Julio Jeha- Literatura Criminal

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89 LITERATURA CRIMINAL UMA NARRATIVA DA VIOLÊNCIA URBANA Julio Jeha (UFMG) 1 A literatura criminal dos Estados Unidos, em sua forma hard-boiled, atingiu o seu ápice com os romances de Dashiell Hammett, Paul Cain e Raoul Whitfield, que, nas décadas de 1920 e 1930, descreveram, num estilo intenso e realista, um mundo brutal e hipócrita, habitado por personagens que traem umas as outras antes de desaparecerem. Essas narrativas densas, caóticas, ao mesmo tempo selvagens e refinadas, foram lançadas no papel com uma urgência e um ritmo que não mais se repetiria nesse gênero. Marcadas por uma violência exacerbada e escritas em linguagem quase telegráfica, elas colocam em cena o paradoxo tensional entre modernização e embrutecimento que dilacerava a sociedade norte-americana da época. Correntes tão poderosas quanto contraditórias agitaram os Estados Unidos dos anos 1920. De um lado, um dinamismo inigualável produziu a emancipação da mulher americana, os arranha-céus de Nova York e Chicago, a civilização do automóvel, os milhares de novos milionários e multimilionários, a mecanização do trabalho e da vida cotidiana, os feitos de Charles Lindbergh ou o sucesso do star system hollywoodiano 2 . A essa vitalidade opunham-se a inquietação dos soldados de volta da guerra, a violência das lutas sindicais, a histeria anticomunista, os distúrbios raciais, a corrupção generalizada na política e, símbolo tanto quanto motor de muitos dos desvios da época, a 18ª Emenda Constitucional, que impedia a produção, a venda ou o transporte – mas não a compra nem o consumo – de bebida alcoólica em território norte-americano. Essa medida absurda teve consequências funestas: o desenvolvimento veloz do crime organizado e a sua imbricação com a política e a economia. Mais grave ainda, ela levou a população a burlar e solapar suas próprias leis. Um Estado que promulga uma norma ao mesmo tempo em que encoraja a população a desrespeitá-la abala a noção de lei assim como a sua

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89LITERATURA CRIMINALUMA NARRATIVA DA VIOLNCIA URBANAJulio Jeha (UFMG) 1AliteraturacriminaldosEstadosUnidos,emsuaformahard-boiled, atingiu o seu pice com os romances de Dashiell Hammett, Paul Cain e Raoul Whit!eld, que, nas dcadas de 1920 e 1930, descreveram, num estilo intenso e realista, um mundo brutal e hipcrita, habitado por personagens que traem umasasoutrasantesdedesaparecerem.Essasnarrativasdensas,caticas, aomesmotemposelvagensere!nadas,foramlanadasnopapelcomuma urgnciaeumritmoquenomaisserepetirianessegnero.Marcadaspor umaviolnciaexacerbadaeescritasemlinguagemquasetelegr!ca,elas colocam em cena o paradoxo tensional entre modernizao e embrutecimento que dilacerava a sociedade norte-americana da poca.CorrentestopoderosasquantocontraditriasagitaramosEstados Unidosdosanos1920.Deumlado,umdinamismoinigualvelproduziua emancipao da mulher americana, os arranha-cus de Nova York e Chicago, a civilizao do automvel, os milhares de novos milionrios e multimilionrios, a mecanizao do trabalho e da vida cotidiana, os feitos de Charles Lindbergh ou o sucesso do star system hollywoodiano2. A essa vitalidade opunham-se a inquietao dos soldados de volta da guerra, a violncia das lutas sindicais, a histeria anticomunista, os distrbios raciais, a corrupo generalizada na poltica e, smbolo tanto quanto motor de muitos dos desvios da poca, a 18 Emenda Constitucional, que impedia a produo, a venda