspiração ao perdão, uma tentativa de aderir à

l' lbid .• p o 384. lf Ibid., p . 385. 37 Ibid ., p. 388. 3S Ibid., p. 399. l~ lbid., pp. 401-4Q2 "' lbid., p . 415 .

156 NEitVAL, J!L DESDICHA.DO

religião que promete a sobrevivência, assediam esse combate contra a melancolia e o desdobramento. Diante do "sol negro da melan­colia", o narrador de Aurélia afirma: "Deus é o Sol.',.1 Trata-se de uma metamorfose ressurrecional ou de um reverso em relação a um anverso solidário, que é o ''sol negro"?

Dizer a fragmentação

Por momentos, o desdobramento torna-se uma fragmentação "molecular" que rnetaforiza correntes que sulcam um "dia sem sol": "Sentia-me levado, sem sofrimento, por uma corrente de metal fun­dido, e mil rios semelhantes, cujas cores indicavam as diferenças químicas, sulcavam o seio da terra como vasos e veias que serpen· leiam entre os lóbulos do cérebro. Todos corriam, circulavam c vibravam assim, e tive o sentimento de que essas correntes eram compostas de almas vivas, no estado molecular, que somente a rapi­dez dessa viagem me impedia de distinguir. "42

Estranha percepção, admirável conhecimento do deslocamento acelerado que motiva o processo melancólico e a psicose subjacente. A linguagem dessa aceleração vertiginosa toma um aspecto combi­natório, polivalente e totalizante, que os processos primários domi­nam . Essa atividade simbólica, em geral rebelde à representação, "nã<rf!gurativa", "abstrata", é percebida por Nerval de forma ge­nial: "A linguagem de meus companheiros tinha construções miste­riosas, cujo sentido eu compreendia, os objetos sem forma e sem vida se prestavam, eles próprios, aos cálculos do meu espírito; - com­binações de seixos, figuras de ângulos, de fendas ou de aberturas, recortes de folhas, cores, odores, sons, eu via saírem harmonias até então desconhecidas. Como - eu me dizia - pude existir por tanto tempo fora da natureza e sem me identificar com ela? Tudo vive, tudo age, tudo se corresponde [ . .. ] E uma rede transparente que cobre o mundo [ . .. 1. "43

O cabalismo ou as teorias esotéricas das ''correspondências" aparecem aqui . Contudo, a passagem c!tada é também uma extra· ordinária alegoria do polimorfismo prosódico próprio a essa escrita, em que Nerval parece privilegiar a rede das intensidades, dos sons

41 Jbid ., p . 398 . 42 I bid., p. 370 . 4; l bid., p . 407 . Grifo nosso . Cf. supra, cap. I, pp. 3&-38, a propósito da representação da morte.

80L .MEOJ.O 157

e das significações, mais do que a comunicação de uma informação unívoca. De fato, essa "rede transparente" indica o próprio texto nervaliano, e podemos lê-lo como uma metáfora da sublimação: · transposição das pulsões e de seus objetos nos signos desestabiliza­dos e recombinados que tornam o escritor capaz de "participar das minhas alegrias e das minhas dores".4 4

Quai~quer que sejam as alusões à maçonaria e à iniciação, e talvez paralelamente a elas, a escrita de Nerval evoca (como na análise) experiências psíquicas arcaicas que poucas pessoas atingem pelos seus discursos conscientes. Parece evidente que os conflitos psicóticos de Nerval puderam favorecer tal acesso aos limites do ser da linguagem e da humanidade. Em Nerval, a melancolia só é uma das vertentes desses conflitos que podiam chegar até a fragmen­tação esquizofrênica. Contudo, por seu lugar pivô na organização e na desorganização do espaço psíquico, nos limites do afeto e do sentido, da biologia e da linguagem, da assimbolia e da significação vertiginosamente rápida ou eclipsada, é mesmo a melancolia que d<r mina a representação nervaliana . A criação de uma prosódia e de uma polifonia, resolvíveis. dos símbolos em torno do "ponto negro" ou do ''sol negro" da melancolia é assim o antídoto da depressão, uma salvação provisória .

A melancolia motiva a "crise dos valores" que sacode o século XIX e que se exprime na proliferação esotérica . A herança do catolicismo encontra-se questionada, mas seus elementos relativos aos estados de crise psíquica são retomados e inseridos num sincretismo espiritualista polimorfo e polivalente. O Verbo é vivido menos como encarnação e euforia do que como busca de uma paixão que perma· nece nã<rnomeável ou secreta e como presença de um sentiào abso­luto que parece tanto omnivalente quanto inapreensível e ab~ndô­nico . Uma verdadeira experiência melancólica dos recursos stmbó­licos do homem é então vivida, por ocasião da crise religiosa e polí­tica aberta pela Revolução. Walter Benjamin insistiu no substrato melancólico desse imaginário privado tanto da estab:lidade clássica quanto da católica, e, contudo, preocupado em se munir de um novo sentido (enquanto falamos, os artistas criam) que, entretanto, ).lennanece essenciaJmente desapontado, dilacerado pela negrura ou pela ironia do Príncipe das trevas {enquanto vivemos órfãos nras cria­dores, criadores mas abandonados ... ) .

44 Ibid ., p. 407.

156 NEitVAL, J!L DESDICHA.DO

religião que promete a sobrevivência, assediam esse combate contra a melancolia e o desdobramento. Diante do "sol negro da melan­colia", o narrador de Aurélia afirma: "Deus é o Sol.',.1 Trata-se de uma metamorfose ressurrecional ou de um reverso em relação a um anverso solidário, que é o ''sol negro"?

Dizer a fragmentação

Por momentos, o desdobramento torna-se uma fragmentação "molecular" que rnetaforiza correntes que sulcam um "dia sem sol": "Sentia-me levado, sem sofrimento, por uma corrente de metal fun­dido, e mil rios semelhantes, cujas cores indicavam as diferenças químicas, sulcavam o seio da terra como vasos e veias que serpen· leiam entre os lóbulos do cérebro. Todos corriam, circulavam c vibravam assim, e tive o sentimento de que essas correntes eram compostas de almas vivas, no estado molecular, que somente a rapi­dez dessa viagem me impedia de distinguir. "42

Estranha percepção, admirável conhecimento do deslocamento acelerado que motiva o processo melancólico e a psicose subjacente. A linguagem dessa aceleração vertiginosa toma um aspecto combi­natório, polivalente e totalizante, que os processos primários domi­nam . Essa atividade simbólica, em geral rebelde à representação, "nã<rf!gurativa", "abstrata", é percebida por Nerval de forma ge­nial: "A linguagem de meus companheiros tinha construções miste­riosas, cujo sentido eu compreendia, os objetos sem forma e sem vida se prestavam, eles próprios, aos cálculos do meu espírito; - com­binações de seixos, figuras de ângulos, de fendas ou de aberturas, recortes de folhas, cores, odores, sons, eu via saírem harmonias até então desconhecidas. Como - eu me dizia - pude existir por tanto tempo fora da natureza e sem me identificar com ela? Tudo vive, tudo age, tudo se corresponde [ . .. ] E uma rede transparente que cobre o mundo [ . .. 1. "43

O cabalismo ou as teorias esotéricas das ''correspondências" aparecem aqui . Contudo, a passagem c!tada é também uma extra· ordinária alegoria do polimorfismo prosódico próprio a essa escrita, em que Nerval parece privilegiar a rede das intensidades, dos sons

41 Jbid ., p . 398 . 42 I bid., p. 370 . 4; l bid., p . 407 . Grifo nosso . Cf. supra, cap. I, pp. 3&-38, a propósito da representação da morte.

80L .MEOJ.O 157

e das significações, mais do que a comunicação de uma informação unívoca. De fato, essa "rede transparente" indica o próprio texto nervaliano, e podemos lê-lo como uma metáfora da sublimação: · transposição das pulsões e de seus objetos nos signos desestabiliza­dos e recombinados que tornam o escritor capaz de "participar das minhas alegrias e das minhas dores".4 4

Quai~quer que sejam as alusões à maçonaria e à iniciação, e talvez paralelamente a elas, a escrita de Nerval evoca (como na análise) experiências psíquicas arcaicas que poucas pessoas atingem pelos seus discursos conscientes. Parece evidente que os conflitos psicóticos de Nerval puderam favorecer tal acesso aos limites do ser da linguagem e da humanidade. Em Nerval, a melancolia só é uma das vertentes desses conflitos que podiam chegar até a fragmen­tação esquizofrênica. Contudo, por seu lugar pivô na organização e na desorganização do espaço psíquico, nos limites do afeto e do sentido, da biologia e da linguagem, da assimbolia e da significação vertiginosamente rápida ou eclipsada, é mesmo a melancolia que d<r mina a representação nervaliana . A criação de uma prosódia e de uma polifonia, resolvíveis. dos símbolos em torno do "ponto negro" ou do ''sol negro" da melancolia é assim o antídoto da depressão, uma salvação provisória .

A melancolia motiva a "crise dos valores" que sacode o século XIX e que se exprime na proliferação esotérica . A herança do catolicismo encontra-se questionada, mas seus elementos relativos aos estados de crise psíquica são retomados e inseridos num sincretismo espiritualista polimorfo e polivalente. O Verbo é vivido menos como encarnação e euforia do que como busca de uma paixão que perma· nece nã<rnomeável ou secreta e como presença de um sentiào abso­luto que parece tanto omnivalente quanto inapreensível e ab~ndô­nico . Uma verdadeira experiência melancólica dos recursos stmbó­licos do homem é então vivida, por ocasião da crise religiosa e polí­tica aberta pela Revolução. Walter Benjamin insistiu no substrato melancólico desse imaginário privado tanto da estab:lidade clássica quanto da católica, e, contudo, preocupado em se munir de um novo sentido (enquanto falamos, os artistas criam) que, entretanto, ).lennanece essenciaJmente desapontado, dilacerado pela negrura ou pela ironia do Príncipe das trevas {enquanto vivemos órfãos nras cria­dores, criadores mas abandonados ... ) .

44 Ibid ., p. 407.

158 NERV_..L, EL OESDICIIADQ

Entretanto, El Desdicha.do, como toda a poesia nervaliana e a sua prosa poética, tenta uma formidável encarnação dessa signifi­cação desenfreada que salta c vaci la na polivalêncía dos esoter!s· mos. Assumindo a dissipação do sentido - réplica, no texto, de uma identidade fragmentada - . ós temas do soneto retraçam uma verdadeira arqueologia do luto afetivo e da prova erótica, superados pela assim! I ação do arcaico n.a linguagem da poesia. Ao mesmo tempo, esta assimilação, além disto, é feita pela oralização c pela musicalização dos próprios signos, aproximando assim o sentido do corpo perdido. No próprio ··se:o da crise dos valores, a escrita po~­tica imita uma ressurreição. "Como vencedor, por duas vez~s atra­vessei o Áquercn . .. " Não haverá terceira vez.

A sublimação é um aliado poderoso do Desdichado, desde que ele possa receber c aceitar a palavra de qualquer outra pessoa. Ora , o outro não compareceu ao encontro marcado com aquele que foi se reunir - desta vez sem lira, mas sozinho sob a noite de um re­vérbero - "os suspires da santa e os gritos feéricos".

VII Dostoievski}

A escrita do sofrimento e do perdão

158 NERV_..L, EL OESDICIIADQ

Entretanto, El Desdicha.do, como toda a poesia nervaliana e a sua prosa poética, tenta uma formidável encarnação dessa signifi­cação desenfreada que salta c vaci la na polivalêncía dos esoter!s· mos. Assumindo a dissipação do sentido - réplica, no texto, de uma identidade fragmentada - . ós temas do soneto retraçam uma verdadeira arqueologia do luto afetivo e da prova erótica, superados pela assim! I ação do arcaico n.a linguagem da poesia. Ao mesmo tempo, esta assimilação, além disto, é feita pela oralização c pela musicalização dos próprios signos, aproximando assim o sentido do corpo perdido. No próprio ··se:o da crise dos valores, a escrita po~­tica imita uma ressurreição. "Como vencedor, por duas vez~s atra­vessei o Áquercn . .. " Não haverá terceira vez.

A sublimação é um aliado poderoso do Desdichado, desde que ele possa receber c aceitar a palavra de qualquer outra pessoa. Ora , o outro não compareceu ao encontro marcado com aquele que foi se reunir - desta vez sem lira, mas sozinho sob a noite de um re­vérbero - "os suspires da santa e os gritos feéricos".

VII Dostoievski}

A escrita do sofrimento e do perdão

Apologia do sofrimento

O UNIVERSO de Dostoievski .(1821-1881), sem dúvida, é muito mais dominado pela epilepsia do que por uma melancolia no sentido clínico do tenno.1 Se Hipócrates identificava as duas palavras, se Aristóteles as diferenciava, ao mesmo tempo que as comparava, a atualidade clínica as considera como entidades essencialmente sepa­radas. Entretanto, reteremos nos escritos de Dostoievski o abati· mento que precede ou, sobretudo. que se segue à crise, tal qual o próprio escritor a descreve, assim como a hipóstase do sofrimento que, sem relação explícita e imediata com a epilepsia, impõe-se ao longo de toda sua obra como traço ess~ncial da antropologia dos­toievskíana.

Curiosamente, a insistência de Dustoievski em assinalar a exis· tência de um sofrimento precoce ou pelo menos primordial, à beira da consciência, lembra a tese freudiana de uma ''pulsão de morte" originária, portadora dos desejos e de um "masoquismo primário".~ Enquanto, em Melanie Klein, em geral a projeção precede a intro· jeção, a agressividade antecipa o sofrimento e a posição paranóide­·esquizóide motiva a posição depressiva, Freud insiste no que pode·

1 O texto canônico de Freud sobre Dostoievski encara o escritor do ponto de vista da epilepsta, do amoralismo, do parricídio c do jogo, e aborda apenas de forma alusória o "sadomasoquismo•• subjacente ao sofrimento. Cf. "Dos· toíevski et le Parricide" (postoievski e o Parricídio), 1927, trad o francesa in Résultats, Jdées, Problemes (Resultados. Idéias, Problemas), t. li, PUF, Paris, 1985, ppo 161-179; S. E . , t. XXl, p . 115 sq; Go W . , to XIV, p o 173 sqo Para uma discussão dessa tese, ci o Philippe Sollers, "Dostoievo•'"i. Freud, la roulette'' (0 o, F o, a roleta) in Théorie-des Exceptions (Teoria das Exceções), Folio, Galli· ntard, Paris, 1986 o

2 Cf . supra, cap. I, pp . 26-310

Apologia do sofrimento

O UNIVERSO de Dostoievski .(1821-1881), sem dúvida, é muito mais dominado pela epilepsia do que por uma melancolia no sentido clínico do tenno.1 Se Hipócrates identificava as duas palavras, se Aristóteles as diferenciava, ao mesmo tempo que as comparava, a atualidade clínica as considera como entidades essencialmente sepa­radas. Entretanto, reteremos nos escritos de Dostoievski o abati· mento que precede ou, sobretudo. que se segue à crise, tal qual o próprio escritor a descreve, assim como a hipóstase do sofrimento que, sem relação explícita e imediata com a epilepsia, impõe-se ao longo de toda sua obra como traço ess~ncial da antropologia dos­toievskíana.

Curiosamente, a insistência de Dustoievski em assinalar a exis· tência de um sofrimento precoce ou pelo menos primordial, à beira da consciência, lembra a tese freudiana de uma ''pulsão de morte" originária, portadora dos desejos e de um "masoquismo primário".~ Enquanto, em Melanie Klein, em geral a projeção precede a intro· jeção, a agressividade antecipa o sofrimento e a posição paranóide­·esquizóide motiva a posição depressiva, Freud insiste no que pode·

1 O texto canônico de Freud sobre Dostoievski encara o escritor do ponto de vista da epilepsta, do amoralismo, do parricídio c do jogo, e aborda apenas de forma alusória o "sadomasoquismo•• subjacente ao sofrimento. Cf. "Dos· toíevski et le Parricide" (postoievski e o Parricídio), 1927, trad o francesa in Résultats, Jdées, Problemes (Resultados. Idéias, Problemas), t. li, PUF, Paris, 1985, ppo 161-179; S. E . , t. XXl, p . 115 sq; Go W . , to XIV, p o 173 sqo Para uma discussão dessa tese, ci o Philippe Sollers, "Dostoievo•'"i. Freud, la roulette'' (0 o, F o, a roleta) in Théorie-des Exceptions (Teoria das Exceções), Folio, Galli· ntard, Paris, 1986 o

2 Cf . supra, cap. I, pp . 26-310

}62 DOSTOJEVSltf , A ESCIUTA DO SOFJliMENTO B DO PDDÃo

ríamos chamar de grau zero da vida psíquica, onde o sofrimento ("masoquismo primário", "melancolia") não-erotizado seria a ins­crição psíquica primordial de uma ruptura (memória do salto entre matéria inorgânica e matéria orgânica; afeto da separação entre o corpo e o ecossistema, a criança e a mãe etc.; mas também o efeito mortífero de um superC;go permanente e tirânico) .

Dostoievski parece muito próximo desta visão. Ele encara o sofrimento como um afeto precoce e primário, reagindo a· um trau­matismo certo, mas de algum~ forma pré-objetai, ao qual não se poderia atribuir um ag,ente separado do sujeito e, em conseqüência, suscetível de atrair para o exterior energias, in scrições psíquicas, representações ou atos. Como que sob o impacto de um superego, ele também precoce e que lembra o superego melancólico encarado em Preud cómo "uma cultura da pulsão de morte", as pulsões dos heróis dostoievs.kianos voltam-se sobre o seu espaço próprio. Em vez de se tomarem pulsôes eróticas, inscrevem-se como um humor de sofrimento. Nem dentro, nem fora, entre dois, no limiar da sepa­ração eu/ outro e antes mesmo que esta seja possível, erige-se o · sofrimento dostoievskiano.

Os biógrafos assinalam que Dostoievski preferia f reqüentar pes­soas tendentes ao pesar. Ele o cultivava em si e o exaltava em seus textos e em sua correspondência. ·Citemos uma carta a Maikov, de 27 de maio de 1869, escrita em Florença: "O principal é a tristeza, mas se se fala ou explica demais, seria preciso que se dissesse muito mais. Entretant;J, o pesar é Íal que, se estivesse sozinho, talvez tivesse me tornado doente de pesar. . . De qualquer forma, a tristeza é ter­rível, e pior ainda na Europa, olho tudo aqui como um animal . Haja o que houver, decidi voltar para ·Petersburgo na próxima pri­mavera ... "

A crise epilética e a escrita são, paralelamente, os lugares pri­vileg!ados de urna tristeza paroxística que se transforma núma jubi· !ação mística fora do tempo. Assim, nos Carnets des Possédés (Diá­rio dos Possuídos) ou Démons (Os Demônios) {o romance é publi­cado em 1873) : "Crise às 6 horas da manhã (o dia e quase a hora do suplício de 1'ropma11Jt). Não a ouvi, acordei às 8 horas com a consciência de uma crise . A cabeça me doía, o corpo estava quebra­do . Em geral, as conseqüências da crise, isto é, nervosismo, enfra­quecimento da memória, estado enevoado e de alguma forma con­tempfa:ivo, agora prolongam-se muito mais do que nos anos an·terio­res . Antes, isto passava em três dias, agora não antes de seis. So­bretudo de noite, à luz de velas. uma tristeza hipocondríaca sem

SOL l'\ EGRO lt-3

objeto c como uma tonalidade vermelha, sangrenta (11ão como llm!l ) b d 11J o /1 ' ' ' ' " I cor so rc tu o. . . u: n so nervoso e trJsteza nnshca ,· rep~tc

ele, referindo-se implicitamente à acedia doS'. monges da lc.l<Jde .\k­dia. Ou ainda: Como escrever? "Sofrer. sofrer inuíto ... ··

O sofrimento aqui parece ser um ' 'excesso", um poder , uma volúpia . O "ponto negro da mdancolia" nervaliana cedeu lugar a uma torrente passional, a um afeto h istérico, por assim diza, cujo transbordamento fluido carrega os signos plácidos e <Js <:omposh;ões abrandadas da literatura "monológica". Este confere ao texto dos· toicvskiano uma polifonia vertiginosa e impõe como verdade t'lllima do homem dostoievskiano uma carne rebelde que gozêl por não se submeter ao Verbo. Volúpia do sofrimento que não lt:m "nenhuma frieza e nenhum desencanto, nada do que foi posto em moda por Hyron", mas que tem "sede de volúpias, desmesurada c insaciúvel" .. "sede de vida inextinguível", incluindo •·volúpia do roubo, cio brm­ditismo, vollípia do suicldio".11 Essa exaltação do humor, que pode transmitir sofrimento em júbilo incomensurável, é admiravd mentc descrita por Kirilov nos momentos que precedem o suicídio ou a crise : "Há instantes, ele.ç duram cinco a seis segundos, qua11do, · de repente, você . sente a presença da harmonia eterna. você a atingiu. Não é terrestre: não quero dizer que seja uma coisa celeste. mas que o homem. sob seu aspecto terrestre, é incapa:: de suportá-la. Ele deve se tranSformar fisicamente ou morrer. f. um sentimento c/arp, indiscutível, absoluto ( . . . 1 Não é ··entcrnecime11to [ ... l mio é nem mesmo amor; ó! é _çuperior ao amor. O maili terrível é que é tão espantosamente d aro. E. uma alegr i!1 tão imensa com i~!.O ! Se ela durasse mais de cinco segundos, a alma 11ão suportaria e de· veria desaparecer [ ... 1 Para suportar isso por dez segun!.=os. seria preciso transformar-se fisicamente r .. '] .

- Você não é ep:Ntico? -Não. - Você se tomará. Preste atenção, Kirilov: OUI' i dizer que era

precisamente assim que começava a epilepsia r .. . ] " E a propósito da curta duração desse estado: "J.embre-se do cântaro de Maomé. que não teve tempo de· se e~Svaziar e11quanto Maomé. a cavalo, dava

J Grifo nosso . Camet~ des D~mons (Uiário dos Uemôniosl. in Les lh:nron:> COs Demônios), La Pléiade, Gallimard, l'aris, 1955, pp . 810.81 1. • l bid .• p. 812. ~ l bid. , p . 11 54 .

}62 DOSTOJEVSltf , A ESCIUTA DO SOFJliMENTO B DO PDDÃo

ríamos chamar de grau zero da vida psíquica, onde o sofrimento ("masoquismo primário", "melancolia") não-erotizado seria a ins­crição psíquica primordial de uma ruptura (memória do salto entre matéria inorgânica e matéria orgânica; afeto da separação entre o corpo e o ecossistema, a criança e a mãe etc.; mas também o efeito mortífero de um superC;go permanente e tirânico) .

Dostoievski parece muito próximo desta visão. Ele encara o sofrimento como um afeto precoce e primário, reagindo a· um trau­matismo certo, mas de algum~ forma pré-objetai, ao qual não se poderia atribuir um ag,ente separado do sujeito e, em conseqüência, suscetível de atrair para o exterior energias, in scrições psíquicas, representações ou atos. Como que sob o impacto de um superego, ele também precoce e que lembra o superego melancólico encarado em Preud cómo "uma cultura da pulsão de morte", as pulsões dos heróis dostoievs.kianos voltam-se sobre o seu espaço próprio. Em vez de se tomarem pulsôes eróticas, inscrevem-se como um humor de sofrimento. Nem dentro, nem fora, entre dois, no limiar da sepa­ração eu/ outro e antes mesmo que esta seja possível, erige-se o · sofrimento dostoievskiano.

Os biógrafos assinalam que Dostoievski preferia f reqüentar pes­soas tendentes ao pesar. Ele o cultivava em si e o exaltava em seus textos e em sua correspondência. ·Citemos uma carta a Maikov, de 27 de maio de 1869, escrita em Florença: "O principal é a tristeza, mas se se fala ou explica demais, seria preciso que se dissesse muito mais. Entretant;J, o pesar é Íal que, se estivesse sozinho, talvez tivesse me tornado doente de pesar. . . De qualquer forma, a tristeza é ter­rível, e pior ainda na Europa, olho tudo aqui como um animal . Haja o que houver, decidi voltar para ·Petersburgo na próxima pri­mavera ... "

A crise epilética e a escrita são, paralelamente, os lugares pri­vileg!ados de urna tristeza paroxística que se transforma núma jubi· !ação mística fora do tempo. Assim, nos Carnets des Possédés (Diá­rio dos Possuídos) ou Démons (Os Demônios) {o romance é publi­cado em 1873) : "Crise às 6 horas da manhã (o dia e quase a hora do suplício de 1'ropma11Jt). Não a ouvi, acordei às 8 horas com a consciência de uma crise . A cabeça me doía, o corpo estava quebra­do . Em geral, as conseqüências da crise, isto é, nervosismo, enfra­quecimento da memória, estado enevoado e de alguma forma con­tempfa:ivo, agora prolongam-se muito mais do que nos anos an·terio­res . Antes, isto passava em três dias, agora não antes de seis. So­bretudo de noite, à luz de velas. uma tristeza hipocondríaca sem

SOL l'\ EGRO lt-3

objeto c como uma tonalidade vermelha, sangrenta (11ão como llm!l ) b d 11J o /1 ' ' ' ' " I cor so rc tu o. . . u: n so nervoso e trJsteza nnshca ,· rep~tc

ele, referindo-se implicitamente à acedia doS'. monges da lc.l<Jde .\k­dia. Ou ainda: Como escrever? "Sofrer. sofrer inuíto ... ··

O sofrimento aqui parece ser um ' 'excesso", um poder , uma volúpia . O "ponto negro da mdancolia" nervaliana cedeu lugar a uma torrente passional, a um afeto h istérico, por assim diza, cujo transbordamento fluido carrega os signos plácidos e <Js <:omposh;ões abrandadas da literatura "monológica". Este confere ao texto dos· toicvskiano uma polifonia vertiginosa e impõe como verdade t'lllima do homem dostoievskiano uma carne rebelde que gozêl por não se submeter ao Verbo. Volúpia do sofrimento que não lt:m "nenhuma frieza e nenhum desencanto, nada do que foi posto em moda por Hyron", mas que tem "sede de volúpias, desmesurada c insaciúvel" .. "sede de vida inextinguível", incluindo •·volúpia do roubo, cio brm­ditismo, vollípia do suicldio".11 Essa exaltação do humor, que pode transmitir sofrimento em júbilo incomensurável, é admiravd mentc descrita por Kirilov nos momentos que precedem o suicídio ou a crise : "Há instantes, ele.ç duram cinco a seis segundos, qua11do, · de repente, você . sente a presença da harmonia eterna. você a atingiu. Não é terrestre: não quero dizer que seja uma coisa celeste. mas que o homem. sob seu aspecto terrestre, é incapa:: de suportá-la. Ele deve se tranSformar fisicamente ou morrer. f. um sentimento c/arp, indiscutível, absoluto ( . . . 1 Não é ··entcrnecime11to [ ... l mio é nem mesmo amor; ó! é _çuperior ao amor. O maili terrível é que é tão espantosamente d aro. E. uma alegr i!1 tão imensa com i~!.O ! Se ela durasse mais de cinco segundos, a alma 11ão suportaria e de· veria desaparecer [ ... 1 Para suportar isso por dez segun!.=os. seria preciso transformar-se fisicamente r .. '] .

- Você não é ep:Ntico? -Não. - Você se tomará. Preste atenção, Kirilov: OUI' i dizer que era

precisamente assim que começava a epilepsia r .. . ] " E a propósito da curta duração desse estado: "J.embre-se do cântaro de Maomé. que não teve tempo de· se e~Svaziar e11quanto Maomé. a cavalo, dava

J Grifo nosso . Camet~ des D~mons (Uiário dos Uemôniosl. in Les lh:nron:> COs Demônios), La Pléiade, Gallimard, l'aris, 1955, pp . 810.81 1. • l bid .• p. 812. ~ l bid. , p . 11 54 .

OOSTOIEVSKI, A ESCRITA DO SOFltiMENTO E DO PEJWÃO

a volta ao paraíso. O cântaro são seus cinco segundos, e isso só se parece muito com a sua harmonia; ora, Maomé era epilético. Preste atenção na epilepsia, Kirilov. "6

Irredutível aos sentimentos, o afeto no seu duplo aspecto de fluxo energético e de inscrição psíquica - lúcido, claro, harmonia· so, embora fora da linguagem - aqui é traduzido com uma extra­ordinária fidelidade. O afeto não passa pela linguagem, c quando esta se refere a ele, este nã~ se liga à linguagem como se liga a uma idéia. A verbalização dos afetos (inconscientes ou não) não tem a mesma economia que a das idéias (inconscientes ou não) . Podemos supor que a verbalização dos afetos não os torna conscientes (o su­jeito não sabe mais do que antes donde c como vem a sua alegria ou a sua tristeza e não as modifica), mas faz com que eles operem .duplamente. Por um lado, os afetos re~istribuem a ordem da lin­guagem c dão origem a um estilo. Por outro, mostram o incons­c:l:!ntc em personagens e atos que representam as moc;ões pulsionais mais proibidas e transgressivas. A literatura, como a histeria, que para freud é uma "obra de at·te deformada", é uma encenação dos afetos ao nível intcrsubjetivo (os personagens) c ao nível intralin­güístico (o estilo).

Provavelmente, foi essa int:midadc com o afeto que conduziu Dostoievski a esta visão, segundo a qual a humanidade do homem reside menos na busca de um prazer ou de um benefício (idéia que motiva até a psicanálise freudiana, apesar da prcdominânc:o final ­mente concedida a um "além do princípio do prazer") do que no aspintção a um sofrimento voluptuoso. Diferente da unimos idade ou da raiva , menos objetai, mais curvado sobre a própria peSsoa, aqu~m desse sofrimento, só haveria perda de si na noite do corpo . .t umu pulsão de morte inibida, um sadismo entravado pela vigílin da -cons­ciência c retornado sobre o ego. doravante doloroso c inativo: "Mi· nha raiva está submetida a uma espécie de decomposição química, justamente em virtude dessas mesmas malditas leis da consciência. Mal distingui o objeto do meu 6dio, eis que ele se evapora, os mo­livos se dissipam, o responsável desapareceu, o insulto 11iio é mais um insulto, mas um golpe do destinó, alguma coisa como uma dor de dentes, da qual 11inguém é cu/palio. "1 Finalmente, este pleito para o sofrimento, digno da acedia medieval. até mesmo de Jó: "E por

& l.t:s Démons, op. dt .. pp. ó l9-ó20. 1 Le Sous-sol (0 Subterrâneo), La Pléiadc, Gallimard. Paris. 1qs~. p . ó91l .

SOL NEGltl> 165

que então você está, de forma tão inquebrantável, tão solene, con­vencido de que somente o normal, o positivo, numa palavra, o bem­-estar é necessário? A razão não se engana em suas avaliações? Pode ser que um homem não goste apenas do bem-estar. Mas será que ele não gosta igualmente do sofrimento? Será que o sofrimento não lhe é também tão vantajoso quanto o bem-estar? As vezes, o homem se põe a amar apaixonadamente o sofrimento: é um fato [ . .. )" Muito dostoievsk!ana, a definição do sofrimento como liberdade afir· mada, como capricho: "Não é precisamente o sofrimento que defen­do aqui ou o bem-estar: é o meu capricho, e insisto em que ele m~ seia garantido, se preciso for. Nos "vau:levilles", por exemplo, sei que os sofrimentos não são admitidos; também não se pode admiti­lo num palácio de cristal: há dúvida, há negação no sofrimento { ... ] O sofrimento! mas é a única causa .da consciência! A meu ver, a consciência é um dos maiores males do homem; mas sei que o ho­mem gosta dela e não a trocará por nenhuma satisfação, qualquer que se;a. "8 .

O transgrel>sor, esse ''super-homem" dosto!evskiano que se pro­cura, por exemplo, através da apologia do crime em Ras.kolnikov, não é um nülista, mas u~ homem de valores.9 A prova é o sofri-

8 Ibid ., p. 713-714. 9 Nietzsche associa Napoleão e Dostoievsk.i numa reflexão sobre "o crlmi· noso e os que se assemelham a ele"; os dois gênios desvelariam a presença de uma "existência catílinária" no fundamepto de toda experiência excepcional, t;ortadora de uma transmutação dos valores. "Para o problema que nos inte­ressa, o testemunho de Dostoievski tem grande valor. (Digamos, de passagem, 4uc Dostoievski é o único psicólogo que tem alguma coisa a me ensinar. Eu o considero entre as mais belas fortunas da minha vida, mais ainda do quo minha descoberta de Stendhal.) Esse homem profundo, que mil vezes tinha raziio de considerar com pouquíssima estima os superficiais alemães, por muito tempo viveu entre os forçados da Sibéria [ ... ]". E segundo a versão W . 11. 6. : .. 0 tipo do criminoso é o tipo do homem forte colocado em condições desfavoráveis, de sorte que todos os instin!Os, atingidos pelo desprezo, pelo medo, pela desonra, habitualmente se amalgamam de fonna inextricável, com sentimentos depressivos, isto é, fisiologicamente falando, degeneram" (F. Nietzs­che, O crepúsculo dos ídolos). Ao mesmo tempo que aprecia a apologia do "gênio estético" c "criminoso" em Dostoievski, Nietzsche se insurge com fre· qüência contra o que lhe parece ser a psicologia doentia do cristianismo to· mado nas malhas .do amot, c que o escritor russo manifesta: haveria um "idio­tismo infantil" tanto no Evangelho como num "romance russo", segundo o An· ticristo. Não poderíamos assinalar a fascinação que Doitoievski exerce sobr<! Nietzsche, que vê nele o precursor do super-homem, sem salientar, sobretudo, o mal-estar que o cristianismo dostoievsldano suscita no filósofo alemão.

OOSTOIEVSKI, A ESCRITA DO SOFltiMENTO E DO PEJWÃO

a volta ao paraíso. O cântaro são seus cinco segundos, e isso só se parece muito com a sua harmonia; ora, Maomé era epilético. Preste atenção na epilepsia, Kirilov. "6

Irredutível aos sentimentos, o afeto no seu duplo aspecto de fluxo energético e de inscrição psíquica - lúcido, claro, harmonia· so, embora fora da linguagem - aqui é traduzido com uma extra­ordinária fidelidade. O afeto não passa pela linguagem, c quando esta se refere a ele, este nã~ se liga à linguagem como se liga a uma idéia. A verbalização dos afetos (inconscientes ou não) não tem a mesma economia que a das idéias (inconscientes ou não) . Podemos supor que a verbalização dos afetos não os torna conscientes (o su­jeito não sabe mais do que antes donde c como vem a sua alegria ou a sua tristeza e não as modifica), mas faz com que eles operem .duplamente. Por um lado, os afetos re~istribuem a ordem da lin­guagem c dão origem a um estilo. Por outro, mostram o incons­c:l:!ntc em personagens e atos que representam as moc;ões pulsionais mais proibidas e transgressivas. A literatura, como a histeria, que para freud é uma "obra de at·te deformada", é uma encenação dos afetos ao nível intcrsubjetivo (os personagens) c ao nível intralin­güístico (o estilo).

Provavelmente, foi essa int:midadc com o afeto que conduziu Dostoievski a esta visão, segundo a qual a humanidade do homem reside menos na busca de um prazer ou de um benefício (idéia que motiva até a psicanálise freudiana, apesar da prcdominânc:o final ­mente concedida a um "além do princípio do prazer") do que no aspintção a um sofrimento voluptuoso. Diferente da unimos idade ou da raiva , menos objetai, mais curvado sobre a própria peSsoa, aqu~m desse sofrimento, só haveria perda de si na noite do corpo . .t umu pulsão de morte inibida, um sadismo entravado pela vigílin da -cons­ciência c retornado sobre o ego. doravante doloroso c inativo: "Mi· nha raiva está submetida a uma espécie de decomposição química, justamente em virtude dessas mesmas malditas leis da consciência. Mal distingui o objeto do meu 6dio, eis que ele se evapora, os mo­livos se dissipam, o responsável desapareceu, o insulto 11iio é mais um insulto, mas um golpe do destinó, alguma coisa como uma dor de dentes, da qual 11inguém é cu/palio. "1 Finalmente, este pleito para o sofrimento, digno da acedia medieval. até mesmo de Jó: "E por

& l.t:s Démons, op. dt .. pp. ó l9-ó20. 1 Le Sous-sol (0 Subterrâneo), La Pléiadc, Gallimard. Paris. 1qs~. p . ó91l .

SOL NEGltl> 165

que então você está, de forma tão inquebrantável, tão solene, con­vencido de que somente o normal, o positivo, numa palavra, o bem­-estar é necessário? A razão não se engana em suas avaliações? Pode ser que um homem não goste apenas do bem-estar. Mas será que ele não gosta igualmente do sofrimento? Será que o sofrimento não lhe é também tão vantajoso quanto o bem-estar? As vezes, o homem se põe a amar apaixonadamente o sofrimento: é um fato [ . .. )" Muito dostoievsk!ana, a definição do sofrimento como liberdade afir· mada, como capricho: "Não é precisamente o sofrimento que defen­do aqui ou o bem-estar: é o meu capricho, e insisto em que ele m~ seia garantido, se preciso for. Nos "vau:levilles", por exemplo, sei que os sofrimentos não são admitidos; também não se pode admiti­lo num palácio de cristal: há dúvida, há negação no sofrimento { ... ] O sofrimento! mas é a única causa .da consciência! A meu ver, a consciência é um dos maiores males do homem; mas sei que o ho­mem gosta dela e não a trocará por nenhuma satisfação, qualquer que se;a. "8 .

O transgrel>sor, esse ''super-homem" dosto!evskiano que se pro­cura, por exemplo, através da apologia do crime em Ras.kolnikov, não é um nülista, mas u~ homem de valores.9 A prova é o sofri-

8 Ibid ., p. 713-714. 9 Nietzsche associa Napoleão e Dostoievsk.i numa reflexão sobre "o crlmi· noso e os que se assemelham a ele"; os dois gênios desvelariam a presença de uma "existência catílinária" no fundamepto de toda experiência excepcional, t;ortadora de uma transmutação dos valores. "Para o problema que nos inte­ressa, o testemunho de Dostoievski tem grande valor. (Digamos, de passagem, 4uc Dostoievski é o único psicólogo que tem alguma coisa a me ensinar. Eu o considero entre as mais belas fortunas da minha vida, mais ainda do quo minha descoberta de Stendhal.) Esse homem profundo, que mil vezes tinha raziio de considerar com pouquíssima estima os superficiais alemães, por muito tempo viveu entre os forçados da Sibéria [ ... ]". E segundo a versão W . 11. 6. : .. 0 tipo do criminoso é o tipo do homem forte colocado em condições desfavoráveis, de sorte que todos os instin!Os, atingidos pelo desprezo, pelo medo, pela desonra, habitualmente se amalgamam de fonna inextricável, com sentimentos depressivos, isto é, fisiologicamente falando, degeneram" (F. Nietzs­che, O crepúsculo dos ídolos). Ao mesmo tempo que aprecia a apologia do "gênio estético" c "criminoso" em Dostoievski, Nietzsche se insurge com fre· qüência contra o que lhe parece ser a psicologia doentia do cristianismo to· mado nas malhas .do amot, c que o escritor russo manifesta: haveria um "idio­tismo infantil" tanto no Evangelho como num "romance russo", segundo o An· ticristo. Não poderíamos assinalar a fascinação que Doitoievski exerce sobr<! Nietzsche, que vê nele o precursor do super-homem, sem salientar, sobretudo, o mal-estar que o cristianismo dostoievsldano suscita no filósofo alemão.

166 DOST'OIEVSKI, A ESCRITA 00 SOF.RlMENT() E DO PERDÃO

mento, que resulta de uma permanente procura do sentido. Aquele que tem consciência do,seu ato transgressor, por isto mesmo é puni­do, pois sofre: "reconhecendo seu erro. É o seu castigo, indepen­dentemente do banimento;"'a "o sofrimento, a dor são inseparáveis de uma grande inteligência, de, um grande coração. Parece-me que os verdadeiros grandes homens devem sentir uma imensa tristeza na Terra".11 Assim, quando Nicolau se acusa de ter cometido um crime, sendo inocente, Porfírio acredita estar detectando, nessa acusação desvelada, a velha tradição mística russa, que exalta o sofrimento como indício de humanidade: "Você sabe [ ... ] o que a expiação é para algumas destas pessoas? Elas não pensam em expiar por a~­guém, não, mas têm simplesmente sede de sofrer, e se esse so/r~­mento lhes é imposto pelas autoridades, tanto me/hor." 12 Sojrum,

· l.k l h ~ I ~''13 portanto/ Mrko a ta vez ten a razao em querer so rer.

O sofrimento seria um fato da éonsciência, esta d!z (para Dos­toievski): softa. "Consciente e, em conseqüência, sofrendo, ora ncio quero sofrer, pois por que fim consentiria em sofrer? A natureza, pelo canal da minha consciência, notifica-me de não sei qual harmo­nia do Todo. A consciência humana construiu re/igi'Ões sobre essa notificação [ ... ] submeter-se, aceitar o sofrimento visando à har­monia do Todo e consentir em viver [ ... } E por que deveria tomar tanto cuidado com a sua conversa (do Todo) depois de mim, eu lhes pergunto! Teria valido mais a pena se tivesse sido criado seme/han· ·te a todos os animais, isto é, vivendo, mas não racionalmente cons­ciente de mim mesmo: minha consciência, precisamente, é não uma harmonia, mas pelo contrário, uma discordância, pois sou infeliz por ela. Veiam quem é feliz no mundo e que pessoas consentem em viver! Justamente aquelas que são semelhantes aos animais e que pelo pouco desenvolvimento de suas co~sciências, ~stão .m_a~s P~?~i­mas da condição anima/. ''1< Sob esta ót1ca, o própno suJCidio nults­ta seria uma realização da condição do homem dotado de consciên­cia mas. . . desprovido de amor-perdão, de sentido ideal, de Deus .

10 Crime e castigo. ll lbid. u lbid. 13 Jb id. 14 "Une Sentence" (Uma sentença), in Tournal d'un écrivoin (Diário de um C$C!itor), La Pléiade, Gallimard, Paris, 1972, pp . 725-726.

90L NEGRO 167

Um sofrimento ariterior ao ódio

Não nos apressemos em interpretar esses propósitos como uma confissão de masoquismo patológico. Não é significando o ódio, a destruição do outro e talvez, antes de tudo, a sua própria condena­ção à morte que o ser humano sobrevive como animal simbólico? Uma violência exorbitante, mas freada, desemboca na autocondena­ção do ego para que nasça o indivíduo. De um ponto de vista dia­crônico, ali estamos no limite inferior da subjetividade, antes que se destaque um outro que seja objeto de ataque odioso ou amoroso. Ora, essa mesma freada do ódio permite também o domínio dos signos: não te ataco, eu falo (ou escrevo) meu medo ou minha dor . Meu sofrimento é o revestimento da minha palavra, de minha civi­lização. Imaginamos os riscos masoquistas desta civilidade. Quanto ao escritor, ele pode tirar uma jubilação disto pela manipulação que sabetá, sobte esta base, infligir aos signos e às coisas.

O sofrimento e o seu inverso solidário, o gozo ou a "volúpia" no· sentido de Dostoievski, impõem-se como último indício de uma ruptura que precede, por pouco, a autonomização (cronológica e lógica) do indivíduo e do Outro. Pode se tratar de uma ruptura bioenergética interna ou externa, ou então de uma ruptura simbó­lica devida a um abandono, a um castigo, a um banimento. Jamais nos lembraremos o suficiente da severidade do pai de Dostoievslú, maldito pelos seus mujiques e talvez mesmo conqenado à morte por eles (segundo certos biógrafos, hoje refutados). O sofrimento é a primeira ou a última tentativa do indivíduo de af:rmar o seu " prG. ptio" o mais junto possível da unidade biológica ameaçada e do narcisismo posto à prova. Assim, essa exageração humoral, essa inchação pretens!osa do "próprio" exprime um dado essencial do psiquismo que está se constituindo ou se desmoronando sob a lei de um outro já dominante, embora ainda desconhecido na sua alteri­dade todo-poderosa, sob o olhar do ideal do ego soldado ao ego ideal.