ou o transporte mas no a compra nem o consumo de bebida alcolica em territrio norte-americano. Essamedidaabsurdateveconsequnciasfunestas:odesenvolvimentoveloz docrimeorganizadoeasuaimbricaocomapolticaeaeconomia.Mais grave ainda, ela levou a populao a burlar e solapar suas prprias leis. UmEstadoquepromulgaumanormaaomesmotempoemque encoraja a populao a desrespeit-la abala a noo de lei assim como a sua 90prpriaautoridade:foiaidadedahipocrisiaedadesordem.Ahipocrisiase encontravaportodaparte,nosdiscursostantodepolticosvendidoscomo nos de gngsteres que os compravam. O maior deles, Al Capone, que gastava fortunas para eleger os seus candidatos prefeitura de Chicago, no hesitava emfustigarahipocrisiaqueassolavaosEstadosUnidos:Corrupouma palavra comum na vida dos americanos hoje em dia. uma lei onde nenhuma outraleiobedecida.Elaestsolapandoestepas.Podem-secontarnos dedos os legisladores honestos de cada cidade. (...) Virtude, honra, verdade e lei desapareceram da nossa vida (VANDERBILT JR., 1931)3.A desordem era representada pelas foras criminosas que alcanavam o topo da sociedade, atingindo at mesmo suas guras mais notveis, como CharlesLindbergh.AofazeroprimeirovoosolodeNovaYorkaParissem escalas,Lindberghtornou-seumherinacional,masnemissoimpediu quefossevtimadocrimemaismiditicodapocadaProibio:oraptoe assassinato do seu beb em 1932. A comoo provocada por esse incidente logotranspareceunostextosdapoca.Algunsromances,comoSanturio, deWilliamFaulkner,quenarraosequestrodeumajovemherdeiraporum gngster, adquiriram outra dimenso, conforme a crtica de Wyndham Lewis (1987, p. 50):Mas a essncia do romance (...) est em buscar no pes-simismogeradoemtodoamericanointeligentepelo (...) extraordinrio esfacelamento da lei provocado pela Proibio,culminandocomoclebrecasodobeb Lindbergh, que deu a oportunidade a Popeye e sua prole(osviolentospequenosCsaresdesarjetado baixo-mundo)4.Poisnoporacasoqueogngster de William Faulkner seja o mais insignicante e incapaz dos homens, iado s alturas pela expanso do caos no corao da sociedade (...).OcasoLindberghcristaliza,paraopblico,aimpressodequea sociedade est naufragando, uma viso apocalptica transmitida pelas diversas 91mdias,queexploravamaimagemdeumuniversosedesintegrandosobo impacto esmagador de um tsunami de crimes e corrupo5.O editor da Black Mask, Joseph T. Shaw, se disps a usar a revista para expor a ligao entre o gangsterismo e a poltica: Acreditamos estar prestando um servio pblico ao publicar as histrias realistas, is realidade e muito esclarecedoras de autores como Hammett, Whiteld e [Frederik] Nebel sobre a criminalidade moderna (MCSHANE, 1978, p. 46). A co criminal nascente se alimenta desse clima de inquietao, amplicado pela imprensa com suas manchetesescandalosas,suasreportagenschocantesesuaperspectivaque setornaamesmadasnotciaspoliciaisemdetrimentodocontextoouda explicao possvel. Por isso, compreende-se melhor a potica do gnero se o confrontarmos com as representaes da criminalidade, o grande espetculo da dcada de 1920.Um novo esporte de arenaImpulsionado pela Proibio, o crime organizado se torna um problema decostaacostanosEstadosUnidos.Doisfatoscontriburamparaisso: primeiro, o contrabando de bebidas implicava quadrilhas com mais alcance do que aquelas da criminalidade amadora de at ento, com territrios limitados; segundo, a integrao em rede nacional de jornais, nos anos 1920, apresentava as atividades criminais como um !agelo que atingia o pas inteiro (POWERS, 1975).Aintegraonacionalsedavaagorapelacontravenoeocupavaa primeira pgina no s dos tabloides, mas tambm da grande imprensa.A concorrncia entre gangues pelo controle da venda ilegal de bebidas (e outros artigos proibidos) aparece nos jornais como uma guerra, elevada a um nvel mitolgico. O gngster se torna uma gura lendria, no mesmo nvel que o aviador, o capito de indstria ou a estrela de cinema. O impacto dessa mitologia sobre o pblico se liga sua visualizao, iniciada com a exibio, na imprensa, das primeiras fotograas de gngsteres mortos. At o massacre doDiadeSoValentim,em1929,quandoumconfrontodequadrilhasviti-92mou sete dos seus membros, a imprensa ocultara os cadveres nas imagens comumX,masesseepisdiopediaumaestratgiadeacordocomosno-vos tempos. As fotograas horrorizaram e marcaram o imaginrio dos norte--americanos por muito tempo. Os editores se deram conta do poder que uma imagem de cadver podia ter para xar, na mente do pblico, a lio de que o submundo tinha a sociedade em suas garras, como escreveu uma publicao da poca, X marks the spot: Chicago gang wars in pictures (1930, p. 1)6.Se os editores justicam a sua posio com um argumento moral (as fotograas levariam o pblico a compreender a gravidade do gangsterismo), elesacentuam,aomesmotempo,aligaoentreavisualizaodocrimee asuamutaoemumanarrativa,adacivilizaoquecainasgarrasde gngsteres. Eles escondem essa transgurao apocalptica atrs de supostas intenes pedaggicas, mas, na verdade, graticam um voyeurismo de massa ao tornar a morte violenta provocada pela guerra das gangues um espetculo nacional. Georges Bataille (1930, p. 438) acertava ao comentar a nova poltica editorial de publicao das fotograas dos cadveres:Essenovocostume(...)representacertamenteuma transformao moral considervel na atitude do pbli-co para com a morte violenta. Parece que o desejo de ver acaba vencendo a repulsa ou o pavor. Assim, com apublicidadeaumentandotantoquantopossvel,as guerrasdegngsteresamericanospoderiamexercer afunosocialconhecidacomoosjogosdocircona Roma antiga (e as corridas na Espanha atual).AtransformaomoraldequefalaBataille,marcadapeloincioda mediatizao do crime organizado pelos meios tecnolgicos, est na gnese da co hard-boiled. Aimagemdaguerradeganguescomoumjogodearenamoderno aparece nessa literatura desde o seu incio. No romance que Raoul Whiteld escreveu sob o pseudnimo Temple Field, Killers carnival (1932), a cidade se tornaumaarenadeaoondeosassassinosseenfrentamsoboolharda 93imprensa sensacionalista. Ao m de uma longa srie de acertos de contas, o livro termina com o espetculo do protagonista, Van Cleve, e sua companheira, Dale Byrons, entregues aos jornais:Elenoconseguiapararaimprensa.Elesapareciam espetacularmenteemmanchetes,emfotograas,em histrias sentimentais. Todos os dias. (...) Ento chegou o dia em que se tornaram notcia de segunda pgina. Ento dois homens e uma mulher foram metralhados contraumaparededetijolospertodocaisdeEast Side.VanCleveeDaleByronsforamenterradosna pgina20.Outraspessoasestavamnaarenadeao; outras pessoas tinham sido jogadas imprensa. (FIELD [WHITFIELD], 1932, p. 274).Essatendnciaaovoyeurismoperpassaacohard-boiled.A representaodaviolnciaalisempreambguaepareceresponderaum desejodopblico.oquesugeremtantoascapasdasrevistasbaratas(as pulp magazines), que, como outros meios do gnero no sculo 20, atraem o leitorcomilustraesviolentaseerticas,quantoasprpriasnarrativas.Se o romance de enigma, ao focar aquilo que o crime oculta, apaga a violncia grcacomumdiscursosobremotivo,oportunidadeemeio,otextohard-boiled satisfaz, com o auxlio de detalhes hiper-realistas, o