A erotização do sofrimento parece secundária. De fato, ela só ocorre ao se integrar na corrente de uma agressividade sadomaso­quista orientada para o outro que a colore com volúpia e capricho, podendo então o conjunto ser racionalizado como uma experiência metafísica de liberdade ou de transgressão. Entretanto, num grau logicamente e cronologicamente anterior, o sofrimento aparece corno o último l!miar, o afeto primário, da distinção ou da separação. Nesta ótica, acrescentaremos as observações recentes segundo as quais o sentimento de harmonia ou de alegria provocado pela apro-

166 DOST'OIEVSKI, A ESCRITA 00 SOF.RlMENT() E DO PERDÃO

mento, que resulta de uma permanente procura do sentido. Aquele que tem consciência do,seu ato transgressor, por isto mesmo é puni­do, pois sofre: "reconhecendo seu erro. É o seu castigo, indepen­dentemente do banimento;"'a "o sofrimento, a dor são inseparáveis de uma grande inteligência, de, um grande coração. Parece-me que os verdadeiros grandes homens devem sentir uma imensa tristeza na Terra".11 Assim, quando Nicolau se acusa de ter cometido um crime, sendo inocente, Porfírio acredita estar detectando, nessa acusação desvelada, a velha tradição mística russa, que exalta o sofrimento como indício de humanidade: "Você sabe [ ... ] o que a expiação é para algumas destas pessoas? Elas não pensam em expiar por a~­guém, não, mas têm simplesmente sede de sofrer, e se esse so/r~­mento lhes é imposto pelas autoridades, tanto me/hor." 12 Sojrum,

· l.k l h ~ I ~''13 portanto/ Mrko a ta vez ten a razao em querer so rer.

O sofrimento seria um fato da éonsciência, esta d!z (para Dos­toievski): softa. "Consciente e, em conseqüência, sofrendo, ora ncio quero sofrer, pois por que fim consentiria em sofrer? A natureza, pelo canal da minha consciência, notifica-me de não sei qual harmo­nia do Todo. A consciência humana construiu re/igi'Ões sobre essa notificação [ ... ] submeter-se, aceitar o sofrimento visando à har­monia do Todo e consentir em viver [ ... } E por que deveria tomar tanto cuidado com a sua conversa (do Todo) depois de mim, eu lhes pergunto! Teria valido mais a pena se tivesse sido criado seme/han· ·te a todos os animais, isto é, vivendo, mas não racionalmente cons­ciente de mim mesmo: minha consciência, precisamente, é não uma harmonia, mas pelo contrário, uma discordância, pois sou infeliz por ela. Veiam quem é feliz no mundo e que pessoas consentem em viver! Justamente aquelas que são semelhantes aos animais e que pelo pouco desenvolvimento de suas co~sciências, ~stão .m_a~s P~?~i­mas da condição anima/. ''1< Sob esta ót1ca, o própno suJCidio nults­ta seria uma realização da condição do homem dotado de consciên­cia mas. . . desprovido de amor-perdão, de sentido ideal, de Deus .

10 Crime e castigo. ll lbid. u lbid. 13 Jb id. 14 "Une Sentence" (Uma sentença), in Tournal d'un écrivoin (Diário de um C$C!itor), La Pléiade, Gallimard, Paris, 1972, pp . 725-726.

90L NEGRO 167

Um sofrimento ariterior ao ódio

Não nos apressemos em interpretar esses propósitos como uma confissão de masoquismo patológico. Não é significando o ódio, a destruição do outro e talvez, antes de tudo, a sua própria condena­ção à morte que o ser humano sobrevive como animal simbólico? Uma violência exorbitante, mas freada, desemboca na autocondena­ção do ego para que nasça o indivíduo. De um ponto de vista dia­crônico, ali estamos no limite inferior da subjetividade, antes que se destaque um outro que seja objeto de ataque odioso ou amoroso. Ora, essa mesma freada do ódio permite também o domínio dos signos: não te ataco, eu falo (ou escrevo) meu medo ou minha dor . Meu sofrimento é o revestimento da minha palavra, de minha civi­lização. Imaginamos os riscos masoquistas desta civilidade. Quanto ao escritor, ele pode tirar uma jubilação disto pela manipulação que sabetá, sobte esta base, infligir aos signos e às coisas.

O sofrimento e o seu inverso solidário, o gozo ou a "volúpia" no· sentido de Dostoievski, impõem-se como último indício de uma ruptura que precede, por pouco, a autonomização (cronológica e lógica) do indivíduo e do Outro. Pode se tratar de uma ruptura bioenergética interna ou externa, ou então de uma ruptura simbó­lica devida a um abandono, a um castigo, a um banimento. Jamais nos lembraremos o suficiente da severidade do pai de Dostoievslú, maldito pelos seus mujiques e talvez mesmo conqenado à morte por eles (segundo certos biógrafos, hoje refutados). O sofrimento é a primeira ou a última tentativa do indivíduo de af:rmar o seu " prG. ptio" o mais junto possível da unidade biológica ameaçada e do narcisismo posto à prova. Assim, essa exageração humoral, essa inchação pretens!osa do "próprio" exprime um dado essencial do psiquismo que está se constituindo ou se desmoronando sob a lei de um outro já dominante, embora ainda desconhecido na sua alteri­dade todo-poderosa, sob o olhar do ideal do ego soldado ao ego ideal.

A erotização do sofrimento parece secundária. De fato, ela só ocorre ao se integrar na corrente de uma agressividade sadomaso­quista orientada para o outro que a colore com volúpia e capricho, podendo então o conjunto ser racionalizado como uma experiência metafísica de liberdade ou de transgressão. Entretanto, num grau logicamente e cronologicamente anterior, o sofrimento aparece corno o último l!miar, o afeto primário, da distinção ou da separação. Nesta ótica, acrescentaremos as observações recentes segundo as quais o sentimento de harmonia ou de alegria provocado pela apro-

I 68 DOSTOIEVSD, A ESCRITA 00 S<lFIUM:ENTO E 00 . PDDÃO

ximação da crise epilética só seria uma conseqüência do imaginário que, depois da crise, tenta se apropriar positivamente do . momento branco, disruptivo, desse sofrimento provocado pela descontinuidade (descarga energética violenta, ruptura da seqüencialidade simbólica na crise). Dostoievski teria assim enganado os médicos que, depois dele, pensaram observar nos ep~éticos períodos eufóricos que pr~ ce~em a crise, enquanto na rea1idade, esse momento de ruptura sena somente marcado pela experiência dolorosa da perda e do sofri­mento, e isto segundo a experiênc!a secreta do próprio Dostoievski.16

Poderíamos afirmar que, na economia masoquista, a inscrição psíquica da descontinuidade é vivida como um trauma ou como uma perda. O sujeito recalca ou foraclui a violênc!a paranóide-esquizóí­de que, nesta perspectiva, seria posterior à inscrição psíquica dolo­rosa da descontinuidade. Então, ele regressa, logicamente ou crono­logicamente, ao registro onde as separações e os laços {sujeito/ obje­to, afeto/sentido) estão ameaçados. Esse estado manifesta-se no me­lancólico pela dominância do humor sobt·e a própria possibilidade de verbalização, antes de uma eventual paralisia afetiv.a. .

Entretanto, poderíamos encarar . o sintoma epiléti .... o como uma outra variante desse recolhimento do sujeito que, ameaçado de se encontrar na posição paranóide-esquizóide, reencontra pela descarga motora um acionamento mudo da "pulsão de morte" (ruptura da condutibilidade neurológica, interrupção dos laços simbólicos, derro­cada da . homeostase da estrutura viva).

Nesta perspectiva, a melcmcolia, como humor que quebra a continuidade simbólica, c a epilepsia, como descarga motora, são fugas do sujeito frente à relação erótica com o outro e notadamente frente às potencialidades paranóides-esquizóides' do desejo. Em com­pensação, podemos interpretar a idealização c a sublimação como uma tentativa de escapar ao mesmo confronto , mas significando a regrcssiio e suas ambivalências sadomasoquistas. Nesse sentido, o perdão, co-extensivo à sublimação, deserotiza além de Eros. O casal Eros/ Perdão substitui o casal Eros/ Tanatos, permit!ndo que a me­lancolia potencial não se condense em recolhimento afetivo do ~un­do, mas que atravesse a representaçãc dos laços agressivos c amea· çadores com o outro. ê na representação, desde que ela se apóie na economia ideal e sublimatól'ia do perdão, que o indivíduo pode,

ts Cf. J. Catteau, " La Création Littérairc Chez Dostoievski"' (A criação Jitc· rária em 0 .), Instituto de Estudos Eslavos, Paris, 1978, pp. 125-180.

SOL l'fEOÃO 169

não agir, mas formar - po'iein - tanto a sua pulsão de morte quan­to os seus laços eróticos.

Dostoievski e }ó

Em Dostoievski, o ser sofredor lembra a aventura paradoxal de Jó, que, aliás, tanto impressionara o escritor: "Leio o livro de /6, que me proporciona uma exaltação doentia: pâro a leitura e pas­seio no meu quarto, por uma hora, quase chorando [ ... ] . Fato estranho, Ana, este livro é um dos primeiros que me impressiona­ram. . . e eu era então quase uma criança de peito."16 Jó, homem próspero e fiel a Javé, vê-se bruscamente atingido - por . Javé ou por Satã? - por diversos infortúnios. . . Mas esse "deprimido", objeto de zombarias ("Nós te dirigiremos a palavra? Estás deptimi­do!),U em suma, só é triste porque se atém a Deus . Que este Deus s~a impiedoso, injusto com os fiéis, generoso com os ímpios, isto nao o leva a romper o seu contrato divino . Pelo contrário, ele vive constantemente sob o olhar de Deus, e constitui uma confissão irn· pressionante da dependência do deprimido em relação ao seu supe­rego misturado ao seu ego ideal: "O que é um homem para que tu (Deus) o leves tanto em consideração?";11 "Retira-te de mim para que eu seja um pouco alegre. "19 Entretanto, Jó não aprecia Deus. pelo seu verdadeiro poder ("se ele passa perto de mim, não ·o ve­jo"),~ e, enfim, será preciso que o pr6prio Deus recapitule, diante do seu deprinúdo, toda a Criação, que ele afirme a sua posição de Legislador ou de superego suscetível de idealização, para que Jó retome a esperança . Seria o sofredor um narcísico, um homem mui­to interessado em si mesmo, ligado ao seu próprio valor e próximo a se tomar por uma imanência da transcendência? Contudo, após tê·lo punido, Iavé finalmente o gratifica e o coloca ac!ma dos seus

1~ Dostoievski, Letlres lJ. sa femme (Cartas à sua mulher), t. 11 , 1875-1880, Plon, _Paris, 1927, p . 61, carta de 10 de junho de 1875.

A propósito do interesse de Dostoievslti por Jó, B . Boursov, La personna­lité de Dostoievski (A personalidade de D .} (em russo), in Zvezda, 1970, n.• 12. p . 104: "Ele padecia de Deus e do universo, pois não queria defender leis rternas da natureza e da história, ao ponto que, às vezes, recusava reconhecer que o que se realizava estava realizado. Assim. ele ia como que contra tudo." l ketomado em livro. ed. Sovietskii Pissatel, 1979). 17 T6, IV, 2 . 11 16, VII, 17 . 14 Jó, X, 27. .lO J6, lX, 11.

I 68 DOSTOIEVSD, A ESCRITA 00 S<lFIUM:ENTO E 00 . PDDÃO

ximação da crise epilética só seria uma conseqüência do imaginário que, depois da crise, tenta se apropriar positivamente do . momento branco, disruptivo, desse sofrimento provocado pela descontinuidade (descarga energética violenta, ruptura da seqüencialidade simbólica na crise). Dostoievski teria assim enganado os médicos que, depois dele, pensaram observar nos ep~éticos períodos eufóricos que pr~ ce~em a crise, enquanto na rea1idade, esse momento de ruptura sena somente marcado pela experiência dolorosa da perda e do sofri­mento, e isto segundo a experiênc!a secreta do próprio Dostoievski.16

Poderíamos afirmar que, na economia masoquista, a inscrição psíquica da descontinuidade é vivida como um trauma ou como uma perda. O sujeito recalca ou foraclui a violênc!a paranóide-esquizóí­de que, nesta perspectiva, seria posterior à inscrição psíquica dolo­rosa da descontinuidade. Então, ele regressa, logicamente ou crono­logicamente, ao registro onde as separações e os laços {sujeito/ obje­to, afeto/sentido) estão ameaçados. Esse estado manifesta-se no me­lancólico pela dominância do humor sobt·e a própria possibilidade de verbalização, antes de uma eventual paralisia afetiv.a. .

Entretanto, poderíamos encarar . o sintoma epiléti .... o como uma outra variante desse recolhimento do sujeito que, ameaçado de se encontrar na posição paranóide-esquizóide, reencontra pela descarga motora um acionamento mudo da "pulsão de morte" (ruptura da condutibilidade neurológica, interrupção dos laços simbólicos, derro­cada da . homeostase da estrutura viva).

Nesta perspectiva, a melcmcolia, como humor que quebra a continuidade simbólica, c a epilepsia, como descarga motora, são fugas do sujeito frente à relação erótica com o outro e notadamente frente às potencialidades paranóides-esquizóides' do desejo. Em com­pensação, podemos interpretar a idealização c a sublimação como uma tentativa de escapar ao mesmo confronto , mas significando a regrcssiio e suas ambivalências sadomasoquistas. Nesse sentido, o perdão, co-extensivo à sublimação, deserotiza além de Eros. O casal Eros/ Perdão substitui o casal Eros/ Tanatos, permit!ndo que a me­lancolia potencial não se condense em recolhimento afetivo do ~un­do, mas que atravesse a representaçãc dos laços agressivos c amea· çadores com o outro. ê na representação, desde que ela se apóie na economia ideal e sublimatól'ia do perdão, que o indivíduo pode,

ts Cf. J. Catteau, " La Création Littérairc Chez Dostoievski"' (A criação Jitc· rária em 0 .), Instituto de Estudos Eslavos, Paris, 1978, pp. 125-180.

SOL l'fEOÃO 169

não agir, mas formar - po'iein - tanto a sua pulsão de morte quan­to os seus laços eróticos.

Dostoievski e }ó

Em Dostoievski, o ser sofredor lembra a aventura paradoxal de Jó, que, aliás, tanto impressionara o escritor: "Leio o livro de /6, que me proporciona uma exaltação doentia: pâro a leitura e pas­seio no meu quarto, por uma hora, quase chorando [ ... ] . Fato estranho, Ana, este livro é um dos primeiros que me impressiona­ram. . . e eu era então quase uma criança de peito."16 Jó, homem próspero e fiel a Javé, vê-se bruscamente atingido - por . Javé ou por Satã? - por diversos infortúnios. . . Mas esse "deprimido", objeto de zombarias ("Nós te dirigiremos a palavra? Estás deptimi­do!),U em suma, só é triste porque se atém a Deus . Que este Deus s~a impiedoso, injusto com os fiéis, generoso com os ímpios, isto nao o leva a romper o seu contrato divino . Pelo contrário, ele vive constantemente sob o olhar de Deus, e constitui uma confissão irn· pressionante da dependência do deprimido em relação ao seu supe­rego misturado ao seu ego ideal: "O que é um homem para que tu (Deus) o leves tanto em consideração?";11 "Retira-te de mim para que eu seja um pouco alegre. "19 Entretanto, Jó não aprecia Deus. pelo seu verdadeiro poder ("se ele passa perto de mim, não ·o ve­jo"),~ e, enfim, será preciso que o pr6prio Deus recapitule, diante do seu deprinúdo, toda a Criação, que ele afirme a sua posição de Legislador ou de superego suscetível de idealização, para que Jó retome a esperança . Seria o sofredor um narcísico, um homem mui­to interessado em si mesmo, ligado ao seu próprio valor e próximo a se tomar por uma imanência da transcendência? Contudo, após tê·lo punido, Iavé finalmente o gratifica e o coloca ac!ma dos seus

1~ Dostoievski, Letlres lJ. sa femme (Cartas à sua mulher), t. 11 , 1875-1880, Plon, _Paris, 1927, p . 61, carta de 10 de junho de 1875.

A propósito do interesse de Dostoievslti por Jó, B . Boursov, La personna­lité de Dostoievski (A personalidade de D .} (em russo), in Zvezda, 1970, n.• 12. p . 104: "Ele padecia de Deus e do universo, pois não queria defender leis rternas da natureza e da história, ao ponto que, às vezes, recusava reconhecer que o que se realizava estava realizado. Assim. ele ia como que contra tudo." l ketomado em livro. ed. Sovietskii Pissatel, 1979). 17 T6, IV, 2 . 11 16, VII, 17 . 14 Jó, X, 27. .lO J6, lX, 11.

170 DOSTOIEVSKI, A ESCRITA DO SOFIUMENTO E DO PEIIDÂO

detratores. ''O. Senhor não disse - objeta-lhes - a verdade a meu respeito, como o meu servidor Jó".21

Da mesma forma, no cristão Dostoievs.ki, o sofrimento - indí­cio maior de humanidade - é a marca da dependência do homem frente a uma Lei divina, tanto quanto de sua diferença irremediável com relação a essa Lei . A simultaneidade do laço e da falta e a da fidelidade e da transgressão encontram-se na própria ordem ét!ca, em que o homem dostoievskiano é idiota por santidade, revelador por criminalidade . ·

Essa lógica de interdependência necessária entre lei e trans­gressão não poderia ser estranha ao fato de que o desencadeador da crise epilética, com muita freqüência, é uma contradição muito forte entre amor e ódio, desejo do outro e rejeição ao outro. Por out ro Jado, podemos nos perguntar se a célebre ambivalência dos heróis de Dostoiev.s.ki, que levou Bakhtine22 a postular um "dialogismo" na base de sua poética, não é uma tentativa de representar, pelo agenciamento dos discursos e pelos conflitos . entre os personagens, essa oposição sem solução sintética das duas forças (positiva e nega­tiva) próprias à pulsão e ao desejo.

Todavia, se rompêssemos o elo simbólico, nosso }6 tornar-se-ia Kirílov, um terrorista suicida. Merejkovski23 não está inteiramente errado em ver no grande escritor o precursor da revolução russa . Certamente, ele a teme, a rejeita e a estigmatiza, mas é ele que co­nhece a sua chegada sorrateira na alma do seu homem sofredor, pronto a trair a humildade de Jó pela exaltação maníaca do revolu­cionário que se toma por Deus (segundo Dostoievski, esta é a fé socialista dos ateus) . O narcisismo do _deprimido transforma-se na mania do terrorismo ateu: KirHov é o homem sem Deus que tomou o lugar de Deus. O sofrimento cessa para que a morte se afirme: o sofr!mento era uma barreira contra o suicídio e a morte?

Suicídio e terrorismo

Lembrar-nos-emas de pelo menos duas soluções, ambas fatais, do sofrimento dostoievskiano - último disfarce do caos e da destruição.

2' Jó, XL:II, 8. 22 Cf. M. Bakhtinc, IA poétique de Dostoievski (A poética de Oostoievski) , Seuil, Paris, 1970. 2·' Cf. O. Merejkovski, Prophete de lu révolution russe (Profeta da revolução mssa), 1906 (em russo) .

SOL :NEGRO 171

Kirilov está persuadido de que Deus não existe, mas, ao ader!r à instância divina, ele quer erguer a liberdade humana à altura do absoluto pelo ato negador e livre por excelência, que para ele é o suicídio. Deus não existe - Eu sou Deus - Eu não existo - Eu me suicido, esta seria a lógica paradoxát de sua negação de uma patenudade ou divindade absoluta, contudo mantida para que eu dela me aposse.

Em compensação, e como que numa defesa maníaca contra o desespero, Raskolnikov lança seu ódio não sobre si, mas sobre um outro, recusado, denegrido. Pelo seu crime gratuito, que consiste em matar uma mulher insignificante, ele quebra o contrato cr!stão (" Amarás teu próximo como a ti mesmo") . Ele denega o seu amor pelo objeto originário ("Já que não amo minha mãe, o meu próximo é insignificante, o que me permite suprimi-lo sem constrangimento", parece dizer), e, a partir deste implícito, ele se autoriza a realizar seu ódio contra suas companhias e contra uma sociedade percebidos como perseguidores.

O sentido metafísico desses comportamentos, sabemos, é a ne­gação niilista do valor supremo, a qual também revela uma incapa­cidade de simbolizar, pensar, assumir o sqfrimento. Em Dostoievs­ki, o niilismo suscita a revolta do crente contra o an:quilamento transcendental. O psicanalista detectará a fascinação, pelo menos ambígua, do escritor tanto por . certas defesas maníacas instaladas contra esse sofrimento como pela depressão incomum que ele cul­tiva, por outro lado, como revestimen tos necessários e antinômicos de sua escrita. O abandono da moral, a perda do sentido da vida, o terrorismo ou a tortura, tão freqüentes em nossa atualidade, não deixam de nos lembrar que essas muralhas são abjetas. Quanto ao escritor, ele escolheu a adesão à ortodoxia religiosa. Esse " obscuran­tismo" tão violentamente denunc!ado por Freud, finalmente é me-• nos nefasto para a civilização do que o niilismo terrorista. Resta, com c para além da ideologia, a escrita : combate doloroso e perma­nente para compor uma obra de ponta a ponta com as volúpias não­-nomeáveis da destruição e do caos.

A rel!gião ou então a mania, filha da paranóia, são os únicos contrapesos para o desespero? A criação artística integra-se e as di·s­pensa. Assim, as obras de arte nos conduzem a estabelecer relações menos destruidoras, mais pacificadoras, conosco e com os outros.

170 DOSTOIEVSKI, A ESCRITA DO SOFIUMENTO E DO PEIIDÂO

detratores. ''O. Senhor não disse - objeta-lhes - a verdade a meu respeito, como o meu servidor Jó".21

Da mesma forma, no cristão Dostoievs.ki, o sofrimento - indí­cio maior de humanidade - é a marca da dependência do homem frente a uma Lei divina, tanto quanto de sua diferença irremediável com relação a essa Lei . A simultaneidade do laço e da falta e a da fidelidade e da transgressão encontram-se na própria ordem ét!ca, em que o homem dostoievskiano é idiota por santidade, revelador por criminalidade . ·

Essa lógica de interdependência necessária entre lei e trans­gressão não poderia ser estranha ao fato de que o desencadeador da crise epilética, com muita freqüência, é uma contradição muito forte entre amor e ódio, desejo do outro e rejeição ao outro. Por out ro Jado, podemos nos perguntar se a célebre ambivalência dos heróis de Dostoiev.s.ki, que levou Bakhtine22 a postular um "dialogismo" na base de sua poética, não é uma tentativa de representar, pelo agenciamento dos discursos e pelos conflitos . entre os personagens, essa oposição sem solução sintética das duas forças (positiva e nega­tiva) próprias à pulsão e ao desejo.

Todavia, se rompêssemos o elo simbólico, nosso }6 tornar-se-ia Kirílov, um terrorista suicida. Merejkovski23 não está inteiramente errado em ver no grande escritor o precursor da revolução russa . Certamente, ele a teme, a rejeita e a estigmatiza, mas é ele que co­nhece a sua chegada sorrateira na alma do seu homem sofredor, pronto a trair a humildade de Jó pela exaltação maníaca do revolu­cionário que se toma por Deus (segundo Dostoievski, esta é a fé socialista dos ateus) . O narcisismo do _deprimido transforma-se na mania do terrorismo ateu: KirHov é o homem sem Deus que tomou o lugar de Deus. O sofrimento cessa para que a morte se afirme: o sofr!mento era uma barreira contra o suicídio e a morte?

Suicídio e terrorismo

Lembrar-nos-emas de pelo menos duas soluções, ambas fatais, do sofrimento dostoievskiano - último disfarce do caos e da destruição.

2' Jó, XL:II, 8. 22 Cf. M. Bakhtinc, IA poétique de Dostoievski (A poética de Oostoievski) , Seuil, Paris, 1970. 2·' Cf. O. Merejkovski, Prophete de lu révolution russe (Profeta da revolução mssa), 1906 (em russo) .

SOL :NEGRO 171

Kirilov está persuadido de que Deus não existe, mas, ao ader!r à instância divina, ele quer erguer a liberdade humana à altura do absoluto pelo ato negador e livre por excelência, que para ele é o suicídio. Deus não existe - Eu sou Deus - Eu não existo - Eu me suicido, esta seria a lógica paradoxát de sua negação de uma patenudade ou divindade absoluta, contudo mantida para que eu dela me aposse.

Em compensação, e como que numa defesa maníaca contra o desespero, Raskolnikov lança seu ódio não sobre si, mas sobre um outro, recusado, denegrido. Pelo seu crime gratuito, que consiste em matar uma mulher insignificante, ele quebra o contrato cr!stão (" Amarás teu próximo como a ti mesmo") . Ele denega o seu amor pelo objeto originário ("Já que não amo minha mãe, o meu próximo é insignificante, o que me permite suprimi-lo sem constrangimento", parece dizer), e, a partir deste implícito, ele se autoriza a realizar seu ódio contra suas companhias e contra uma sociedade percebidos como perseguidores.

O sentido metafísico desses comportamentos, sabemos, é a ne­gação niilista do valor supremo, a qual também revela uma incapa­cidade de simbolizar, pensar, assumir o sqfrimento. Em Dostoievs­ki, o niilismo suscita a revolta do crente contra o an:quilamento transcendental. O psicanalista detectará a fascinação, pelo menos ambígua, do escritor tanto por . certas defesas maníacas instaladas contra esse sofrimento como pela depressão incomum que ele cul­tiva, por outro lado, como revestimen tos necessários e antinômicos de sua escrita. O abandono da moral, a perda do sentido da vida, o terrorismo ou a tortura, tão freqüentes em nossa atualidade, não deixam de nos lembrar que essas muralhas são abjetas. Quanto ao escritor, ele escolheu a adesão à ortodoxia religiosa. Esse " obscuran­tismo" tão violentamente denunc!ado por Freud, finalmente é me-• nos nefasto para a civilização do que o niilismo terrorista. Resta, com c para além da ideologia, a escrita : combate doloroso e perma­nente para compor uma obra de ponta a ponta com as volúpias não­-nomeáveis da destruição e do caos.

A rel!gião ou então a mania, filha da paranóia, são os únicos contrapesos para o desespero? A criação artística integra-se e as di·s­pensa. Assim, as obras de arte nos conduzem a estabelecer relações menos destruidoras, mais pacificadoras, conosco e com os outros.

172 DOSTOIEVSD, A E!SCJliT A DO SOFIUHENTO E DO PERDÃO

Uma nwrte sem ressurreição. O tempo apocalíptico

Diante do Cristo morto, de Holbein, tanto Mychkine como Hy­polite no Idiota (1869) duvidam da Ressurreição. A morte tão na­tural, tão implacável desse cadáver não parece deixar qualquer lugar para a redenção: "O espetáculo desse rosto intumescido, coberto de ferimentos ensangüentados, é assustador - escreve Anna Grigoríev­na Dostoievskaia nas suas memóriasn - assim, muito fraca para olhar por mais tempo, na situação em que me encontrava então, saía para outra sala. Mas meu marido parecia aniquilado. Podemos en­contrar no Idiota um reflexo da impressão muito forte que esse qua· dro lhe causou . Quando voltei, depois de vinte minutos, ele ainda estava lá, no mesmo lugar, subjugado. Seu rosto emocionado trazia essa expressão de pavor que eu notara com freqüência no início das crises de epilepsia. Tomei-o delicadamen~e pelo braço, /e'))ei-o para a sala e fiz com que se senta3se num banco, esperando a crise de um minuto para ou:ro, que felizmente não aconteceu. Pouco a pou­co ele se acalmou, mas saindo do museu ele não insistiu por, ainda uma vez, rever esse quadro."'ZS ,

Um tempo suprimido pesa sobre esse quadro, o fato inelutável da morte apagando toda promessa de projeto, de continuidade ou de ressurreição. Um tempo apocalíptico que Dostoievskí conhece bem: ele o evoca diante dos despojos mortais de sua primeira mu­lher Maria Omitrievna ("Não haverá mais tempo"), referindo-se ao Apocalipse (X,6), e o príncipe Mychkíne, nos mesmos termos; fala dele a Rogojine ("Nesse momento, tenho a impressão de compreen­der a singular palavra: Não haverá mais tempo"), mas passando, como Kirilov , uma versão bem-aventurada, à maneira de Maomé,

2• Cf. A. G. Dosto"ivskaia, Dostoievsk.i, Gallimard, Paris, 1930, p. 173; o texto reporta-se à viagem deles à Suíça em 1867 . l' Nas notas estenográficas do seu Journal (Diário), datadas de 24/12 de agosto de 1867, a esposa do escri tor relata : "No museu da cidade de Basiléia, !'iodr Mihailovitch viu o quadro de Hans Holbein. Este o impressionou terri­velmente e ele me disse então que "tal quadro pode fazer você perder a ié'' Segundo L. P . Grossman, Dostoievski teria sabido da existência deste quadro desde a sua infância, a partir das Lettres du voyageur russe (Cartas do viajante russo), de Karamzine, que considera que não há "nada de divino" no Cristo de Holbein. O mesmo crítico supõe ser verossímil o fato de que Dostoievsk.i tenha !ido Mare tlU diable de George Sand, que insiste no impacto do sofrimento na obra de Holbein. (Df. L. P. Grossman, F. M. Dostoievski, Molodaia Gvardia, 1962, e Semin4rio sobre DosJoievski, 1923. em russo.)

SOL N!ORO 173

dessa suspensão temporal. Para Dostoievsk.i, suspender o tempo é suspender a fé no Cristo: "Portanto, tudo depende disto: aceitamos o Cristo como ideal definitivo na Terra. Isto equivale a dizer que tudo depende da fé no Cristo. Se acreditarmos no Cristo, acredita­mos também que viveremos etemamente."28 E, entretanto, que per­dão, que salvação diante do nada irremediável dessa carne sem vida, dessa solidão absoluta no quadro de Holbein? O escritor fica per­turbado, como ficou diante do cadáver de sua primeira mulher em 1864 .

O que é o tato?

O sentido da melancolia? Nada mais do que um sofrimento abissal que não chega a se significar e que, tendo perdido o sentido, perde a vida. Este sentido é o afeto insensato que o analista irá procurar com um máximo de empatia, para além do abrandamento motor e verbal dos seus deprimidos, no tom de suas vozes, ou então recortando suas palavras desvitalizadas, banalizadas, gastas, palavras das quais desapareceu todo apelo ao outro, para tentar, precisamen­te, unir-se ao outro nas sílabas, nos fragmentos e nas suas recomposi­çõesP Tal escuta analítica pressupõe tato.

O que é o tato? Ouvir certo com o perdão. Perdão: dar a mai~, apostar no que está ali para renovar, para fazer com que o depn­mido se anime (este estranho curvado sobre o seu ferimento) e para lhe dar a possibilidade de um novo encontro. A gravidade desse perdão aparecerá melhor na concepção que dele Dostoievski desen­volve, a propósito do sent!do da melancolia: entre o sofrimento e a atuação, a atividade estética é um perdão. Aqui se caracteriza o cristianismo ortodoxo de Dostoievski, que impregna inteiramente a obra do artista·. Aqui também ressalta - mais do que a sua cum­plicidade imaginária com o criminoso - o mal-estar que seus textos suscitam no leitor moderno, preso ao niilismo.

De fato, toda imprecação moderna contra o cristianismo -_até c inclusive a de Nietzsche - é uma imprecação contra o perdao. Entretanto, esse "perdão", entendido como complacência e avilta· mento, amolecimento e recusa de poder, talvez seja apenas a i ma·

2s Héritage littéraire (Herança literária), ed. Nauk.ia, n.o 83, p . 174, citado por i . Catteau, op. cit ., p. 174 . ~~ Cf . supra, cap. 11, pp. 66 .. 69.

172 DOSTOIEVSD, A E!SCJliT A DO SOFIUHENTO E DO PERDÃO

Uma nwrte sem ressurreição. O tempo apocalíptico

Diante do Cristo morto, de Holbein, tanto Mychkine como Hy­polite no Idiota (1869) duvidam da Ressurreição. A morte tão na­tural, tão implacável desse cadáver não parece deixar qualquer lugar para a redenção: "O espetáculo desse rosto intumescido, coberto de ferimentos ensangüentados, é assustador - escreve Anna Grigoríev­na Dostoievskaia nas suas memóriasn - assim, muito fraca para olhar por mais tempo, na situação em que me encontrava então, saía para outra sala. Mas meu marido parecia aniquilado. Podemos en­contrar no Idiota um reflexo da impressão muito forte que esse qua· dro lhe causou . Quando voltei, depois de vinte minutos, ele ainda estava lá, no mesmo lugar, subjugado. Seu rosto emocionado trazia essa expressão de pavor que eu notara com freqüência no início das crises de epilepsia. Tomei-o delicadamen~e pelo braço, /e'))ei-o para a sala e fiz com que se senta3se num banco, esperando a crise de um minuto para ou:ro, que felizmente não aconteceu. Pouco a pou­co ele se acalmou, mas saindo do museu ele não insistiu por, ainda uma vez, rever esse quadro."'ZS ,

Um tempo suprimido pesa sobre esse quadro, o fato inelutável da morte apagando toda promessa de projeto, de continuidade ou de ressurreição. Um tempo apocalíptico que Dostoievskí conhece bem: ele o evoca diante dos despojos mortais de sua primeira mu­lher Maria Omitrievna ("Não haverá mais tempo"), referindo-se ao Apocalipse (X,6), e o príncipe Mychkíne, nos mesmos termos; fala dele a Rogojine ("Nesse momento, tenho a impressão de compreen­der a singular palavra: Não haverá mais tempo"), mas passando, como Kirilov , uma versão bem-aventurada, à maneira de Maomé,

2• Cf. A. G. Dosto"ivskaia, Dostoievsk.i, Gallimard, Paris, 1930, p. 173; o texto reporta-se à viagem deles à Suíça em 1867 . l' Nas notas estenográficas do seu Journal (Diário), datadas de 24/12 de agosto de 1867, a esposa do escri tor relata : "No museu da cidade de Basiléia, !'iodr Mihailovitch viu o quadro de Hans Holbein. Este o impressionou terri­velmente e ele me disse então que "tal quadro pode fazer você perder a ié'' Segundo L. P . Grossman, Dostoievski teria sabido da existência deste quadro desde a sua infância, a partir das Lettres du voyageur russe (Cartas do viajante russo), de Karamzine, que considera que não há "nada de divino" no Cristo de Holbein. O mesmo crítico supõe ser verossímil o fato de que Dostoievsk.i tenha !ido Mare tlU diable de George Sand, que insiste no impacto do sofrimento na obra de Holbein. (Df. L. P. Grossman, F. M. Dostoievski, Molodaia Gvardia, 1962, e Semin4rio sobre DosJoievski, 1923. em russo.)

SOL N!ORO 173

dessa suspensão temporal. Para Dostoievsk.i, suspender o tempo é suspender a fé no Cristo: "Portanto, tudo depende disto: aceitamos o Cristo como ideal definitivo na Terra. Isto equivale a dizer que tudo depende da fé no Cristo. Se acreditarmos no Cristo, acredita­mos também que viveremos etemamente."28 E, entretanto, que per­dão, que salvação diante do nada irremediável dessa carne sem vida, dessa solidão absoluta no quadro de Holbein? O escritor fica per­turbado, como ficou diante do cadáver de sua primeira mulher em 1864 .

O que é o tato?

O sentido da melancolia? Nada mais do que um sofrimento abissal que não chega a se significar e que, tendo perdido o sentido, perde a vida. Este sentido é o afeto insensato que o analista irá procurar com um máximo de empatia, para além do abrandamento motor e verbal dos seus deprimidos, no tom de suas vozes, ou então recortando suas palavras desvitalizadas, banalizadas, gastas, palavras das quais desapareceu todo apelo ao outro, para tentar, precisamen­te, unir-se ao outro nas sílabas, nos fragmentos e nas suas recomposi­çõesP Tal escuta analítica pressupõe tato.

O que é o tato? Ouvir certo com o perdão. Perdão: dar a mai~, apostar no que está ali para renovar, para fazer com que o depn­mido se anime (este estranho curvado sobre o seu ferimento) e para lhe dar a possibilidade de um novo encontro. A gravidade desse perdão aparecerá melhor na concepção que dele Dostoievski desen­volve, a propósito do sent!do da melancolia: entre o sofrimento e a atuação, a atividade estética é um perdão. Aqui se caracteriza o cristianismo ortodoxo de Dostoievski, que impregna inteiramente a obra do artista·. Aqui também ressalta - mais do que a sua cum­plicidade imaginária com o criminoso - o mal-estar que seus textos suscitam no leitor moderno, preso ao niilismo.

De fato, toda imprecação moderna contra o cristianismo -_até c inclusive a de Nietzsche - é uma imprecação contra o perdao. Entretanto, esse "perdão", entendido como complacência e avilta· mento, amolecimento e recusa de poder, talvez seja apenas a i ma·

2s Héritage littéraire (Herança literária), ed. Nauk.ia, n.o 83, p . 174, citado por i . Catteau, op. cit ., p. 174 . ~~ Cf . supra, cap. 11, pp. 66 .. 69.

174 OOSTOIEVS](J, A ESCII.JTA DO SOflUMENTO E DO PDDÃO

g~m que fazem_os do cristianismo decadente . Pelo contrário, a gra­vuiade . ~o perdao - tal como opera na tradição teológica e tal como a reabilita ~ experiência estética que se identifica com a abjeção por ~travessa-la , nomeá-la, gastá-la - é inerente à economia do re­nasctmento psíquico. De qualquer fom1a, assim ela aparece sob o fa to _ categ6n~o. b:név~!o ~a pr~tica analítica. Desse lugar, a "per­versao do cnsttamsmo estigmatizada por Nietzsche em Pascal 2l mas que também se encontra manifesta com força na ambivalên~ia do perdão estético em Dostoievski, é um poderoso combate contra a paranóia hostil ao perdão. A trajetória de Raskolnikov é um exem­p_lo disto, passando por sua melancolia, sua denegação terrorista e, fmalmente, pelo seu reconhecimento, que se verifica ser um renas · cimento.

A morte: uma inaptidãÇJ para o perdão

A idéia do perdão povoa totalmente a obra de Dostoicvski . Humilhados e Ofendidos (1861), desde as primeiras páginas,

nos faz encontrar um cadáver ambulante . Es5c corpo, que se asse­melha a um morto, mas que na realidade está no limiar da morte assedia o imaginário de Dostoievski. Quando ele vir o quadro d~ Holbein na Basiléia, em '1867, sem dúvida sua impressão será a de ter reencontra.do um _vélho conhecido, um fantasma íntimo: "O qu:.: t~mbém me lmpresswnara era a 3Ua magreza extrema; quase não tmha mais corpo, era como se lhe restasse apenas a pele sobre os ossos. Seus olhos grandes, mas apagados, cercados de olheiras de u~ azu.l es~uro, olhavam sempre para a frente, ;amais para o lado, e Jamars vwm algo, estou convencido disto [ ... } Em que ele está pensando? continuava eu com meus botões, o que tem na cabeça? E pensa ainda em alguma coisa? Seu rosto está tão morto que já não exprime absolutamente mais nada. " 29

Isto não é uma descrição do quadro de Holbein, mas de um personagem enigmático que estréia em Humilhados e Ofendidos. Trata-se de um velho denominado Smith, o avô da pequena epilé-

:r• ''. . . a perversão de Pascal, que acreditava na perversão da sua razão pelo pecado original, ao passo que ela niío era pervertida senão pelo seu cristianis­r.•o" ("L'Antechrist" (0 Anticristo) , in Oeuvres completes (Obras Completas}. Gallimard, Paris, 1974, p. 163) . ~ Humiliés et Offensés (Humilhados c Ofendidos), La Pléiadc, Gallimard, Pa­rts, 1953, p. 937 .

SOL NEGRO 175

tica Nelly, pai de uma moça "romântica e insensata" a quem jama~s ele perdoará sua relação com o prínci~ P. A. Valkovski, relação que aniquilará a fortuna de Smith, a jovem mullier e a própria Nelly, filha bastarda do príncipe.

Smith tem a dignidade rígida e mortífera daquele que não per­doa. No romance, ele inaugura uma série de personagens profun­damente humilhados e ofendidos, que não podem perdoar e que, na hora da morte, amaldiçoam o seu tirano com uma intensidade passional que faz adivinhar que, no limiar da própria morte, é o perseguidor que é desejado. Este é o caso da filha de Smith e da própria Nelly.

A esta série se oporá uma outra: a do narrador escritor como Dostoievski, e da família dos Ilchmeniev que, em circunstâncias aná­logas às da família Smith, humilhados e ofendidos, acabam perdoan­do, não o cínico, mas a jovem vítima. (Vol~aremos a essa diferença quando insistirmos na prescrição do crime que não o apaga, mas que pennite ao perdoado "refazer seu caminho".)

Assinalemos, por enquanto, a impossibilidade do perdão: Smíth não perdoa nem sua filha, nem Valkovski, Nelly perdoa sua mãe, mas não Vallcovs.ki, a mãe não perdoa nem Valkovski nem seu pai exasperado. Como numa dança macabra, a humilha­ção sem perdão dirige a roda e conduz "esse egoísmo do sofrimento" à condenação à morte de todos na e pela narração . Uma mensagem escondida parece se destacar: o condenado à morte é aquele que não perdoa. O corpo ·decaído na velhice, a doença e a solidão, todos os sinais físicos da morte inelutável, a doença e a própria tris­teza indicariam, neste sent!do, uma inaptidão para o perdão. Em conseqüência, o leitor deduz que o próprio Cristo morto seria um Cristo imaginado como estranho ao perdão. Para estar tamb~ "realmente morto" , esse Cristo não foi perdoado e não perdoará. Pelo contrário, a Ressurreição aparece como a man:festação supre­ma do perdão: reconduzindo seu Filho à vida, o Pai reconcilia-se com Ele, mas ainda mais, ressuscitando, o Cristo manifesta aos seus fiéis que Ele não os abandona: " Venho a vocês - parece d:zer­compreendam que os perdôo."

Inacreditável, incerto, miraculoso e contudo tão fundamental para a fé cristã, tanto quanto para a estética e para a moral de Dostoievski,. o perdão é quase uma loucura em O Idiota, um deus ex machina em Crime e Castigo.

Na verdade, deixando de lado suas crises convulsivas, o prín­cipe Mycllkine só é "idiota" porque não tem rancor. Ridiculari-

174 OOSTOIEVS](J, A ESCII.JTA DO SOflUMENTO E DO PDDÃO

g~m que fazem_os do cristianismo decadente . Pelo contrário, a gra­vuiade . ~o perdao - tal como opera na tradição teológica e tal como a reabilita ~ experiência estética que se identifica com a abjeção por ~travessa-la , nomeá-la, gastá-la - é inerente à economia do re­nasctmento psíquico. De qualquer fom1a, assim ela aparece sob o fa to _ categ6n~o. b:név~!o ~a pr~tica analítica. Desse lugar, a "per­versao do cnsttamsmo estigmatizada por Nietzsche em Pascal 2l mas que também se encontra manifesta com força na ambivalên~ia do perdão estético em Dostoievski, é um poderoso combate contra a paranóia hostil ao perdão. A trajetória de Raskolnikov é um exem­p_lo disto, passando por sua melancolia, sua denegação terrorista e, fmalmente, pelo seu reconhecimento, que se verifica ser um renas · cimento.