desejo de ver do leitorvoyeur.Pode-sedizer,assim,que,emgeral,noromancedeenigma,o cadver pretexto para a produo de uma narrativa, ao passo que na co hard-boiled, a narrativa pretexto para a produo de cadveres (TADI, 2006, p. 71). Aqui, a morte exibida logo no incio, por vezes como um ato violento e como uma presena fsica e crua. Encontra-se,aolongodahistriadaliteraturahard-boiled,o voyeurismo mrbido indicado por Bataille, uma vontade de enquadrar a morte em close-up, de revelar o cadver sob o X, restituindo-lhe sua materialidade de corpo dilacerado pela violncia. Note-se, tambm, que a imprensa, como os primeiros romances do gnero, parece resistir a toda tentao de interpretar, 94ao colocar em cena, de forma espetacular, a criminalidade. A violncia mais chocante quando permanece enigmtica. Como est escrito em X marks the spot sobre Al Capone: EstelivroexaminaoreiAldeumpontodevista puramente objetivo. O que se passa sob o seu chapu, ousobochapudeoutrosdasuaespcie,um mistrioprofundoatondedizrespeitoaestelivro. E,comoasdeclaraesdeCaponeforampoucase curtas,elasserodepoucautilidadepararevelaros seusprocessosmentais.(...)Assim,estelivrolevar seusleitorespelocaminhotomadoporCaponepara atingir a sua posio atual. Ele lhes mostrar O Qu e Como e Quando e Onde, mas no Por Que. Essepontodevistapuramenteobjetivovaiorientaraperspectiva tanto da imprensa quanto a dessa literatura. Tal estratgia implica uma viso de mundo em que o crime , sempre, misterioso, porque ningum sabe o que se passa sob o chapu dos criminosos e porque o mundo que torna possvel a sua ascenso e os seus golpes parece negar toda lgica. Acoberturaneutra,espetaculare,porvezes,apocalpticadaguerra das gangues na imprensa norte-americana da dcada de 1920 reaparece na obra dos autores que dominaram o gnero desde os seus princpios: Dashiell Hammett, Raoul Whit!eld e Paul Cain. Mas, alm da sua projeo no universo daProibio,elacontinuariaafundarapoticada!cohard-boiled:um cortedecenasqueprivilegiamomentosdecon"itoviolento,umatipologia depersonagensqueapresentaoshabitantesdaselvaurbanacomoseres pulsionais, primitivos e predatrios, e um ponto de vista narrativo que exprime o divrcio entre a conscincia individual e o mundo (TADI, 2006, p. 72).95Traio, violncia e velocidade Osprimeirosromanceshard-boiledquasepodemserde!nidosou circunscritos pela explorao da violncia. O combate fsico, o assassinato, o acerto de contas so as cenas primrias dessa !co. Elas constituem a mo-tivao primeira dos seus enredos e da sua esttica: nelas que a escrita dos autoresatingesuaintensidademxima.Emgeral,elasindicamummundo imprevisvel, cujos paradoxos, tenses, con"itos e traies se concretizam na violncia brutal. Tal como a reviravolta das tragdias, a cena de violncia in-vertesubitamenteasrelaesentreaspersonagens,sugerindoadestruio de um lao social que, de qualquer maneira, nunca slido. Se no romance realistaaviolnciaapenasumaformamarginalderelaoentreosindiv-duos, na !co hard-boiled ela funda e, no mesmo movimento, desintegra as relaes humanas. Parlortrick,umcontoquePaulCainescreveuparaarevistaBlack Mask em 1932, exempli!ca o ttulo acima: em trs cenas narradas em apenas quatropginas,cincopersonagenscometemousofremdoisassassinatose umespancamento.Acadacena,osistemadealianasou,melhordizendo, detraies,vistoqueospactosexistemapenasparaexcluirumterceiroe sedesintegramemseguida,viradepontacabea.Nocentrodessejogode permutas e eliminao esto o sexo e o poder: uma mulher sedutora e a luta pelo controle de uma rede de contrabando. Nesse mundo, as