A morte: uma inaptidãÇJ para o perdão

A idéia do perdão povoa totalmente a obra de Dostoicvski . Humilhados e Ofendidos (1861), desde as primeiras páginas,

nos faz encontrar um cadáver ambulante . Es5c corpo, que se asse­melha a um morto, mas que na realidade está no limiar da morte assedia o imaginário de Dostoievski. Quando ele vir o quadro d~ Holbein na Basiléia, em '1867, sem dúvida sua impressão será a de ter reencontra.do um _vélho conhecido, um fantasma íntimo: "O qu:.: t~mbém me lmpresswnara era a 3Ua magreza extrema; quase não tmha mais corpo, era como se lhe restasse apenas a pele sobre os ossos. Seus olhos grandes, mas apagados, cercados de olheiras de u~ azu.l es~uro, olhavam sempre para a frente, ;amais para o lado, e Jamars vwm algo, estou convencido disto [ ... } Em que ele está pensando? continuava eu com meus botões, o que tem na cabeça? E pensa ainda em alguma coisa? Seu rosto está tão morto que já não exprime absolutamente mais nada. " 29

Isto não é uma descrição do quadro de Holbein, mas de um personagem enigmático que estréia em Humilhados e Ofendidos. Trata-se de um velho denominado Smith, o avô da pequena epilé-

:r• ''. . . a perversão de Pascal, que acreditava na perversão da sua razão pelo pecado original, ao passo que ela niío era pervertida senão pelo seu cristianis­r.•o" ("L'Antechrist" (0 Anticristo) , in Oeuvres completes (Obras Completas}. Gallimard, Paris, 1974, p. 163) . ~ Humiliés et Offensés (Humilhados c Ofendidos), La Pléiadc, Gallimard, Pa­rts, 1953, p. 937 .

SOL NEGRO 175

tica Nelly, pai de uma moça "romântica e insensata" a quem jama~s ele perdoará sua relação com o prínci~ P. A. Valkovski, relação que aniquilará a fortuna de Smith, a jovem mullier e a própria Nelly, filha bastarda do príncipe.

Smith tem a dignidade rígida e mortífera daquele que não per­doa. No romance, ele inaugura uma série de personagens profun­damente humilhados e ofendidos, que não podem perdoar e que, na hora da morte, amaldiçoam o seu tirano com uma intensidade passional que faz adivinhar que, no limiar da própria morte, é o perseguidor que é desejado. Este é o caso da filha de Smith e da própria Nelly.

A esta série se oporá uma outra: a do narrador escritor como Dostoievski, e da família dos Ilchmeniev que, em circunstâncias aná­logas às da família Smith, humilhados e ofendidos, acabam perdoan­do, não o cínico, mas a jovem vítima. (Vol~aremos a essa diferença quando insistirmos na prescrição do crime que não o apaga, mas que pennite ao perdoado "refazer seu caminho".)

Assinalemos, por enquanto, a impossibilidade do perdão: Smíth não perdoa nem sua filha, nem Valkovski, Nelly perdoa sua mãe, mas não Vallcovs.ki, a mãe não perdoa nem Valkovski nem seu pai exasperado. Como numa dança macabra, a humilha­ção sem perdão dirige a roda e conduz "esse egoísmo do sofrimento" à condenação à morte de todos na e pela narração . Uma mensagem escondida parece se destacar: o condenado à morte é aquele que não perdoa. O corpo ·decaído na velhice, a doença e a solidão, todos os sinais físicos da morte inelutável, a doença e a própria tris­teza indicariam, neste sent!do, uma inaptidão para o perdão. Em conseqüência, o leitor deduz que o próprio Cristo morto seria um Cristo imaginado como estranho ao perdão. Para estar tamb~ "realmente morto" , esse Cristo não foi perdoado e não perdoará. Pelo contrário, a Ressurreição aparece como a man:festação supre­ma do perdão: reconduzindo seu Filho à vida, o Pai reconcilia-se com Ele, mas ainda mais, ressuscitando, o Cristo manifesta aos seus fiéis que Ele não os abandona: " Venho a vocês - parece d:zer­compreendam que os perdôo."

Inacreditável, incerto, miraculoso e contudo tão fundamental para a fé cristã, tanto quanto para a estética e para a moral de Dostoievski,. o perdão é quase uma loucura em O Idiota, um deus ex machina em Crime e Castigo.

Na verdade, deixando de lado suas crises convulsivas, o prín­cipe Mycllkine só é "idiota" porque não tem rancor. Ridiculari-

176 OOSTOIEVSD, A ESCJUTA DO SOJ'JUMENTO E DO l'EJtDÃo

zado, insultado, injuriado, ameaçado mesmo de morte por Rogojine, o príncipe perdoa. A misericórdia encontra nele sua realização psi· cológica literal: por ter sofrido demais, ele toma a si a miséria dos outros. Como se tivesse entrevisto o sofrimento que motiva as agressões, ele passa além, apaga-se e até consola. As cenas de vi o· lência arbitrária que ele sofre e que Dostoievski evoca com a po­tência do trágico e do grotesco, certamente lhe fazem mal: nos lem­bremos de sua compaixão pela vida sexual de uma jovem campo· nesa suíça, amaldiçoada pela sua aldeia, que ele ensinará as crian· ças a amar; ou a zombaria infantil e amorosamente nervosa de Aglaia em relação a ele, com a qual ele nem mesmo se engana, sob a aparência de uma bonomia distraída; ou as investidas histéricas de Nastassia Philipovna contra es~e príncipe d~aído que ela sabe ter sido o único a tê-la compreendido; finalmente até a facada que Rogojine lhe dá no corredor escuro desse hotel em que Proust viu o gênio de Dostoievski manifestar-se como inventor de novos espa­ços. O príncipe fica chocado com essas violências, o mal lhe faz mal, o horror está longe de ser esquecido ou neutralizado nele, mal ele se recupera e o seu mal-estar benevolente manifesta uma "in· teligência principal", como dirá Aglaia: "Pois, se o senhor está efe­livamente doente da mente .(não me queira mal por dizer isto, eu o entendo de um ponto de vista superior), em compensação, a inte­li8ência principal, mais desenvolvida no senhor. do que em nenhum deles, está num grau tal de que eles n4o têm nenhuma idéia. Pois há duas inteligências, uma que é fundamental e a outra que é se­cundária. Não é?"'JI) Essa "inteligência" o conduz a pacificar o seu agressor e a harmonizar o grupo do qual, em conseqüência, ele aparece não como o elemento menor, o "estranho" ou o "refugo"/1

mas como o líder principal e insuperável.

O objet() do perdão

Qual o objeto do perdão? As ofensas, claro, todo golpe moral e físico e, em definitivo, a morte. A culpa sexual está no coração dos Humilhados e Ofendidos e acompanha numerosos personagens femininos em Dostoievski (Nastassia, Philipovna, Grouchenka, Na­tacha ... ), como também está indicada nas perversões masculinas

X O Idiota . .li lbid.

SOL NEGao 177

(por exemplo, o estupro de menores, feito por Stavrogume) para representar um dos principais motivos do perdão. Contudo, o mal absoluto permanece a morte e, quaisquer que sejam a volúpia do sofrimento ou as razões que conduzem o herói dostoievsk!ano aos limites do suicídio e do assassinato, Dostoievski condena implaca­velmente o assassínio, isto é, a morte que o ser humano é capaz de dar. Parece que ele não dist!ngue o assassinato louco do assassinato como punição moral infligida pela justiça dos homens. Se tivesse que estabelecer uma distinção entre os dois, tenderia para o suplício e a dor que, erotizando-o, parece "cultivar" e portanto humanizar o assassinato e a violência, aos olhos do artista.3l Em compensação, ele não perdoa a morte fria, irrevogável, a morte inteiramente "limpa", pela guilhotina: ela é "o suplício ma~s cruel". "Quem pôde dizer que a natureza humana era capaz de suportar essa prova sem cair na loucura?"~ De fato, para o condenado à guilhotina, o perdão é impossível. O rosto de um "condenado, no momento em que vai ser guilhotinado, quando iá está no cadafalso e espera que o prendam à báscula"34 evoca ao príncipe Mychkine o quadro da Basiléia: "F()i desse tormento e dessa an8ústia que o Cristo falou."3s

Dostoievski, ele mesmo condenado à morte, foi indultado. O perdão, na visão dostoievskiana, tira a sua importância do belo e do justo, dessa tragédia esclarecida no último momento? Será possí· vel que o perdão, vindo depois de uma morte já imaginada, já vivida, por assim dizer, e que, necessariamente, abrasou uma perso­nalidade tão elétrica quanto a de Dostoievski, pode realmente relevar essa morte: apagá-la e reconciliar o condenado com o poder conde­natório? Um grande impulso de reconciliação com o poder aban­dônico, que voltou a se tornar ideal desejável, sem dúvida é neces· sário para que recomece a vida restituída e que se estabeleça o con·

32 Essa erotizaçAo do sofrimento, paralela a uma rejeição da pena de morte, E:Voca as posições análogas do marquês de Sade. A aproximação entre os dois escritor~ foi estabelecida, não sem mordacidade, pelos contemporâneos de Dostoievski. Assim, numa carta datada de 24 de fevereiro de 1882 e dirigida a Saltykov.Chtchedrine, Tourgueniev nota que Dostoíevski, como Sade, "des­creve em seus romances os prazeres dos sensuais" e indigna-se contra o fato de que "os bispos russos celebraram missas e leram louvores a esse super-h<> reem, ao nosso Sade, o nosso! Em que tempo estranho vivemos?" . ll O Idiota . M /b/d . 35 lbid .

176 OOSTOIEVSD, A ESCJUTA DO SOJ'JUMENTO E DO l'EJtDÃo

zado, insultado, injuriado, ameaçado mesmo de morte por Rogojine, o príncipe perdoa. A misericórdia encontra nele sua realização psi· cológica literal: por ter sofrido demais, ele toma a si a miséria dos outros. Como se tivesse entrevisto o sofrimento que motiva as agressões, ele passa além, apaga-se e até consola. As cenas de vi o· lência arbitrária que ele sofre e que Dostoievski evoca com a po­tência do trágico e do grotesco, certamente lhe fazem mal: nos lem­bremos de sua compaixão pela vida sexual de uma jovem campo· nesa suíça, amaldiçoada pela sua aldeia, que ele ensinará as crian· ças a amar; ou a zombaria infantil e amorosamente nervosa de Aglaia em relação a ele, com a qual ele nem mesmo se engana, sob a aparência de uma bonomia distraída; ou as investidas histéricas de Nastassia Philipovna contra es~e príncipe d~aído que ela sabe ter sido o único a tê-la compreendido; finalmente até a facada que Rogojine lhe dá no corredor escuro desse hotel em que Proust viu o gênio de Dostoievski manifestar-se como inventor de novos espa­ços. O príncipe fica chocado com essas violências, o mal lhe faz mal, o horror está longe de ser esquecido ou neutralizado nele, mal ele se recupera e o seu mal-estar benevolente manifesta uma "in· teligência principal", como dirá Aglaia: "Pois, se o senhor está efe­livamente doente da mente .(não me queira mal por dizer isto, eu o entendo de um ponto de vista superior), em compensação, a inte­li8ência principal, mais desenvolvida no senhor. do que em nenhum deles, está num grau tal de que eles n4o têm nenhuma idéia. Pois há duas inteligências, uma que é fundamental e a outra que é se­cundária. Não é?"'JI) Essa "inteligência" o conduz a pacificar o seu agressor e a harmonizar o grupo do qual, em conseqüência, ele aparece não como o elemento menor, o "estranho" ou o "refugo"/1

mas como o líder principal e insuperável.

O objet() do perdão

Qual o objeto do perdão? As ofensas, claro, todo golpe moral e físico e, em definitivo, a morte. A culpa sexual está no coração dos Humilhados e Ofendidos e acompanha numerosos personagens femininos em Dostoievski (Nastassia, Philipovna, Grouchenka, Na­tacha ... ), como também está indicada nas perversões masculinas

X O Idiota . .li lbid.

SOL NEGao 177

(por exemplo, o estupro de menores, feito por Stavrogume) para representar um dos principais motivos do perdão. Contudo, o mal absoluto permanece a morte e, quaisquer que sejam a volúpia do sofrimento ou as razões que conduzem o herói dostoievsk!ano aos limites do suicídio e do assassinato, Dostoievski condena implaca­velmente o assassínio, isto é, a morte que o ser humano é capaz de dar. Parece que ele não dist!ngue o assassinato louco do assassinato como punição moral infligida pela justiça dos homens. Se tivesse que estabelecer uma distinção entre os dois, tenderia para o suplício e a dor que, erotizando-o, parece "cultivar" e portanto humanizar o assassinato e a violência, aos olhos do artista.3l Em compensação, ele não perdoa a morte fria, irrevogável, a morte inteiramente "limpa", pela guilhotina: ela é "o suplício ma~s cruel". "Quem pôde dizer que a natureza humana era capaz de suportar essa prova sem cair na loucura?"~ De fato, para o condenado à guilhotina, o perdão é impossível. O rosto de um "condenado, no momento em que vai ser guilhotinado, quando iá está no cadafalso e espera que o prendam à báscula"34 evoca ao príncipe Mychkine o quadro da Basiléia: "F()i desse tormento e dessa an8ústia que o Cristo falou."3s

Dostoievski, ele mesmo condenado à morte, foi indultado. O perdão, na visão dostoievskiana, tira a sua importância do belo e do justo, dessa tragédia esclarecida no último momento? Será possí· vel que o perdão, vindo depois de uma morte já imaginada, já vivida, por assim dizer, e que, necessariamente, abrasou uma perso­nalidade tão elétrica quanto a de Dostoievski, pode realmente relevar essa morte: apagá-la e reconciliar o condenado com o poder conde­natório? Um grande impulso de reconciliação com o poder aban­dônico, que voltou a se tornar ideal desejável, sem dúvida é neces· sário para que recomece a vida restituída e que se estabeleça o con·

32 Essa erotizaçAo do sofrimento, paralela a uma rejeição da pena de morte, E:Voca as posições análogas do marquês de Sade. A aproximação entre os dois escritor~ foi estabelecida, não sem mordacidade, pelos contemporâneos de Dostoievski. Assim, numa carta datada de 24 de fevereiro de 1882 e dirigida a Saltykov.Chtchedrine, Tourgueniev nota que Dostoíevski, como Sade, "des­creve em seus romances os prazeres dos sensuais" e indigna-se contra o fato de que "os bispos russos celebraram missas e leram louvores a esse super-h<> reem, ao nosso Sade, o nosso! Em que tempo estranho vivemos?" . ll O Idiota . M /b/d . 35 lbid .

178 OOSTOIEVSD. 4 ESCPJTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

tato com os outros reencontrados.16 Um impulso sob o qual, entre­tanto, permanece, em geral não-apaziguada, a angústia melancólica do sujeito já morto uma . vez, embora miraculosamente ressuscita­do ... Instala-se então a alternância, no imaginário do escritor, en­tre o lado não-ultrapassável do sofrimento e o brilho do perdão, escandindo o conjunto de sua obra pelo seu eterno retomo.

O imaginário dramático de Dostoievski, seus personagens dila­cerados sugerem sobretudo a dificuldade, até mesmo a impossibi­lidade desse amor-perdão. Encontramos talvez a expressão mais condensada dessa inquietação desencadeada pela necessidade e pela impossibilidade do amor-perdão nas notas do escritor no momento da morte da sua primeira mulher, Maria Dmitrievna: ''Amar o ho­mem como a si mesmo. segundo a prescrição do Cristo, é impossível. Estamos acorrentados à terra pela lei do indivíduo? O Ego impede isso.'>31

l6 Quanto a isto, nos lembremos do laço filial que Dostoievski estabeleceu com o procmador geral Constantin Pobiedonostsev, figura despótica que en­carnava o obscurantismo czarista. CL Tsvetan Stoyanov, Le génie et son tuteur (0 gênio e seu tutor), Sofia, 1978. J7 Héritage Iittéraire (Herança literária), t . 83, 1971 , pp.. 173-174, de 16 de abril de 1864. A reflexão de Dostoievski continua: "So~nte o Cristo foi capaz disto, mas o Cristo foi eterno, um ideal especular, ao qual aspira e , segundo a!. leis da natureza. o homem deve aspirar. Entrementes, após o aparecimento do Cristo como um ideal do homem da carne, ficou claro como o dia 'que o desenvolvimento superior e supremo do individuo deve, precisamente, chegar a isso [ ... } que a utilização suprema que o homem poderia fazer de sua indi­vidualidade, do desenvolvimento' completo do seu Ego - de uma certa maneira é a de aniquilar este Ego, de dá-lo inteiro a todos e a cada um, inteiramente e perdidamente . E uma felicidade suprema. Assim, a lei do Ego confunde-se com a lei do humanismo e, na fusão dos dois, do Ego e de Todos [ .. . }realiza­se sua supressão mútua e recíproca, c, ao mesmo tempo, cada um em parti­(.'Ular atinge o objetivo do seu desenvolvimento individual.

"t precisamente o paraíso do Cristo [ ... }. "Mas, na minha opinião, é inteiramente absurdo atingir esse objetivo su­

premo, se, ao atingi-lo, o objetivo inteiro se apaga e desaparece. isto é, se a vida humana não continua após a realização desse objetivo. Conseqüente· mente, existe uma vida futura, paradisíaca .

••Onde ela se encontra, em que planeta, em que centro, será ela o último centro, no seio da síntese universal. isto é, em Deus, não sabemos nada. Conhecemos somente um traço da futura natureza do ser futuro que talvez nem mesmo se chamará um homem (portanto. não temos nenhuma idéia dos seres que seremos)." Dostoievski prossegue considerando que essa síntese utópi­ca, em que se apagam os limites do Ego no seio de uma fusiio amorosa com

SOL NEGRO 179

O artifício do perdão e o da ressurretçao, imperativos para o escritor, explode em Crime e Castigo (1866).

Da tristeza ao crime

Raskolníkov se descreve como um personagem triste: "Escuta, Razoumikhíne [ . .. 1 dei todo meu dinheiro [ . .. ] sinto-me triste, tão triste! como uma mulher. . . verdade . .. ",38 e sua própria mãe o percebe como um melancólico: "Sabes, Dounía, há pouco olhava para vocês dois; tu 'te assemelhas a ele como duas gotas d'água e não tanto fisicamente quanto moralmente, vocês são, ambos (Raskol­nikov e sua irmã Dounia), melancólicos, sombrios e exaltados, am­bos orgulhosos e nobres. "39

Como essa tristeza se transforma em crime? Dostoievski aus­culta aqui um aspecto essencial da dinâmica depressiva: a oscila­ção entre o ego e o outro, a projeção sobre o ego do ódio contra o outro e, vice-versa, o retorno contra o outro da depreciação do ego. O que existe primeiro, o ódio ou a depressão? Vimos que a apologia dostoievskiana do sofrimento faz supor que Dostoievski privilegia a autodesvalorização, a auto-humilhação, até mesmo uma espécie de masoquismo sob o olhar severo de um superego precoce e tirâ­nico. Nesta ótica, o crime é uma reação de defesa contra a depres­são: o assassinato do outro protege do suicídio. A " teoria" e o ato cr!minoso de Raskolnikov demonstram perfeitamente esta lógica. O estudante lúgubre e que se deixa víver como mendigo, lembremo· nos, funda uma "classificação dos homens em comuns e extraordi­nários": os primeiros servem à procriação, os segundos têm "o dom e o talento de dizer, no seu meio, uma nova palavra". "Na segunda [categoria], todos transgridem a lei; são destruidores, ou pelo menos seres que tentam destruir segundo os seus meios. "i o Pertence ele pró-

üS outros. realizar-se-ia por uma suspensão da sexualidade geradora de tensões e de conflitos: " Lá longe, é o ser inteiramente sintético, que goza eternamente e pleno, para o qual era como se o tempo não existisse mais." A impossibili­dade de sacrificar o Ego por amor a um ser diferente ("Eu e Macha") produz o sentimento de sofrimento e o estado de pecado: "Assim, o homem deve sem· r.ra sentir o sofrimento que ~e equilibra pelo gozo paradisíaco da realização da Lei, isto é, pelo sacrifício" (ibid . ) . J~ Crime e Castigo. j 9 l bid. .;o lbid .

178 OOSTOIEVSD. 4 ESCPJTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

tato com os outros reencontrados.16 Um impulso sob o qual, entre­tanto, permanece, em geral não-apaziguada, a angústia melancólica do sujeito já morto uma . vez, embora miraculosamente ressuscita­do ... Instala-se então a alternância, no imaginário do escritor, en­tre o lado não-ultrapassável do sofrimento e o brilho do perdão, escandindo o conjunto de sua obra pelo seu eterno retomo.

O imaginário dramático de Dostoievski, seus personagens dila­cerados sugerem sobretudo a dificuldade, até mesmo a impossibi­lidade desse amor-perdão. Encontramos talvez a expressão mais condensada dessa inquietação desencadeada pela necessidade e pela impossibilidade do amor-perdão nas notas do escritor no momento da morte da sua primeira mulher, Maria Dmitrievna: ''Amar o ho­mem como a si mesmo. segundo a prescrição do Cristo, é impossível. Estamos acorrentados à terra pela lei do indivíduo? O Ego impede isso.'>31

l6 Quanto a isto, nos lembremos do laço filial que Dostoievski estabeleceu com o procmador geral Constantin Pobiedonostsev, figura despótica que en­carnava o obscurantismo czarista. CL Tsvetan Stoyanov, Le génie et son tuteur (0 gênio e seu tutor), Sofia, 1978. J7 Héritage Iittéraire (Herança literária), t . 83, 1971 , pp.. 173-174, de 16 de abril de 1864. A reflexão de Dostoievski continua: "So~nte o Cristo foi capaz disto, mas o Cristo foi eterno, um ideal especular, ao qual aspira e , segundo a!. leis da natureza. o homem deve aspirar. Entrementes, após o aparecimento do Cristo como um ideal do homem da carne, ficou claro como o dia 'que o desenvolvimento superior e supremo do individuo deve, precisamente, chegar a isso [ ... } que a utilização suprema que o homem poderia fazer de sua indi­vidualidade, do desenvolvimento' completo do seu Ego - de uma certa maneira é a de aniquilar este Ego, de dá-lo inteiro a todos e a cada um, inteiramente e perdidamente . E uma felicidade suprema. Assim, a lei do Ego confunde-se com a lei do humanismo e, na fusão dos dois, do Ego e de Todos [ .. . }realiza­se sua supressão mútua e recíproca, c, ao mesmo tempo, cada um em parti­(.'Ular atinge o objetivo do seu desenvolvimento individual.

"t precisamente o paraíso do Cristo [ ... }. "Mas, na minha opinião, é inteiramente absurdo atingir esse objetivo su­

premo, se, ao atingi-lo, o objetivo inteiro se apaga e desaparece. isto é, se a vida humana não continua após a realização desse objetivo. Conseqüente· mente, existe uma vida futura, paradisíaca .

••Onde ela se encontra, em que planeta, em que centro, será ela o último centro, no seio da síntese universal. isto é, em Deus, não sabemos nada. Conhecemos somente um traço da futura natureza do ser futuro que talvez nem mesmo se chamará um homem (portanto. não temos nenhuma idéia dos seres que seremos)." Dostoievski prossegue considerando que essa síntese utópi­ca, em que se apagam os limites do Ego no seio de uma fusiio amorosa com

SOL NEGRO 179

O artifício do perdão e o da ressurretçao, imperativos para o escritor, explode em Crime e Castigo (1866).

Da tristeza ao crime

Raskolníkov se descreve como um personagem triste: "Escuta, Razoumikhíne [ . .. 1 dei todo meu dinheiro [ . .. ] sinto-me triste, tão triste! como uma mulher. . . verdade . .. ",38 e sua própria mãe o percebe como um melancólico: "Sabes, Dounía, há pouco olhava para vocês dois; tu 'te assemelhas a ele como duas gotas d'água e não tanto fisicamente quanto moralmente, vocês são, ambos (Raskol­nikov e sua irmã Dounia), melancólicos, sombrios e exaltados, am­bos orgulhosos e nobres. "39

Como essa tristeza se transforma em crime? Dostoievski aus­culta aqui um aspecto essencial da dinâmica depressiva: a oscila­ção entre o ego e o outro, a projeção sobre o ego do ódio contra o outro e, vice-versa, o retorno contra o outro da depreciação do ego. O que existe primeiro, o ódio ou a depressão? Vimos que a apologia dostoievskiana do sofrimento faz supor que Dostoievski privilegia a autodesvalorização, a auto-humilhação, até mesmo uma espécie de masoquismo sob o olhar severo de um superego precoce e tirâ­nico. Nesta ótica, o crime é uma reação de defesa contra a depres­são: o assassinato do outro protege do suicídio. A " teoria" e o ato cr!minoso de Raskolnikov demonstram perfeitamente esta lógica. O estudante lúgubre e que se deixa víver como mendigo, lembremo· nos, funda uma "classificação dos homens em comuns e extraordi­nários": os primeiros servem à procriação, os segundos têm "o dom e o talento de dizer, no seu meio, uma nova palavra". "Na segunda [categoria], todos transgridem a lei; são destruidores, ou pelo menos seres que tentam destruir segundo os seus meios. "i o Pertence ele pró-

üS outros. realizar-se-ia por uma suspensão da sexualidade geradora de tensões e de conflitos: " Lá longe, é o ser inteiramente sintético, que goza eternamente e pleno, para o qual era como se o tempo não existisse mais." A impossibili­dade de sacrificar o Ego por amor a um ser diferente ("Eu e Macha") produz o sentimento de sofrimento e o estado de pecado: "Assim, o homem deve sem· r.ra sentir o sofrimento que ~e equilibra pelo gozo paradisíaco da realização da Lei, isto é, pelo sacrifício" (ibid . ) . J~ Crime e Castigo. j 9 l bid. .;o lbid .

lSO OOSTQIJSVSI:J, A E.SClUTA DO SOFRIMENTO E. DO PERDÃO

prio a esta segunda categoria? Esta será a pergunta fatal à qual o estudante melancólico tentará responder, ousando ou não passar à ação .

O ato assassino extrai o depressivo da passividade e do abati­mento, confrontando-o com o único objeto desejável, que para ele é o proibido encarnado pela lei e pelo mestre: "Fazer como Napo­leão:,., O correlato dessa lei tirânica e desejável, que se trata de desafiar, não é mais que uma coisa insignificante, um verme. Quem é o verme? :e a vítima do assassinato, ou o próprio estudante melan­cólir..o, provisoriamente exaltado como assassino, mas que sabe que é profundamente inútil e abominável? A confusão persiste, e Dos­toievski ressalta assim, de forma genial, a identificação do depri­mido com o objeto odiado: "A velha só foi um acidente. . . Queria salv.ar a paixão mais rapidamente, não matei o ser huma~o, ma~ ~~ principio."42 'Tudo está ali, basta ousar! [ . .. 1 sacudtr o edljlClO nos seus fundamentos e destruir tudo, enviar tudo para o diabo . . . Então eu, eu quis ousar e matei [ . .. 1 Só agi depois de f ater re­flexões maduras e foi isto que. me perdeu [ . .. 1 Ou que, por exem­plo, se me pergunto: o homem é um verme? é porque ele não o é para mim. Ele só o é para aquele a q.uem tais perguntas não pas­sam pela cabeça, aquele que segue o seu caminho reto, sem se in­terrogar. . . Quis matar, Sônia, sem casuística, matei para mim mesmo, só para mim ( ... ] Precisava saber, e o mais ced~ possível, se era um parasita como os outros ou um homem? Se pod1a superar o obstáculo.'~U E enfim: "Fui eu que assassinei, eu e não ela, eu mesmo.,..,. "Enfim, não passo de um verme, de forma irrevogável { . .. 1 porque sou talvez mais vil, mais ignóbil do que o verme· que assassinei.'"'5 Sua amiga Sônia faz a mesma constatação: "Ah, o que você fez, o que você fez de você mesmo?'>46

Mãe e irmã: mãe ou irmã

Entre os dois pólos reversíveis da depreciação e do ódio, por si e pelo outro, a atuação afirma não um sujeito, mas uma posição

41 Ibid . 42 l bid. 4J lbid.

"" Jbid. 45 Ibid . 46 Ibid .

SOL NEOllO 181

paran01ca que foraclui o sofrimento, ao mesmo tempo que a lei. Dostoievski considera dois antídotos para esse movimento catastró­fico: o recurso ao sofrimento e ao perdão. Este encaminhamento é feito de forma paralela e, talvez, graças a uma revelação subterrâ­nea, obscura, dificilmente pen;eptível no cnredamenlo da narração t!ostoievskiana, mas percebida, entretanto, com uma lucidez sonam· b1! :ca, pelo artista e. . . pelo leitor.

Os traços dessa "doença", coisa insignificante ou "para si ta", convergem para a mãe e a irmã do estudante soturno . Amadas e odiadas, atraentes e repulsivas, estas mulheres encontram o assassi­no nos momentos cruciais de sua ação e de sua reflexão e, como pára-raios, atraem sobre elas a sua paixão ambígua, a menos que sejam a origem desta . Assim: "As duas mulheres . precipitaram-se sobre ele. Mas ele permanecia im6vel, gelado, como se de repente o tivessem privado de vida; um pensamento brusco e insuportável o fulm inara. E seus braços não podiam se estender para enlaçá-las: 'não, impossível'. Sua mãe e sua irmã .o abraçavam, beijavam, riam, choravam. Deu um passo à frente, cambaleou e rolou pelo chão, desmaiado.'~ "Minha mãe, minha irmã, como eu as amava! Donde vem o fato de que ago~a eu as odeio? Sim, eu as odeio, com um 6dio físico. Não posso suportar sua presença junto a mim [ . .. ] Ela [sua mãe] deve ser semelhante a mim [ ... ] O! como odeio a velha! Creio que ainda a mataria se res.suscitasse!"43 Nestes últimos propósitos, que pronuncia em seu delírio, Raskolnikov desvenda bem a confusão entre o próprio eu aviltado, sua mãe, a velha assassi· nada. . . Por que essa confusão?

O episódio Svidrigailov-Doun!a esclarece um pouco o mistério: o homem "devasso" que reconheceu em Raskolnikov o assassino da velha senhora deseja a sua irmã Dounia . O triste Raskolnikov está novamente pronto para matar, mas desta vez para defender S11a irmã. Matar, transgredir, para proteger o seu segredo sem partilhar. o seu impossível amor incestuoso? Ele quase o sabe: " O! Se eu pu­desse ter estado sozinho, sozinho, sem nenhuma afeição, e eu mes­mo não amando ninguám. Tudo teria se passado de outra fonn.a."49

~1 l bíd . 4! lbid . 4Q Jbid .

lSO OOSTQIJSVSI:J, A E.SClUTA DO SOFRIMENTO E. DO PERDÃO

prio a esta segunda categoria? Esta será a pergunta fatal à qual o estudante melancólico tentará responder, ousando ou não passar à ação .

O ato assassino extrai o depressivo da passividade e do abati­mento, confrontando-o com o único objeto desejável, que para ele é o proibido encarnado pela lei e pelo mestre: "Fazer como Napo­leão:,., O correlato dessa lei tirânica e desejável, que se trata de desafiar, não é mais que uma coisa insignificante, um verme. Quem é o verme? :e a vítima do assassinato, ou o próprio estudante melan­cólir..o, provisoriamente exaltado como assassino, mas que sabe que é profundamente inútil e abominável? A confusão persiste, e Dos­toievski ressalta assim, de forma genial, a identificação do depri­mido com o objeto odiado: "A velha só foi um acidente. . . Queria salv.ar a paixão mais rapidamente, não matei o ser huma~o, ma~ ~~ principio."42 'Tudo está ali, basta ousar! [ . .. 1 sacudtr o edljlClO nos seus fundamentos e destruir tudo, enviar tudo para o diabo . . . Então eu, eu quis ousar e matei [ . .. 1 Só agi depois de f ater re­flexões maduras e foi isto que. me perdeu [ . .. 1 Ou que, por exem­plo, se me pergunto: o homem é um verme? é porque ele não o é para mim. Ele só o é para aquele a q.uem tais perguntas não pas­sam pela cabeça, aquele que segue o seu caminho reto, sem se in­terrogar. . . Quis matar, Sônia, sem casuística, matei para mim mesmo, só para mim ( ... ] Precisava saber, e o mais ced~ possível, se era um parasita como os outros ou um homem? Se pod1a superar o obstáculo.'~U E enfim: "Fui eu que assassinei, eu e não ela, eu mesmo.,..,. "Enfim, não passo de um verme, de forma irrevogável { . .. 1 porque sou talvez mais vil, mais ignóbil do que o verme· que assassinei.'"'5 Sua amiga Sônia faz a mesma constatação: "Ah, o que você fez, o que você fez de você mesmo?'>46

Mãe e irmã: mãe ou irmã

Entre os dois pólos reversíveis da depreciação e do ódio, por si e pelo outro, a atuação afirma não um sujeito, mas uma posição

41 Ibid . 42 l bid. 4J lbid.

"" Jbid. 45 Ibid . 46 Ibid .

SOL NEOllO 181

paran01ca que foraclui o sofrimento, ao mesmo tempo que a lei. Dostoievski considera dois antídotos para esse movimento catastró­fico: o recurso ao sofrimento e ao perdão. Este encaminhamento é feito de forma paralela e, talvez, graças a uma revelação subterrâ­nea, obscura, dificilmente pen;eptível no cnredamenlo da narração t!ostoievskiana, mas percebida, entretanto, com uma lucidez sonam· b1! :ca, pelo artista e. . . pelo leitor.

Os traços dessa "doença", coisa insignificante ou "para si ta", convergem para a mãe e a irmã do estudante soturno . Amadas e odiadas, atraentes e repulsivas, estas mulheres encontram o assassi­no nos momentos cruciais de sua ação e de sua reflexão e, como pára-raios, atraem sobre elas a sua paixão ambígua, a menos que sejam a origem desta . Assim: "As duas mulheres . precipitaram-se sobre ele. Mas ele permanecia im6vel, gelado, como se de repente o tivessem privado de vida; um pensamento brusco e insuportável o fulm inara. E seus braços não podiam se estender para enlaçá-las: 'não, impossível'. Sua mãe e sua irmã .o abraçavam, beijavam, riam, choravam. Deu um passo à frente, cambaleou e rolou pelo chão, desmaiado.'~ "Minha mãe, minha irmã, como eu as amava! Donde vem o fato de que ago~a eu as odeio? Sim, eu as odeio, com um 6dio físico. Não posso suportar sua presença junto a mim [ . .. ] Ela [sua mãe] deve ser semelhante a mim [ ... ] O! como odeio a velha! Creio que ainda a mataria se res.suscitasse!"43 Nestes últimos propósitos, que pronuncia em seu delírio, Raskolnikov desvenda bem a confusão entre o próprio eu aviltado, sua mãe, a velha assassi· nada. . . Por que essa confusão?

O episódio Svidrigailov-Doun!a esclarece um pouco o mistério: o homem "devasso" que reconheceu em Raskolnikov o assassino da velha senhora deseja a sua irmã Dounia . O triste Raskolnikov está novamente pronto para matar, mas desta vez para defender S11a irmã. Matar, transgredir, para proteger o seu segredo sem partilhar. o seu impossível amor incestuoso? Ele quase o sabe: " O! Se eu pu­desse ter estado sozinho, sozinho, sem nenhuma afeição, e eu mes­mo não amando ninguám. Tudo teria se passado de outra fonn.a."49

~1 l bíd . 4! lbid . 4Q Jbid .

182 DOSTOIIlVS~I. A llSCR.ITA DO SOPIUMENTO E DO PEIWÂO

A terceira via

O perdão aparece como a umca saída, a terceira via entre o abatimento c o assassinato. Ele advém no rastro dos esclarecimentos eróticos e aparece não como um movimento de idealização que ré­calca a paixão sexual, mas como o seu trajeto. O anjo desse paraíso, segundo o apocalipse, chama-se Sônia, certamente prostituída por compaixão e preocupação de ajudar a sua família miserável, mas assim mesmo prostituída. Quando ela segue Raskolnikov no des­terro, num impulso de humildade e de abnegação, os desterrBlios a chamam de "nossa mãe, doce e auxiliadora''.~ A reconciliação com a mãe amante mas infiel, até mesmo prostituída, para além e apesar de seus "erros", aparece assim como uma condição da re· conciliação consigo. O "si" torna-se enfim aceitável porque colo­cado, doravante, fora da jurisdição tirânica do dono. A mãe per­doada e que perdoa torna-se uma irmã ideal e substitui. . . Napo­leão . O herói humilhado e guerreador pode então se acalmar. Eis­nos na cena bucólica do fim: um dia claro e agradável, uma terra inundada de sol, o tempo está parado. "Dir-se-ia que ali o tempo parara na época de Abraão e de seus rebanhos."51 E mesmo se res­tam sete anos de desterro, o sofrimento, doravante, está ligado à felicidade: "Mas Raskolnikov estava regenerado, ele o sabia, ele o sentia com todo o seu ser. Quanto a Sônia, ela só vivia para ele. "52

Este desfecho só poderia parecer forçado se fosse ignorada a importância fundamental da idealização na atividade sublimatória da escrita . Através de Raskolnikov e de outros demônios interpos­tos, não é a sua própria dramaturgia insustentável que o escritor relata? O imaginário é esse estranho lugar em que o sujeito arrisca a sua ident idade, perde-se até o limite do mal, do crime ou da assim­bolia, para atravessá-los e ser testemunha disto. . . a partir de um outro lugar . Espaço desdobrado, ele só insiste em estar solidamente preso ao ideal que autoriza a violência destruidora a se dizer em lugar de jazer. E a sublimação, ela tem necessidade do per-dom.

A tempora/ídade do perdão

O perdão é anistóríco. Ele quebra o encadeamento dos efei­tos e das causas, dos castigos e dos crimes, suspende o tempo dos

50 lbid . SI Jbid . 52 lbid .

SOL NEGRO 183

atos . Um espaço estranho abre-se nessa intemporalidade, que não é o do inconsciente selvagem, desejoso e assassino, mas a sua con­trapartida: sua sublimação com conhecimento de causa, uma har­monia amorosa que não ignora suas violências, mas as acolhe, em outro lugar. Confrontados com essa suspensão do tempo e dos atos nessa atemporalidade do perdão, compreendemos aqueles a quem somente Deus pode perdoar .53 No cristianismo, entretan to, a suspen­são, certamente divina, dos crimes c dos castigos é primeiramente o feito dos homens.54

Insistamos nessa atemporalidade do perdão. Ela não é a Idade de ouro das mitologias antigas . Quando Dostoievski considera essa Idade de ouro, faz com que Stavroguine .(Os possuídos) e Versilov (O adolescente) anunciem o seu devaneio, assim como em ''O sonho de um homem ridículo" (Diário de um escritor, 1877) . Ele toma como suporte A eis e Galatéia, de Claude Lorrain .

Como verdadeiro contraponto ao Cristo morto de Holbein, essa representação do idíl!o entre o jovem pastor Acis e a nereida Ga­latéia, sob o olhar colérico, mas domado por um tempo, de Poli­feno, o amante titular, representa a Idade . de ouro do incesto, o paraíso pré-edipiano narcísico. A Idade de ouro está fora do tem­po porque se subtrai ao desejo de condenar o pai à morte, .banhan­do-se no fantasma da onipotência do filho no seio de uma "Arcá­dia narcísica".s.s Eis como Stavroguine sente isto: "Existe no museu de Dresden um quadro de Claude Lorrain que figura no catálogo sob o título, creio, de Acis e Galatéía . Não sei por que, eu o chamava de a Idade de ouro [ . .. ] . Foi este quadro que vi em sonho, porém não como um quadro, mas como uma realidade. Como no quadro, era um canto do Arquipélago grego e, parece, eu voltara mais de três mil anos atrás. Ondas azuis e acariciantes, ilhas e rochedos, margens florescentes; ao longe, um panorama encantador, o apelo do sol poente. . . As palavras não podem descrever isto. Era aqui

53 Como observa Hannah Arendt: "O princípio romano de poupar . os ven­cidos (parcere subjectis) [é ] uma sabedoria totalmente desconhecida pelos gre­gos", in Condítíon de l'Jwmme modernc (Condição do homem moderno), Cal-mann-Lévy, Paris, 1961, p. 269. • 54 Assim, entre outros, Mat. VI, 14-15: ''Se perdoais aos homens as suas faltas, vosso Pai celeste também vos perdoará; mas se não perdoais aos homens, vosso Pai também não vos perdoará as faltas". ss Segundo a expressão de A. Besançon, Le Tsarevitch immolé (O Czar imo­l<~do), Paris, 1967, p. 214.

182 DOSTOIIlVS~I. A llSCR.ITA DO SOPIUMENTO E DO PEIWÂO

A terceira via

O perdão aparece como a umca saída, a terceira via entre o abatimento c o assassinato. Ele advém no rastro dos esclarecimentos eróticos e aparece não como um movimento de idealização que ré­calca a paixão sexual, mas como o seu trajeto. O anjo desse paraíso, segundo o apocalipse, chama-se Sônia, certamente prostituída por compaixão e preocupação de ajudar a sua família miserável, mas assim mesmo prostituída. Quando ela segue Raskolnikov no des­terro, num impulso de humildade e de abnegação, os desterrBlios a chamam de "nossa mãe, doce e auxiliadora''.~ A reconciliação com a mãe amante mas infiel, até mesmo prostituída, para além e apesar de seus "erros", aparece assim como uma condição da re· conciliação consigo. O "si" torna-se enfim aceitável porque colo­cado, doravante, fora da jurisdição tirânica do dono. A mãe per­doada e que perdoa torna-se uma irmã ideal e substitui. . . Napo­leão . O herói humilhado e guerreador pode então se acalmar. Eis­nos na cena bucólica do fim: um dia claro e agradável, uma terra inundada de sol, o tempo está parado. "Dir-se-ia que ali o tempo parara na época de Abraão e de seus rebanhos."51 E mesmo se res­tam sete anos de desterro, o sofrimento, doravante, está ligado à felicidade: "Mas Raskolnikov estava regenerado, ele o sabia, ele o sentia com todo o seu ser. Quanto a Sônia, ela só vivia para ele. "52

Este desfecho só poderia parecer forçado se fosse ignorada a importância fundamental da idealização na atividade sublimatória da escrita . Através de Raskolnikov e de outros demônios interpos­tos, não é a sua própria dramaturgia insustentável que o escritor relata? O imaginário é esse estranho lugar em que o sujeito arrisca a sua ident idade, perde-se até o limite do mal, do crime ou da assim­bolia, para atravessá-los e ser testemunha disto. . . a partir de um outro lugar . Espaço desdobrado, ele só insiste em estar solidamente preso ao ideal que autoriza a violência destruidora a se dizer em lugar de jazer. E a sublimação, ela tem necessidade do per-dom.

A tempora/ídade do perdão

O perdão é anistóríco. Ele quebra o encadeamento dos efei­tos e das causas, dos castigos e dos crimes, suspende o tempo dos

50 lbid . SI Jbid . 52 lbid .

SOL NEGRO 183

atos . Um espaço estranho abre-se nessa intemporalidade, que não é o do inconsciente selvagem, desejoso e assassino, mas a sua con­trapartida: sua sublimação com conhecimento de causa, uma har­monia amorosa que não ignora suas violências, mas as acolhe, em outro lugar. Confrontados com essa suspensão do tempo e dos atos nessa atemporalidade do perdão, compreendemos aqueles a quem somente Deus pode perdoar .53 No cristianismo, entretan to, a suspen­são, certamente divina, dos crimes c dos castigos é primeiramente o feito dos homens.54

Insistamos nessa atemporalidade do perdão. Ela não é a Idade de ouro das mitologias antigas . Quando Dostoievski considera essa Idade de ouro, faz com que Stavroguine .(Os possuídos) e Versilov (O adolescente) anunciem o seu devaneio, assim como em ''O sonho de um homem ridículo" (Diário de um escritor, 1877) . Ele toma como suporte A eis e Galatéia, de Claude Lorrain .

Como verdadeiro contraponto ao Cristo morto de Holbein, essa representação do idíl!o entre o jovem pastor Acis e a nereida Ga­latéia, sob o olhar colérico, mas domado por um tempo, de Poli­feno, o amante titular, representa a Idade . de ouro do incesto, o paraíso pré-edipiano narcísico. A Idade de ouro está fora do tem­po porque se subtrai ao desejo de condenar o pai à morte, .banhan­do-se no fantasma da onipotência do filho no seio de uma "Arcá­dia narcísica".s.s Eis como Stavroguine sente isto: "Existe no museu de Dresden um quadro de Claude Lorrain que figura no catálogo sob o título, creio, de Acis e Galatéía . Não sei por que, eu o chamava de a Idade de ouro [ . .. ] . Foi este quadro que vi em sonho, porém não como um quadro, mas como uma realidade. Como no quadro, era um canto do Arquipélago grego e, parece, eu voltara mais de três mil anos atrás. Ondas azuis e acariciantes, ilhas e rochedos, margens florescentes; ao longe, um panorama encantador, o apelo do sol poente. . . As palavras não podem descrever isto. Era aqui

53 Como observa Hannah Arendt: "O princípio romano de poupar . os ven­cidos (parcere subjectis) [é ] uma sabedoria totalmente desconhecida pelos gre­gos", in Condítíon de l'Jwmme modernc (Condição do homem moderno), Cal-mann-Lévy, Paris, 1961, p. 269. • 54 Assim, entre outros, Mat. VI, 14-15: ''Se perdoais aos homens as suas faltas, vosso Pai celeste também vos perdoará; mas se não perdoais aos homens, vosso Pai também não vos perdoará as faltas". ss Segundo a expressão de A. Besançon, Le Tsarevitch immolé (O Czar imo­l<~do), Paris, 1967, p. 214.

184 DOSTOIEVSE;I. ~ ESCIUT~ DO SOFa.IMENTO !! 00 PEJlDÃO

o berço da humanidade e este pensamento enchia minha alma de um amor fraterno. Era o paraíso terrestre; os deuses descinm do céu e se uniam aos homens; aqui tinham se passado as primeiras cenas da mitologia. Aqui vivia uma bela humanidade. Os homens acordavam e adormeciam felizes e inocentes; os bosques retiniam com sWJs alegres canções; o excesso de suas forças abundantes ex­pandia-se no amor, na alegria ingênua. E eu o sentia, ao mesmo tempo que discernia o imenso futuro que os esperava e do qual eles nem desconfiavam, e meu coração estremecia com esses pensamentos. Oh! como ficava feliz por meu coração estremecer e por, finalmente, eu ser capaz de amar! O sol derramava seus raios sobre as ilhas e sobre o mar e se rejubilava com suas belas crianças. Visão admi­rável! Ilusão sublime! O mais impossível de todos os sonhos, mas ao qual a humanidade deu todas as suas forças, para o qual ela sacrificou tudo; em nome do qual se morreu na cruz, mataram-se os profetas, sem o qWJl os povos niio quereriam viver, sem o qual nem mesmo poderiam morrer [ . . . ] Mas os rochedos e o mar, os raios oblíquos do sol poente - tudo isto, parecia que eu ainda o via quando acordei e abri os olhos, pela primeira vez na minha vida, literalmente, banhados de lágrimas [ . .. ] E bruscamente lembrei-me da pequena aranha vermelha . Eu a vi como a contemplei na folha de gerânio, enquanto o sol espalháva, como neste momento, seus raios oblíquos. Algo de agudo penetrou em mim; [ . .. 1 Eis exa­tamente como as coisas se pasuzram.""

O devaneio .da Idade de ouro, na realidade, é uma denegação da culpabilidade. Na verdade, imediatamente após o quadro de Claude Lorrain, Stavroguíne vê em sonho o pequeno bicho do re· morso, a aranha, que o retém na teia dessa consciência infeliz, por estar sob a tirania de uma lei repressiva e vingadora, contra a qual ele reagira precisamente pelo crime. A aranha da culpabilidade in­troduz a imagem da pequena Matriocha estuprada e suicida. Entre Acis e Galatéia e a aranha, entre a fuga na regressão e o -crime, de­f initivamente culpabilizante, Stavroguine fica como que cortado . Ele não tem acesso à mediação do amor, é estranho ao universo do perdão .

Bem entendido, é Dostoievski que se esconde sob a máscara de Stavroguine, Versilov e o Homem ridículo que sonha com a Idade de ouro. Mas ele não usa mais máscara quando descreve a

56 ús Dénwns, op. cit., pp. H3-734.

SOL NEGRO 185

cena do perdão entre Raskolnikov e Sônia: como artista e cristão, é ele, o narrador, que assume o artifício dessa estranha figura que é o epílogo-perdão de Crime e Castigo . A cena entre Raskolnikov e Sônia, ao mesmo tempo que lembra a de Acis e Galatéia pela ale­gria bucólica e pela luminosidade paradisíaca que a impregnam, não se refere à obra de Claude Lorrain nem à Idade de ouro. Com efeito, estranha Idade de ouro que se coloca no próprio centro do inferno, no desterro, perto do abrigo do desterrado. O perdão de Sônia evoca a regressão narcísica do amante incestuoso, mas não se con­funde com ela: Raskolnikov atravessa a cesura da felicidade amo­rosa, mergulhando na leitura da história de Lázaro segundo o Evan­gelho, que Sônia lhe empresta.

O tempo do perdão não é aquele da perseguição nem o do antro mitológico "na abóba:ia de rocha viva onde não se sente nem o sol no auge do seu calor, nem o inverno".51 É o da suspensão do crime, o tempo de sua prescrição. Uma prescrição que conhece o crime e não o esquece mas, sem se deixar cegar pelo seu horror, aposta numa nova partida, numa renovação da pessoa:58 ''Raskol­nikov saiu do abrigo, sentou-se num punhado de madeira amontoa­da na margem e pôs-se a contemplar o rio amplo e deserto . J>e.~ta margem elevada se divisava uma vasta extensão do país. Da beira oposta e longínqua, chegava .um canto cuia eco retinia nas orelhas do prisioneiro. Lá, na estepe imensa inundada de sol, apareciam aqui e acolá, em pontos negros, mal perceptíveis, as tendas dos nômades . Lá estava a liberdade, lá viviam os homens que não se pareciam em nada com aqueles do desterro. Dir-se-ia que o tempo parara na época de Abraão e dos seus rebanhos. Raskolnikov olhava essa visão longínqua, os olhos fixos, sem se mexer. Ele não refletia mais: sonhava e contemplava, mas ao mesmo tempo uma vaga inquieta­ção o oprimia.

De repente, Sônia encontra-se de novo ao seu lado. Ela se aproximara sem barulho e sentara junto dele. [ . . . ) Sorriu para o prisioneiro com um ar amável e feliz mas, segundo o seu hábito, s6 estendeu-lhe a mão timidamente. [ ... 1 De repente, e sem qui! o prisioneiro soubesse como isto aconteceu, uma força invisível lan-

ST Ovídio, Acis et Galatée, in Métamorphoses. 58 H . Arendt lembra o sentido, em São Lucas, das palavras grega.s de "perdão": "aphienai, métanoein: remeter de volta, liberar, mudar de opinião, refazer o seu caminho", op. cit., p. 170.

184 DOSTOIEVSE;I. ~ ESCIUT~ DO SOFa.IMENTO !! 00 PEJlDÃO

o berço da humanidade e este pensamento enchia minha alma de um amor fraterno. Era o paraíso terrestre; os deuses descinm do céu e se uniam aos homens; aqui tinham se passado as primeiras cenas da mitologia. Aqui vivia uma bela humanidade. Os homens acordavam e adormeciam felizes e inocentes; os bosques retiniam com sWJs alegres canções; o excesso de suas forças abundantes ex­pandia-se no amor, na alegria ingênua. E eu o sentia, ao mesmo tempo que discernia o imenso futuro que os esperava e do qual eles nem desconfiavam, e meu coração estremecia com esses pensamentos. Oh! como ficava feliz por meu coração estremecer e por, finalmente, eu ser capaz de amar! O sol derramava seus raios sobre as ilhas e sobre o mar e se rejubilava com suas belas crianças. Visão admi­rável! Ilusão sublime! O mais impossível de todos os sonhos, mas ao qual a humanidade deu todas as suas forças, para o qual ela sacrificou tudo; em nome do qual se morreu na cruz, mataram-se os profetas, sem o qWJl os povos niio quereriam viver, sem o qual nem mesmo poderiam morrer [ . . . ] Mas os rochedos e o mar, os raios oblíquos do sol poente - tudo isto, parecia que eu ainda o via quando acordei e abri os olhos, pela primeira vez na minha vida, literalmente, banhados de lágrimas [ . .. ] E bruscamente lembrei-me da pequena aranha vermelha . Eu a vi como a contemplei na folha de gerânio, enquanto o sol espalháva, como neste momento, seus raios oblíquos. Algo de agudo penetrou em mim; [ . .. 1 Eis exa­tamente como as coisas se pasuzram.""

O devaneio .da Idade de ouro, na realidade, é uma denegação da culpabilidade. Na verdade, imediatamente após o quadro de Claude Lorrain, Stavroguíne vê em sonho o pequeno bicho do re· morso, a aranha, que o retém na teia dessa consciência infeliz, por estar sob a tirania de uma lei repressiva e vingadora, contra a qual ele reagira precisamente pelo crime. A aranha da culpabilidade in­troduz a imagem da pequena Matriocha estuprada e suicida. Entre Acis e Galatéia e a aranha, entre a fuga na regressão e o -crime, de­f initivamente culpabilizante, Stavroguine fica como que cortado . Ele não tem acesso à mediação do amor, é estranho ao universo do perdão .

Bem entendido, é Dostoievski que se esconde sob a máscara de Stavroguine, Versilov e o Homem ridículo que sonha com a Idade de ouro. Mas ele não usa mais máscara quando descreve a

56 ús Dénwns, op. cit., pp. H3-734.

SOL NEGRO 185

cena do perdão entre Raskolnikov e Sônia: como artista e cristão, é ele, o narrador, que assume o artifício dessa estranha figura que é o epílogo-perdão de Crime e Castigo . A cena entre Raskolnikov e Sônia, ao mesmo tempo que lembra a de Acis e Galatéia pela ale­gria bucólica e pela luminosidade paradisíaca que a impregnam, não se refere à obra de Claude Lorrain nem à Idade de ouro. Com efeito, estranha Idade de ouro que se coloca no próprio centro do inferno, no desterro, perto do abrigo do desterrado. O perdão de Sônia evoca a regressão narcísica do amante incestuoso, mas não se con­funde com ela: Raskolnikov atravessa a cesura da felicidade amo­rosa, mergulhando na leitura da história de Lázaro segundo o Evan­gelho, que Sônia lhe empresta.

O tempo do perdão não é aquele da perseguição nem o do antro mitológico "na abóba:ia de rocha viva onde não se sente nem o sol no auge do seu calor, nem o inverno".51 É o da suspensão do crime, o tempo de sua prescrição. Uma prescrição que conhece o crime e não o esquece mas, sem se deixar cegar pelo seu horror, aposta numa nova partida, numa renovação da pessoa:58 ''Raskol­nikov saiu do abrigo, sentou-se num punhado de madeira amontoa­da na margem e pôs-se a contemplar o rio amplo e deserto . J>e.~ta margem elevada se divisava uma vasta extensão do país. Da beira oposta e longínqua, chegava .um canto cuia eco retinia nas orelhas do prisioneiro. Lá, na estepe imensa inundada de sol, apareciam aqui e acolá, em pontos negros, mal perceptíveis, as tendas dos nômades . Lá estava a liberdade, lá viviam os homens que não se pareciam em nada com aqueles do desterro. Dir-se-ia que o tempo parara na época de Abraão e dos seus rebanhos. Raskolnikov olhava essa visão longínqua, os olhos fixos, sem se mexer. Ele não refletia mais: sonhava e contemplava, mas ao mesmo tempo uma vaga inquieta­ção o oprimia.

De repente, Sônia encontra-se de novo ao seu lado. Ela se aproximara sem barulho e sentara junto dele. [ . . . ) Sorriu para o prisioneiro com um ar amável e feliz mas, segundo o seu hábito, s6 estendeu-lhe a mão timidamente. [ ... 1 De repente, e sem qui! o prisioneiro soubesse como isto aconteceu, uma força invisível lan-

ST Ovídio, Acis et Galatée, in Métamorphoses. 58 H . Arendt lembra o sentido, em São Lucas, das palavras grega.s de "perdão": "aphienai, métanoein: remeter de volta, liberar, mudar de opinião, refazer o seu caminho", op. cit., p. 170.

186 DOSTOIEVSIO, A ESCIUTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

ÇOU·O aos pés da jovem . Ele se pôs a chorar, enlaçando seus joe­lhos. No primeiro momento, ela ficou terrivelmente assustada e seu rosto se tornou mortalmente pálido. Ela deu um salto e o olhou, tremendo, mas no m~mo instante compreendeu tudo. Uma felici­dade infinita irradiou-se de seus olhos. Ela compreendeu que ele a amava, não podia duvidar disto. Ele a amava com um amor sem limites: o minuto por tanto tempo esperado então chegara."S9

Esse perdão dostoievskiano parece dizer: Por meu amor, eu o excluo por um tempo da história, eu o

tomo por uma criança, o que significa que reconheço os móveis inconscientes do seu crime e permito que você se transforme. Para que o inconsciente se inscreva numa nova história, que não seja o eterno retorno da. pulsão da morte no ciclo crime/castigo, ele precisa transitar pelo amor do perdão, transferir-se para o amor do perdão. Os recursos do narcisismo e da idealização imprimem suas marcas no inconsciente e o remodelam. Porque o inconsciente não é estruturado como uma linguagem, mas sim como todas as marcas do Outro, incluindo, sobretudo, as mais arcaicas, ''semióticas", feitas de auto-sensualidades pré-verbais que a exper:ência narcísica ou amorosa restitui. O perdão renova o inconsciente, porque ins­creve o direito à regressão narcísica na História e na Palavra .

Estas encontram-se modificadas por ele. Elas não são nem fuga linear para a frente, nem eterno retorno da repetição morte-vingança, mas espiral que segue o trajeto da pulsão mortal e o do amor-re­nascimento .

Suspendendo a perseguição histórica graças ao amor, o perdão descobre as potencialidades regenerantes próprias à gratificação nar­císica e à idealização internas ao laço amoroso. Portanto, ele leva em conta, s:multaneamente, dois registros da subjetividade: o regis­tro inconsciente, que pára o tempo pelo desejo e pela morte, e o registro do amor, que suspende o anti_go inconsciente e a antiga his­tória e esboça uma reconstrução da personalidade numa nova rela­ção para um outro. Meu inconsciente é re-inscritível para além desse .dom que uma outra pessoa me faz de não julgar meus atos.

O perdão não lava os atos. Sob estes, ele levanta o incons­ciente e o faz reencontrar um outro amoroso: um outro que não

S-J Crime e Castigo. Sobre o diálogo e o amor em Dostoievski, cf . Jacqucs Ro11and, Dostoievski. La Ouestion de l'Autre (D. A questão do outro), cd Verdier, 1981.

SOL NI::ORU 1R7

julga, mas que entende minha verdade na disponibiiidade do amor e, por isto mesmo, permite renascer. O perdão é a fase luminosa da sombria atemporalidade inconsciente: a fase em que esta última muda de lei e adota a ligação com o amor, como um princípio de renovação e de si.

O perdão estético

Apreendemos a gravidade de tal perdão com e através do hor· ror inaceitável. Esta gravidade é perceptível na escuta analítica, que não julga nem calcula, mas que tenta desatar e reconstituir. Sua temporalidade espiralada realiza-se no tempo da escrita . t por estar separado do meu inconsciente por uma nova transferência para um noyo outro ou para um novo ideal qu~ sou capaz de escre­ver a dramaturgia da minha violência e do meu desespero, contudo inesquecíveis. O tempo dessa separação e desse recomeço subjacente ao próprio ato da escrita não aparece necessariamente nos temas narrativos, que podem revelar somente o inferno do inconsciente. Mas ele também pode se manifestar sob o artifício de um epílogo, co· mo o de Crime e Castigo, que suspende uma aventura romanesca an· tcs de fazê-la renascer por um novo romance. O crime não esquecido. mas significado através do perdão, o horror escrito, é a condição da beleza. Não há beleza fora do perdão que se lembre da abjeção c a filtre pelos signos desestabilizados; musicalizados, re-sensualiza­dos, do discurso amoroso. O perdão é estético e os discursos (as religiões, as filosofias, as ideologias) que aderem à dinâmica do perdão precondicionam a eclosão da estética na sua esfera.

No início, este perdão comporta uma vontade, postulado ou esquema: o sentido existe. Não se trata necessar:amentc de uma recusa do não-sentido ou de uma exaltação maníaca em oposição ao desespero {mesmo se, em numerosos casos, este movimento possa dominar). Esse gesto de afirmação e de inscrição do sentido, que é o perdão, traz em si, como um revestimento, a erosão do sentido, a melancolia e a abjeção. Compreendendo-as, ele as desloca, absor· vendo-as, ele as transforma e as liga a alguma outra pessoa. "Exis­te um senti<lo": gesto eminentemente transferencial, que faz com que um terceiro exista para e por um outro. O perdão manifesta-se primeiramente como a instalação de uma forma. Ela tem o efeito de uma ativação, de um fazer, de uma poiesis. Formulação d~s re· !ações entre os indivíduos humilhados e ofendidos: harmonlâ do

186 DOSTOIEVSIO, A ESCIUTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

ÇOU·O aos pés da jovem . Ele se pôs a chorar, enlaçando seus joe­lhos. No primeiro momento, ela ficou terrivelmente assustada e seu rosto se tornou mortalmente pálido. Ela deu um salto e o olhou, tremendo, mas no m~mo instante compreendeu tudo. Uma felici­dade infinita irradiou-se de seus olhos. Ela compreendeu que ele a amava, não podia duvidar disto. Ele a amava com um amor sem limites: o minuto por tanto tempo esperado então chegara."S9

Esse perdão dostoievskiano parece dizer: Por meu amor, eu o excluo por um tempo da história, eu o

tomo por uma criança, o que significa que reconheço os móveis inconscientes do seu crime e permito que você se transforme. Para que o inconsciente se inscreva numa nova história, que não seja o eterno retorno da. pulsão da morte no ciclo crime/castigo, ele precisa transitar pelo amor do perdão, transferir-se para o amor do perdão. Os recursos do narcisismo e da idealização imprimem suas marcas no inconsciente e o remodelam. Porque o inconsciente não é estruturado como uma linguagem, mas sim como todas as marcas do Outro, incluindo, sobretudo, as mais arcaicas, ''semióticas", feitas de auto-sensualidades pré-verbais que a exper:ência narcísica ou amorosa restitui. O perdão renova o inconsciente, porque ins­creve o direito à regressão narcísica na História e na Palavra .

Estas encontram-se modificadas por ele. Elas não são nem fuga linear para a frente, nem eterno retorno da repetição morte-vingança, mas espiral que segue o trajeto da pulsão mortal e o do amor-re­nascimento .

Suspendendo a perseguição histórica graças ao amor, o perdão descobre as potencialidades regenerantes próprias à gratificação nar­císica e à idealização internas ao laço amoroso. Portanto, ele leva em conta, s:multaneamente, dois registros da subjetividade: o regis­tro inconsciente, que pára o tempo pelo desejo e pela morte, e o registro do amor, que suspende o anti_go inconsciente e a antiga his­tória e esboça uma reconstrução da personalidade numa nova rela­ção para um outro. Meu inconsciente é re-inscritível para além desse .dom que uma outra pessoa me faz de não julgar meus atos.

O perdão não lava os atos. Sob estes, ele levanta o incons­ciente e o faz reencontrar um outro amoroso: um outro que não

S-J Crime e Castigo. Sobre o diálogo e o amor em Dostoievski, cf . Jacqucs Ro11and, Dostoievski. La Ouestion de l'Autre (D. A questão do outro), cd Verdier, 1981.

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julga, mas que entende minha verdade na disponibiiidade do amor e, por isto mesmo, permite renascer. O perdão é a fase luminosa da sombria atemporalidade inconsciente: a fase em que esta última muda de lei e adota a ligação com o amor, como um princípio de renovação e de si.

O perdão estético

Apreendemos a gravidade de tal perdão com e através do hor· ror inaceitável. Esta gravidade é perceptível na escuta analítica, que não julga nem calcula, mas que tenta desatar e reconstituir. Sua temporalidade espiralada realiza-se no tempo da escrita . t por estar separado do meu inconsciente por uma nova transferência para um noyo outro ou para um novo ideal qu~ sou capaz de escre­ver a dramaturgia da minha violência e do meu desespero, contudo inesquecíveis. O tempo dessa separação e desse recomeço subjacente ao próprio ato da escrita não aparece necessariamente nos temas narrativos, que podem revelar somente o inferno do inconsciente. Mas ele também pode se manifestar sob o artifício de um epílogo, co· mo o de Crime e Castigo, que suspende uma aventura romanesca an· tcs de fazê-la renascer por um novo romance. O crime não esquecido. mas significado através do perdão, o horror escrito, é a condição da beleza. Não há beleza fora do perdão que se lembre da abjeção c a filtre pelos signos desestabilizados; musicalizados, re-sensualiza­dos, do discurso amoroso. O perdão é estético e os discursos (as religiões, as filosofias, as ideologias) que aderem à dinâmica do perdão precondicionam a eclosão da estética na sua esfera.

No início, este perdão comporta uma vontade, postulado ou esquema: o sentido existe. Não se trata necessar:amentc de uma recusa do não-sentido ou de uma exaltação maníaca em oposição ao desespero {mesmo se, em numerosos casos, este movimento possa dominar). Esse gesto de afirmação e de inscrição do sentido, que é o perdão, traz em si, como um revestimento, a erosão do sentido, a melancolia e a abjeção. Compreendendo-as, ele as desloca, absor· vendo-as, ele as transforma e as liga a alguma outra pessoa. "Exis­te um senti<lo": gesto eminentemente transferencial, que faz com que um terceiro exista para e por um outro. O perdão manifesta-se primeiramente como a instalação de uma forma. Ela tem o efeito de uma ativação, de um fazer, de uma poiesis. Formulação d~s re· !ações entre os indivíduos humilhados e ofendidos: harmonlâ do

188 DOSTOJEVSD, A ESCIUTA DO SOFJUl.IENTO E DO PEIU>ÃO

grupo . Formulação dos signos: harmonia da obra, sem exegese, sem explicação, sem compreensão. Técnica e arte. O aspecto ''primário" de tal ação esclarece por que ela tem o poder de atingir, aquém das palavras e das inteligências, as emoções e os corpos machucados. Entretanto, essa economia não tem nada de primitivo . A possibi­lidade lógica de revezamento (Aufhebung) que ela implica (não­sentido e sentido, sobressalto positivo integrando o seu possível nada) é consecutiva a um engate sólido do indivíduo ao ideal abla­tivo . Aquele que está na esfera do perdão - que dá e que o aceita - é capaz de se identificar com um pai amante, pai imagi­nário com o qual, por conseqüência, ele está pronto a se reconciliar, visando a uma nova lei simbólica.

A recusa é parte interessada dessa operação de revezamento ou de reconciliação identificatória. Ela proporciona um prazer perverso, masoquista, m travessia do sofrimento para essa afirmação de novos elos que são tanto o perdão como a obra. Entretanto, contrariamente à recusa da denegação, que anula o significante e conduz à palavra oca do melancólico,60 um outro processo entra em jogo aqui para assegurar a vida imaginária .

Trata-se do perdão essencial à sublimação, que conduz o su­jeito a uma identificação completa (real, imaginária e simbólica) com a própria instância do ideal.61 Pelo artifício miraculoso dessa identificação sempre instável, inacabada, mas constantemente tripla (real, imaginária e simbólica), o corpo sofredor do que perdoa - como o do artista - sofre uma mutação: uma "transubstancia­ção", dirá Joyce. Ela lhe permite viver uma s:egunda vida, uma vida de forma e de sentido, um pouco exaltada ou artificial aos olhos daqueles que não estão nela, mas que é a única condição para a sobrevivência do sujeito.

Oriente e Ocidente: Per Filium ou Filioque

A fonte mais clara da noção do perdão que o cristianismo de­senvolverá durante séculos remonta, nos Evangelhos, a São Paulo62

60 Cf. capítulo li , pp. 53-60. 61 Cf. sobre a identificação, nossa História de amor, Paz e Terra. 1988. 62 Efes, IV, 32: "Sede amáveis uns com os outros. benevolentes (eusplanknoi), e perdoai-vos como Deus vos perdoou no Cristo."

SOL NEO&O 189

e a São Lucas.63 Como todos os princtpJOs de base da cristandade, ela será desenvolvida em Santo Agostinho, mas é em São Damas­ceno (no século VIII) que se encontrará uma hipóstase da "bene­volência do pai" (eudoxia), da '' terna misericórdia" (eusp/ankhna) e da ''condescendência" (o Filho se abaixa até nós) (synkatabasis). Inversamente, estas noções podem ser interpretadas como as que preparavam a sillgularidade do cristianismo ortodoxo até o cisma de Per Filium/ Filioque .

Um teólogo parece ter determinado profundamente a fé orto­doxa que se exprime com força em Dostoievski e dá à experiência interior própria aos seus romances essa intensidade emocional, esse patos místico tão surpreendente para o Ocidente. Trata-se de São Simeão, o Novo Teólogo (999-1022).64 O relato da conversão desse agrammatos ao cristianismo é de um estilo que se qualificou de paulino: "Sempre chorando, ia em busca de ti, Desconhecido, eu esquecia tudo. . . Então aparecestes, tu, invisível, inapreensivel . . · Parece-me, ó Senhor, que tu, imóvel, tu te movias, tu, imutável, mudavas, tu, sem rosto, tomavas um rosto. . . Resplandecias desme• didamente e parecia que me surgias inteiro, em tudo . . . ·~ São Simeão compreende a Trindade como a fusão das diferenças que são as três pessoas, e o enuncia intensamente através da metáfora da luz.66

Luz e hipóstases, unidade e aparições: esta é a lógica da Trin-

a "O entranhas de misericórdia de nosso Deus por quem um Oriente do alto vai nos visitar" (Lucas, 1, 78). 64 Cf. São Simeão, o Novo Teólogo, Oeuvres (Obras), Moscou, 1890 (em russo), e Sources c/uétiennes (Fontes cristãs), 51. M Citado por O. Clément, L'Essor du christianisme oriental (Ascensão do cristianismo oriental), PUF, Paris, 1964, pp . 25-26. 66 "A luz Deus, a luz Filho e a lu1: Espírito Santo- estas três luzes são uma mesmà luz eterna, indivisível, sem confusão, incriada, finita, incomensurável, invisível. na medida em que é fonte de toda luz" (Sermão, 51, in Oeuvres, Mos­cou, 1890, t. li , p. 46); "Não há diferença entre Deus que habita a luz e a própria luz que é a sua morada; como não há diferença entre a luz de Deus e Deus . Mas eles são um me:;mo, a morada e o habitante, a luz e Deus" (Se,. mão, 59, ibid. , p. 72): " Deus é luz, luz infinita, c a luz de Deus revela-se ól

nós pela sua natureza indistintamente inseparável em hipóstases [faces, rostos] . .. O Pai é luz, o Filho é luz, o Espírito Santo é luz, e os três são uma única luz simples, não complicada, da mesma essência, do mesmo valor, da mesma glória" (Sermão, 62, ibid., p. 105).

188 DOSTOJEVSD, A ESCIUTA DO SOFJUl.IENTO E DO PEIU>ÃO

grupo . Formulação dos signos: harmonia da obra, sem exegese, sem explicação, sem compreensão. Técnica e arte. O aspecto ''primário" de tal ação esclarece por que ela tem o poder de atingir, aquém das palavras e das inteligências, as emoções e os corpos machucados. Entretanto, essa economia não tem nada de primitivo . A possibi­lidade lógica de revezamento (Aufhebung) que ela implica (não­sentido e sentido, sobressalto positivo integrando o seu possível nada) é consecutiva a um engate sólido do indivíduo ao ideal abla­tivo . Aquele que está na esfera do perdão - que dá e que o aceita - é capaz de se identificar com um pai amante, pai imagi­nário com o qual, por conseqüência, ele está pronto a se reconciliar, visando a uma nova lei simbólica.

A recusa é parte interessada dessa operação de revezamento ou de reconciliação identificatória. Ela proporciona um prazer perverso, masoquista, m travessia do sofrimento para essa afirmação de novos elos que são tanto o perdão como a obra. Entretanto, contrariamente à recusa da denegação, que anula o significante e conduz à palavra oca do melancólico,60 um outro processo entra em jogo aqui para assegurar a vida imaginária .

Trata-se do perdão essencial à sublimação, que conduz o su­jeito a uma identificação completa (real, imaginária e simbólica) com a própria instância do ideal.61 Pelo artifício miraculoso dessa identificação sempre instável, inacabada, mas constantemente tripla (real, imaginária e simbólica), o corpo sofredor do que perdoa - como o do artista - sofre uma mutação: uma "transubstancia­ção", dirá Joyce. Ela lhe permite viver uma s:egunda vida, uma vida de forma e de sentido, um pouco exaltada ou artificial aos olhos daqueles que não estão nela, mas que é a única condição para a sobrevivência do sujeito.

Oriente e Ocidente: Per Filium ou Filioque

A fonte mais clara da noção do perdão que o cristianismo de­senvolverá durante séculos remonta, nos Evangelhos, a São Paulo62

60 Cf. capítulo li , pp. 53-60. 61 Cf. sobre a identificação, nossa História de amor, Paz e Terra. 1988. 62 Efes, IV, 32: "Sede amáveis uns com os outros. benevolentes (eusplanknoi), e perdoai-vos como Deus vos perdoou no Cristo."

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e a São Lucas.63 Como todos os princtpJOs de base da cristandade, ela será desenvolvida em Santo Agostinho, mas é em São Damas­ceno (no século VIII) que se encontrará uma hipóstase da "bene­volência do pai" (eudoxia), da '' terna misericórdia" (eusp/ankhna) e da ''condescendência" (o Filho se abaixa até nós) (synkatabasis). Inversamente, estas noções podem ser interpretadas como as que preparavam a sillgularidade do cristianismo ortodoxo até o cisma de Per Filium/ Filioque .

Um teólogo parece ter determinado profundamente a fé orto­doxa que se exprime com força em Dostoievski e dá à experiência interior própria aos seus romances essa intensidade emocional, esse patos místico tão surpreendente para o Ocidente. Trata-se de São Simeão, o Novo Teólogo (999-1022).64 O relato da conversão desse agrammatos ao cristianismo é de um estilo que se qualificou de paulino: "Sempre chorando, ia em busca de ti, Desconhecido, eu esquecia tudo. . . Então aparecestes, tu, invisível, inapreensivel . . · Parece-me, ó Senhor, que tu, imóvel, tu te movias, tu, imutável, mudavas, tu, sem rosto, tomavas um rosto. . . Resplandecias desme• didamente e parecia que me surgias inteiro, em tudo . . . ·~ São Simeão compreende a Trindade como a fusão das diferenças que são as três pessoas, e o enuncia intensamente através da metáfora da luz.66

Luz e hipóstases, unidade e aparições: esta é a lógica da Trin-

a "O entranhas de misericórdia de nosso Deus por quem um Oriente do alto vai nos visitar" (Lucas, 1, 78). 64 Cf. São Simeão, o Novo Teólogo, Oeuvres (Obras), Moscou, 1890 (em russo), e Sources c/uétiennes (Fontes cristãs), 51. M Citado por O. Clément, L'Essor du christianisme oriental (Ascensão do cristianismo oriental), PUF, Paris, 1964, pp . 25-26. 66 "A luz Deus, a luz Filho e a lu1: Espírito Santo- estas três luzes são uma mesmà luz eterna, indivisível, sem confusão, incriada, finita, incomensurável, invisível. na medida em que é fonte de toda luz" (Sermão, 51, in Oeuvres, Mos­cou, 1890, t. li , p. 46); "Não há diferença entre Deus que habita a luz e a própria luz que é a sua morada; como não há diferença entre a luz de Deus e Deus . Mas eles são um me:;mo, a morada e o habitante, a luz e Deus" (Se,. mão, 59, ibid. , p. 72): " Deus é luz, luz infinita, c a luz de Deus revela-se ól

nós pela sua natureza indistintamente inseparável em hipóstases [faces, rostos] . .. O Pai é luz, o Filho é luz, o Espírito Santo é luz, e os três são uma única luz simples, não complicada, da mesma essência, do mesmo valor, da mesma glória" (Sermão, 62, ibid., p. 105).

190 OOSTOIEVSKI, A ESCRITA 00 SOFRIMENTO E 00 PERDÃO

dade bizantina.G7 Em Simeão, ela encontra. imediatamente seu equi­valente· antropológico: "Como é impossível existir um h~mem' com palavra ou espírito sem alma, assim é impossível pensar o Filho com o Pai sem o Espírito Santo [ . .. ] Porque o teu próprio espírito, assim como a l ua alma, está na tua inteligência e toda a tua inteli­gência está em todo o teu verbo, e todo o teu verbo está em todo o teu espírito, sem separação c sem conjlisào. É a imagem de Deus em l1ÓS"68 Neste caminho, o crente se deifica fusionan<lo-se com o Filho e com o Espírito: ' 'Dou-te graças que, sem confusão, sem mu­dança, tenhas te tornado um únicu Espírito comigo, embora sejas Deus acima de tudo, tenhas te tomado tudo para mim, em tudo.';(JI

Tocamos aqui a "originalidade da ortodoxia" . .Ela terminará, através de várias controvérsias institucionais e políticas, no cisma realizado no século XI e findo com a tomada de Constantinopla pelos latinos, em 1204. No plano propriamente teológico, é Simeão, mais do que F6cio, que formula a doutrina oriental Per Filium, opos· ta ao Fiíioque dos latinos . Insistindo no Espírito, ele afirma a iden­tidade da vida no Espírito e da vida no Cristo, essa p.neumatologia poderosa encontrando a sua origem no Pai. Contudo, tal instância paterna não é simplesmente um princípio de autoridade ou uma causa mecânica simples: no Pai, o Espírito perde sua imanência c identi· fica-se com o reino de Deus, definido através das metamorfoses germinais, florais, nutritivas e eróticas que conotam, para além do energetismo cósmico, em geral considerado específico do Oriente, D

fusão abertamente sexual com a Coisa nos limites do nomeável.70

67 "Porque a Trindade é uma unidade em três princípios e esta unidade cha­ma-se uma trindade em hipóstases {faces, rostos]. . . e nenhuma dessas hipós­tases, por nenhum instante, existiu antes da outra .. . as três faces são sem origem c co-eternas e co-essenciais" (Sermão, 60, p . 80). 6! Sermão, 61.

.l'J ''Préface des Hymnes de L'Amour Divin" (Prefácios dos hinos do amor di· vino) p. 61 2, col. 507·509, citado por O. Clémcnt, op. cit., p. 29. 10 ''Não falo em meu nome pessoal, mas em nome do próprio tesouro (que acabo de encontrar), isto é, Jesus Cristo, que fala através de mim: 'Sou ressur­reição c vida' (Jn, 11 , 25). 'Sou o grão de mostardeira' (Mt. XIII. 31-32). 'Sou a pérola' (Mt , XIII , 45·46) ... 'Sou a levedura' (Mt , XIII . 33)" (Sermão, 89, p 479). Simeão confidcncia que um dia. em estado "de excitação infernal c de esvaimento", ele se dirigiu a Deus e acolheu sua luz com "lágrimas quen· tc:s", tendo reconhecido em sua própria experiência o reino divino, ele mesmo,

SOL· NEOAU L91

Nesta dinâmica, a própria Igreja aparece como um soma pneu­matikon, um ''mistério", mais do que uma insti tuição à imagem da~ monarquias.

Essa identificação extática das três hipóstases entre si e do cren­te com a Trindade não conduz à concepção de uma autonomía do Filho (ou do crente), mas a um pertencimenlo pneumatológico de cada um com os outros, que traduz a expressão Per Filium (o Espí­rito desce do Pai pelo Filho) oposta ao Filioque (o Espírito desce do Pai e do Filho). -rt

Na época, foi impossível encontrar a racionalização desse mo­vimento místico iQternó à Trindade e à fé, onde, sem perder seu valor de pessoa, o Espírito se fusiona com os dois outros pólos c, ao mesmo tempo, lhes confere, para além do seu valor de ident!· dade ou de autoridade distintas, uma profundidade abissal, verti· ginosa, certamente também sexual, na qual se alojará a experiência psicológica da perda e do êxtase. O nó borro meu que Lacan utili· zou como metáfora da unidade e da diferença entre o Real, o lma· ginário e o Simbólico talvez permita pensar essa lógica, se é verdade que é necessário racionalizá-la. Ora, precisamente, este não parecia ser o propósito dos teólogos bizantinos dos séculos XI e XIII , preo· cupados em descrever uma nova subjet!vidade pós-antiga, mais do que em submetê-la à razão existente. Em compensação, os Pais da Igreja latina, mais lógicos, e que acabavam de descobrir Aristóte­les (enquanto o Oriente dele se nutrita e procurava se diferenciar), discursaram logicamente sobre a Trindade, vendo em Deus uma essên­cia intelectual simples, articulável em díades: o Pai engendra o Fi-

que as escrituras descreveram como uma pérola (Mt, XIII . 4546). um grão de mostardeira (Mt, Xlll, 31·32), uma levedura (Mt, XIII, 33}, água viva (Jn. IV. 6-42). fogo (Hebr, I , 7, etc.), um pão (Lc, XXIII. 19), um pavilhão nupcial (Ps. XVIII , 5·6), um esposo (Mt, XXV, 6; Jn, III. 29; Apoc, XXI, 9) . . . : "O que dizer ainda do indizível . . . Ao mesmo tempo que temos tudo isso centro de nós, não podemos compreendê-lo pela inteligência e esclarecê-lo pela palavra" (Sermão, 90, p. 490).

7i "O Espiríto Santo é dado e enviado, não no sentido de que ele própriu nio o teria desejado. mas no sentido de que o Espírito Santo, pelo Filho, que é uma lripóstase da Trindade, como se fosse a sua vontade. realiza o que é do desejo do Pai. Porque a Santíssima Trindade, por natureza, é inseparável , cs· sência e vontade, embora por hipóstases ela se nomeie em pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, e estes três são um único Deus, e o seu nome é Trindade" (Sermão, 62, p . tOS).

190 OOSTOIEVSKI, A ESCRITA 00 SOFRIMENTO E 00 PERDÃO

dade bizantina.G7 Em Simeão, ela encontra. imediatamente seu equi­valente· antropológico: "Como é impossível existir um h~mem' com palavra ou espírito sem alma, assim é impossível pensar o Filho com o Pai sem o Espírito Santo [ . .. ] Porque o teu próprio espírito, assim como a l ua alma, está na tua inteligência e toda a tua inteli­gência está em todo o teu verbo, e todo o teu verbo está em todo o teu espírito, sem separação c sem conjlisào. É a imagem de Deus em l1ÓS"68 Neste caminho, o crente se deifica fusionan<lo-se com o Filho e com o Espírito: ' 'Dou-te graças que, sem confusão, sem mu­dança, tenhas te tornado um únicu Espírito comigo, embora sejas Deus acima de tudo, tenhas te tomado tudo para mim, em tudo.';(JI

Tocamos aqui a "originalidade da ortodoxia" . .Ela terminará, através de várias controvérsias institucionais e políticas, no cisma realizado no século XI e findo com a tomada de Constantinopla pelos latinos, em 1204. No plano propriamente teológico, é Simeão, mais do que F6cio, que formula a doutrina oriental Per Filium, opos· ta ao Fiíioque dos latinos . Insistindo no Espírito, ele afirma a iden­tidade da vida no Espírito e da vida no Cristo, essa p.neumatologia poderosa encontrando a sua origem no Pai. Contudo, tal instância paterna não é simplesmente um princípio de autoridade ou uma causa mecânica simples: no Pai, o Espírito perde sua imanência c identi· fica-se com o reino de Deus, definido através das metamorfoses germinais, florais, nutritivas e eróticas que conotam, para além do energetismo cósmico, em geral considerado específico do Oriente, D

fusão abertamente sexual com a Coisa nos limites do nomeável.70

67 "Porque a Trindade é uma unidade em três princípios e esta unidade cha­ma-se uma trindade em hipóstases {faces, rostos]. . . e nenhuma dessas hipós­tases, por nenhum instante, existiu antes da outra .. . as três faces são sem origem c co-eternas e co-essenciais" (Sermão, 60, p . 80). 6! Sermão, 61.

.l'J ''Préface des Hymnes de L'Amour Divin" (Prefácios dos hinos do amor di· vino) p. 61 2, col. 507·509, citado por O. Clémcnt, op. cit., p. 29. 10 ''Não falo em meu nome pessoal, mas em nome do próprio tesouro (que acabo de encontrar), isto é, Jesus Cristo, que fala através de mim: 'Sou ressur­reição c vida' (Jn, 11 , 25). 'Sou o grão de mostardeira' (Mt. XIII. 31-32). 'Sou a pérola' (Mt , XIII , 45·46) ... 'Sou a levedura' (Mt , XIII . 33)" (Sermão, 89, p 479). Simeão confidcncia que um dia. em estado "de excitação infernal c de esvaimento", ele se dirigiu a Deus e acolheu sua luz com "lágrimas quen· tc:s", tendo reconhecido em sua própria experiência o reino divino, ele mesmo,

SOL· NEOAU L91

Nesta dinâmica, a própria Igreja aparece como um soma pneu­matikon, um ''mistério", mais do que uma insti tuição à imagem da~ monarquias.

Essa identificação extática das três hipóstases entre si e do cren­te com a Trindade não conduz à concepção de uma autonomía do Filho (ou do crente), mas a um pertencimenlo pneumatológico de cada um com os outros, que traduz a expressão Per Filium (o Espí­rito desce do Pai pelo Filho) oposta ao Filioque (o Espírito desce do Pai e do Filho). -rt

Na época, foi impossível encontrar a racionalização desse mo­vimento místico iQternó à Trindade e à fé, onde, sem perder seu valor de pessoa, o Espírito se fusiona com os dois outros pólos c, ao mesmo tempo, lhes confere, para além do seu valor de ident!· dade ou de autoridade distintas, uma profundidade abissal, verti· ginosa, certamente também sexual, na qual se alojará a experiência psicológica da perda e do êxtase. O nó borro meu que Lacan utili· zou como metáfora da unidade e da diferença entre o Real, o lma· ginário e o Simbólico talvez permita pensar essa lógica, se é verdade que é necessário racionalizá-la. Ora, precisamente, este não parecia ser o propósito dos teólogos bizantinos dos séculos XI e XIII , preo· cupados em descrever uma nova subjet!vidade pós-antiga, mais do que em submetê-la à razão existente. Em compensação, os Pais da Igreja latina, mais lógicos, e que acabavam de descobrir Aristóte­les (enquanto o Oriente dele se nutrita e procurava se diferenciar), discursaram logicamente sobre a Trindade, vendo em Deus uma essên­cia intelectual simples, articulável em díades: o Pai engendra o Fi-

que as escrituras descreveram como uma pérola (Mt, XIII . 4546). um grão de mostardeira (Mt, Xlll, 31·32), uma levedura (Mt, XIII, 33}, água viva (Jn. IV. 6-42). fogo (Hebr, I , 7, etc.), um pão (Lc, XXIII. 19), um pavilhão nupcial (Ps. XVIII , 5·6), um esposo (Mt, XXV, 6; Jn, III. 29; Apoc, XXI, 9) . . . : "O que dizer ainda do indizível . . . Ao mesmo tempo que temos tudo isso centro de nós, não podemos compreendê-lo pela inteligência e esclarecê-lo pela palavra" (Sermão, 90, p. 490).

7i "O Espiríto Santo é dado e enviado, não no sentido de que ele própriu nio o teria desejado. mas no sentido de que o Espírito Santo, pelo Filho, que é uma lripóstase da Trindade, como se fosse a sua vontade. realiza o que é do desejo do Pai. Porque a Santíssima Trindade, por natureza, é inseparável , cs· sência e vontade, embora por hipóstases ela se nomeie em pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, e estes três são um único Deus, e o seu nome é Trindade" (Sermão, 62, p . tOS).

192 DOSTOJ2VSJa, A ESCIUTA DO SOFJUMENTO E J)Q PUDÃO

lho; o Pai e o Filho, enquanto juntos, fazem proceder o Espírito.72

Desenvolvida pe!a silogística de Anselmo de Cantorbury no concí­lio de Bari em 1098, esta argumentação do Filioque será retomada e desenvolvida por Tomás de Aquino. Ela terá a vantagem de, por um lado, assentar a autoridade política e espiritual do papado e, por outro, a autonomia e a racionalidade da pessoa do crente, iden­tificado com um Filho que tem poder e prestígio, em pé de igual­dade com o Pai. O que é assim ganho em igualdade e portanto em performance e hístoricidade, talvez seja perdido ao nível da expe­riência da identificação, no sentido de uma instabilidade permanen­te da identidade.

Em compensação, diferença e identidade, ma!s do que autono­mia e igualdade, ligam essa Trindade oriental, por conseqüência tor­nada fonte de êxtase e de. mística. A ortodoxia vai cultivá-la, ado­rando, para além das oposições, um sentido da plenitude em que cada pessoa da Trindade liga-se e se identifica com todas as outras: fusão erótica. Nessa lógica " borromeana" da Trindade ortodoxa, o espaço psíquico do crente abre-se aos movimentos os mais violen­tos de transportes para o arrebatamento ou a morte, dist!nguídos simplesmente para serem confundidos na unidade do amor divino.73

e S9bre este fundo psicológico que se deve compreender a audá­cia do imaginário bizantino de representar a morte e a Paixão do Cristo na arte dos ícones, assim como a propensão do discurso orto­doxo a explorar o sofrimento e a misericórdia. A unidade pode se per­der (a do Cristo no Gólgota, a do crente na humilhação ou na mor­te), mas no movimento do nó trinitário ela pode reencontrar sua con­sistência provisória graças à benevolência e à misericórdia, antes de retomar esse ciclo eterno de desaparecimento e de aparecimento.

''Eu" é Filho e Espírito

Neste sentido, nos lembremos de alguns dos acontecimentos teo­lógicos, psicológicos e picturais que anunciam tanto o cisma quanto, mais tarde, a espiritualidade ortodoxa russa, fundamento do dis-

r. Cf. Olivíer Clément, op. cit., p. 74. 73 No seio dessa osmosc dolorosa c prazerosa das três hipóteses, a indivíduo· lidade do ego é percebida como limite necessário à vida biológica e social, mas que impede a experiência do amor-perdão para oulrem. Cf. aqui. mesmo as reflexões de Dostoievski em relação ao eu-limite, no momento da morte de sua mulher Maria (pp. 178-179, n. :m.

SOL NEOJt.O 193

curso dostoievskiano. Para Simeão, o Novo Teólogo, a luz é inse­parável da ''ternura dolorosa" (katanyxis) que se abre a Deus pela humildade e por uma torrente de lágrimas porque ela sabe que é perdoada de início. Por outro lado, a concepção pneumática da eucaristia, exposta por exemplo, por Maxime, o Confessor (século XII), leva a pensar que Jesus foi, ao mesmo tempo, deificado e cru· cificado, que a morte na cruz é infwtdida na vida e é viva. A par­tir dali, as pinturas se permitirão apresentar a morte do Cristo na Cruz: porque a morte é viva, o corpo morto é um corpo incorrup­tível, que pode ser guardado pela Igreja enquanto imagem e rea­lidade.

· Desde o século XI, (l esquematismo da arquitetura e da . ico­nografia eclesiástica se enriquece cem uma representação do Cristo cercado de apóstolos que lhe oferecem o cálice e o pão: um Cristo ''que oferece e que é oferecido", segundo a fórmula de São João Crisóstomo. Como assinala Olivier Clément, a própria arte do mo­saico impõe a presença da luz, do dom de graça e de magnificên­cia, ao mesmo tempo que a representação icônica do ciclo mariano e da Paixão de Jesus convida a uma identificação dos indivíduos crentes com as pessoas das Escrituras. Esse subjetivismo, sob o raio da graça, encontra uma de suas expressões privilegiadas na representação da Paixão do Cristo: como o homem, o Cristo sofre e morre. Contudo, o pintor pode mostrá-lo, e o crente pode vê-lo, estando sua humilhação e o seu sofrimento imersos na ternura da misericórdia para o Filho no Espírito. Como se a Ressurreição tor· nasse a morte visível e ao mesmo tempo ainda mais patética . As cenas da Paixão foram acrescentadas ao ciclo litúrgico tradicional em 1164, em Nérézi, igreja macedônica fundada pelos comênios.

Contudo, esse avanço da iconografia bizantina em relação à tradição clássica ou judaica condensou-se mais . tarde . O Renasci­mento foi latino, e é provável que causas políticas e sociais ou as invasões estrangeiras não fossem as únicas a contribuir para a queda da arte pictural ortodoxa no esquematismo. Com toda a certeza, a concepção oriental da Trindade dava menos autonomia ao indivíduo, isto quando não o subordinava à autoridade, e certamente não o en­corajava a se transformar em "individualidade artística". Entretanto, nos meandros menos espetaculares, mais íntimos e portanto menos controláveis da arte verbal, sem dúvida esse progresso ocorreu, ape­sar do atraso que conhecemos, além .do mais com uma destilação da alquimia do sofrimento, em particular na literatura russa.

192 DOSTOJ2VSJa, A ESCIUTA DO SOFJUMENTO E J)Q PUDÃO

lho; o Pai e o Filho, enquanto juntos, fazem proceder o Espírito.72

Desenvolvida pe!a silogística de Anselmo de Cantorbury no concí­lio de Bari em 1098, esta argumentação do Filioque será retomada e desenvolvida por Tomás de Aquino. Ela terá a vantagem de, por um lado, assentar a autoridade política e espiritual do papado e, por outro, a autonomia e a racionalidade da pessoa do crente, iden­tificado com um Filho que tem poder e prestígio, em pé de igual­dade com o Pai. O que é assim ganho em igualdade e portanto em performance e hístoricidade, talvez seja perdido ao nível da expe­riência da identificação, no sentido de uma instabilidade permanen­te da identidade.

Em compensação, diferença e identidade, ma!s do que autono­mia e igualdade, ligam essa Trindade oriental, por conseqüência tor­nada fonte de êxtase e de. mística. A ortodoxia vai cultivá-la, ado­rando, para além das oposições, um sentido da plenitude em que cada pessoa da Trindade liga-se e se identifica com todas as outras: fusão erótica. Nessa lógica " borromeana" da Trindade ortodoxa, o espaço psíquico do crente abre-se aos movimentos os mais violen­tos de transportes para o arrebatamento ou a morte, dist!nguídos simplesmente para serem confundidos na unidade do amor divino.73

e S9bre este fundo psicológico que se deve compreender a audá­cia do imaginário bizantino de representar a morte e a Paixão do Cristo na arte dos ícones, assim como a propensão do discurso orto­doxo a explorar o sofrimento e a misericórdia. A unidade pode se per­der (a do Cristo no Gólgota, a do crente na humilhação ou na mor­te), mas no movimento do nó trinitário ela pode reencontrar sua con­sistência provisória graças à benevolência e à misericórdia, antes de retomar esse ciclo eterno de desaparecimento e de aparecimento.

''Eu" é Filho e Espírito

Neste sentido, nos lembremos de alguns dos acontecimentos teo­lógicos, psicológicos e picturais que anunciam tanto o cisma quanto, mais tarde, a espiritualidade ortodoxa russa, fundamento do dis-

r. Cf. Olivíer Clément, op. cit., p. 74. 73 No seio dessa osmosc dolorosa c prazerosa das três hipóteses, a indivíduo· lidade do ego é percebida como limite necessário à vida biológica e social, mas que impede a experiência do amor-perdão para oulrem. Cf. aqui. mesmo as reflexões de Dostoievski em relação ao eu-limite, no momento da morte de sua mulher Maria (pp. 178-179, n. :m.

SOL NEOJt.O 193

curso dostoievskiano. Para Simeão, o Novo Teólogo, a luz é inse­parável da ''ternura dolorosa" (katanyxis) que se abre a Deus pela humildade e por uma torrente de lágrimas porque ela sabe que é perdoada de início. Por outro lado, a concepção pneumática da eucaristia, exposta por exemplo, por Maxime, o Confessor (século XII), leva a pensar que Jesus foi, ao mesmo tempo, deificado e cru· cificado, que a morte na cruz é infwtdida na vida e é viva. A par­tir dali, as pinturas se permitirão apresentar a morte do Cristo na Cruz: porque a morte é viva, o corpo morto é um corpo incorrup­tível, que pode ser guardado pela Igreja enquanto imagem e rea­lidade.

· Desde o século XI, (l esquematismo da arquitetura e da . ico­nografia eclesiástica se enriquece cem uma representação do Cristo cercado de apóstolos que lhe oferecem o cálice e o pão: um Cristo ''que oferece e que é oferecido", segundo a fórmula de São João Crisóstomo. Como assinala Olivier Clément, a própria arte do mo­saico impõe a presença da luz, do dom de graça e de magnificên­cia, ao mesmo tempo que a representação icônica do ciclo mariano e da Paixão de Jesus convida a uma identificação dos indivíduos crentes com as pessoas das Escrituras. Esse subjetivismo, sob o raio da graça, encontra uma de suas expressões privilegiadas na representação da Paixão do Cristo: como o homem, o Cristo sofre e morre. Contudo, o pintor pode mostrá-lo, e o crente pode vê-lo, estando sua humilhação e o seu sofrimento imersos na ternura da misericórdia para o Filho no Espírito. Como se a Ressurreição tor· nasse a morte visível e ao mesmo tempo ainda mais patética . As cenas da Paixão foram acrescentadas ao ciclo litúrgico tradicional em 1164, em Nérézi, igreja macedônica fundada pelos comênios.

Contudo, esse avanço da iconografia bizantina em relação à tradição clássica ou judaica condensou-se mais . tarde . O Renasci­mento foi latino, e é provável que causas políticas e sociais ou as invasões estrangeiras não fossem as únicas a contribuir para a queda da arte pictural ortodoxa no esquematismo. Com toda a certeza, a concepção oriental da Trindade dava menos autonomia ao indivíduo, isto quando não o subordinava à autoridade, e certamente não o en­corajava a se transformar em "individualidade artística". Entretanto, nos meandros menos espetaculares, mais íntimos e portanto menos controláveis da arte verbal, sem dúvida esse progresso ocorreu, ape­sar do atraso que conhecemos, além .do mais com uma destilação da alquimia do sofrimento, em particular na literatura russa.

............. 194 DOSTOIEVW, A ESCJUTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

Tendo chegado tardiamente, após o progresso bizantino e o dos eslavos do Sul (os búlgaros, os sérvios), a Igreja russa acentua suas tendências pneumatológicas e místicas . Pagã, dionisíaca, ori­ental, a tradição pré-cristã imprime à ortodoxia bizantina que passou para a Rússia um paroxismo jamais alcançado: os "khlysty", seita mística de inspiração maniqueísta, que privilegia os excessos de so­frimento e de erotismo com o objetivo de atingir uma fusão com­pleta dos adeptos com o Cristo; a teofania da terra (que conduzirá à idéia de Moscou como ''terceira Roma", depois de Constantino­pla ... mas também à Terceira Internacional, comentam algumas pessoas); a apologia do amor-salvação, e sobretudo a hipóstase da ternura (oumiliénié), no cruzamento do sofrimento e da alegria e no Cristo; o movimento "daqueles que sofreram a Paixão" (stras­totierptsy), isto é, daqueles que realmente foram brutalizados ou humilhados, mas que só respondem ao mal pelo perdão - estão entre as expressões mais paroxísticas e mais concretas da lógica ortodoxa russa.

Não poderíamos compreender Dostoievski sem ela. O seu dia· logismo, sua polifonia,74 sem dúvida, decorrem de múltiplas fontes. Estaríamos errados se negligenciássemos a da fé ortodoxa, cuja con· cepção trinitária (diferença e unidade das três Jlessoas numa pneu· matologia generalizada que convida toda subjetividade a um desdo­bramento maximal de suas contradições) inspira tanto o "dialogis· mo" do escritor quanto sua apologia do sofrimento, ao mesmo tem­po que a do perdão. Nesta ótica, a imagem do pai tirânico, presente no universo dostoievskiano e na qual Freud viu a fonte da epilepsia, assim como da dissipação lúdica (a paixão pelo jogo),75 deve ser equilibrada - não para compreender o Dostoievski neuropata, mas o Dostoievski artista - com a do pai benevolente próprio à Trin­dade bizantina, com a sua ternura e Q seu perdão_

O perdão falado

A posição do escritor é uma posição de palavra: uma constru· ção simbólica absorve e substitui o perdão enquanto movimento emocional, misericórdia, compaixão antropomorfa. Dí:ter que a obra de arte é um perdão já pressupõe a saída do perdão psicológico

;l Cf. M. Bakhtine, Poétique de Dostolevski (Poética de Dostoievski), op. cit. 7S Cf. S. 'Freud, "Dostoievski e la Parricide" (0. e o Parricídio), op. cit.

SOL NEGRO 195

(mas sem desconhecê-lo) em direção a um ato singular, o da no­meação e da composição.

Assim, só poderemos compreender no que a arte é um perdão se abrirmos todos os registros em que o perdão opera e se esgota. Começaremos pelo da identificação psicológica, subjetiva, com o sofrimento e a ternura dos outros, dos ''personagens" e de si mesmo, em Dostoievski apoiada na fé ortodoxa. Em seguida e necessaria­mente, passaremos pela fonnulação lógica da eficácia do perdão como obra da criação transpessoal, assim como o entende São To­más (desta vez no interior do Filioque). Enfim, observaremos a oscilação desse perdão para além da polifonia da obra, na única moral da performance estética, no gozo da paixão como beleza. Potencialmente imoralista, esse terceiro tempo do perdão-performan­ce volta ao ponto de partida desse movimento circular: ao sofri­mento c à ternura do outro pelo estranho.

O aro de dar reabsorve o afeto

São Tomás liga a ''misericórdia de Deus" à sua justiça76 De· pois de ter assinalado que "a justiça de Deus concerne às conve­niências do seu ser, em conformidade com as quais ele devolve a si mesmo o que lhe é devido" , São Tomás interessa-se em estabelecer a verdade desta justiça, ficando entendido que é verdade o que está "em conformidade com as concepções da sabedoria, que é a sua lei". Quanto à misericórdia em si, ele não deixa de mencionar a opinião bastante antropológica e portanto psicológica de- São João Damas­ceno "que chama a miseric6rdia de uma espécie de tristeza". São Tomás d:ssocia-se dela, considerando que a misericórdia não pode­ria ser "um sentimento que afeta Deus, mas [ ... ] um efeito que ele regulamenta". "Quando, portanto, se trata de Deus, a tristeza em relação à miséria de outrem não poderia intervir; mas lhe con­vém, por exceMncia, afastar esta miséria entendendo por miséria uma falta, um defeito de qualquer natureza.11 Satisfazendo à falta, visando à perfeição, a misericórdia seria uma doação. "Dai-vos mutuamente como o Cristo vos deu" (também se traduz: "Agra­ciai-vos" ou "perdoai-vos''). O perdão supre a falta, dom suplemen­tar e grawito. Eu me dou a ti, tu me recebes, existo em ti. Nem

76 Questions 21, Somme théologique (Suma teológica), Jllo parte. n Ibid. Grifo nosso.

............. 194 DOSTOIEVW, A ESCJUTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

Tendo chegado tardiamente, após o progresso bizantino e o dos eslavos do Sul (os búlgaros, os sérvios), a Igreja russa acentua suas tendências pneumatológicas e místicas . Pagã, dionisíaca, ori­ental, a tradição pré-cristã imprime à ortodoxia bizantina que passou para a Rússia um paroxismo jamais alcançado: os "khlysty", seita mística de inspiração maniqueísta, que privilegia os excessos de so­frimento e de erotismo com o objetivo de atingir uma fusão com­pleta dos adeptos com o Cristo; a teofania da terra (que conduzirá à idéia de Moscou como ''terceira Roma", depois de Constantino­pla ... mas também à Terceira Internacional, comentam algumas pessoas); a apologia do amor-salvação, e sobretudo a hipóstase da ternura (oumiliénié), no cruzamento do sofrimento e da alegria e no Cristo; o movimento "daqueles que sofreram a Paixão" (stras­totierptsy), isto é, daqueles que realmente foram brutalizados ou humilhados, mas que só respondem ao mal pelo perdão - estão entre as expressões mais paroxísticas e mais concretas da lógica ortodoxa russa.

Não poderíamos compreender Dostoievski sem ela. O seu dia· logismo, sua polifonia,74 sem dúvida, decorrem de múltiplas fontes. Estaríamos errados se negligenciássemos a da fé ortodoxa, cuja con· cepção trinitária (diferença e unidade das três Jlessoas numa pneu· matologia generalizada que convida toda subjetividade a um desdo­bramento maximal de suas contradições) inspira tanto o "dialogis· mo" do escritor quanto sua apologia do sofrimento, ao mesmo tem­po que a do perdão. Nesta ótica, a imagem do pai tirânico, presente no universo dostoievskiano e na qual Freud viu a fonte da epilepsia, assim como da dissipação lúdica (a paixão pelo jogo),75 deve ser equilibrada - não para compreender o Dostoievski neuropata, mas o Dostoievski artista - com a do pai benevolente próprio à Trin­dade bizantina, com a sua ternura e Q seu perdão_

O perdão falado

A posição do escritor é uma posição de palavra: uma constru· ção simbólica absorve e substitui o perdão enquanto movimento emocional, misericórdia, compaixão antropomorfa. Dí:ter que a obra de arte é um perdão já pressupõe a saída do perdão psicológico

;l Cf. M. Bakhtine, Poétique de Dostolevski (Poética de Dostoievski), op. cit. 7S Cf. S. 'Freud, "Dostoievski e la Parricide" (0. e o Parricídio), op. cit.

SOL NEGRO 195

(mas sem desconhecê-lo) em direção a um ato singular, o da no­meação e da composição.

Assim, só poderemos compreender no que a arte é um perdão se abrirmos todos os registros em que o perdão opera e se esgota. Começaremos pelo da identificação psicológica, subjetiva, com o sofrimento e a ternura dos outros, dos ''personagens" e de si mesmo, em Dostoievski apoiada na fé ortodoxa. Em seguida e necessaria­mente, passaremos pela fonnulação lógica da eficácia do perdão como obra da criação transpessoal, assim como o entende São To­más (desta vez no interior do Filioque). Enfim, observaremos a oscilação desse perdão para além da polifonia da obra, na única moral da performance estética, no gozo da paixão como beleza. Potencialmente imoralista, esse terceiro tempo do perdão-performan­ce volta ao ponto de partida desse movimento circular: ao sofri­mento c à ternura do outro pelo estranho.

O aro de dar reabsorve o afeto

São Tomás liga a ''misericórdia de Deus" à sua justiça76 De· pois de ter assinalado que "a justiça de Deus concerne às conve­niências do seu ser, em conformidade com as quais ele devolve a si mesmo o que lhe é devido" , São Tomás interessa-se em estabelecer a verdade desta justiça, ficando entendido que é verdade o que está "em conformidade com as concepções da sabedoria, que é a sua lei". Quanto à misericórdia em si, ele não deixa de mencionar a opinião bastante antropológica e portanto psicológica de- São João Damas­ceno "que chama a miseric6rdia de uma espécie de tristeza". São Tomás d:ssocia-se dela, considerando que a misericórdia não pode­ria ser "um sentimento que afeta Deus, mas [ ... ] um efeito que ele regulamenta". "Quando, portanto, se trata de Deus, a tristeza em relação à miséria de outrem não poderia intervir; mas lhe con­vém, por exceMncia, afastar esta miséria entendendo por miséria uma falta, um defeito de qualquer natureza.11 Satisfazendo à falta, visando à perfeição, a misericórdia seria uma doação. "Dai-vos mutuamente como o Cristo vos deu" (também se traduz: "Agra­ciai-vos" ou "perdoai-vos''). O perdão supre a falta, dom suplemen­tar e grawito. Eu me dou a ti, tu me recebes, existo em ti. Nem

76 Questions 21, Somme théologique (Suma teológica), Jllo parte. n Ibid. Grifo nosso.

J96 DOSTOIEVSD, A ESCIUTA DO SOFIUMENTO E DO P.DDÃO

justiça nem injustiça, o perdão seria uma "plenitude de justiça" além do julgamento. E o que faz com que São Tiago diga: uA mise­ricórdia prevalece sobre o iulgamenfo.1118

Se é verdade que ele não se iguala à misericórdia divina, o perdão humano tenta modelar-se à sua imagem: dom, oblação anu­lando o julgamento, o perdão pressupõe uma identificação p oten­cial com essa divindade de misericórdia efetiva e eficaz de que fala o teólogo. Contudo e contrariamente à misericórdia divina, que pretende ser exemplo de tristeza, o perdão recolhe, no seu caminho para o outro, o pesar muito humano. Reconhecendo a falta e o feri­mento do qual se origina, ele os satisfaz por um dom ideal: pro­messa, projeto, artifício, inserindo assim o ser humilhado e ofendido numa ordem de perfeição e dando-lhe a segurança de pertencer a ela. O amor, em suma, ·além do julgamento, salienta a tristeza, con­tudo compreendida, entendida, manifestada. Podemos nos perdoar elevando, graças a alguém que nos ouve, nossa falta ou nosso feri­mento a uma ordem à qual estamos certos de pertencer, e eis-nos com garantia contra a depressão. Entretanto, como estar certo de pertencer a essa ordem ideal através da falta sem passar uma vez mais pelo desfile da identificação com essa realidade sem . falhas, paternidade amante, fiadora primitiva de nossas seguranças?

A escrita: perdão imoral

Aquele que cria um texto ou uma interpretação, .mais do que qualquer um, é fortemente atraído para aderir a essa instância intei­ramente lógica e ativa da misericórdia tomista, além da expansão emocional. Ele adere ao seu valor de justiça no ato e mais ainda à exação do ato. Tornando a palavra adequada à sua comiseração e, nesse sentido. justa, é que se realiza a adesão do sujeito ao ideal que perdoa e que torna possível o perdão eficaz para com os outros e para consigo mesmo. Nas fronteiras da emoção e do ato, a escr!ta só acontece pelo momento de denegação do afeto, para que nasça a eficácia dos signos. A escrita faz o afeto passar no efeito: "actus purus", diria São Tomás. Ela veicula os afetos e não os recalca, propõe uma saída sublimatória para eles, ela os transpõe para um outro num terceiro elo, imaginário e simbólico. Porque é um per­dão, a escrita é transformação, transposição, tradução.

18 Citado por São Tomás, ibid.

SJOl. NEOilO 197

A partir desse momento, o universo dos signos impõe a sua própria lógica. O júbilo que ele proporciona, o da performance e o da recepção, oblitera por intermitência tanto o ideal quanto toda possibilidade de justiça externa. O imoralismo é o quinhão desse processo que Dostoievski conhece bem: a escrita está fortemente associada ao mal, não somente no início (no seu pré-texto, em seus objetos), mas também no fim, no absolutismo de seu universo excluindo toda alteridade. Talvez também seja a consciência de que o efeito estético está encerrado numa paixão sem lado externo -no risco de um fechamento tanto de morte quanto de alegria, por uma autoconsumação imaginária, pela tirania do belo - que impele Dostoievski a se ligar violentamente à sua religião e ao seu prin­cípio, o perdão. Um eterno retorno de um triplo movimento assim se engrena: ternura unida ao sofrimento, justiça lógica e precisão da obra, hip6stase e, enfim, mal-estar da obra absoluta. Depois, de novo, para se perdoar, recomeça a tripla lógica do perdão. . . Não temos necessidade dela para dar um sentido vivo - erótico, imo­ral - ao aprisionamento melancólico?

J96 DOSTOIEVSD, A ESCIUTA DO SOFIUMENTO E DO P.DDÃO

justiça nem injustiça, o perdão seria uma "plenitude de justiça" além do julgamento. E o que faz com que São Tiago diga: uA mise­ricórdia prevalece sobre o iulgamenfo.1118

Se é verdade que ele não se iguala à misericórdia divina, o perdão humano tenta modelar-se à sua imagem: dom, oblação anu­lando o julgamento, o perdão pressupõe uma identificação p oten­cial com essa divindade de misericórdia efetiva e eficaz de que fala o teólogo. Contudo e contrariamente à misericórdia divina, que pretende ser exemplo de tristeza, o perdão recolhe, no seu caminho para o outro, o pesar muito humano. Reconhecendo a falta e o feri­mento do qual se origina, ele os satisfaz por um dom ideal: pro­messa, projeto, artifício, inserindo assim o ser humilhado e ofendido numa ordem de perfeição e dando-lhe a segurança de pertencer a ela. O amor, em suma, ·além do julgamento, salienta a tristeza, con­tudo compreendida, entendida, manifestada. Podemos nos perdoar elevando, graças a alguém que nos ouve, nossa falta ou nosso feri­mento a uma ordem à qual estamos certos de pertencer, e eis-nos com garantia contra a depressão. Entretanto, como estar certo de pertencer a essa ordem ideal através da falta sem passar uma vez mais pelo desfile da identificação com essa realidade sem . falhas, paternidade amante, fiadora primitiva de nossas seguranças?

A escrita: perdão imoral

Aquele que cria um texto ou uma interpretação, .mais do que qualquer um, é fortemente atraído para aderir a essa instância intei­ramente lógica e ativa da misericórdia tomista, além da expansão emocional. Ele adere ao seu valor de justiça no ato e mais ainda à exação do ato. Tornando a palavra adequada à sua comiseração e, nesse sentido. justa, é que se realiza a adesão do sujeito ao ideal que perdoa e que torna possível o perdão eficaz para com os outros e para consigo mesmo. Nas fronteiras da emoção e do ato, a escr!ta só acontece pelo momento de denegação do afeto, para que nasça a eficácia dos signos. A escrita faz o afeto passar no efeito: "actus purus", diria São Tomás. Ela veicula os afetos e não os recalca, propõe uma saída sublimatória para eles, ela os transpõe para um outro num terceiro elo, imaginário e simbólico. Porque é um per­dão, a escrita é transformação, transposição, tradução.

18 Citado por São Tomás, ibid.

SJOl. NEOilO 197

A partir desse momento, o universo dos signos impõe a sua própria lógica. O júbilo que ele proporciona, o da performance e o da recepção, oblitera por intermitência tanto o ideal quanto toda possibilidade de justiça externa. O imoralismo é o quinhão desse processo que Dostoievski conhece bem: a escrita está fortemente associada ao mal, não somente no início (no seu pré-texto, em seus objetos), mas também no fim, no absolutismo de seu universo excluindo toda alteridade. Talvez também seja a consciência de que o efeito estético está encerrado numa paixão sem lado externo -no risco de um fechamento tanto de morte quanto de alegria, por uma autoconsumação imaginária, pela tirania do belo - que impele Dostoievski a se ligar violentamente à sua religião e ao seu prin­cípio, o perdão. Um eterno retorno de um triplo movimento assim se engrena: ternura unida ao sofrimento, justiça lógica e precisão da obra, hip6stase e, enfim, mal-estar da obra absoluta. Depois, de novo, para se perdoar, recomeça a tripla lógica do perdão. . . Não temos necessidade dela para dar um sentido vivo - erótico, imo­ral - ao aprisionamento melancólico?

VIII A doença da dor: Duras

VIII A doença da dor: Duras

''A dor é uma das coisas mais importantes de minha vida."

A Dor

''Disse-lhe que na minha infân­cia a infelicidade de minha mãe ocupou o lugar do sonho."

O Amante

Retórica branca do apocalipse

Nós, civilizações, sabemos agora que não apenas somos mortais, como proclamava Valéry depois de 1914/ mas que podemos nos matar. Auschwitz e Hiroshima revelaram que a "doença da ·morte", como diria Marguerite Duras, constitui nossa mais dissi· mulada intimidade. Se a área militar e econômica e os -elos políticos e sçciais são regidos. pela paixão pela morte, esta pareceu governar até . o reino do espírito, outrora nobre. Na verdade, manifestou-se uma formidável crise do pensamento e da palavra, crise de repre­sentação, de que podemos encontrar analogias nos séculos passados (desmoronamento do Império romano e despertar do cristianismo, os anos de peste ou de guerra~ medievais devastadoras ... ) ou cujas causas podemos proc~rar nas falências ecç>nômicas, políticas; jurí­dicas. Entretanto, jamais o poder das forças destruidoras apareceu tão incontestável e tão inevitável quanto nos dias de hoje, tanto fora como dentro do indivíduo e da sociedade. A destruição da natu­reza, das vidas e dos bens duplica-se com uma recrudescência, ou simplesmente com uma manifestação mais patente, das desordens de que a psiquiatria refina o diagnóstico: psicose, depressão, man!a, pessoas fronteiriças, falsas personalidades etc.

Quanto mais os cataclismos políticos e militares. são terríveis e desafiam o pens~mento pela monstruosidade de sua violência (a do campo de concentração ou ·a de uma bomba atômica), mais a deflagraç~o da identidade psíquica, de uma intensidade não menos violenta. permanece dificilmente apreensível. Valêry já estava im·

I Cf. " La Crise de L'Esprit" (A Crise do esplrito) in Variétés (Variedades) I, Gallimard, Paris, 193·t

''A dor é uma das coisas mais importantes de minha vida."

A Dor

''Disse-lhe que na minha infân­cia a infelicidade de minha mãe ocupou o lugar do sonho."

O Amante

Retórica branca do apocalipse

Nós, civilizações, sabemos agora que não apenas somos mortais, como proclamava Valéry depois de 1914/ mas que podemos nos matar. Auschwitz e Hiroshima revelaram que a "doença da ·morte", como diria Marguerite Duras, constitui nossa mais dissi· mulada intimidade. Se a área militar e econômica e os -elos políticos e sçciais são regidos. pela paixão pela morte, esta pareceu governar até . o reino do espírito, outrora nobre. Na verdade, manifestou-se uma formidável crise do pensamento e da palavra, crise de repre­sentação, de que podemos encontrar analogias nos séculos passados (desmoronamento do Império romano e despertar do cristianismo, os anos de peste ou de guerra~ medievais devastadoras ... ) ou cujas causas podemos proc~rar nas falências ecç>nômicas, políticas; jurí­dicas. Entretanto, jamais o poder das forças destruidoras apareceu tão incontestável e tão inevitável quanto nos dias de hoje, tanto fora como dentro do indivíduo e da sociedade. A destruição da natu­reza, das vidas e dos bens duplica-se com uma recrudescência, ou simplesmente com uma manifestação mais patente, das desordens de que a psiquiatria refina o diagnóstico: psicose, depressão, man!a, pessoas fronteiriças, falsas personalidades etc.

Quanto mais os cataclismos políticos e militares. são terríveis e desafiam o pens~mento pela monstruosidade de sua violência (a do campo de concentração ou ·a de uma bomba atômica), mais a deflagraç~o da identidade psíquica, de uma intensidade não menos violenta. permanece dificilmente apreensível. Valêry já estava im·

I Cf. " La Crise de L'Esprit" (A Crise do esplrito) in Variétés (Variedades) I, Gallimard, Paris, 193·t

202 A DOENÇA DA DOll: DUUS

pressionado com isto, quando comparava esse desastre do espírito (consecutivo à Primeira Guerra Mundial mas também, antes dislo, no niilismo oriundo da "morte de Deus") àquilo que o físico observa "num forno levado à incandescência: se nosso olho subsistisse, não veria nada. Nenhuma desigualdade luminosa permaneceria e distin­guiria os pontos do espaço. Essa formidável energia presa chegaria à invisibilidade, à igualdade insensível. Uma igualdade desta espé­cie não é outra coisa senão a desordem no estado perfeito".2

Doravante, um dos maiores jogos da literatura e da arte está situado nessa invisibilidade da crise, que atinge a identidade da pessoa, da moral, da religião ou da polítca. Crise ao mesmo tempo religiosa e política , ela encontra sua tradução radical na crise da significação. Doravante, a dificuldade de nomear desemboca não mais na "música das letras" (Mallarmé c Joyce eram crentes e este­tas) , mas no ilogismo e no silêncio. Após o parêntese mais lúcido e contudo sempre politicamente engajado do surrealismo, a atuali­dade da Segunda Guerra Mundial brutalizou as consciências pela explosão da morte e da loucura, q ue nenhuma barreira ideológica ou estética parecia poder mais con ter. Tratava-se de uma pressão que encontrou no seio da dor psíquica a sua repercussão íntima e inevitável . Ela foi senti.da como uma urgência inelutável, sem que por isto deixasse de sei: i..ovisível, · irrepresentável . Em que sentido?

·se ainda é possível falar de ''nada" quando tentamos captar os meandros ínfimos da dor e da moite psíquica, será que estamos sempre diante de nada frente às câmaras de gás, à bomba atômica ou ao goulag? Não estão em causa nem o aspecto espetacular da explosão · da morte no universo da Segunda Guerra Mundial, nem a dissolu­ção da identidade consciente e do comportamento racional que fra­cassa nas manifestações da psicose em asilo psiquiátricos, elas tam­bém espetaculares em geral . Esses espetáculos, monstruosos e dolo­rosos, maltratam nossos aparelhos de percepção é de representação . Como que extenuados ou destruídos por uma onda muito poderosa, nossos meios simbólicos encontram-se quase aniquilados, petrificados. A beira do silêncio emerge a palavra ''nada", defesa pudica diante de tanta desordem, interna e externa, incomensurável . Nunca um cataclismo fo~ tão apocalipticamente exorbitante, nunca a sua repre­sentação foi ·cuidada por tão poucos meios simbólicos.

z Jbid., p. 991. Grifo nosso .

SOL NEOitO 203

Certas correntes religiosas tivt!ram o sentimento de que somen­te o s!lêncio convém a tanto horror e que a morte deve se retirar da palavra viva para só ser evocada obliquamente nas falhas e nos não-ditos de uma preocupação beirando a contrição . Um fascínio pelo judaísmo, para não falar de namoro, impõe-se nesta via, reve­lando a culpabilidade de toda uma geração de intelectuais perante o anti-semitismo e a colaboração dos primeiros anos de guerra .

Uma nova retórica do apocalipse (etimologicamente, apoca­lypso significa de-monstração. des-cobrimento pelo olhar e se opõe a aletheia, a revelação filosófica da verdade) foi ne~essária para fazer advir a visão desse nada além do mais monstruoso dessa monstruosidade que cega e que impõe o silêncio. Essa nov~ retó­rica apocalíptica realizou-se em dois extremos aparentemente opos­tos ê que, em geral, se completam: a profusão das imagens e a retenção da palavra.

Por um lado, a arte da im'agem prima pela mostra bruta da monstruosidade: o cinema permanece como a arte suprema do apo­calíptico, quaisquer que sejam seus requintes, de tanto que a ima· gem tem o poder de " fazer·nos caminhar no medo", como já o vira Santo Agostinho.3 Por outro lado, a arte verbal e pictórica toma-se ''busca inquieta e infinita de sua fonte"! De Heidegger a Blanchot, evocando Hõlderlin e Mallarmé e passando pelos surrealistas,5 con~ tata-se que o poeta - sem dúvida tornado menor, no mundo moder­no, pela dominação política - volta-se para a sua própria morada, que é a linguagem, e mostra os seus recursos, mais do que ataca ingenuamente a representação de um objeto externo. A melancolia torna-se o motor secreto de uma nova retórica: desta vez, tratar-se-á de seguir o mal-estar passo a passo, quase clinicamente, sem jamais superá-lo.

Nessa dicotomia imagem/ palavra, cabe ao cinema expor a rudeza do horror ·, ou os esquemas externos do prazer, enquanto

3 "Embora o homem se inquiete em vão, ele caminha, entretanto, na imagem" (Santo Agostinho, "Les lmages" (As Imagens), De la Trinité (Da Trindade), XIV IV, 6.). 4 Cf. Maurice Blanchot, "Ou Va La Littérature?" (Para onde vai a literatura?) in Le livre à venir (0 livro vindouro), Gallímard, Paris, 1959, p. 289. s R. Caillois preconiza, em literatura, "as técnicas de exploração do incons­ciente": "relatório, com ou sem comentários, de depressões. de confusiio, de ungú.stia, de experiências afetivas pessoais", in "Crise de La Littérature", Cahiers du Sud, Marselha, 1935. Grifo nosso.

202 A DOENÇA DA DOll: DUUS

pressionado com isto, quando comparava esse desastre do espírito (consecutivo à Primeira Guerra Mundial mas também, antes dislo, no niilismo oriundo da "morte de Deus") àquilo que o físico observa "num forno levado à incandescência: se nosso olho subsistisse, não veria nada. Nenhuma desigualdade luminosa permaneceria e distin­guiria os pontos do espaço. Essa formidável energia presa chegaria à invisibilidade, à igualdade insensível. Uma igualdade desta espé­cie não é outra coisa senão a desordem no estado perfeito".2

Doravante, um dos maiores jogos da literatura e da arte está situado nessa invisibilidade da crise, que atinge a identidade da pessoa, da moral, da religião ou da polítca. Crise ao mesmo tempo religiosa e política , ela encontra sua tradução radical na crise da significação. Doravante, a dificuldade de nomear desemboca não mais na "música das letras" (Mallarmé c Joyce eram crentes e este­tas) , mas no ilogismo e no silêncio. Após o parêntese mais lúcido e contudo sempre politicamente engajado do surrealismo, a atuali­dade da Segunda Guerra Mundial brutalizou as consciências pela explosão da morte e da loucura, q ue nenhuma barreira ideológica ou estética parecia poder mais con ter. Tratava-se de uma pressão que encontrou no seio da dor psíquica a sua repercussão íntima e inevitável . Ela foi senti.da como uma urgência inelutável, sem que por isto deixasse de sei: i..ovisível, · irrepresentável . Em que sentido?

·se ainda é possível falar de ''nada" quando tentamos captar os meandros ínfimos da dor e da moite psíquica, será que estamos sempre diante de nada frente às câmaras de gás, à bomba atômica ou ao goulag? Não estão em causa nem o aspecto espetacular da explosão · da morte no universo da Segunda Guerra Mundial, nem a dissolu­ção da identidade consciente e do comportamento racional que fra­cassa nas manifestações da psicose em asilo psiquiátricos, elas tam­bém espetaculares em geral . Esses espetáculos, monstruosos e dolo­rosos, maltratam nossos aparelhos de percepção é de representação . Como que extenuados ou destruídos por uma onda muito poderosa, nossos meios simbólicos encontram-se quase aniquilados, petrificados. A beira do silêncio emerge a palavra ''nada", defesa pudica diante de tanta desordem, interna e externa, incomensurável . Nunca um cataclismo fo~ tão apocalipticamente exorbitante, nunca a sua repre­sentação foi ·cuidada por tão poucos meios simbólicos.

z Jbid., p. 991. Grifo nosso .

SOL NEOitO 203

Certas correntes religiosas tivt!ram o sentimento de que somen­te o s!lêncio convém a tanto horror e que a morte deve se retirar da palavra viva para só ser evocada obliquamente nas falhas e nos não-ditos de uma preocupação beirando a contrição . Um fascínio pelo judaísmo, para não falar de namoro, impõe-se nesta via, reve­lando a culpabilidade de toda uma geração de intelectuais perante o anti-semitismo e a colaboração dos primeiros anos de guerra .

Uma nova retórica do apocalipse (etimologicamente, apoca­lypso significa de-monstração. des-cobrimento pelo olhar e se opõe a aletheia, a revelação filosófica da verdade) foi ne~essária para fazer advir a visão desse nada além do mais monstruoso dessa monstruosidade que cega e que impõe o silêncio. Essa nov~ retó­rica apocalíptica realizou-se em dois extremos aparentemente opos­tos ê que, em geral, se completam: a profusão das imagens e a retenção da palavra.

Por um lado, a arte da im'agem prima pela mostra bruta da monstruosidade: o cinema permanece como a arte suprema do apo­calíptico, quaisquer que sejam seus requintes, de tanto que a ima· gem tem o poder de " fazer·nos caminhar no medo", como já o vira Santo Agostinho.3 Por outro lado, a arte verbal e pictórica toma-se ''busca inquieta e infinita de sua fonte"! De Heidegger a Blanchot, evocando Hõlderlin e Mallarmé e passando pelos surrealistas,5 con~ tata-se que o poeta - sem dúvida tornado menor, no mundo moder­no, pela dominação política - volta-se para a sua própria morada, que é a linguagem, e mostra os seus recursos, mais do que ataca ingenuamente a representação de um objeto externo. A melancolia torna-se o motor secreto de uma nova retórica: desta vez, tratar-se-á de seguir o mal-estar passo a passo, quase clinicamente, sem jamais superá-lo.

Nessa dicotomia imagem/ palavra, cabe ao cinema expor a rudeza do horror ·, ou os esquemas externos do prazer, enquanto

3 "Embora o homem se inquiete em vão, ele caminha, entretanto, na imagem" (Santo Agostinho, "Les lmages" (As Imagens), De la Trinité (Da Trindade), XIV IV, 6.). 4 Cf. Maurice Blanchot, "Ou Va La Littérature?" (Para onde vai a literatura?) in Le livre à venir (0 livro vindouro), Gallímard, Paris, 1959, p. 289. s R. Caillois preconiza, em literatura, "as técnicas de exploração do incons­ciente": "relatório, com ou sem comentários, de depressões. de confusiio, de ungú.stia, de experiências afetivas pessoais", in "Crise de La Littérature", Cahiers du Sud, Marselha, 1935. Grifo nosso.

2()4 A DOÉNÇA DA ooa: DUUS

a literatura se interioriza e se retira do mundo no rastro da cris.: do pensamento, Invertida no seu próprio fonnalismo e nisto mais lúcida do. que o engajamento entusiasta, erótico, libertariamente adoles­cente dos existencialistas, a literatura moderna do pós-guerra enga· ja-se contudo numa via árdua. Sua procura do invisí.vel,_ t~Ivez ~ela­fisicamente motivada pela ambição de permanecer flel a mtens1dade do horror, até a última exatidão das palavras, torna-se imperceptí­vel e progressivamente associal, antidemonstrativa, mas também, e de tanto ser antiespetacular desinteressante . A arte mediatizante, por um lado, e a aventura 'do novo romance, por outro, ilustram esses dois extremos.

Uma estética da inabilidade

A experiência de Marguerite Duras parece ser menos a de uma ''obra em direção à origem da obra", como havia desejado Blan­chot, do que um confronto com o ''nada" de Valéry: este "nada" que o horror da Segunda Guerra Mundial im}:Õe a uma consciência perturbada e, independentemente dela; mas paralelamente, ~ m~l­estar psíquico do indivíduo devido aos choques secretos da b•olog1a, da famflia, dos outros.

A escrita de Duras não se auto-analisa , buscando suas fontes na música sob as letras ou na derrota da lógica da narração. Se existe pesquisa formal, ela está subordinada ao confronto com o silêncio do horror em si e no mundo . Esta confrontação a conduz, por um lado a uma estética da inabilidade, por outro, a uma literatura não-

' '

catártica.

A retórica afetada da literatura e mesmo · a retórica usual do falar cotidiano sémpre parecem um pouco em festa. Como dizer a verdade da dor, senão derrotando essa festa retórica, esquerdi · zando-a, fazendo-a ranger, tomando-a coagida e capenga?

Entretanto, há charme nessas frases alongadas, sem graça sono~a. e cujo verbo parece se esquecer do sujeito ("S~a elegância, tanto no repouso ccmo no movimento, conta Tatiana, inqu~etava',.) ou que mudam rapidamente, sem fôlego, sem complemento de objeto ou de adjetivo (''Depois, ao mesmo tempo que continuava

6 Cf: Marguerite Duras, O deslumbramento, Nova Fronteira, Rio, 1986.

SOL NEGk:> 205

silenciosa, ela recomeçou a pedir para comer, para abrirem a janela para dormir'11 e "E$tes são os seus últimos fatos conhecidos"}.'

Em geral, esbarramos com acréscimos de último minuto empi· lhados numa proposição que não os previra, mas à qual trazem todo o seu sentido, a surpresa ('' ... o desejo que ele gostava de jovenzi­nhas, não . inteiramente crescidas, tristes, impudicas, e sem voz".9

"A união deles é feita de insensibilidade, de uma maneira que é geral e que eles apreendem momentaneamente, qualquer preferênci~ . dela sendo banida").10 Ou então com essas palavras muito eruditas e superlativas, ou, pelo contrário, mt;tito banais, e muito gastas, expressando uma grandiloqüência condensada, artificial e doentia: "Não sei. Só sei alguma coisa sobre a imobilidade da vida. Por­tanto, quando esta se quebra, eu o sei".11 "Quando você ·chorou, era somente por você, e não pela admirável impossibilidade de reu­nir-se a ela através da diferença que separa vocês.'lll

Não se trata de um discurso falado, mas de uma palavra super­feita de tanto ser desfeita, assim como se está sem a maquilagem ou despido sem se estar desleixado, mas porque se está forçado por alguma doença insuperável e todavia carregado de prazer que cativa e desafia. Contudo, e talvez por isto mesmo, essa falsa palavra soa como insólita, inesperada e sobretudo dolorosa. Uma sedução incô­moda nos arrasta nas falhas dos personagens ou da narradora, nesse nada, no insignificável da doença sem paroxismo trágico nem beleza, uma dor da qual só resta a tensão. A inab!lidade estilística seria o discurso da dor embotada.

O cinema vem suprir esse exagero silencioso ou precioso da palavra, sua fraqueza esticada em corda ba~ba sobre o sofrimento. O fato de se recorrer à representação teatral, e sobretudo à imagem cinematográfica, conduz necessariamente a uma profusão incontro­lável de associações. de riquezas ou de pobrezas semânticas e senti­mentais ao bel-prazer do espectador. Se é verdade que as imagens não reparam nas inabilidades estilísticas verbais, por outro lado, elas as afogam no indizível: o "nada" toma-se indecí~ível e o silên-

1 Ibid. a Ibid. ' lbid. 111 Ibid. I( Jbid. . 12 Cf. Marauerite Dur.as, lA Maladie de la mort (A Doen~a da morte), editions de Minuit, Paris, 1982. p. 56.

2()4 A DOÉNÇA DA ooa: DUUS

a literatura se interioriza e se retira do mundo no rastro da cris.: do pensamento, Invertida no seu próprio fonnalismo e nisto mais lúcida do. que o engajamento entusiasta, erótico, libertariamente adoles­cente dos existencialistas, a literatura moderna do pós-guerra enga· ja-se contudo numa via árdua. Sua procura do invisí.vel,_ t~Ivez ~ela­fisicamente motivada pela ambição de permanecer flel a mtens1dade do horror, até a última exatidão das palavras, torna-se imperceptí­vel e progressivamente associal, antidemonstrativa, mas também, e de tanto ser antiespetacular desinteressante . A arte mediatizante, por um lado, e a aventura 'do novo romance, por outro, ilustram esses dois extremos.

Uma estética da inabilidade

A experiência de Marguerite Duras parece ser menos a de uma ''obra em direção à origem da obra", como havia desejado Blan­chot, do que um confronto com o ''nada" de Valéry: este "nada" que o horror da Segunda Guerra Mundial im}:Õe a uma consciência perturbada e, independentemente dela; mas paralelamente, ~ m~l­estar psíquico do indivíduo devido aos choques secretos da b•olog1a, da famflia, dos outros.

A escrita de Duras não se auto-analisa , buscando suas fontes na música sob as letras ou na derrota da lógica da narração. Se existe pesquisa formal, ela está subordinada ao confronto com o silêncio do horror em si e no mundo . Esta confrontação a conduz, por um lado a uma estética da inabilidade, por outro, a uma literatura não-

' '

catártica.

A retórica afetada da literatura e mesmo · a retórica usual do falar cotidiano sémpre parecem um pouco em festa. Como dizer a verdade da dor, senão derrotando essa festa retórica, esquerdi · zando-a, fazendo-a ranger, tomando-a coagida e capenga?

Entretanto, há charme nessas frases alongadas, sem graça sono~a. e cujo verbo parece se esquecer do sujeito ("S~a elegância, tanto no repouso ccmo no movimento, conta Tatiana, inqu~etava',.) ou que mudam rapidamente, sem fôlego, sem complemento de objeto ou de adjetivo (''Depois, ao mesmo tempo que continuava

6 Cf: Marguerite Duras, O deslumbramento, Nova Fronteira, Rio, 1986.

SOL NEGk:> 205

silenciosa, ela recomeçou a pedir para comer, para abrirem a janela para dormir'11 e "E$tes são os seus últimos fatos conhecidos"}.'

Em geral, esbarramos com acréscimos de último minuto empi· lhados numa proposição que não os previra, mas à qual trazem todo o seu sentido, a surpresa ('' ... o desejo que ele gostava de jovenzi­nhas, não . inteiramente crescidas, tristes, impudicas, e sem voz".9

"A união deles é feita de insensibilidade, de uma maneira que é geral e que eles apreendem momentaneamente, qualquer preferênci~ . dela sendo banida").10 Ou então com essas palavras muito eruditas e superlativas, ou, pelo contrário, mt;tito banais, e muito gastas, expressando uma grandiloqüência condensada, artificial e doentia: "Não sei. Só sei alguma coisa sobre a imobilidade da vida. Por­tanto, quando esta se quebra, eu o sei".11 "Quando você ·chorou, era somente por você, e não pela admirável impossibilidade de reu­nir-se a ela através da diferença que separa vocês.'lll

Não se trata de um discurso falado, mas de uma palavra super­feita de tanto ser desfeita, assim como se está sem a maquilagem ou despido sem se estar desleixado, mas porque se está forçado por alguma doença insuperável e todavia carregado de prazer que cativa e desafia. Contudo, e talvez por isto mesmo, essa falsa palavra soa como insólita, inesperada e sobretudo dolorosa. Uma sedução incô­moda nos arrasta nas falhas dos personagens ou da narradora, nesse nada, no insignificável da doença sem paroxismo trágico nem beleza, uma dor da qual só resta a tensão. A inab!lidade estilística seria o discurso da dor embotada.

O cinema vem suprir esse exagero silencioso ou precioso da palavra, sua fraqueza esticada em corda ba~ba sobre o sofrimento. O fato de se recorrer à representação teatral, e sobretudo à imagem cinematográfica, conduz necessariamente a uma profusão incontro­lável de associações. de riquezas ou de pobrezas semânticas e senti­mentais ao bel-prazer do espectador. Se é verdade que as imagens não reparam nas inabilidades estilísticas verbais, por outro lado, elas as afogam no indizível: o "nada" toma-se indecí~ível e o silên-

1 Ibid. a Ibid. ' lbid. 111 Ibid. I( Jbid. . 12 Cf. Marauerite Dur.as, lA Maladie de la mort (A Doen~a da morte), editions de Minuit, Paris, 1982. p. 56.

106 A DOENÇA DA DOR: DU~S

cio faz sonhar. Arte coletiva, mesmo se o roteirista consegue con· trolá-la, o cinema acrescenta às indicações frugais do autor (que protege continuamente um segredo doentio nas profundezas de uma intriga cada vez mais inapreensível no texto) os volumes e as combi­nações, forçosamente espetaculares, dos corpos, dos gestos, das vozes dos atores, dos cenários, das luzes, dos produtores, de todos aqueles cuja profissão é mostrar . Se Duras utiliza o cinema para gastar até o deslumbramento do invisível sua força espetacular. submergin­do-a com palavras elípticas e sons alusivos, ela também o utiliza para o seu excesso de fascinação, que remedia a contração do verbo. Multiplican•lo assim o poder de sedução dos seus personagens, sua doença invisível torna-se na tela menos contagiosa à custa de ser representável: a depressão filmada revela-se um artifício estranho.

Compreende-se agora que não se deve dar os livros de Duras aos leitores e leitoras frágeis. Vendo os filmes e as peças, encontra­rão essa mesma doença da dor, mas peneirada, envolta num encanto sonhador, que a suaviza e a torna, assim, mais factícia e inventada: uma convenção. Os livros, pelo contrário, nos fazem beirar a lou­cura. Eles não a mostram de longe, não a observam nem a analisarq·, para com ela sofrer a distância, na esperança de uma saída, por bem . ou por mal, um dia ou outro. . . Bem pelo contrário, os textos domesticam a doença da morte, tomam-se um com ela, nela estão no mesmo nível, sem distância nem escapatória. Nenhuma purifi· cação nos espera no desfecho desses romances ao nível da doença, nem a de um estar-melhor, nem a promessa de um além, nem mesmo a beleza encantadora de um estilo Ç>U de uma ironia, que consti· tuiria um prêmio de prazer além do mal revelado.

Sem catarse

Sem cura nem Deus, sem valor nem outra beleza senão a da própria doença, tomada no lugar de sua fratura essencial, 'talvez jamais a arte tenha sido também tão pouco catártica. Sem dúvida, e talvez por isto mesmo, ela depende mais da bruxaria e do feitiço do que da graça e do perdão, tradicionalmente associados ao gênio artís­tico. Uma sombria e, ao mesmo tempo, leve, porque distraída, cum­plicidade com a doença da dor e da morte destaca-se dos textos durassianos. Ela nos leva a radiografar nossas loucuras, os limites perigosos em que desmorona a identidade do sentido, da pessoa e da Vida . ··o mistério em plena luz" - dizia Barres - sobre os quadros de Claude Lorrain. Com Duras, temos a lQucura em plena

SOL NEORO 207

luz: "Tornei-me louca em plena razão".ll Estamos presentes no nada do sentido e dos sentimentos que a lucidez acompanha em sua extin­ção, e assistimos a nossos próprios infortúnios neutralizados, sem tragéd ia nem entusiasmo. claramente, na insignificância frígida de um entorpecimento psíquico, signo minímai , mas também signo últi· mo da dor e do arrebatamento.

Clarice Lispector (1924-1977) também propõe uma revelação do sofrimento e da morte que não partilha da estética do perdão. O seu A maçã no escuro!• parece se opor a Dostoievski. Assassino de uma mulher, COlilQ Raskolnikov (mas desta vez trata-se de sua própria mulher), o herói de Lispector ·encontra duas outras, uma espiritual e uma cama!. Se elas o tiram do assassinato - como Sônia faz peJo bandido de Crime e Castigo - , elas não o salvam nem o perdoam. Pior ainda, elas o entregam à polícia. Entretanto, este desfecho não é nem um reverso do perdão, nem um castigo. A calma inelutável do destin.o abate-se sobre os protagonistas e encerra o romance com uma dor i~placável, talvez feminina, que não deixa de lembrar a tonalidade desiludida de Duras, espelho sem compla· cência da aflição que habita o indivíduo. Se o universo de Lispec­tor, ao contrário do de Dostoievski, não é o do perdão, entretanto dele emana uma cumplicidade dos protagonistas entre si, cujos laços persistem para além da separação e tecem um meio acolhedor e invi­sível, uma vez o romance terminado.15 Ou, ainda, tal humor atra­vessa as ferozes novelas da escritora, para além do sinistro desen· volvimento do mal, que possui um valor purificador e livra o leitor da crise.

Nada disto em Duras. A morte e a dor são a teia de aranha do texto, e coitado do leitor-cúmplice que sucumbe a seu encanto: ele pode ficar ali de. verdade. A "crise da literatura''', de que fala­vam Valéry, Caillois ou Blanchot, atinge aqui uma espécie de apo. teose. A literatura não é nem autocrítica, nem crítica, nem ambi·

ll Cf. Marguerite Duras, O amante, Nova Fronteira, Rio, 1985. 14 Cf. Clarice Lispector, A maçã no escuro, Nova Fronteira, Rio, 1981. 15 " Os dois evitaram se olhar, emocionados com eles próprios, como se .enfim fizessem parte daquela coisa maior que às vezes chega a conseguir se exprimir em tragédia [ ... )

Como se tivessem acabado de realizar de novo o milagre do perdão, cons­trangidos com aquela cena miserável, evitaram se olhar, aborrecidos, há muita coisa inestética a perdoar. Mesmo coberta de rldfculo e de trapos, a mímica da ressurreição se tinha feito. Essas coisas que parecem não acontecer, acon­tecem.'• (A maçã no escuro)

106 A DOENÇA DA DOR: DU~S

cio faz sonhar. Arte coletiva, mesmo se o roteirista consegue con· trolá-la, o cinema acrescenta às indicações frugais do autor (que protege continuamente um segredo doentio nas profundezas de uma intriga cada vez mais inapreensível no texto) os volumes e as combi­nações, forçosamente espetaculares, dos corpos, dos gestos, das vozes dos atores, dos cenários, das luzes, dos produtores, de todos aqueles cuja profissão é mostrar . Se Duras utiliza o cinema para gastar até o deslumbramento do invisível sua força espetacular. submergin­do-a com palavras elípticas e sons alusivos, ela também o utiliza para o seu excesso de fascinação, que remedia a contração do verbo. Multiplican•lo assim o poder de sedução dos seus personagens, sua doença invisível torna-se na tela menos contagiosa à custa de ser representável: a depressão filmada revela-se um artifício estranho.

Compreende-se agora que não se deve dar os livros de Duras aos leitores e leitoras frágeis. Vendo os filmes e as peças, encontra­rão essa mesma doença da dor, mas peneirada, envolta num encanto sonhador, que a suaviza e a torna, assim, mais factícia e inventada: uma convenção. Os livros, pelo contrário, nos fazem beirar a lou­cura. Eles não a mostram de longe, não a observam nem a analisarq·, para com ela sofrer a distância, na esperança de uma saída, por bem . ou por mal, um dia ou outro. . . Bem pelo contrário, os textos domesticam a doença da morte, tomam-se um com ela, nela estão no mesmo nível, sem distância nem escapatória. Nenhuma purifi· cação nos espera no desfecho desses romances ao nível da doença, nem a de um estar-melhor, nem a promessa de um além, nem mesmo a beleza encantadora de um estilo Ç>U de uma ironia, que consti· tuiria um prêmio de prazer além do mal revelado.

Sem catarse

Sem cura nem Deus, sem valor nem outra beleza senão a da própria doença, tomada no lugar de sua fratura essencial, 'talvez jamais a arte tenha sido também tão pouco catártica. Sem dúvida, e talvez por isto mesmo, ela depende mais da bruxaria e do feitiço do que da graça e do perdão, tradicionalmente associados ao gênio artís­tico. Uma sombria e, ao mesmo tempo, leve, porque distraída, cum­plicidade com a doença da dor e da morte destaca-se dos textos durassianos. Ela nos leva a radiografar nossas loucuras, os limites perigosos em que desmorona a identidade do sentido, da pessoa e da Vida . ··o mistério em plena luz" - dizia Barres - sobre os quadros de Claude Lorrain. Com Duras, temos a lQucura em plena

SOL NEORO 207

luz: "Tornei-me louca em plena razão".ll Estamos presentes no nada do sentido e dos sentimentos que a lucidez acompanha em sua extin­ção, e assistimos a nossos próprios infortúnios neutralizados, sem tragéd ia nem entusiasmo. claramente, na insignificância frígida de um entorpecimento psíquico, signo minímai , mas também signo últi· mo da dor e do arrebatamento.

Clarice Lispector (1924-1977) também propõe uma revelação do sofrimento e da morte que não partilha da estética do perdão. O seu A maçã no escuro!• parece se opor a Dostoievski. Assassino de uma mulher, COlilQ Raskolnikov (mas desta vez trata-se de sua própria mulher), o herói de Lispector ·encontra duas outras, uma espiritual e uma cama!. Se elas o tiram do assassinato - como Sônia faz peJo bandido de Crime e Castigo - , elas não o salvam nem o perdoam. Pior ainda, elas o entregam à polícia. Entretanto, este desfecho não é nem um reverso do perdão, nem um castigo. A calma inelutável do destin.o abate-se sobre os protagonistas e encerra o romance com uma dor i~placável, talvez feminina, que não deixa de lembrar a tonalidade desiludida de Duras, espelho sem compla· cência da aflição que habita o indivíduo. Se o universo de Lispec­tor, ao contrário do de Dostoievski, não é o do perdão, entretanto dele emana uma cumplicidade dos protagonistas entre si, cujos laços persistem para além da separação e tecem um meio acolhedor e invi­sível, uma vez o romance terminado.15 Ou, ainda, tal humor atra­vessa as ferozes novelas da escritora, para além do sinistro desen· volvimento do mal, que possui um valor purificador e livra o leitor da crise.

Nada disto em Duras. A morte e a dor são a teia de aranha do texto, e coitado do leitor-cúmplice que sucumbe a seu encanto: ele pode ficar ali de. verdade. A "crise da literatura''', de que fala­vam Valéry, Caillois ou Blanchot, atinge aqui uma espécie de apo. teose. A literatura não é nem autocrítica, nem crítica, nem ambi·

ll Cf. Marguerite Duras, O amante, Nova Fronteira, Rio, 1985. 14 Cf. Clarice Lispector, A maçã no escuro, Nova Fronteira, Rio, 1981. 15 " Os dois evitaram se olhar, emocionados com eles próprios, como se .enfim fizessem parte daquela coisa maior que às vezes chega a conseguir se exprimir em tragédia [ ... )

Como se tivessem acabado de realizar de novo o milagre do perdão, cons­trangidos com aquela cena miserável, evitaram se olhar, aborrecidos, há muita coisa inestética a perdoar. Mesmo coberta de rldfculo e de trapos, a mímica da ressurreição se tinha feito. Essas coisas que parecem não acontecer, acon­tecem.'• (A maçã no escuro)

208 A DOENÇA DA OOR : DUIIAS

real e imaginário, verdadeiro e falso, na festa desiludida da aparên­cia que dança no vulcão de um objeto impossível ou de um tempo não encontrável. . . Aqui, a crise conduz a escrita a permanecer aquém de qualquer torção do sentido e atém-se ao desnudamento da doença, ela a cultiva e domestica, sem jamais esgotá-la. Sem catarse, esta literatura encontra. reconhece, mas também propaga o mal que a mobiliza. Ela é o inverso do discurso clínico - bem perto dele, mas gozando dos benefícios secundários da doença, ela a cultiva e domestica, sem jamais esgotá-la . A partir dessa fideli­dade ao mal-estar, compreendemos que uma alternativa pode ser encontrada no neo-romantismo do cinema ou na preocupação de transmitir mensagens e meditaçoes ideológicas ou metafísicas. Entre Détruire .. dit-e/h~ (1969) e A Doença da morte (1982), que leva à extrema condensação o tema do amor-morte: treze anos de filmes, teatros, explicações .16

O exotismo erótico de O Amante (1984) substitui .então os . seres e palavras extenuados de morte tácita . A mesma paixão dolo­rosa e assassina, constante em Duras, consciente de si mesma e con­tida ali se manifesta ("Ela poderia responder que não me ama . Não diz nada. De repente, ela sabe, ali, naquele instante, ela sabe que ele não a conhece, que não a conhecerá nunca, que não tem os meios. de conhecer tanta perversidade")Y Mas o realismo geográ· fico e social, a narração jornalística da miséria colonial e dos incô­modos da Ocupação, o naturalismo das derrotas e dos ódios mater­nos banham o prazer suave e doentio da criança prostituída que se entrega à sensualidade chorosa de um rico chinês adulto, com tris­teza e, contudo, com a perseverança de uma narradora profissional. Ao mesmo tempo que permanece um sonho impossível , o gozo femi­nino fixa-a numa cor local e numa história, certamente longínqua, mas que a afluência do Terceiro Mundo, por um lado, e o realismo da matança familiar, por outro, doravante tornam verossímil e estra­nhamente p róxima, íntima .· Com O Amante, a dor obtém uma con­sonância social e histórica neo-romântica que assegura o seu sucesso nas mídias.

Toda a obra de Duras talvez não obedeça a essa ascética Hde-

ló Duras é a autora de dezenove roteiros de filme c de quinze peças de teatro das quais três adaptações. l7 O Amante, op. cit.

209

Iidade à loucura que precede O Amante. Alguns textos, entretanto, entre outros, nos pennitirão observar os seus pontos culminantes.

Hiroshima do ·amor

Porque houve Hiroshima, não pode haver artifício. Nem arti­fício trágico ou pacifista, em face da explosão atômica, nem artifício retórico, em face da mutilação dos sentimentos. "Tudo o que pode­mos jazer é falar da impossibilidade de falar de Hiroshima. O conhecimento de H iroshima sendo colocado a priorí como uma astú­cia exemplar do espírito.''18

O sacrilégio é Hiroshima mesmo, o acontecimento mortal, e não suas repercussões. O texto propõe-se a "acabar com a descrição do horror pelo horror, pois isto foi jeito pelos próprios japoneses" e a "fazer esse horror renascer dessas cinzas, jazendo-o inscrever-se num amor que, forçosamente, será particular e 'maravilhador' ".19 A explo­são nuclear infiltra, portanto, o próprio amor, e sua violência devas­tadora às vezes o torna impossível e esplendidamente erótico, conde­nado e magicamente atraente: como o é a enfermeira que Emma­nuelle Ri v a se tornará, num dos paroxismos da paixão. O texto e o filme abrem-se, não na imagem do cogumelo nuclear inicialmente prevista, mas nos fragmentos de corpos enlaçados de um casal de apaixonados que poderia ser um casal de moribundos. "Em seu lugar e em seu nome, vemos corpos mutilados - na altura da cabeça e dos quadris - moventes - presas do amor ou da agonia . - e reoobertos sucessivamente pelas cinzas, pelos orvalhos, pela morte atômica - e pelos suores r/. o amor realizado. "20 O amor mais forte do que a morte? Talvez. "Sempre sua história pessoal, por mais curta que seja, vencerá Hiroshima." Mas talvez não. Pois, se Ele vem de Hirosh ima, Ela vem de Nevers onde "ficou louca; louca de maldade". Seu primeiro amante era wn alemão, ele foi morto na Libertação, ela foi tosada. Um primeiro amor morto pelo "absoluto e pelo horror da estupidez". Em compensação, o horror de Hiroshima, de alguma forma, livrou-a cie sua tragédia francesa . A utilização da arma atômica parece demonstrar que o h orror não está de um só

18 Cf. Marguerite Duras, Hiroshima ln()fl aln()ur, sinopse, Folia, Gallimard. Paris, 1960, p. 10. 19 !bid., p. 11. 2':' lbid., pp. 9-IO.

208 A DOENÇA DA OOR : DUIIAS

real e imaginário, verdadeiro e falso, na festa desiludida da aparên­cia que dança no vulcão de um objeto impossível ou de um tempo não encontrável. . . Aqui, a crise conduz a escrita a permanecer aquém de qualquer torção do sentido e atém-se ao desnudamento da doença, ela a cultiva e domestica, sem jamais esgotá-la. Sem catarse, esta literatura encontra. reconhece, mas também propaga o mal que a mobiliza. Ela é o inverso do discurso clínico - bem perto dele, mas gozando dos benefícios secundários da doença, ela a cultiva e domestica, sem jamais esgotá-la . A partir dessa fideli­dade ao mal-estar, compreendemos que uma alternativa pode ser encontrada no neo-romantismo do cinema ou na preocupação de transmitir mensagens e meditaçoes ideológicas ou metafísicas. Entre Détruire .. dit-e/h~ (1969) e A Doença da morte (1982), que leva à extrema condensação o tema do amor-morte: treze anos de filmes, teatros, explicações .16

O exotismo erótico de O Amante (1984) substitui .então os . seres e palavras extenuados de morte tácita . A mesma paixão dolo­rosa e assassina, constante em Duras, consciente de si mesma e con­tida ali se manifesta ("Ela poderia responder que não me ama . Não diz nada. De repente, ela sabe, ali, naquele instante, ela sabe que ele não a conhece, que não a conhecerá nunca, que não tem os meios. de conhecer tanta perversidade")Y Mas o realismo geográ· fico e social, a narração jornalística da miséria colonial e dos incô­modos da Ocupação, o naturalismo das derrotas e dos ódios mater­nos banham o prazer suave e doentio da criança prostituída que se entrega à sensualidade chorosa de um rico chinês adulto, com tris­teza e, contudo, com a perseverança de uma narradora profissional. Ao mesmo tempo que permanece um sonho impossível , o gozo femi­nino fixa-a numa cor local e numa história, certamente longínqua, mas que a afluência do Terceiro Mundo, por um lado, e o realismo da matança familiar, por outro, doravante tornam verossímil e estra­nhamente p róxima, íntima .· Com O Amante, a dor obtém uma con­sonância social e histórica neo-romântica que assegura o seu sucesso nas mídias.

Toda a obra de Duras talvez não obedeça a essa ascética Hde-

ló Duras é a autora de dezenove roteiros de filme c de quinze peças de teatro das quais três adaptações. l7 O Amante, op. cit.

209

Iidade à loucura que precede O Amante. Alguns textos, entretanto, entre outros, nos pennitirão observar os seus pontos culminantes.

Hiroshima do ·amor

Porque houve Hiroshima, não pode haver artifício. Nem arti­fício trágico ou pacifista, em face da explosão atômica, nem artifício retórico, em face da mutilação dos sentimentos. "Tudo o que pode­mos jazer é falar da impossibilidade de falar de Hiroshima. O conhecimento de H iroshima sendo colocado a priorí como uma astú­cia exemplar do espírito.''18

O sacrilégio é Hiroshima mesmo, o acontecimento mortal, e não suas repercussões. O texto propõe-se a "acabar com a descrição do horror pelo horror, pois isto foi jeito pelos próprios japoneses" e a "fazer esse horror renascer dessas cinzas, jazendo-o inscrever-se num amor que, forçosamente, será particular e 'maravilhador' ".19 A explo­são nuclear infiltra, portanto, o próprio amor, e sua violência devas­tadora às vezes o torna impossível e esplendidamente erótico, conde­nado e magicamente atraente: como o é a enfermeira que Emma­nuelle Ri v a se tornará, num dos paroxismos da paixão. O texto e o filme abrem-se, não na imagem do cogumelo nuclear inicialmente prevista, mas nos fragmentos de corpos enlaçados de um casal de apaixonados que poderia ser um casal de moribundos. "Em seu lugar e em seu nome, vemos corpos mutilados - na altura da cabeça e dos quadris - moventes - presas do amor ou da agonia . - e reoobertos sucessivamente pelas cinzas, pelos orvalhos, pela morte atômica - e pelos suores r/. o amor realizado. "20 O amor mais forte do que a morte? Talvez. "Sempre sua história pessoal, por mais curta que seja, vencerá Hiroshima." Mas talvez não. Pois, se Ele vem de Hirosh ima, Ela vem de Nevers onde "ficou louca; louca de maldade". Seu primeiro amante era wn alemão, ele foi morto na Libertação, ela foi tosada. Um primeiro amor morto pelo "absoluto e pelo horror da estupidez". Em compensação, o horror de Hiroshima, de alguma forma, livrou-a cie sua tragédia francesa . A utilização da arma atômica parece demonstrar que o h orror não está de um só

18 Cf. Marguerite Duras, Hiroshima ln()fl aln()ur, sinopse, Folia, Gallimard. Paris, 1960, p. 10. 19 !bid., p. 11. 2':' lbid., pp. 9-IO.

2.10 A DOENÇA DA DOK: DUbS

lado dos beligerantes; que ele não tem campo nem partido, mas pode causar danos de fonna absoluta. Tal transcendência do horror libera a apaixonada de uma falsa culpabilidade. A jovem mulher passeia, doravante, o seu "amor sem emprego" até Hiroshima. Para além dos seus casamentos, que eles dizem ser felizes, o novo amor dos dois protagonistas - conquanto poderoso e de uma autentici­dade impressionante -. também será "degolado": abrigando um desastre de cada lado, um Nevers aqui, uma Hiroshima ali. Por mais intenso que seja no seu silêncio não-nomeável, doravante o amor está suspenso, pulverizado, atomizado.

Amar, para ela, é amar um morto. O corpo do seu novo amante confunde-se com o cadáver do seu primeiro amor, que ela cobrira com o seu próprio corpo, por um dia e por uma noite, e cujo san­gue ela experimentou. Além do mais, a paixão é intensificada pelo gosto pelo impossível que o amante japonês impõe. Apesar do seu aspecto "internacional" e do seu rosto ocidentalizado, segundo as indicações dó roteirista, ele permanece, senão exótico, pelo menos outro, de um outro mundo, de um além, a ponto de se misturar à imagem do alemão amado e morto em· Nevers. Mas o muito dinâ­mico engenheiro japonês também está marcado pela morte porque •. necessariamente, ele carrega os estigmas morais da morte atômica, da qual seus compatriotas foram as primeiras vítimas.

Amor sobrecarregado de morte o~ amor à morte? Amor tor· nado impossível ou paixão necrófila pela morte? Meu amor é um Hiroshima, ou então: Amo Hiroshima porque sua dor é o meu Eros? Hiroshima mon amour mantém essa ambigüidade que talvez seja a versão pós-guerra do amor. A menos que esta versão histó· rica do amor revele a ambigüidade profunda do amor à morte, a auréola mortal de toda paixão . . . "Que ele esteja morto, isto não impede que ela o dese;e. Ela não agüenta mais o fato de desejá-lo, morto. Corpo esvaziado, ofegante . Sua boca está úmida. Ela tem a pose de uma mulher no dese;o, impudica até a vulgaridade. Mais impudico do que em qualquer outro lugar. Repugn(J11te . Ela deseja um morto. 21 O amor serve para morrer mais comodamente para a vúla."22

A implosão do amor na morte e da morte no amor atinge sua expressão paroxística na insustentável dor da loucura. "Fize-

2J I bid .• pp. 136-137. 22 lbíd., p . 132.

SOL NEGRO 211

ram-me passar por morta [ ... ] Enlouqueci. De maldade. CuspiD -parece- no rosto de minha mãe."23 Essa loucura, penosa e mor­tal, não seria nada mais do que a absorção por Ela da morte d'Ele. ''Poderíamos acreditar que ela estava morta, de tanto que morre da

. morte dele."24 Essa identificação dos protagonistas, confundindo suas fronteiras, suas palavras, seus seres, é uma figura permanente em Duras. Por não morrer como ele, por sobreviver ao seu amor morto, ela se toma, contudo, como uma morta: dissociada dos outros e do tempo, ela tem o olhar eterno e animal das gatas, ela é louca; "Morta de amor em Nevers." [ ... ] eu não conseguia encontrar a menor diferença enire esse corpo morto e o meu . . . Só podia encontrar entre esse corpo e o meu semelhanças. . . gritantes, compreendes?'125

Freqüente, permanente mesmo, a identificação com o objeto do luto, contudo, é absoluta e inelutável . Por isto mesmo, o luto torna-se impossível e metamorfoseia a heroína em cripta habitada por um cadáver vivo.

Privado e público

· Talvez toda a obra de Marguerite Duras esteja nesse 'texto de 1960, que situa a ação do filme de Resnais em 1957, catorze anos depois da explosão atômica. Tudo está ali: o sofrimento, a morte, o amor e sua mistura explosiva na louca melancolia de uma mulher; mas sobretudo a aliança do realismo sócio-histórico, anunciado em Un barrage contre le Pacifique (1950) e que reaparecerá em O Amante, com a radiografia da depressão, · que Moderato cantabile impõe (1958) e que se tomará o terreno predileto. a área exclusiva dos textos intimistas seguintes.

Se a histeria se toma discreta e desaparece em seguida, aqui ela é causa e cenário. Esse drama do amor e da loucura aparece independente do drama político, o poder passional ultrapassando os acontecimentos politicos, qualquer que fosse sua atrocidade. Mais ainda, o amor impossível e louco parece triunfar sobre estes acon­tecimentos, se é que se pode falar de triunfo quando uma dor ero­t!zada ou um amor suspenso se impõe.

Entretanto, a melancolia durassiana é também uma deflagra­ção da história. A dor privada reabsorve, no microcosmo psíquico

23. lbid., p. 149. 24 l bid. , p. 125. 2S l bid ., p . 100.

2.10 A DOENÇA DA DOK: DUbS

lado dos beligerantes; que ele não tem campo nem partido, mas pode causar danos de fonna absoluta. Tal transcendência do horror libera a apaixonada de uma falsa culpabilidade. A jovem mulher passeia, doravante, o seu "amor sem emprego" até Hiroshima. Para além dos seus casamentos, que eles dizem ser felizes, o novo amor dos dois protagonistas - conquanto poderoso e de uma autentici­dade impressionante -. também será "degolado": abrigando um desastre de cada lado, um Nevers aqui, uma Hiroshima ali. Por mais intenso que seja no seu silêncio não-nomeável, doravante o amor está suspenso, pulverizado, atomizado.

Amar, para ela, é amar um morto. O corpo do seu novo amante confunde-se com o cadáver do seu primeiro amor, que ela cobrira com o seu próprio corpo, por um dia e por uma noite, e cujo san­gue ela experimentou. Além do mais, a paixão é intensificada pelo gosto pelo impossível que o amante japonês impõe. Apesar do seu aspecto "internacional" e do seu rosto ocidentalizado, segundo as indicações dó roteirista, ele permanece, senão exótico, pelo menos outro, de um outro mundo, de um além, a ponto de se misturar à imagem do alemão amado e morto em· Nevers. Mas o muito dinâ­mico engenheiro japonês também está marcado pela morte porque •. necessariamente, ele carrega os estigmas morais da morte atômica, da qual seus compatriotas foram as primeiras vítimas.

Amor sobrecarregado de morte o~ amor à morte? Amor tor· nado impossível ou paixão necrófila pela morte? Meu amor é um Hiroshima, ou então: Amo Hiroshima porque sua dor é o meu Eros? Hiroshima mon amour mantém essa ambigüidade que talvez seja a versão pós-guerra do amor. A menos que esta versão histó· rica do amor revele a ambigüidade profunda do amor à morte, a auréola mortal de toda paixão . . . "Que ele esteja morto, isto não impede que ela o dese;e. Ela não agüenta mais o fato de desejá-lo, morto. Corpo esvaziado, ofegante . Sua boca está úmida. Ela tem a pose de uma mulher no dese;o, impudica até a vulgaridade. Mais impudico do que em qualquer outro lugar. Repugn(J11te . Ela deseja um morto. 21 O amor serve para morrer mais comodamente para a vúla."22

A implosão do amor na morte e da morte no amor atinge sua expressão paroxística na insustentável dor da loucura. "Fize-

2J I bid .• pp. 136-137. 22 lbíd., p . 132.

SOL NEGRO 211

ram-me passar por morta [ ... ] Enlouqueci. De maldade. CuspiD -parece- no rosto de minha mãe."23 Essa loucura, penosa e mor­tal, não seria nada mais do que a absorção por Ela da morte d'Ele. ''Poderíamos acreditar que ela estava morta, de tanto que morre da

. morte dele."24 Essa identificação dos protagonistas, confundindo suas fronteiras, suas palavras, seus seres, é uma figura permanente em Duras. Por não morrer como ele, por sobreviver ao seu amor morto, ela se toma, contudo, como uma morta: dissociada dos outros e do tempo, ela tem o olhar eterno e animal das gatas, ela é louca; "Morta de amor em Nevers." [ ... ] eu não conseguia encontrar a menor diferença enire esse corpo morto e o meu . . . Só podia encontrar entre esse corpo e o meu semelhanças. . . gritantes, compreendes?'125

Freqüente, permanente mesmo, a identificação com o objeto do luto, contudo, é absoluta e inelutável . Por isto mesmo, o luto torna-se impossível e metamorfoseia a heroína em cripta habitada por um cadáver vivo.

Privado e público

· Talvez toda a obra de Marguerite Duras esteja nesse 'texto de 1960, que situa a ação do filme de Resnais em 1957, catorze anos depois da explosão atômica. Tudo está ali: o sofrimento, a morte, o amor e sua mistura explosiva na louca melancolia de uma mulher; mas sobretudo a aliança do realismo sócio-histórico, anunciado em Un barrage contre le Pacifique (1950) e que reaparecerá em O Amante, com a radiografia da depressão, · que Moderato cantabile impõe (1958) e que se tomará o terreno predileto. a área exclusiva dos textos intimistas seguintes.

Se a histeria se toma discreta e desaparece em seguida, aqui ela é causa e cenário. Esse drama do amor e da loucura aparece independente do drama político, o poder passional ultrapassando os acontecimentos politicos, qualquer que fosse sua atrocidade. Mais ainda, o amor impossível e louco parece triunfar sobre estes acon­tecimentos, se é que se pode falar de triunfo quando uma dor ero­t!zada ou um amor suspenso se impõe.

Entretanto, a melancolia durassiana é também uma deflagra­ção da história. A dor privada reabsorve, no microcosmo psíquico

23. lbid., p. 149. 24 l bid. , p. 125. 2S l bid ., p . 100.

1\2 A. DOENÇA DA POR: DUkA.S

do indivíduo, o horror político. Essa francesa em Hiroshima talvez seja stendhaliana, até mesmo eterna, não deixa .de existir por causa da guerra, dos nazistas e da bomba ...

Todavia, por sua integração à vida privada, a vida política perde essa autonomia que nossas consciências ins.istem em reser­var-lhe religiosa·mente. Os diferentes partidos do conflito mundial nem por isto desaparecem no seio de uma condenação global equi­valente a uma absolvição do crime em nome do amor. O jovem alemão é um inimigo, a dureza dos resistentes tem sua lógica, e nada é dito para justificar a participação japonesa ao lado dos nazistas, não mais do que a violência da tardia réplica americana. Os fatos políticos reconhecidos com o lado implícito de uma consciência polí­tica que se acredita de esquerda (sem contestação, o japonês deve aparecer como um homem de esquerda), nem por isto o jogo esté­tico permanece o do amor e da morte. Em conseqüência, ele situa os fatos públicos à luz da loucura. ·

O acontecimento, hoje, é a loucura humana. A política faz parte dela, particularmente nos seus ataques mortais. A política não é, como para Hannah Arendt, o campo em que se manifesta a liberdade humana. O mundo moderno, o mundo das guerras mun­diais, o Terceiro Mundo, o mundo subterrâneo da morte que nos in­fluencia não têm o esplendor civilizado da urbe grega. O campo polí­tico moderno é profundamente, totalitariamente social, nivelador, ma­tador. Assim, a loucupa é um espaço de individuação anti-social, apo­calíptica e, paradoxalmente, livre. Diante dela, os acontecimentos políticos, exorbitantes e monstruosos - a invasão nazista, a explo­são atômica -, são reabsorvidos para só se medirem com a dor humana que eles provocam. No limite, na visão da dor moral, não existe hierarquia entre uma apaixonada tosada· na França e uma japonesa queimada pelo átomo. Para essa ética e essa estética, preo­cupadas com a dor, o privado ridicularizado obtém uma dignidade grave que minoriza o público, ao mesmo tempo que atribui à his­tória a grandiosa responsabilidade de ser o· disparador da doença da morte. Com isto, a vida pública encontra-se gravemente tirada da realidade, enquanto a vida particular, em compensação, acha-se agravada até ocupar todo o real e tomar caduca qualquer outra preocupação . O novo mundo, forçosamente político, é irreal. Vive-mos a realidade de um novo mundo doloroso.. ·

A partir desse imperativo do mal-estar fundamental os dife-. , rentes engaJamentos políticos parecem se equivaler e revelam sua estratégia de fuga e de fraqueza mentirosa: "Colaboradores, os Fer-

SOL NEORO 213

nandet. E eu, dois anos após a guerra, membro do PCF. A eauiva­Mncia é absoluta, definitiva. E a mesma coisa, o mesmc grito de s~corro, a mesma . debilidade do julgamento, a mesma superstição, dtgamos, que constste em acreditar na solução política do problema pessoal. "21

. A partir desse limite, pode-se suspender a observação do polí-t1co e detalhar apenas o arco-íris da dor. Somos sobreviventes mor­tos-vivos, cadáveres em suspenso abrigando Hiroshimas pesso~is no fundo do nosso mundo particular .

~ possível imaginar uma arte que, ao mesmo tempo que reco­nheça o peso da dor moderna, afogue-a no triunfo dos conquista­dores ou nos sarcasmos e nos entusiasmos metafísicos, ou ainda na ternura do prazer erótico. Também não é verdade, sobretudo não é verdade que o homem moderno, melhor do que nunca, chega a ven· ce!. o . túmul?•. que a vida ganha na experiência dos vivos e que, mrbtar e pohtlcamente, as forças da Segunda Guerra Mundial pare­cem juguladas? Duras escolhe ou sucumbe a um outro caminho: a contemplação cúmplice, voluptuosa, enfeitiçadora da morte em nós, da permanência do sofrimento.

O publicação, em 1985, de A Dor - estranho diário secreto feito durante a guerra e cuja narração maior relata o retomo de Robert L., de Dachau - revela um dos enraizamentos biográficos e históricos essenciais dessa dor. A luta do homem contra a morte em face do extermínio imposto pelos nazistas. A luta do fugitivo no seio da vida normal para reencontrar no seu quase·cadáver de sobre­vivente as forças elementares de vida. A narradora - testemunha e combatente dessa aventura entre vida e morte - a expõe como que de dentro, do interior do seu amor pelo morto que renasce. "A luta com a morte começou muito rapidamente. Era preciso ir devagar com ela, com delicadeza, tato, perícia. Ela o cercava por todos os lados. Mas. assim mesmo, ainda havia um meio de atin­gi·lo, não era grande, essa abertura 'por onde se comunicar com ele, mas assim mesmo a vida estava nele, apenas uma lasca, mas assim mesmo uma lasca. A morte atacava - 39,5 1W primeiro dia. Depois 40. Depois 41. A morte resfolegava - 41: o coração vibrava como uma corda de violino. 41, sempre, mas ele vibra. O coração, pensávamos, o coração vai parar. Sempre 41. A morte, com ataques

26 O Amante, op. cit.

1\2 A. DOENÇA DA POR: DUkA.S

do indivíduo, o horror político. Essa francesa em Hiroshima talvez seja stendhaliana, até mesmo eterna, não deixa .de existir por causa da guerra, dos nazistas e da bomba ...

Todavia, por sua integração à vida privada, a vida política perde essa autonomia que nossas consciências ins.istem em reser­var-lhe religiosa·mente. Os diferentes partidos do conflito mundial nem por isto desaparecem no seio de uma condenação global equi­valente a uma absolvição do crime em nome do amor. O jovem alemão é um inimigo, a dureza dos resistentes tem sua lógica, e nada é dito para justificar a participação japonesa ao lado dos nazistas, não mais do que a violência da tardia réplica americana. Os fatos políticos reconhecidos com o lado implícito de uma consciência polí­tica que se acredita de esquerda (sem contestação, o japonês deve aparecer como um homem de esquerda), nem por isto o jogo esté­tico permanece o do amor e da morte. Em conseqüência, ele situa os fatos públicos à luz da loucura. ·

O acontecimento, hoje, é a loucura humana. A política faz parte dela, particularmente nos seus ataques mortais. A política não é, como para Hannah Arendt, o campo em que se manifesta a liberdade humana. O mundo moderno, o mundo das guerras mun­diais, o Terceiro Mundo, o mundo subterrâneo da morte que nos in­fluencia não têm o esplendor civilizado da urbe grega. O campo polí­tico moderno é profundamente, totalitariamente social, nivelador, ma­tador. Assim, a loucupa é um espaço de individuação anti-social, apo­calíptica e, paradoxalmente, livre. Diante dela, os acontecimentos políticos, exorbitantes e monstruosos - a invasão nazista, a explo­são atômica -, são reabsorvidos para só se medirem com a dor humana que eles provocam. No limite, na visão da dor moral, não existe hierarquia entre uma apaixonada tosada· na França e uma japonesa queimada pelo átomo. Para essa ética e essa estética, preo­cupadas com a dor, o privado ridicularizado obtém uma dignidade grave que minoriza o público, ao mesmo tempo que atribui à his­tória a grandiosa responsabilidade de ser o· disparador da doença da morte. Com isto, a vida pública encontra-se gravemente tirada da realidade, enquanto a vida particular, em compensação, acha-se agravada até ocupar todo o real e tomar caduca qualquer outra preocupação . O novo mundo, forçosamente político, é irreal. Vive-mos a realidade de um novo mundo doloroso.. ·

A partir desse imperativo do mal-estar fundamental os dife-. , rentes engaJamentos políticos parecem se equivaler e revelam sua estratégia de fuga e de fraqueza mentirosa: "Colaboradores, os Fer-

SOL NEORO 213

nandet. E eu, dois anos após a guerra, membro do PCF. A eauiva­Mncia é absoluta, definitiva. E a mesma coisa, o mesmc grito de s~corro, a mesma . debilidade do julgamento, a mesma superstição, dtgamos, que constste em acreditar na solução política do problema pessoal. "21

. A partir desse limite, pode-se suspender a observação do polí-t1co e detalhar apenas o arco-íris da dor. Somos sobreviventes mor­tos-vivos, cadáveres em suspenso abrigando Hiroshimas pesso~is no fundo do nosso mundo particular .

~ possível imaginar uma arte que, ao mesmo tempo que reco­nheça o peso da dor moderna, afogue-a no triunfo dos conquista­dores ou nos sarcasmos e nos entusiasmos metafísicos, ou ainda na ternura do prazer erótico. Também não é verdade, sobretudo não é verdade que o homem moderno, melhor do que nunca, chega a ven· ce!. o . túmul?•. que a vida ganha na experiência dos vivos e que, mrbtar e pohtlcamente, as forças da Segunda Guerra Mundial pare­cem juguladas? Duras escolhe ou sucumbe a um outro caminho: a contemplação cúmplice, voluptuosa, enfeitiçadora da morte em nós, da permanência do sofrimento.

O publicação, em 1985, de A Dor - estranho diário secreto feito durante a guerra e cuja narração maior relata o retomo de Robert L., de Dachau - revela um dos enraizamentos biográficos e históricos essenciais dessa dor. A luta do homem contra a morte em face do extermínio imposto pelos nazistas. A luta do fugitivo no seio da vida normal para reencontrar no seu quase·cadáver de sobre­vivente as forças elementares de vida. A narradora - testemunha e combatente dessa aventura entre vida e morte - a expõe como que de dentro, do interior do seu amor pelo morto que renasce. "A luta com a morte começou muito rapidamente. Era preciso ir devagar com ela, com delicadeza, tato, perícia. Ela o cercava por todos os lados. Mas. assim mesmo, ainda havia um meio de atin­gi·lo, não era grande, essa abertura 'por onde se comunicar com ele, mas assim mesmo a vida estava nele, apenas uma lasca, mas assim mesmo uma lasca. A morte atacava - 39,5 1W primeiro dia. Depois 40. Depois 41. A morte resfolegava - 41: o coração vibrava como uma corda de violino. 41, sempre, mas ele vibra. O coração, pensávamos, o coração vai parar. Sempre 41. A morte, com ataques

26 O Amante, op. cit.

214 A DOENÇA DA 0011.: DUJV.S

repentinos e brutais, bate, mas o coração está surdo. Não é possí­vel, o coração vai parar."z1

A narradora está minuciosamente ligada aos detalhes ínfimos e essenciais desse combate do corpo com a morte, da morte contra o corpo: ela escruta a cabeça "selvagem mas sublime", os ossos, a pele, os intestinos e até a merda "desumana" ou "humana" ... No centro do seu amor, ele próprio moribundo, por esse homem, ela entre­tanto encontra, pela e graças à dor, a sua paixão pelo ser singular, único, e em conseqüência para sempre amado, que é o fugitivo Robert L. A morte reaviva o amor morto. "A partir deste nome, Robert L., choro. Choro ainda. Chorarei toda a minha vida [ ... ] durante a sua agonia [ ... 1 eu conhecera melhor este homem Robert L. [ ... ] percebera, para sempre, o q.ue o tornava ele, e s:_ mente ele, e nada nem ninguém mais no mundo, que eu falava da graça particular de Robert L. ' 128

A dor apaixonada pela morte seria a individuação suprema?

Talvez fossem necessários a aventura estranha do desarraiga­mento, uma infância no continente asiático, a tensão de uma exis­tência árdua ao lado .da mãe professora, corajosa e dura, e o encon­tro precoce com a doença mental do irmão e com a miséria de todos para que uma sensibilidade pessoal à dor esposasse com tanta avi­dez o drama de nosso tempo, que impõe a doença da morte no centro da experiência psíquica da maioria de nós. Uma infância em que o amor, já calcinado pelo fo,go de um ódio contido, e a esperança só se manifestam sob a prostração do infortúnio: "Vou cuspir no seu rosto. Ela abriu e o cuspe ficou em sua boca. Não valia a pena. Era o azar, esse Sr. Jo, o azar, como as barragens, o cavalo que morria, nãQ era ninguém, somente o azar. •TB Essa infân· cia de ódio e de medo tomou-se a fonte e o brasão de uma visão da história contemporânea: "É uma família de pedra, petrificada numa espessura sem nenhum acesso. Catúl dia tentamos nos matar, matar. Não somente não nos falamos, mas não, nos olhamos [ .. . ] . Por causa do que fizeram à nossa mãe tão amável, tão confiante, odia­mos· a vida, nós nos odiamosi"30 "A lembrança _é a de um medo cen-

li C(. Marguerite Duras, A dor, Nova Fronteira Rio 1986. 28 lbid. ' , 29 Cf. Marguerite Duras, Vn barrage contre le Pacifique (Uma barragem contra o Pacírico), Folio, Gallimard, Paris, 1950, pp. 73-74. 3D O amante, op. cit.

90L ~1!0&0 215

Ira/. "31 "Creio que já séi me dizer isto, tenlw vagamente vontade de morrer. "l2 " [ ••• 1 estou numa tristeza que eu esperava e que só vem de mim. Que sempre eu fui triste. •'ll

Com essa sede pela dor até a loucura, Duras revela a graça de nossos desesperos mais tenazes, mais rebeldes à fé, mais atuais.

A mulher tristeza

"- Por que caminho se conquista uma mulher? - pergunta o vice-cônsul.

O diretor ri.

[ ... ] - Eu a conquistaria pela tristeza - diz o vice-cônsul - se

me fosse permitido fazê-lo. "3'

A tristeza seria a doença fundamental, se não fosse o fundo doentio das mulheres em Duras. Assim, Anne-Marie Stretter (O Vice­cônsul), Lol V. Stein (0 Deslumbramento de Lol V. Stein), ou Alissa (Détruire, "dit-elle), para citar somente três. Uma tristeza não-dra· mática, murcha, não-nomeável. Um nada que causa lágrimas dis· eretas e palavras elípt~cas. Dor e deslumbramento ali se confundem em alguma discrição . . "Ouvi dizer isso. . . seu céu, são as lágrimas", nota o vice-cônsul a propósito de Anne-Marie Stretter. A estranha embaixatriz em Calcutá parece passear uma morte sepultada no seu corpo pálido e magro. "A morte numa vida em curso - diz enfim o vice-cônsul - mas que jamais se reuniria a você? É isso."J.S Ela passeia pelo mundo, e para além de seus amores despedaçados; o encanto melancólico da Veneza de sua infância e um destino, dedi­cado à música, rompido. Metáfora ambulante de uma Veneza ver­de-mar, de uma cidade de fim de mundo, enquanto, para outras, a cidade dos Doges permanece fonte de excitação. Anne-Marie Stretter, contudo, é a dor encarnada de qualquer mulher comum, "de. Dijon, de Milão, de Brest, de Dublin", talvez um pouco inglesa, mas não, ela é universal: "Isto é, é um pouco simples acreditar que se veio so-

li Ibid. 32 lbid. 3J /bid. 34 Cf. Marguerite Duras, O Vice..c~nsu/, Francisco Alves, Rio, 1982. 3S Jbid.

214 A DOENÇA DA 0011.: DUJV.S

repentinos e brutais, bate, mas o coração está surdo. Não é possí­vel, o coração vai parar."z1

A narradora está minuciosamente ligada aos detalhes ínfimos e essenciais desse combate do corpo com a morte, da morte contra o corpo: ela escruta a cabeça "selvagem mas sublime", os ossos, a pele, os intestinos e até a merda "desumana" ou "humana" ... No centro do seu amor, ele próprio moribundo, por esse homem, ela entre­tanto encontra, pela e graças à dor, a sua paixão pelo ser singular, único, e em conseqüência para sempre amado, que é o fugitivo Robert L. A morte reaviva o amor morto. "A partir deste nome, Robert L., choro. Choro ainda. Chorarei toda a minha vida [ ... ] durante a sua agonia [ ... 1 eu conhecera melhor este homem Robert L. [ ... ] percebera, para sempre, o q.ue o tornava ele, e s:_ mente ele, e nada nem ninguém mais no mundo, que eu falava da graça particular de Robert L. ' 128

A dor apaixonada pela morte seria a individuação suprema?

Talvez fossem necessários a aventura estranha do desarraiga­mento, uma infância no continente asiático, a tensão de uma exis­tência árdua ao lado .da mãe professora, corajosa e dura, e o encon­tro precoce com a doença mental do irmão e com a miséria de todos para que uma sensibilidade pessoal à dor esposasse com tanta avi­dez o drama de nosso tempo, que impõe a doença da morte no centro da experiência psíquica da maioria de nós. Uma infância em que o amor, já calcinado pelo fo,go de um ódio contido, e a esperança só se manifestam sob a prostração do infortúnio: "Vou cuspir no seu rosto. Ela abriu e o cuspe ficou em sua boca. Não valia a pena. Era o azar, esse Sr. Jo, o azar, como as barragens, o cavalo que morria, nãQ era ninguém, somente o azar. •TB Essa infân· cia de ódio e de medo tomou-se a fonte e o brasão de uma visão da história contemporânea: "É uma família de pedra, petrificada numa espessura sem nenhum acesso. Catúl dia tentamos nos matar, matar. Não somente não nos falamos, mas não, nos olhamos [ .. . ] . Por causa do que fizeram à nossa mãe tão amável, tão confiante, odia­mos· a vida, nós nos odiamosi"30 "A lembrança _é a de um medo cen-

li C(. Marguerite Duras, A dor, Nova Fronteira Rio 1986. 28 lbid. ' , 29 Cf. Marguerite Duras, Vn barrage contre le Pacifique (Uma barragem contra o Pacírico), Folio, Gallimard, Paris, 1950, pp. 73-74. 3D O amante, op. cit.

90L ~1!0&0 215

Ira/. "31 "Creio que já séi me dizer isto, tenlw vagamente vontade de morrer. "l2 " [ ••• 1 estou numa tristeza que eu esperava e que só vem de mim. Que sempre eu fui triste. •'ll

Com essa sede pela dor até a loucura, Duras revela a graça de nossos desesperos mais tenazes, mais rebeldes à fé, mais atuais.

A mulher tristeza

"- Por que caminho se conquista uma mulher? - pergunta o vice-cônsul.

O diretor ri.

[ ... ] - Eu a conquistaria pela tristeza - diz o vice-cônsul - se

me fosse permitido fazê-lo. "3'

A tristeza seria a doença fundamental, se não fosse o fundo doentio das mulheres em Duras. Assim, Anne-Marie Stretter (O Vice­cônsul), Lol V. Stein (0 Deslumbramento de Lol V. Stein), ou Alissa (Détruire, "dit-elle), para citar somente três. Uma tristeza não-dra· mática, murcha, não-nomeável. Um nada que causa lágrimas dis· eretas e palavras elípt~cas. Dor e deslumbramento ali se confundem em alguma discrição . . "Ouvi dizer isso. . . seu céu, são as lágrimas", nota o vice-cônsul a propósito de Anne-Marie Stretter. A estranha embaixatriz em Calcutá parece passear uma morte sepultada no seu corpo pálido e magro. "A morte numa vida em curso - diz enfim o vice-cônsul - mas que jamais se reuniria a você? É isso."J.S Ela passeia pelo mundo, e para além de seus amores despedaçados; o encanto melancólico da Veneza de sua infância e um destino, dedi­cado à música, rompido. Metáfora ambulante de uma Veneza ver­de-mar, de uma cidade de fim de mundo, enquanto, para outras, a cidade dos Doges permanece fonte de excitação. Anne-Marie Stretter, contudo, é a dor encarnada de qualquer mulher comum, "de. Dijon, de Milão, de Brest, de Dublin", talvez um pouco inglesa, mas não, ela é universal: "Isto é, é um pouco simples acreditar que se veio so-

li Ibid. 32 lbid. 3J /bid. 34 Cf. Marguerite Duras, O Vice..c~nsu/, Francisco Alves, Rio, 1982. 3S Jbid.

216 A DOENÇA DA DOR: DUIUS

mente de Veneza, parece-me que se pode vir de outros lugares que se atravessou no meio do caminho. "36

A dor é o lieu sexo, o lugar nobre do seu erotismo. Quando ela reúne o seu cenáculo de apaixonados, às escondidas; no Blue Moon ou na sua residência secreta, o que fazem eles? "Eles a olham. Ela é magra sob seu roupão negro, aperta as pálpebras, sua beleza desapareceu. Em qual insuportável bem-estar encontra-se ela?

E eis que aconteceu o que Charles Rossett não sabia que espe­rava. E seguro? Sim. São lágrimas. Elas saem dos seus olhos e rolam em suas faces, muito pequenas, brilhantes"JI " [ ... ] eles a olham. As pálpebras largas estremecem, as lágrimas não correm [ ... ] Choro sem razão que pudesse lhes dizer. é como uma dor que me atravessa, é preciso que alguém chore, é como se fosse eu.

Ela sabe que eles estão lá, bem perto, sem dúvida, os homens de Calcutá, ela não se mexe, absolutamente, se ela o fizesse . . . não . .. elq dá o sentimento de estar agora prisioneira de uma dor muito antiga para ser ainda chorada. ".13

Esta dor exprime um prazer impossível, ela é o sinal lancinante da frigidez . Retendo uma paixão que não poderia escoar-se, a dor, contudo, e de ·forma mais profunda, é a prisão em que se encerra o luto impossível de um amor antigo, inteiramente feito de sensa­ções e de auto-sensações, inalienável, inseparável e, por isto mesmo, não-nomeável. O luto não-realizado do pré-objeto auto-sensual fixa a frigidez feminina. Assim a dor a ele ligada contém uma mulher desconhecida daquela . que mora na superfície: uma estranha. Ao narcisismo desalojado das aparênci~s melancólicas. a dor opõe e acrescenta o narcisismo profundo, a auto-sensualidade arcaica , dos afetos feridos . Assim, encontramos na fonte desta dor um abandono imposs,vel de ser assumido. Assim, ela se revela pelo jogo das reduplicações em que o próprio corpo se reconhece na imagem de um outro, contanto que ele seja a réplica de sua imagem.

"Eu não" ou o abandono

O abandono representa o insuperável traumatismo infligido pela descoberta - sem dúvida ela foi precoce e, portanto, impossível de

lO Jbid. :n Ibid. )8 lbid., p. 198.

SOL NEORO 217

ser elaborada - da existência de um não-ego.JtJ Na verdade, o aban­dono estrutura olque resta de uma história nos textos de Duras: a amante é abandonada pelo seu amante, o alemão da francesa de Nevers morre (Hiroshima mon amour, 1960) ; Michael Richardson abandona publicamente Lol V . Stein (0 deslumbramento de Lol V. Stein, 1964); de novo, Michael Richardson, amante impossível, pon­tua uma série de naufrágios na vida de Anne-Marie Stretter (O Vice-c~nsul, 1965); Elisabeth Alione perdeu seu filho natimorto, e previamente, houve o amor do jovem médico por ela, o qual tenta se matar quando ela mostra a carta do seu amante ao seu marido (Détrire, dit-elle, 1969); quanto ao homem e à jovem de A Doença da morte (1982), parecem estar habitados por um luto inerente, que toma a sua paixão física mórbida, distante, sempre já condenada; enfim, a pequena francesa e o chinês, seu amante, estão, de iiúcío, convencidos da impossibilidade e da condenação de sua ligação, de forma que a jovem se persuade a não amar e só se deixa perturbar por um eco de sua paixão abandonada, por· uma melodia de Chopin no barco que a conduz para a França {0 Amante).

Esse sentimento de abandono inevitável que revela a separação ou a morte real dos amantes também parece imanente e como que predestinado. Ele se liga em torno da figura materna . A mãe da jovem de Nevers estava separada do seu marido.. . ou então (a narradora hesita) ela era judia, partiu para a zona livre. Quanto a Lol V. Stein, antes mesmo do baile fatídico em que Michael Ri· chardson a abandonará por Anne-Marie Stretter, ela chega acom­panhada de sua mãe, cuja silhueta elegante e ossosa, que porta .. os emblemas de uma obscura· negação da natureza",40 anuncia a ma· greza elegante, mortuáda e inacessível da futura rival. De forma mais dramática, a louca bonza <lo Vice-cônsul que passa incons­ciente, da Indochina para a tndia, grávida e gangrenada, luta com a morte, mas sobretudo com a mãe que a expulsara da casa materna: "Ela diz algumas palavras em cambojano: bom dia, boa noite. A

39 "A força de Marguerite Duras é a de ousar um discurso entre 'o charme que agiria, libertando' c o 'amor à primeira vi~ta, .mas suicid11' pulsiio de morte onde se originaria o que chamamos de sublimação." Cf. Marcelle Marini, Ter­ritoires du fémínin (Territórios do feminino, com Marguerite Duras), ~ditions de Minuit, Paris, 1977, p. 56. «J O deslumbramento, op. cit.

216 A DOENÇA DA DOR: DUIUS

mente de Veneza, parece-me que se pode vir de outros lugares que se atravessou no meio do caminho. "36

A dor é o lieu sexo, o lugar nobre do seu erotismo. Quando ela reúne o seu cenáculo de apaixonados, às escondidas; no Blue Moon ou na sua residência secreta, o que fazem eles? "Eles a olham. Ela é magra sob seu roupão negro, aperta as pálpebras, sua beleza desapareceu. Em qual insuportável bem-estar encontra-se ela?

E eis que aconteceu o que Charles Rossett não sabia que espe­rava. E seguro? Sim. São lágrimas. Elas saem dos seus olhos e rolam em suas faces, muito pequenas, brilhantes"JI " [ ... ] eles a olham. As pálpebras largas estremecem, as lágrimas não correm [ ... ] Choro sem razão que pudesse lhes dizer. é como uma dor que me atravessa, é preciso que alguém chore, é como se fosse eu.

Ela sabe que eles estão lá, bem perto, sem dúvida, os homens de Calcutá, ela não se mexe, absolutamente, se ela o fizesse . . . não . .. elq dá o sentimento de estar agora prisioneira de uma dor muito antiga para ser ainda chorada. ".13

Esta dor exprime um prazer impossível, ela é o sinal lancinante da frigidez . Retendo uma paixão que não poderia escoar-se, a dor, contudo, e de ·forma mais profunda, é a prisão em que se encerra o luto impossível de um amor antigo, inteiramente feito de sensa­ções e de auto-sensações, inalienável, inseparável e, por isto mesmo, não-nomeável. O luto não-realizado do pré-objeto auto-sensual fixa a frigidez feminina. Assim a dor a ele ligada contém uma mulher desconhecida daquela . que mora na superfície: uma estranha. Ao narcisismo desalojado das aparênci~s melancólicas. a dor opõe e acrescenta o narcisismo profundo, a auto-sensualidade arcaica , dos afetos feridos . Assim, encontramos na fonte desta dor um abandono imposs,vel de ser assumido. Assim, ela se revela pelo jogo das reduplicações em que o próprio corpo se reconhece na imagem de um outro, contanto que ele seja a réplica de sua imagem.

"Eu não" ou o abandono

O abandono representa o insuperável traumatismo infligido pela descoberta - sem dúvida ela foi precoce e, portanto, impossível de

lO Jbid. :n Ibid. )8 lbid., p. 198.

SOL NEORO 217

ser elaborada - da existência de um não-ego.JtJ Na verdade, o aban­dono estrutura olque resta de uma história nos textos de Duras: a amante é abandonada pelo seu amante, o alemão da francesa de Nevers morre (Hiroshima mon amour, 1960) ; Michael Richardson abandona publicamente Lol V . Stein (0 deslumbramento de Lol V. Stein, 1964); de novo, Michael Richardson, amante impossível, pon­tua uma série de naufrágios na vida de Anne-Marie Stretter (O Vice-c~nsul, 1965); Elisabeth Alione perdeu seu filho natimorto, e previamente, houve o amor do jovem médico por ela, o qual tenta se matar quando ela mostra a carta do seu amante ao seu marido (Détrire, dit-elle, 1969); quanto ao homem e à jovem de A Doença da morte (1982), parecem estar habitados por um luto inerente, que toma a sua paixão física mórbida, distante, sempre já condenada; enfim, a pequena francesa e o chinês, seu amante, estão, de iiúcío, convencidos da impossibilidade e da condenação de sua ligação, de forma que a jovem se persuade a não amar e só se deixa perturbar por um eco de sua paixão abandonada, por· uma melodia de Chopin no barco que a conduz para a França {0 Amante).

Esse sentimento de abandono inevitável que revela a separação ou a morte real dos amantes também parece imanente e como que predestinado. Ele se liga em torno da figura materna . A mãe da jovem de Nevers estava separada do seu marido.. . ou então (a narradora hesita) ela era judia, partiu para a zona livre. Quanto a Lol V. Stein, antes mesmo do baile fatídico em que Michael Ri· chardson a abandonará por Anne-Marie Stretter, ela chega acom­panhada de sua mãe, cuja silhueta elegante e ossosa, que porta .. os emblemas de uma obscura· negação da natureza",40 anuncia a ma· greza elegante, mortuáda e inacessível da futura rival. De forma mais dramática, a louca bonza <lo Vice-cônsul que passa incons­ciente, da Indochina para a tndia, grávida e gangrenada, luta com a morte, mas sobretudo com a mãe que a expulsara da casa materna: "Ela diz algumas palavras em cambojano: bom dia, boa noite. A

39 "A força de Marguerite Duras é a de ousar um discurso entre 'o charme que agiria, libertando' c o 'amor à primeira vi~ta, .mas suicid11' pulsiio de morte onde se originaria o que chamamos de sublimação." Cf. Marcelle Marini, Ter­ritoires du fémínin (Territórios do feminino, com Marguerite Duras), ~ditions de Minuit, Paris, 1977, p. 56. «J O deslumbramento, op. cit.

118 A DOENÇA DA DOR.~ DULU

criança, ela falava. A velha mãe de Tonlé-SapJ origem, causa de todos os males, de seu destino oblíquo, seu amor puro.'>4

1 _

Com uma força gótica lúgubre ergue-se a loucura da mae da amante em O amante, tal como um arq!létipo dessas mulhe~es _lo~­cas que povoam o universo durassiano. "Vejo que minha mae e m­tidamente louca [ . .. ] . De nascença. No sangu: · ~!: nii? .est~va doente com a sua loucura, ela a vivia como a saude. O od1o h~a filha e mãe num torno passional que se revela ser a font~ do mis­terioso silêncio que estria a escrita: " [ . . · 1 ela deve ser m~ernada, surrada morta'.u " [ ... 1 creio ter falado do amor que unhamos por no;sa mãe, mas não sei se falei do ódio que. também tínhamos por ela [ . . . 1 Ela é o lugar-limite onde o silêncw começa · O qu~ ali se passa é justamente o silêncio, esse lento trabalho por to~a a ml· nha vida. Ainda estou aqui, diante dessas crianças possuíd~, a. mesm~ distância do mistério. Nunca escrevi, acreditando jazê-lo, 1amms ame1, acreditando amar, nunca fiz nada a não ser esperar dian~e da port.a fechada.'*' O medo da loucura materna conduz a romanctsta _a f~r com que essa mãe desapareça, desligue-se d~la por uma VlOlê~cta não menos assassina que a da mãe, ela própna batendo na sua filha prostituída . Destruir, parece dizer a filha narradora em O amante, mas apagando a figura da mãe ao mesmo tempo ela toma o seu lugar. · A filha substitui a loucura materna, ela mata. me~o,s s~a mãe do que a prolonga na alucinação negativa de uma 1den!tflcaçao sempre fielmente amorosa: "De repente, . ali, perto. de ~m, uma pessoa sentada no lugar de minha mãe, ela não era mu1ha mae [ · · · 1 essa identidade que não era substitufvel por nenhuma outra desapa­recera e que eu não tinha nenhum meio de fazê-la voltar, faze~ com que começasse a voltar. Nadil mais s~ ~;:punha para habdar a imagem. Tornei-me louca em plena razao. _

Indicando ao mesmo tempo que o laço com a mae é um ante­cedente da dor, o texto não o designa nem como causa nem co,mo origem. A dor basta-se a si mesma, ela transcende tanto os ef~1~os como as causas e varre qualquer identidade, tanto a do suJeito como a do objeto . Seria a dor o último limite de n_ossos ~t~os não-objetais? Ela é inacessível à descrição, mas se da nas msptra·

41 O Vice-cônsul, op. cít. <12 O Amante. op. cít. 4l l bid. 44 l bid. 45 lbid.

SOL NEORO 219

ções, nas lágrimas, nos brancos entre as palavras . "Exalto-me com a dor na lndia. Nés todos o fazemos mais ou menos, não? Só po­demos falar desta dor se assegurarmos a sua respiração em nós . . . , •• Ao mesmo tempo maciça e exterior, a dor confunde-se com o de­sapego ou com alguma cisão profunda do ser feminino, sentida como o vazio de um dissabor intransponível se ela se revelava no lugar mesmo da divisão subjetiva: "Ela só falou para dizer que lhe era impossível exprimir o quanto era aborrecido e longo, longo ser Lol V. Stein. Pediam-lhe para fazer um esforço. Ela não compreendia por que, dizia ela. Sua dificuldade diante da procuro de uma única palavra parecia insuperável. Ela pareceu não esperar mais nada.

Pensava ela em alguma coisa, nela? perguntaram-lhe . Ela não compreendia a pergunta . Dir-se-ia que se deixava levar e que a las­sidão infinita de não poder se desprender disso não tinha que ser pensada, que ela se tomara um deserto no qual uma tendência tlô­rnade a lançara na perseguição interminável do quê? Não se sabia . Ela não respondia.·~

Extase: nada de prazer

Sem dúvida, não se deveria tomar essa mulher durassiana por toda mulher . Entretanto, alguns traços freqüentes da sexualidade feminina nela apa.recem. Somos levados a supor, nesse ser todo de tristeza, não um recalque, mas um esgotamento das pulsões eróticas. Co.nfiscadas pelo objeto de amor- pelo amante ou, antes dele, pela mãe cujo luto permanece impossível -· as pulsões estão como que encanecidas, esvaziadas de seu poder de estabelecer ligações de pra· zer sexual ou ligações de cumplicidade simbólica . Certamente, a coisa perdida deixou sua marca sobre seus afetos desalojados e S()bre esse discurso deslastrado de significação, a marca de uma ausência, de uma desligaçao fundamental. Ela pode prova«ar o êxtase, qão o prazer . Se queria ir ao encontro dessa mulher e de seu -amor, seria preciso buscá-los no porão secreto em que não há ninguém, a não ser os olhos cintilantes dos gatos de Nevers e a angústia catastrófica da jovem que se confunde com eles . "Voltar e ir ao seu encontro? Não . Será que .são as lágrimas que privam da pessoa?'""

~ O Vice-c6nsut, op. cit. u O de&lumbramento~ op. cit. 4K O Vice-cônsul, op. çit.

118 A DOENÇA DA DOR.~ DULU

criança, ela falava. A velha mãe de Tonlé-SapJ origem, causa de todos os males, de seu destino oblíquo, seu amor puro.'>4

1 _

Com uma força gótica lúgubre ergue-se a loucura da mae da amante em O amante, tal como um arq!létipo dessas mulhe~es _lo~­cas que povoam o universo durassiano. "Vejo que minha mae e m­tidamente louca [ . .. ] . De nascença. No sangu: · ~!: nii? .est~va doente com a sua loucura, ela a vivia como a saude. O od1o h~a filha e mãe num torno passional que se revela ser a font~ do mis­terioso silêncio que estria a escrita: " [ . . · 1 ela deve ser m~ernada, surrada morta'.u " [ ... 1 creio ter falado do amor que unhamos por no;sa mãe, mas não sei se falei do ódio que. também tínhamos por ela [ . . . 1 Ela é o lugar-limite onde o silêncw começa · O qu~ ali se passa é justamente o silêncio, esse lento trabalho por to~a a ml· nha vida. Ainda estou aqui, diante dessas crianças possuíd~, a. mesm~ distância do mistério. Nunca escrevi, acreditando jazê-lo, 1amms ame1, acreditando amar, nunca fiz nada a não ser esperar dian~e da port.a fechada.'*' O medo da loucura materna conduz a romanctsta _a f~r com que essa mãe desapareça, desligue-se d~la por uma VlOlê~cta não menos assassina que a da mãe, ela própna batendo na sua filha prostituída . Destruir, parece dizer a filha narradora em O amante, mas apagando a figura da mãe ao mesmo tempo ela toma o seu lugar. · A filha substitui a loucura materna, ela mata. me~o,s s~a mãe do que a prolonga na alucinação negativa de uma 1den!tflcaçao sempre fielmente amorosa: "De repente, . ali, perto. de ~m, uma pessoa sentada no lugar de minha mãe, ela não era mu1ha mae [ · · · 1 essa identidade que não era substitufvel por nenhuma outra desapa­recera e que eu não tinha nenhum meio de fazê-la voltar, faze~ com que começasse a voltar. Nadil mais s~ ~;:punha para habdar a imagem. Tornei-me louca em plena razao. _

Indicando ao mesmo tempo que o laço com a mae é um ante­cedente da dor, o texto não o designa nem como causa nem co,mo origem. A dor basta-se a si mesma, ela transcende tanto os ef~1~os como as causas e varre qualquer identidade, tanto a do suJeito como a do objeto . Seria a dor o último limite de n_ossos ~t~os não-objetais? Ela é inacessível à descrição, mas se da nas msptra·

41 O Vice-cônsul, op. cít. <12 O Amante. op. cít. 4l l bid. 44 l bid. 45 lbid.

SOL NEORO 219

ções, nas lágrimas, nos brancos entre as palavras . "Exalto-me com a dor na lndia. Nés todos o fazemos mais ou menos, não? Só po­demos falar desta dor se assegurarmos a sua respiração em nós . . . , •• Ao mesmo tempo maciça e exterior, a dor confunde-se com o de­sapego ou com alguma cisão profunda do ser feminino, sentida como o vazio de um dissabor intransponível se ela se revelava no lugar mesmo da divisão subjetiva: "Ela só falou para dizer que lhe era impossível exprimir o quanto era aborrecido e longo, longo ser Lol V. Stein. Pediam-lhe para fazer um esforço. Ela não compreendia por que, dizia ela. Sua dificuldade diante da procuro de uma única palavra parecia insuperável. Ela pareceu não esperar mais nada.

Pensava ela em alguma coisa, nela? perguntaram-lhe . Ela não compreendia a pergunta . Dir-se-ia que se deixava levar e que a las­sidão infinita de não poder se desprender disso não tinha que ser pensada, que ela se tomara um deserto no qual uma tendência tlô­rnade a lançara na perseguição interminável do quê? Não se sabia . Ela não respondia.·~

Extase: nada de prazer

Sem dúvida, não se deveria tomar essa mulher durassiana por toda mulher . Entretanto, alguns traços freqüentes da sexualidade feminina nela apa.recem. Somos levados a supor, nesse ser todo de tristeza, não um recalque, mas um esgotamento das pulsões eróticas. Co.nfiscadas pelo objeto de amor- pelo amante ou, antes dele, pela mãe cujo luto permanece impossível -· as pulsões estão como que encanecidas, esvaziadas de seu poder de estabelecer ligações de pra· zer sexual ou ligações de cumplicidade simbólica . Certamente, a coisa perdida deixou sua marca sobre seus afetos desalojados e S()bre esse discurso deslastrado de significação, a marca de uma ausência, de uma desligaçao fundamental. Ela pode prova«ar o êxtase, qão o prazer . Se queria ir ao encontro dessa mulher e de seu -amor, seria preciso buscá-los no porão secreto em que não há ninguém, a não ser os olhos cintilantes dos gatos de Nevers e a angústia catastrófica da jovem que se confunde com eles . "Voltar e ir ao seu encontro? Não . Será que .são as lágrimas que privam da pessoa?'""

~ O Vice-c6nsut, op. cit. u O de&lumbramento~ op. cit. 4K O Vice-cônsul, op. çit.

220 A DOENÇA DA DOil: DUUS

Seria esse êxtase dissimulado e aner6tico (no sentido dP. des­provido de laço, de destacado do outro para só se voltar para o fundo do próprio corpo que, contudo, se desapropria no próprio instante do gozo e soçobra numa própria morte amada?), se não o segredo, pelo menos um aspecto do gozo feminino? A Doença da morte dá a entender isto . O homem ali saboreia o corpo aberto da jovem como uma descoberta real da diferença sexual, de outra forma inacessível, mas que, t~davia, lhe aparece como mortal, devoradora, perigosa. Ele se defende do seu prazer de dormir no sexo úmido de sua par· ceira, imaginando matá-la. "Você descobre que é ali, nela, que é fomentada a doença da morte, que é essa forma estendida diante de você que decreta a doença da morte.·~ Em compensação, ela tem .familiaridade com a morte . Desligada, indifereiúe ao sexo e toda· via apaixonada pelo amor e dócil ao prazer, ela ama a morte que pensa carregar por dentro . Mais ainda, essa cumplicidade com a · morte lhe dá o sentimento de estar além d~ morte: a mulher não dá nem sofre a morte porque ela o é, e a impõe. f! ele que tem a doença da morte; ela é a morte, por conseguinte ela passa em outro Lugar: "f . . . ) ela olha você através diJ filtro verde de suas pupilas . Ela diz: Você anuncia o reino da morte . Não se pode amar a morte se ela lhe é imposta de fora. Você acredita chorar por não amar . Você chora por não impor a morte."~ Ela se vai, jnacessivel, deifi­cada pela narradora por carregar a morte para os outros através de um amor de "uma admirável impossibilidade", tanto para ela como para ele. Em Duras, uma certa verdade da experiência femi· nina, que toca o gozo da dor, beira a mitificação do feminino ina· cessível.

Entretanto, esse no man's land de afetos magoados e de pala· vras desvalorizadas que roça o zênite do mistério, por mais morto que seja, não é desprovido de expressão. Tem sua linguagem pró­pria: a reduplícação. Cria ecos, duplos, semelhantes, que manifes· tam a paixão ou a destruição tal como a mulher magoada não está em condições de dizê-la e da qual sofre por estar desprovida .

Casais e duplos. Uma reduplicação

A rcduplicação é uma repetição bloqueada . Enquanto o repe­tido se dispersa no tempo, a reduplicáção está fora do tempo. l!

.., Là Ma/adie de la mort, op. cit ., p. 38. ~ Ibid.

SOL NEGaO 221

uma reverberação. no espaço, um jogo de espelhos sem perspectiva, sem duração. Um duplo pode fixar por um tempo a instabilidade do mesmo, dar-lhe uma identidade provisória, mas sobretudo ele cava o mesmo em abismo, abre nele um fundo insuspeito e inson­dável. o duplo é o fundo inconsciente do mesmo, o que o ameaça e pode engoli-lo.

Fabricada pelo espelho, a reduplicação precede a identificação especular própria à "fase do espelho": ela remete aos postos avan· çados de nossas identidades instáveis, confundidas por uma pulsão que nada soube diferenciar, negar, significar.

O poder não-nomeável de tal olhar, além da visão, impõe-se como universo privilegiado e insondável no desejo: ' 'Ele se conten· tava em olhar Suzanne com olhos perturbados, olhá-la ainda, au· m~ntar seu olhar ·com uma visão suplementar, como se faz habi­tualmente quando a paixão lhe sufoca.''51 Além e aquém da visão a paixão hipnótica vê duplos .

Anne Desbaresdes e Chauvin em Moderato cantabile constroem sua história de amor ecoando o que eles imaginam ser a história do casal passional, cuja mulher quis ser morta pelo homem . Os dois protagonistas existiriam sem a referência imaginária ao gozo. masoquista do casal que os precedeu? A trama é colocada para que nela se des.enrole "moderato cantabile" uma outra reduplicação, a da mãe e a do seu filho. Mãe e criança realizam um acme dessa reflexão imaginada em que ·a identidade de uma mulher se afoga no amor pelo seu filhote . Se filha e mãe podem ser rivais e ini­migas (0 amante), a mãe e o seu menino aparecem em Moderato cantabile como puro amor devorador . Como o vinho e antes mes­mo que ela o beba, seu filho absorve Anne Desbaresdes: ela só se aceita nele - indulgente e extasiada; ele é o eixo que substitW decepções amorosas subentendidas e que revela sua demência . O filho é a fonna visível da loucura da mãe decepcionada. Sem ele, talvez ela estivesse morta. Com ele,· ela está numa ver tigem de amor, de medidas práticas e educativas, mas também de solidões, em eter­no exílio dos outros e de si mesma. Como uma réplica cotidiana e banal da mulher que, no início do romance, desejou ser morta por seu amante, a mãe Annc Desbaresdes vive sua morte estática no amor pelo seu filho . Ao mesmo tempo que desvenda os abismos

Sl /bid.

220 A DOENÇA DA DOil: DUUS

Seria esse êxtase dissimulado e aner6tico (no sentido dP. des­provido de laço, de destacado do outro para só se voltar para o fundo do próprio corpo que, contudo, se desapropria no próprio instante do gozo e soçobra numa própria morte amada?), se não o segredo, pelo menos um aspecto do gozo feminino? A Doença da morte dá a entender isto . O homem ali saboreia o corpo aberto da jovem como uma descoberta real da diferença sexual, de outra forma inacessível, mas que, t~davia, lhe aparece como mortal, devoradora, perigosa. Ele se defende do seu prazer de dormir no sexo úmido de sua par· ceira, imaginando matá-la. "Você descobre que é ali, nela, que é fomentada a doença da morte, que é essa forma estendida diante de você que decreta a doença da morte.·~ Em compensação, ela tem .familiaridade com a morte . Desligada, indifereiúe ao sexo e toda· via apaixonada pelo amor e dócil ao prazer, ela ama a morte que pensa carregar por dentro . Mais ainda, essa cumplicidade com a · morte lhe dá o sentimento de estar além d~ morte: a mulher não dá nem sofre a morte porque ela o é, e a impõe. f! ele que tem a doença da morte; ela é a morte, por conseguinte ela passa em outro Lugar: "f . . . ) ela olha você através diJ filtro verde de suas pupilas . Ela diz: Você anuncia o reino da morte . Não se pode amar a morte se ela lhe é imposta de fora. Você acredita chorar por não amar . Você chora por não impor a morte."~ Ela se vai, jnacessivel, deifi­cada pela narradora por carregar a morte para os outros através de um amor de "uma admirável impossibilidade", tanto para ela como para ele. Em Duras, uma certa verdade da experiência femi· nina, que toca o gozo da dor, beira a mitificação do feminino ina· cessível.

Entretanto, esse no man's land de afetos magoados e de pala· vras desvalorizadas que roça o zênite do mistério, por mais morto que seja, não é desprovido de expressão. Tem sua linguagem pró­pria: a reduplícação. Cria ecos, duplos, semelhantes, que manifes· tam a paixão ou a destruição tal como a mulher magoada não está em condições de dizê-la e da qual sofre por estar desprovida .

Casais e duplos. Uma reduplicação

A rcduplicação é uma repetição bloqueada . Enquanto o repe­tido se dispersa no tempo, a reduplicáção está fora do tempo. l!

.., Là Ma/adie de la mort, op. cit ., p. 38. ~ Ibid.

SOL NEGaO 221

uma reverberação. no espaço, um jogo de espelhos sem perspectiva, sem duração. Um duplo pode fixar por um tempo a instabilidade do mesmo, dar-lhe uma identidade provisória, mas sobretudo ele cava o mesmo em abismo, abre nele um fundo insuspeito e inson­dável. o duplo é o fundo inconsciente do mesmo, o que o ameaça e pode engoli-lo.

Fabricada pelo espelho, a reduplicação precede a identificação especular própria à "fase do espelho": ela remete aos postos avan· çados de nossas identidades instáveis, confundidas por uma pulsão que nada soube diferenciar, negar, significar.

O poder não-nomeável de tal olhar, além da visão, impõe-se como universo privilegiado e insondável no desejo: ' 'Ele se conten· tava em olhar Suzanne com olhos perturbados, olhá-la ainda, au· m~ntar seu olhar ·com uma visão suplementar, como se faz habi­tualmente quando a paixão lhe sufoca.''51 Além e aquém da visão a paixão hipnótica vê duplos .

Anne Desbaresdes e Chauvin em Moderato cantabile constroem sua história de amor ecoando o que eles imaginam ser a história do casal passional, cuja mulher quis ser morta pelo homem . Os dois protagonistas existiriam sem a referência imaginária ao gozo. masoquista do casal que os precedeu? A trama é colocada para que nela se des.enrole "moderato cantabile" uma outra reduplicação, a da mãe e a do seu filho. Mãe e criança realizam um acme dessa reflexão imaginada em que ·a identidade de uma mulher se afoga no amor pelo seu filhote . Se filha e mãe podem ser rivais e ini­migas (0 amante), a mãe e o seu menino aparecem em Moderato cantabile como puro amor devorador . Como o vinho e antes mes­mo que ela o beba, seu filho absorve Anne Desbaresdes: ela só se aceita nele - indulgente e extasiada; ele é o eixo que substitW decepções amorosas subentendidas e que revela sua demência . O filho é a fonna visível da loucura da mãe decepcionada. Sem ele, talvez ela estivesse morta. Com ele,· ela está numa ver tigem de amor, de medidas práticas e educativas, mas também de solidões, em eter­no exílio dos outros e de si mesma. Como uma réplica cotidiana e banal da mulher que, no início do romance, desejou ser morta por seu amante, a mãe Annc Desbaresdes vive sua morte estática no amor pelo seu filho . Ao mesmo tempo que desvenda os abismos

Sl /bid.

222 A DOENÇA DA DOR: DUIVlS

masoquistas do desejo, essa figura complexa .(mãe-filho/ amante amante/morta-matador apaixonados) mostra com quais delícias nar­císicas e auto-sensuais o sofrimento feminino se sustém. Certamente o filho é a ressurreição de sua mãe, mas, de modo inverso, os mor­tos dela sobrevivem nele: suas humilhações, seus ferimentos não­nómeados que se tomaram carne viva. Quanto mais o amor ma· temo flutua no sofrimento de uma mulher, mais a criança é de uma ternura dolorosa e sutil ...

O japonês e o alemão em Hiroshima mon amour também s~o duplos. Na experiência amorosa da jovem mulher de Nevers, ~ Ja· ponês reaviva a lembrança do seu amante morto, mas as duas Ima­gens masculinas se misturam num quebra-cabeça alucina.tório, suge­rindo que o amor pelo alemão está presente sem esquec1mento pos­sível e que, reciprocamente, o amor pelo japonês está destinado a morrer. Reduplicação e troca de atributos . Por essa estranha os­mose, a vitalidade de um sobrevivente da catástrofe de Hiroshima encontra-se disfarçada por uma sorte macabra, enquanto a mo:te definitiva do outro sobrevive, diáfana, na paixão .. ~1agoada da Jo­vem mulher. Essa reverberação de seus objetos de amor pulveriza a identidade da heroína: ela não é de tempo algum, mas do espaço da contaminação das entidades em que o seu próprio ser oscila, desgostoso e extasiado.

O segredo criminoso

Em O Vice-cônsul, essa técnica da redupiicação atinge seu apo­geu . A loucura expressionista da banza de Savannakhet - que retoma o tema da mulher asiática aos pés do doente em Un barrage contre le Pacijiqué2 - corresponde a melancolia decadente de Anne-Marie Stretter. Diante da miséria pungente e do corpo da mulher asiática que apodrece, as lágrimas venezianas de Anne-Ma· rie Stretter parecem capricho luxuoso e insustentável. Entretanto, o contraste entre as duas não se mantém quando a dor intervém . No fundo de doença, as imagens das duas ·mulheres se confundem, e o universo etéreo de Anne-Marie Stretter adquire uma dimensão de loucura que ele não teria, de forma tão intensa, sem a msrc~ nele da outra espreitadora. Duas músicas: a pianista, a cantora deh­rante; duas exiladas: uma da Europa, a outra da Ásia; duas mu-

S2 Jbid.

SOL NEGP.O 123

lheres feridas: uma com um ferimento invisível, a outra vítima gan­grenada da violência social, familiar, humana . . . Este duo torna-se um trio pelo acréscimo de uma outra réplica, desta vez masculina. o vice-cônsul de Lahore . . . Estranho personagem, que se supõe ter uma .aflição arcaica, jamais confessada, de quem somente conhece­mos os atos sádicos: barbantinho cheiroso na escola, tiros em seres vivos em Labore ... ~ verdadeiro, é falso? O vice-cônsul, temido por todos, torna-se o cúmplice de Anne-Marie Stretter e um apai­xonado condenado à sua frieza, porque mesmo os prantos da mulher encantadora são destinados aos outros . Seria o vice-cônsul uma metamorfose pervertida, possível, da melancólica embaixatriz, sua réplica masculina, sua variante sádica, a expressão da atuação à qual, precisamente, ela não se entrega, nem mesmo pelo coito? Talvez um homossexual, amando com um amor impossível uma mu­lher que, na sua aflição sexual dominada por um desejo sem satis­fação, teria querido ser como ele; fora da lei, fora do alcance. O trio desses desequilibrados - a bonza, o vice-cônsul, a deprinúda -tece um universo que escapa aos outros personagens do romance, mesmo os mais ligados à embaixatriz. Ele oferece à narradora o solo profundo de sua pesquisa psicológica: o segredo criminoso e louco que jaz sob as superfícies de nossos comportamentos diplo­máticos e cujo testemunho discreto. é dado pela tristeza de certas mulheres.

O ato amoroso, em geral, é o momento de uma tal reduplica­ção, tornando-se cada parceiro o duplo do outro. Assim, em A doença da morte, a obsessão mortal do homem corifunde-se com os pensamentos mortuários de sua amante . Os prantos do homem que goza da "abominável fragilidade" da mulher respondem ao seu si­lêncio adormecido, desligado, e revelam o seu sentido: um sofri­mento. O que ela acredita ser a falsidade do discurso dele, que não correspondería·. à realidade sutil das coisas, encontra-se ab-rea­gido na fuga dela quando, indiferente à sua paixão, ela deixa o quarto dos seus folguedos. De forma que os dois personagens aca­bam parecendo duas vozes, duas ondas ''entre a brancura dos len­çóis e a do mar".s:J

Uma dor passada (como uma cor) enche esses homens e mu­lheres, duplos e réplicas, e, satisfazendo-os, tira-lhes qualquer outra

53 La Maladie de la mort, op. cit., p. 61.

222 A DOENÇA DA DOR: DUIVlS

masoquistas do desejo, essa figura complexa .(mãe-filho/ amante amante/morta-matador apaixonados) mostra com quais delícias nar­císicas e auto-sensuais o sofrimento feminino se sustém. Certamente o filho é a ressurreição de sua mãe, mas, de modo inverso, os mor­tos dela sobrevivem nele: suas humilhações, seus ferimentos não­nómeados que se tomaram carne viva. Quanto mais o amor ma· temo flutua no sofrimento de uma mulher, mais a criança é de uma ternura dolorosa e sutil ...

O japonês e o alemão em Hiroshima mon amour também s~o duplos. Na experiência amorosa da jovem mulher de Nevers, ~ Ja· ponês reaviva a lembrança do seu amante morto, mas as duas Ima­gens masculinas se misturam num quebra-cabeça alucina.tório, suge­rindo que o amor pelo alemão está presente sem esquec1mento pos­sível e que, reciprocamente, o amor pelo japonês está destinado a morrer. Reduplicação e troca de atributos . Por essa estranha os­mose, a vitalidade de um sobrevivente da catástrofe de Hiroshima encontra-se disfarçada por uma sorte macabra, enquanto a mo:te definitiva do outro sobrevive, diáfana, na paixão .. ~1agoada da Jo­vem mulher. Essa reverberação de seus objetos de amor pulveriza a identidade da heroína: ela não é de tempo algum, mas do espaço da contaminação das entidades em que o seu próprio ser oscila, desgostoso e extasiado.

O segredo criminoso

Em O Vice-cônsul, essa técnica da redupiicação atinge seu apo­geu . A loucura expressionista da banza de Savannakhet - que retoma o tema da mulher asiática aos pés do doente em Un barrage contre le Pacijiqué2 - corresponde a melancolia decadente de Anne-Marie Stretter. Diante da miséria pungente e do corpo da mulher asiática que apodrece, as lágrimas venezianas de Anne-Ma· rie Stretter parecem capricho luxuoso e insustentável. Entretanto, o contraste entre as duas não se mantém quando a dor intervém . No fundo de doença, as imagens das duas ·mulheres se confundem, e o universo etéreo de Anne-Marie Stretter adquire uma dimensão de loucura que ele não teria, de forma tão intensa, sem a msrc~ nele da outra espreitadora. Duas músicas: a pianista, a cantora deh­rante; duas exiladas: uma da Europa, a outra da Ásia; duas mu-

S2 Jbid.

SOL NEGP.O 123

lheres feridas: uma com um ferimento invisível, a outra vítima gan­grenada da violência social, familiar, humana . . . Este duo torna-se um trio pelo acréscimo de uma outra réplica, desta vez masculina. o vice-cônsul de Lahore . . . Estranho personagem, que se supõe ter uma .aflição arcaica, jamais confessada, de quem somente conhece­mos os atos sádicos: barbantinho cheiroso na escola, tiros em seres vivos em Labore ... ~ verdadeiro, é falso? O vice-cônsul, temido por todos, torna-se o cúmplice de Anne-Marie Stretter e um apai­xonado condenado à sua frieza, porque mesmo os prantos da mulher encantadora são destinados aos outros . Seria o vice-cônsul uma metamorfose pervertida, possível, da melancólica embaixatriz, sua réplica masculina, sua variante sádica, a expressão da atuação à qual, precisamente, ela não se entrega, nem mesmo pelo coito? Talvez um homossexual, amando com um amor impossível uma mu­lher que, na sua aflição sexual dominada por um desejo sem satis­fação, teria querido ser como ele; fora da lei, fora do alcance. O trio desses desequilibrados - a bonza, o vice-cônsul, a deprinúda -tece um universo que escapa aos outros personagens do romance, mesmo os mais ligados à embaixatriz. Ele oferece à narradora o solo profundo de sua pesquisa psicológica: o segredo criminoso e louco que jaz sob as superfícies de nossos comportamentos diplo­máticos e cujo testemunho discreto. é dado pela tristeza de certas mulheres.

O ato amoroso, em geral, é o momento de uma tal reduplica­ção, tornando-se cada parceiro o duplo do outro. Assim, em A doença da morte, a obsessão mortal do homem corifunde-se com os pensamentos mortuários de sua amante . Os prantos do homem que goza da "abominável fragilidade" da mulher respondem ao seu si­lêncio adormecido, desligado, e revelam o seu sentido: um sofri­mento. O que ela acredita ser a falsidade do discurso dele, que não correspondería·. à realidade sutil das coisas, encontra-se ab-rea­gido na fuga dela quando, indiferente à sua paixão, ela deixa o quarto dos seus folguedos. De forma que os dois personagens aca­bam parecendo duas vozes, duas ondas ''entre a brancura dos len­çóis e a do mar".s:J

Uma dor passada (como uma cor) enche esses homens e mu­lheres, duplos e réplicas, e, satisfazendo-os, tira-lhes qualquer outra

53 La Maladie de la mort, op. cit., p. 61.

224 A DOENÇA. DA DOll: DURAS

psicologia. Esses decalqlt'es não são mais individuados, senão por seus nomes pr6prios: diamantes negros e incomparáveis, impeo.etrá­veis, que coagulam na extensão do sofrimento. Anne Desbaresdes, Lo! V . Stein, Elisabeth Alione, Michael Richardson, Max Thorn, Stein . . . Os nomes parecem condensar e reter uma história que seus portadores ignoram, talvez tanto quanto o leitor, mas que insiste na sua consonância estranha e quase acaba se revelando às nossas próprias estranhezas inconscientes, tomando-se brusca mas familiar­mente incompreensíveis para nós .

O acontecimento e o ódio . Entre mulheres

Como eco da simbiose mortal com as mães, a paixão entre duas mulheres é uma das figuras mais intensas do desdobramento . Quan­do .Lol V . Stein vê que foi despossuída de seu amftnte por Anne· Marie Stretter (a quem, contudo, esse benefício não satisfaz, e cuja tristeza inconsolável conhecemos em O Vice-cônsul), ela se fecha num isolamento enfadonho e inacessível: "nada saber de .Lol já era conhecê-la".u Entretanto, anos mais tarde, quandc todos acredita­vam que estivesse curada e tranqüilamente casada, ela espia os foi· guedos amorosos de sua amiga Tatiana Karl e de Jacques Hold . Está apaixonada pelo casal, sobretudo por Tatiana: quer tomar o seu lugar nos mesmàs braços, no mesmo leito. Essa absorção da paixão da outra mulher - Tatiana sendo aqui o substituto da pri· meira rival, Anne-Marie Stretter, e, em última análise, da mãe -também é feita em sentida inverso: Tatiana, até entlo leviana e lúcida, põe-se a sofrer. Doravante, as duas mulheres são decalques, réplicas no cenário da dor que, aos olhos extasiados de Lol V . Stein, regula o picadeiro do mundo - " [ . . . ] as coisas tornam-se precisas em torno dela, e de repente ela percebe suas arestas vivas, os restos que se arrastam por todo lugar no mundo, que giram, esse farrapo, semidestruído pelos ratos, a dor de Tatiana, ela o vê, fica embaraçada, em todo lugar o sentimento, escorrega-se nessa gordura. Ela acreditava que era possívt;l, alternativamente, preencher e esva­ziar um tempo, encher e desencher, pois que ele ainda está pronto, sempre, para servir, ela ainda acredita nisto, sempre acredita, jamais ficará curada. " 55

S4 O deslumbramento, op. cit. ss Ibid.

SOL J:fEOilO 225

Os duplos~ se . multiplicam no espelho de Détruire, dit-elle e flutuam sobre o tema da destruição que, uma vez nomeado no corpo do texto, vem à tona para esclarecer o título e tornar inteligíveis todas as relações que o romance põe em cena. Elisabeth Alione, deprimida em conseqüência de um amor infeliz e da morte, ao nascer, de sua neta, repousa num hotel desolado, povoado de doen­tes. Ali encontra Stein e seu duplo Max Thor, dois judeus, eter­namente prestes a se tomar escritores: "com que força isso se impõe às vezes, não escrever".Yió Dois homens ligados por uma indizível pai.:xão, que se supõe ser homossexual, e que, precisamente, só con­segue se inscrever por intermédio de duas mulheres . Ele ama/ eles amam Alissa e são fascinados por Elisa. Alissa Thor descobre que seu marido é feliz por conhecer Elisa que seduz Stein: assim, ela própria deixa que o ·mesmo Stein se aproxime dela e a ame (o leitor é livre para compor díades nessà trama sugestiva). Ela fica atônita ao descobrir que Max Thor é feliz aqui, no universo caleidoscópico dos duplos - com Stein, sem dúvida por causa de Elisa? Mas ele afirma também que é por causa da própria Alissa? "Destruir, diz ela. •-sr Por mais que esteja habitada por essa destruição, Alissa mi· ra-se em Elisa para revelar, na ambigüidade da identificação e da decomposição, uma verdadeira loucura sob a aparência de jovem mulher viçosa: ''Sou alguém que tem medo - continua Alissa -medo de ser abandonada, medo do futuro, medo de amar, medo da violência da multidão medo do desconhecido, da fome, da miséria, da verddde. •.>S& '

Qual? A sua ou a de Elisa? "Destruir, diz ela." Entretanto, as duas mulheres se entendem. Alissa é porta-voz de Elisa . Ela repete seus propósitos, testemunha seu passado e profetiza seu fu­turo, no qual, aliás, só vê repetição e duplos, tanto mais que a es­tranheza de cada pessoa para consigo mesma faz com que cada um, com o tempo, se tome o seu próprio duplo e o seu próprio outro.

"Eiisabeth não responde .

-- Nos conhecíamos quando éramos crianças - diz ela. Nossas famílias eram amigas.

Y16 Cf. Margueríte Duras, Détruire dit-elle, Minuit, Paris, 1969, p. 46. 57 lbid. S8 lbid.

224 A DOENÇA. DA DOll: DURAS

psicologia. Esses decalqlt'es não são mais individuados, senão por seus nomes pr6prios: diamantes negros e incomparáveis, impeo.etrá­veis, que coagulam na extensão do sofrimento. Anne Desbaresdes, Lo! V . Stein, Elisabeth Alione, Michael Richardson, Max Thorn, Stein . . . Os nomes parecem condensar e reter uma história que seus portadores ignoram, talvez tanto quanto o leitor, mas que insiste na sua consonância estranha e quase acaba se revelando às nossas próprias estranhezas inconscientes, tomando-se brusca mas familiar­mente incompreensíveis para nós .

O acontecimento e o ódio . Entre mulheres

Como eco da simbiose mortal com as mães, a paixão entre duas mulheres é uma das figuras mais intensas do desdobramento . Quan­do .Lol V . Stein vê que foi despossuída de seu amftnte por Anne· Marie Stretter (a quem, contudo, esse benefício não satisfaz, e cuja tristeza inconsolável conhecemos em O Vice-cônsul), ela se fecha num isolamento enfadonho e inacessível: "nada saber de .Lol já era conhecê-la".u Entretanto, anos mais tarde, quandc todos acredita­vam que estivesse curada e tranqüilamente casada, ela espia os foi· guedos amorosos de sua amiga Tatiana Karl e de Jacques Hold . Está apaixonada pelo casal, sobretudo por Tatiana: quer tomar o seu lugar nos mesmàs braços, no mesmo leito. Essa absorção da paixão da outra mulher - Tatiana sendo aqui o substituto da pri· meira rival, Anne-Marie Stretter, e, em última análise, da mãe -também é feita em sentida inverso: Tatiana, até entlo leviana e lúcida, põe-se a sofrer. Doravante, as duas mulheres são decalques, réplicas no cenário da dor que, aos olhos extasiados de Lol V . Stein, regula o picadeiro do mundo - " [ . . . ] as coisas tornam-se precisas em torno dela, e de repente ela percebe suas arestas vivas, os restos que se arrastam por todo lugar no mundo, que giram, esse farrapo, semidestruído pelos ratos, a dor de Tatiana, ela o vê, fica embaraçada, em todo lugar o sentimento, escorrega-se nessa gordura. Ela acreditava que era possívt;l, alternativamente, preencher e esva­ziar um tempo, encher e desencher, pois que ele ainda está pronto, sempre, para servir, ela ainda acredita nisto, sempre acredita, jamais ficará curada. " 55

S4 O deslumbramento, op. cit. ss Ibid.

SOL J:fEOilO 225

Os duplos~ se . multiplicam no espelho de Détruire, dit-elle e flutuam sobre o tema da destruição que, uma vez nomeado no corpo do texto, vem à tona para esclarecer o título e tornar inteligíveis todas as relações que o romance põe em cena. Elisabeth Alione, deprimida em conseqüência de um amor infeliz e da morte, ao nascer, de sua neta, repousa num hotel desolado, povoado de doen­tes. Ali encontra Stein e seu duplo Max Thor, dois judeus, eter­namente prestes a se tomar escritores: "com que força isso se impõe às vezes, não escrever".Yió Dois homens ligados por uma indizível pai.:xão, que se supõe ser homossexual, e que, precisamente, só con­segue se inscrever por intermédio de duas mulheres . Ele ama/ eles amam Alissa e são fascinados por Elisa. Alissa Thor descobre que seu marido é feliz por conhecer Elisa que seduz Stein: assim, ela própria deixa que o ·mesmo Stein se aproxime dela e a ame (o leitor é livre para compor díades nessà trama sugestiva). Ela fica atônita ao descobrir que Max Thor é feliz aqui, no universo caleidoscópico dos duplos - com Stein, sem dúvida por causa de Elisa? Mas ele afirma também que é por causa da própria Alissa? "Destruir, diz ela. •-sr Por mais que esteja habitada por essa destruição, Alissa mi· ra-se em Elisa para revelar, na ambigüidade da identificação e da decomposição, uma verdadeira loucura sob a aparência de jovem mulher viçosa: ''Sou alguém que tem medo - continua Alissa -medo de ser abandonada, medo do futuro, medo de amar, medo da violência da multidão medo do desconhecido, da fome, da miséria, da verddde. •.>S& '

Qual? A sua ou a de Elisa? "Destruir, diz ela." Entretanto, as duas mulheres se entendem. Alissa é porta-voz de Elisa . Ela repete seus propósitos, testemunha seu passado e profetiza seu fu­turo, no qual, aliás, só vê repetição e duplos, tanto mais que a es­tranheza de cada pessoa para consigo mesma faz com que cada um, com o tempo, se tome o seu próprio duplo e o seu próprio outro.

"Eiisabeth não responde .

-- Nos conhecíamos quando éramos crianças - diz ela. Nossas famílias eram amigas.

Y16 Cf. Margueríte Duras, Détruire dit-elle, Minuit, Paris, 1969, p. 46. 57 lbid. S8 lbid.

226 A DOENÇA DA DOit: D\11\S

Alissa repete baixinho: "Nos conhecíamos quando éramos crianças. Nossas familias

eram amigas.' Silêncio. - Se você o amasse, se o tivesse amado, uma vez, uma única

vez, na sua vida, você teria amado os outros - diz Alissa - Stein e Max Thor . ·

- Não compreendo. . . diz Elisabeth, mas . .. - Isso acontecerá em outros Jempos - diz Alissa mai&

tarde. Mas não ~erá nem você nem eles . Não preste atenção ao que digo .

- Stein diz que você é louca - diz Elisabeth. - Stein diz tudo."st As duas mulheres falain-se em eco, uma termina as palavras

da outra e a outra as denega, ao mesmo tempo que sabe que estas palavras dizem uma parte da sua verdade comum, de sua cumplici· dade.

Viria essa dualidade do fato d!e ser mulher: de partilhar de uma mesma plasticidade, dita histérica, pronta para tomar a sua imagem pela da outra ("Ela sente o que a outra sente"?)(~) Ou do fato de amar um mesmo homem dup,lo? De não ter objeto de amo• estável, de dissecar este o~jeto numa reverberação de reflexos incom­preensíveis, eixo algum sendo capaz de fixar e de acalmar uma paixão endêmica, talvez materna?

De fato, o homem sonha com ,.ela - com elas. Max Thor, apaixonado por sua mulher Alissa, mas não se esquecendo de que é o duplo de Stein, em sonho a chama de Elisa, enquanto Stein, ele mesmo, sonha e pronuncia Alissa. . . Elisa/ Alissa . . . A verdade é que elas ' 'se encontram, ambas, capturadas num espelho".

"Nós nos parecemos - diz Alissa: amaríamos Stein se fosse possivel amá-lo.

[ ... ] - Como você é bonita!, diz Elisabeth. - Somos mulheres, diz Alissa. Olhe . [ .. . ] - Amo e desejo você, diz Alissa.'"1

59 Jbid. (10 Jbíd. 61 lbid.

90L NE<JRO 227

Mesmo com a ajuda da homonímia, não é uma identificação o que se produz entre elas . Para além do momento fugaz do reco· nhecimento especular e bípnóide, abre-se vertiginosamente a impos­sibilidade de ser a outra . A hipnose (cuja fórmula seria: uma é a outra) é acompanhada pela dor de constatar que a fusão de seus corpos é impossível, que jamais elas serão a mãe e sua filha inse· parável: a filha de Elisabeth morreu, a filha é destruída ao nascer . O suficiente para descentrar cada uma das .protagonistas e aprofun­dar ainda mais sua identidade instável .

Quais são os ingredientes dessa mistura de hipnose e de pai­xão utópica?

Ciúmes, ódio contido, fascinação, desejo sexual pela rival e pelo seu homem: toda a gama se insinua nos comportamentos e nas palavras dessas criaturas lunáticas que vivem "um enorme pesar" e que se queixam sem dizê-lo, mas "como que cantanáo" .62

A violência dessas pulsões irreduzíveis às palavras é peneira­da, sobretudo, por uma moderação dos comportamentos como que já domados em si mesmos graç.as ao esforço de formalização , como numa escrita preexistente . Em conseqüência, o grito do ódio não ressoa em sua brutalidade selvagem . Ele é metamorfoseado em mú­ska, a qual (lembrando o sorriso da Virgem ou da Joconda) toma visível o saber de um· segredo ele próprio invisível, subterrâneo, ute­rino. e comunica à civilização uma dor civilizada, encantada mas sempre inquieta, que as palavras ultrapassam. Música ao mesmo tempo neutra e destruidora : "destroçando as árvores, fulminando os muro.s". estiolando a raiva, transformando-a em "sublime do­çura·" e em "riso absoluto".63

Seria a melancolia feminina saciada pelo reencontro com a outra mulher, desde que esta possa ser imaginada como a parceira privilegiada do homem? Ou então seria ela relançada pela outra mu· lher, talvez mesmo em razão da impossibilidade de encontrar- de satisfazer - esta mulher? Em todo caso, entre mulhereS esgota-se o ódio captado, engolido interiormente, lá onde jaz aprisionada a rival arcaica. Quando a depressão se exprime, ela se erotiza em destruição: violência desencadeada com a mãe, demolição graciosa com a amiga.

(12 lbid. 6l Ibid.

226 A DOENÇA DA DOit: D\11\S

Alissa repete baixinho: "Nos conhecíamos quando éramos crianças. Nossas familias

eram amigas.' Silêncio. - Se você o amasse, se o tivesse amado, uma vez, uma única

vez, na sua vida, você teria amado os outros - diz Alissa - Stein e Max Thor . ·

- Não compreendo. . . diz Elisabeth, mas . .. - Isso acontecerá em outros Jempos - diz Alissa mai&

tarde. Mas não ~erá nem você nem eles . Não preste atenção ao que digo .

- Stein diz que você é louca - diz Elisabeth. - Stein diz tudo."st As duas mulheres falain-se em eco, uma termina as palavras

da outra e a outra as denega, ao mesmo tempo que sabe que estas palavras dizem uma parte da sua verdade comum, de sua cumplici· dade.

Viria essa dualidade do fato d!e ser mulher: de partilhar de uma mesma plasticidade, dita histérica, pronta para tomar a sua imagem pela da outra ("Ela sente o que a outra sente"?)(~) Ou do fato de amar um mesmo homem dup,lo? De não ter objeto de amo• estável, de dissecar este o~jeto numa reverberação de reflexos incom­preensíveis, eixo algum sendo capaz de fixar e de acalmar uma paixão endêmica, talvez materna?

De fato, o homem sonha com ,.ela - com elas. Max Thor, apaixonado por sua mulher Alissa, mas não se esquecendo de que é o duplo de Stein, em sonho a chama de Elisa, enquanto Stein, ele mesmo, sonha e pronuncia Alissa. . . Elisa/ Alissa . . . A verdade é que elas ' 'se encontram, ambas, capturadas num espelho".

"Nós nos parecemos - diz Alissa: amaríamos Stein se fosse possivel amá-lo.

[ ... ] - Como você é bonita!, diz Elisabeth. - Somos mulheres, diz Alissa. Olhe . [ .. . ] - Amo e desejo você, diz Alissa.'"1

59 Jbid. (10 Jbíd. 61 lbid.

90L NE<JRO 227

Mesmo com a ajuda da homonímia, não é uma identificação o que se produz entre elas . Para além do momento fugaz do reco· nhecimento especular e bípnóide, abre-se vertiginosamente a impos­sibilidade de ser a outra . A hipnose (cuja fórmula seria: uma é a outra) é acompanhada pela dor de constatar que a fusão de seus corpos é impossível, que jamais elas serão a mãe e sua filha inse· parável: a filha de Elisabeth morreu, a filha é destruída ao nascer . O suficiente para descentrar cada uma das .protagonistas e aprofun­dar ainda mais sua identidade instável .

Quais são os ingredientes dessa mistura de hipnose e de pai­xão utópica?

Ciúmes, ódio contido, fascinação, desejo sexual pela rival e pelo seu homem: toda a gama se insinua nos comportamentos e nas palavras dessas criaturas lunáticas que vivem "um enorme pesar" e que se queixam sem dizê-lo, mas "como que cantanáo" .62

A violência dessas pulsões irreduzíveis às palavras é peneira­da, sobretudo, por uma moderação dos comportamentos como que já domados em si mesmos graç.as ao esforço de formalização , como numa escrita preexistente . Em conseqüência, o grito do ódio não ressoa em sua brutalidade selvagem . Ele é metamorfoseado em mú­ska, a qual (lembrando o sorriso da Virgem ou da Joconda) toma visível o saber de um· segredo ele próprio invisível, subterrâneo, ute­rino. e comunica à civilização uma dor civilizada, encantada mas sempre inquieta, que as palavras ultrapassam. Música ao mesmo tempo neutra e destruidora : "destroçando as árvores, fulminando os muro.s". estiolando a raiva, transformando-a em "sublime do­çura·" e em "riso absoluto".63

Seria a melancolia feminina saciada pelo reencontro com a outra mulher, desde que esta possa ser imaginada como a parceira privilegiada do homem? Ou então seria ela relançada pela outra mu· lher, talvez mesmo em razão da impossibilidade de encontrar- de satisfazer - esta mulher? Em todo caso, entre mulhereS esgota-se o ódio captado, engolido interiormente, lá onde jaz aprisionada a rival arcaica. Quando a depressão se exprime, ela se erotiza em destruição: violência desencadeada com a mãe, demolição graciosa com a amiga.

(12 lbid. 6l Ibid.

228 A DOENÇA DA DOR: Dt11lA.S

A mãe dominadora, arruinada e louca instala-se poderosamente em Une barrage contre le Pacifique e determina a sexualidade de seus filhos: ''Uma desesperada da própria esperança.'164 "O doutor atribuía a origem de suas crises ao desmoronamento das barragens. Talvez ele se enganasse. Tanto ressentimento, ano a ano, dia a dia. Não havia somente uma causa. Havia mil, incluindo o desmorona­mento das barragens, a injustiça do mundo, o espetáculo de seus filhos que se banhavam no rio [ . .. ] morrer disto, morrer de in f e. licidade. ' 165 Esgotada pelo "azar", exasperada pela sexualidade gra· tuita de sua filha, esta mãe é atormentada por crises. "Ela ainda batia, como que sob o impulso de uma necessidade que não a lar­gava. Suzanne aos seus pés, meio nuà em seu vestido rasgado, cho­rava [ . .. ]E se eu quiser matá-la? Se me agrada matá-la?",66 diz ela a propósito de sua filha. Tomada por essa paixão, Suzanne se dá sem amar ninguém. Exceto, talvez, seu irmão Joseph. E esse desejo incestuoso que o irmão partilha e realiza a seu modo, furioso e quase delinqüente (" [ .. . ] eu dormia com uma irma quando dor­mia com ela"),lil institui o tema favorito dos romances que se segui­rão: a impossibilidade do amor cercado pelos duplos ...

Após a implosão do ódio matemo na demência da bonza louca (0 Vice-cônsul), a destruição mãe/filha em O Amante impõe a convicção de que o arrebatamento da mãe contra a filha é o "acon­tecimento" que a filha odiosa e amorosa de sua genitora espia, sente e restitui com deslumbrame~to: ''Nas crises, minha mãe se joga so­bre mim, tràncà-me no seu quarto, me dá socos, me esbofeteia, me desnuda, aproxima-se de mim, cheira meu corpo, minha roupa ín· timiz, diz que encontra o perfume do homem chinês . .. "68

Assim o duplo inapreensível revela a insistência de um objeto de amor arcaico, indomável e imaginário que, por sua dominação e por seu esquivamente, por sua proximidade sororal ou maternal, mas também por sua exterioridade inexpugnável e, conseqüente­mente, odiosa e odiável, me condena à morte. Todas as figuras do amor convergem para esse objeto auto-sensual e devastador, mesmo

64 Un· barrage contre le Pacifique, op. Cít., p. 142. 65 Ibid. 66 Ibid. 67 lbid. 68 O amante, op. cit.

SOL NEOR.Q 229

se, constantemente, elas sejam relançadas pelo pivô de uma pre· sença masculina. Em geral central, o desejo do homem, entretanto, é sempre desencadeado e arrebatado pela passividade melindrada e, porém, sorrateiramente poderosa das mulheres.

Estrangeiros, todos esses homens - o chinês em O amante, o japonês em Hiroshima, e toda a série de judeus ou de diplomatas desarraigados. . . Sensuais e abstratos ao mesmo tempo, eles são corroídos por um medo que sua paixão jamais consegue dominar. Este medo apaixonado é como uma aresta, eixo ou ~lançamento dos jogos de espelhos entre mulheres que ostentam a carne da dor, da qual os homens são o esqueleto.

Do outro lado do espelho ·

Uma insaciável insatisfação, contudo extasiada, abre-se no espaço assim construído que separa as duas mulheres. Grosseira­mente, pode-se chamá-la de homossexualidade feminina . Em Duras, contudo, trata-se muito mais de uma eterna busca nostálgica do mesmo como outro, do outro como mesnro, na panóplia da miragem narcísica ou de uma hipnose que parece ser inevitável para a nar­radora. Ela conta o subsolo psíquico anterior a nossas conquistas do outro sexo, que continua subjacente aos eventuais e arriscados encontros dos homegs e das mulheres . Estamos habituados a não prestar atenção a esse espaço quase uterino .

E não estamos errados . Pois, nessa cripta de renexos, as iden­tidades, os laços e os sentimentos se destroem . "Destruir, diz ela." Entretanto, a sociedade d~s mulheres não é nem necessariamente selvagem, nem simplesmente destruidora. Da inconsistência ou da impossibilidade dos laços forçosamente eróticos, ela constitui uma aura imaginária de cumplicidade, que pode se revelar ligeiramente dolorosa e necessariamente enlutada por arruinar em sua fluidez narcísica todo objeto sexual, todo i_deal sublime. Os valores não se mantêm diante dessa ''ironia da comunidade" - assim Hegel chamava as mulheres - cuja destrutividade, contudo, não é forço· samente engraçada.

A dor manifesta o seu microcosmo pela reverberação dos per· sonagens. Eles se articulam em duplos, como em espelhos que au· mentam as suas melancoH~s até a violência e o delírio. Essa drama· turgia da reduplicação lembra a identidade instável da criança, que, no espelho, só encontra a imagem de sua mãe como réplica ou como eco (tranqüilizador ou aterrador) de si mesma. Como um alter ego

228 A DOENÇA DA DOR: Dt11lA.S

A mãe dominadora, arruinada e louca instala-se poderosamente em Une barrage contre le Pacifique e determina a sexualidade de seus filhos: ''Uma desesperada da própria esperança.'164 "O doutor atribuía a origem de suas crises ao desmoronamento das barragens. Talvez ele se enganasse. Tanto ressentimento, ano a ano, dia a dia. Não havia somente uma causa. Havia mil, incluindo o desmorona­mento das barragens, a injustiça do mundo, o espetáculo de seus filhos que se banhavam no rio [ . .. ] morrer disto, morrer de in f e. licidade. ' 165 Esgotada pelo "azar", exasperada pela sexualidade gra· tuita de sua filha, esta mãe é atormentada por crises. "Ela ainda batia, como que sob o impulso de uma necessidade que não a lar­gava. Suzanne aos seus pés, meio nuà em seu vestido rasgado, cho­rava [ . .. ]E se eu quiser matá-la? Se me agrada matá-la?",66 diz ela a propósito de sua filha. Tomada por essa paixão, Suzanne se dá sem amar ninguém. Exceto, talvez, seu irmão Joseph. E esse desejo incestuoso que o irmão partilha e realiza a seu modo, furioso e quase delinqüente (" [ .. . ] eu dormia com uma irma quando dor­mia com ela"),lil institui o tema favorito dos romances que se segui­rão: a impossibilidade do amor cercado pelos duplos ...

Após a implosão do ódio matemo na demência da bonza louca (0 Vice-cônsul), a destruição mãe/filha em O Amante impõe a convicção de que o arrebatamento da mãe contra a filha é o "acon­tecimento" que a filha odiosa e amorosa de sua genitora espia, sente e restitui com deslumbrame~to: ''Nas crises, minha mãe se joga so­bre mim, tràncà-me no seu quarto, me dá socos, me esbofeteia, me desnuda, aproxima-se de mim, cheira meu corpo, minha roupa ín· timiz, diz que encontra o perfume do homem chinês . .. "68

Assim o duplo inapreensível revela a insistência de um objeto de amor arcaico, indomável e imaginário que, por sua dominação e por seu esquivamente, por sua proximidade sororal ou maternal, mas também por sua exterioridade inexpugnável e, conseqüente­mente, odiosa e odiável, me condena à morte. Todas as figuras do amor convergem para esse objeto auto-sensual e devastador, mesmo

64 Un· barrage contre le Pacifique, op. Cít., p. 142. 65 Ibid. 66 Ibid. 67 lbid. 68 O amante, op. cit.

SOL NEOR.Q 229

se, constantemente, elas sejam relançadas pelo pivô de uma pre· sença masculina. Em geral central, o desejo do homem, entretanto, é sempre desencadeado e arrebatado pela passividade melindrada e, porém, sorrateiramente poderosa das mulheres.

Estrangeiros, todos esses homens - o chinês em O amante, o japonês em Hiroshima, e toda a série de judeus ou de diplomatas desarraigados. . . Sensuais e abstratos ao mesmo tempo, eles são corroídos por um medo que sua paixão jamais consegue dominar. Este medo apaixonado é como uma aresta, eixo ou ~lançamento dos jogos de espelhos entre mulheres que ostentam a carne da dor, da qual os homens são o esqueleto.

Do outro lado do espelho ·

Uma insaciável insatisfação, contudo extasiada, abre-se no espaço assim construído que separa as duas mulheres. Grosseira­mente, pode-se chamá-la de homossexualidade feminina . Em Duras, contudo, trata-se muito mais de uma eterna busca nostálgica do mesmo como outro, do outro como mesnro, na panóplia da miragem narcísica ou de uma hipnose que parece ser inevitável para a nar­radora. Ela conta o subsolo psíquico anterior a nossas conquistas do outro sexo, que continua subjacente aos eventuais e arriscados encontros dos homegs e das mulheres . Estamos habituados a não prestar atenção a esse espaço quase uterino .

E não estamos errados . Pois, nessa cripta de renexos, as iden­tidades, os laços e os sentimentos se destroem . "Destruir, diz ela." Entretanto, a sociedade d~s mulheres não é nem necessariamente selvagem, nem simplesmente destruidora. Da inconsistência ou da impossibilidade dos laços forçosamente eróticos, ela constitui uma aura imaginária de cumplicidade, que pode se revelar ligeiramente dolorosa e necessariamente enlutada por arruinar em sua fluidez narcísica todo objeto sexual, todo i_deal sublime. Os valores não se mantêm diante dessa ''ironia da comunidade" - assim Hegel chamava as mulheres - cuja destrutividade, contudo, não é forço· samente engraçada.

A dor manifesta o seu microcosmo pela reverberação dos per· sonagens. Eles se articulam em duplos, como em espelhos que au· mentam as suas melancoH~s até a violência e o delírio. Essa drama· turgia da reduplicação lembra a identidade instável da criança, que, no espelho, só encontra a imagem de sua mãe como réplica ou como eco (tranqüilizador ou aterrador) de si mesma. Como um alter ego

130 A DOENÇA DA DOR; OUliS

coagulado na gama das intensidades pulsionais que a agitam, solto diante dela, mas nunca fixo e muito pçrto de invadi-la por um retor­no hostil, como bumerangue . A identidade, no sentido de uma ima­gem estável e sólida de si onde se constituirá a autonomia do indi­víduo, só ocorre no fim desse processo, quando a reverberação nar­císíca termina numa assunção jubilatóría que é a obra do Terceiro.

Mesmo os mais seguros de nós sabem, contudo, que uma iden­tidade firme continua sendo uma ficção. A dor durassiana evita precisamente e com palavras vazias esse luto impossível que, se fosse realizado, teria nos desligado de nosso revestimento mórbido e nos instalado como sujeitos independentes e unificados. Assim, ela se apodera de nós e nos arrasta para os confins arriscados de nossas vidas psíquicas .

Moderno e p6s-moderno

Literatura de nossas doenças, ela acompanha os infortúnios cer­tamente desencadeados e acentuados pelo mundo moderno, mas que demonstram ser essenciais, trans-históricos.

Literatura dos limites, ela o é também porque manifesta os limites do nomeável. Os discursos elíticos dos personagens, a obses­siva evocação de um ''nada" que resumiria a doença da dor, desig­nam um naufrágio das palavras diante do afeto não-nomeável. Esse silêncio, nós o dissemos, lembra o "nada" que o olho valeriano via num fomo incandescente no meio de uma desordem monstruosa . Duras não o organiza à maneira de Mallanné, que procurava a mú­sica das palavras nem ao modo de Beckett, tornando requintada uma sintaxe que' estaca ou avança aos sobressaltos, desviando a fuga para diante da narração . A reverberação dos . personagens e o silêncio inscrito como tal, a insistência sobre o "nada" a dizer como última manifestação da dor, conduzem Duras a uma brancura do sentido . Associados a uma inabilidade retórica, eles . constituem um universo de mal-estar perturbador e contagioso .

. .Historicamente e psicologicamente moderna, essa escrita en­contra-se hoje confrontada com o desafio pós-moderno . Doravante, trata-se de ver na "doença da dor" somente um momento da sSntese narrativa capaz de carregar, no seu turbilhão complexo, tanto me­ditações filosóficas como defesas eróticas ou prazeres que divertem. O pós-moderno está mais próximo da comédia humana do que do mal-estar abissal . O inferno como tal, explorado a fundo na litera· tura do pÕ&-guerra, não perdeu, a(inal, a ·sua inacessibilidade in-

SOL NEOaO 231

femal para se tornar quinhão cotidiano, transparente, quase banal - um "nada" - como nossas "verdades" doravante visualizadas, televisadas e, em suma, não tão secretas assim ... ? O desejo de comédia hoje vem recobrir - sem com isto ignorá-la - a preO.. cupação com essa verdade sem tragédia, com essa melancolia sem purgatório. Lembremo-nos de Marivaux e de Crébillon .

Um novo mundo amoroso quer vir à tona no eterno retomo dos ciclos históricos e mentais. Ao inverno da preocupação sucede­se o artifício da aparência; à brancura do dissabor - o divertimento dilacerante da paródia . E vice-versa. Em suma, a verdade faz tão bem o seu caminho nas reverberações dos divertimentos factícios que pode se afirmar nos dolorosos jogos de espelhos. Afinal, o ma­ravilhamento da vida psíquica não se mantém por essas alternâncias de defesas e de quedas, de sorrisos e de lágrimas, de sóis e de melancolias?

130 A DOENÇA DA DOR; OUliS

coagulado na gama das intensidades pulsionais que a agitam, solto diante dela, mas nunca fixo e muito pçrto de invadi-la por um retor­no hostil, como bumerangue . A identidade, no sentido de uma ima­gem estável e sólida de si onde se constituirá a autonomia do indi­víduo, só ocorre no fim desse processo, quando a reverberação nar­císíca termina numa assunção jubilatóría que é a obra do Terceiro.

Mesmo os mais seguros de nós sabem, contudo, que uma iden­tidade firme continua sendo uma ficção. A dor durassiana evita precisamente e com palavras vazias esse luto impossível que, se fosse realizado, teria nos desligado de nosso revestimento mórbido e nos instalado como sujeitos independentes e unificados. Assim, ela se apodera de nós e nos arrasta para os confins arriscados de nossas vidas psíquicas .

Moderno e p6s-moderno

Literatura de nossas doenças, ela acompanha os infortúnios cer­tamente desencadeados e acentuados pelo mundo moderno, mas que demonstram ser essenciais, trans-históricos.

Literatura dos limites, ela o é também porque manifesta os limites do nomeável. Os discursos elíticos dos personagens, a obses­siva evocação de um ''nada" que resumiria a doença da dor, desig­nam um naufrágio das palavras diante do afeto não-nomeável. Esse silêncio, nós o dissemos, lembra o "nada" que o olho valeriano via num fomo incandescente no meio de uma desordem monstruosa . Duras não o organiza à maneira de Mallanné, que procurava a mú­sica das palavras nem ao modo de Beckett, tornando requintada uma sintaxe que' estaca ou avança aos sobressaltos, desviando a fuga para diante da narração . A reverberação dos . personagens e o silêncio inscrito como tal, a insistência sobre o "nada" a dizer como última manifestação da dor, conduzem Duras a uma brancura do sentido . Associados a uma inabilidade retórica, eles . constituem um universo de mal-estar perturbador e contagioso .

. .Historicamente e psicologicamente moderna, essa escrita en­contra-se hoje confrontada com o desafio pós-moderno . Doravante, trata-se de ver na "doença da dor" somente um momento da sSntese narrativa capaz de carregar, no seu turbilhão complexo, tanto me­ditações filosóficas como defesas eróticas ou prazeres que divertem. O pós-moderno está mais próximo da comédia humana do que do mal-estar abissal . O inferno como tal, explorado a fundo na litera· tura do pÕ&-guerra, não perdeu, a(inal, a ·sua inacessibilidade in-

SOL NEOaO 231

femal para se tornar quinhão cotidiano, transparente, quase banal - um "nada" - como nossas "verdades" doravante visualizadas, televisadas e, em suma, não tão secretas assim ... ? O desejo de comédia hoje vem recobrir - sem com isto ignorá-la - a preO.. cupação com essa verdade sem tragédia, com essa melancolia sem purgatório. Lembremo-nos de Marivaux e de Crébillon .

Um novo mundo amoroso quer vir à tona no eterno retomo dos ciclos históricos e mentais. Ao inverno da preocupação sucede­se o artifício da aparência; à brancura do dissabor - o divertimento dilacerante da paródia . E vice-versa. Em suma, a verdade faz tão bem o seu caminho nas reverberações dos divertimentos factícios que pode se afirmar nos dolorosos jogos de espelhos. Afinal, o ma­ravilhamento da vida psíquica não se mantém por essas alternâncias de defesas e de quedas, de sorrisos e de lágrimas, de sóis e de melancolias?

N DEPRESSÃO E MELANCOLIA

2fl EDIÇÃO

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SOL NEGRO Depressão e melancolia

A depressão é, mais uma vez, o mal do sé­culo. Nada de tão espantoso nisso. Afinal, pro­va a semióloga Julia Kristeva, o sublime tem suas raízes na melancolia. Só os depressivos nos mos­tram a face verdadeira e às vezes insuportável de nossos valores.

Buscando o cerne melancólico de H o Ibein, Nerval, Dostoievski e Marguerite Duras, Julia Kristeva nos oferece uma obra densa e tão enig­mática e bela quanto a dos exemplos por ela des­vendados. E uma chave para a compreensão dos caminhos da arte atual.

"------~tú_./ __ ____.