palavras nada valem; todos mentem, a traio est por toda parte e as diferenas se resolvem com assassinatos.Almdatraio,segundoDashiellHammett,aestticahard-boiled se caracteriza pelo ritmo da narrativa, pela velocidade dos eventos narrados. NumdiscursoparaoThirdAmericanWritersCongressem1939,Hammett comentou que o trabalho do romancista contemporneo pegar pedaos da vida e arranj-los no papel. E, quanto mais direta a sua passagem da rua para opapel,maisvvidoselessemostraro(DOOLEY,1984,p.75).Oromance precisa de ritmo, de acordo com ele, no para entulhar a pgina, mas para dar 96a impresso de que a narrativa contempornea, que os eventos acontecem aqui e agora, para dar ao leitor uma sensao de imediatismo.Atransposiodiretadepedaosdavidaparaopapelrelembraa ontologiadanarrativajornalstica,fundada,elatambm,nailusodeum imediatismo,deumapagamentodaduraoqueseparaaaodoseu relato.NaobradeHammett,oacontecimentopareceexplodirnapgina, aquieagora,descontnuo,semcomeonemm.Suaobraculminaem cenas de violncia bruta que revelam um mundo sem lgica, opaco, que no foiarranjadopeloolharemretrospectodonarrador.Emgeral,essaviso desordenadasejusticapelapercepodeformadadoprotagonista,como quandoelelevaumgolpenacabeaecainabaadeSanFrancisco(Tenth clew) ou se embebeda com ludano e sonha com assassinatos (Red harvest). Qualquer que seja a justicativa na histria narrada, o texto de Hammett existe apenas para esses momentos que concretizam uma forma de retorno ao caos, no como apocalipse, mas como jbilo. As personagens e as coisas parecem sedissolvernumaatividadeintensa;daanfasenosverbosemdetrimento dos adjetivos e advrbios e at mesmo dos substantivos. Torna-se impossvel identicar os objetos; extinguem-se os pontos de referncia espaciais; existem apenas os acontecimentos, assombrados pelo espectro da violncia.Na esteira de Hammett, vrios autores zeram experimentos com uma escrita baseada em verbos, entrecortada, num ritmo staccato, sugerindo que tudoacontecerpidodemaisparaseranotadodeoutramaneira.Noconto dePaulCain,Murderinblue,oprotagonista,meiodesfalecidopelogolpe que levou na cabea, assiste a uma luta entre dois gngsteres: Doolin estava deitadodecostaseoquartorodavasuavolta.Maistarde,aolembrar-sedoqueaconteceraemseguida,eracomopedaosdelmesseparados pelaescurido(CAIN,[1933],p.90).Esseefeitoestroboscpico,justicado aquipeloestadosemicomatosodoprotagonista,marcatambmaprosa deWhiteld.EmGreenice,de1930,ascenasdelutaparecemsequncias curtas, sem continuidade, para formar uma narrativa com sintaxe no mnimo abrupta. As passagens monossilbicas, entrecortadas por travesses, parecem 97ilustraroprincpiodeHammett,dequeoautorcontemporneotemde mostrar o que est acontecendo aqui e agora. O acmulo de verbos de ao fazosacontecimentosseentrechocarem,apagandoaspersonagens.Esse desequilbrio desvela um mundo que pode, a qualquer momento, passar da ordem ao caos.Dessapossibilidadeiminentedeesboroamentosocialvemoritmo frentico dos romances hard-boiled escritos entre 1920 e 1930. O nico livro de Paul Cain, Fast one, cujo ttulo pode signi!car tanto golpe rpido quanto traio, conta a tentativa de um gngster misterioso, Gerry Kells, de controlar otr!coemLosAngeles.Fastonerepresentativodeumgneronascido sob o signo duplo da velocidade e da traio. Como sugere o ttulo ambguo, avelocidadesereferetantoaosdilogosenarrativa(ambostelegr!cos), quantoaosgolpesbaixos,traioentreaspersonagens,caractersticade uma sociedade em colapso. Nesse romance como nos de Hammett e Whit!eld, as personagens falam rpido, agem rpido, morrem rpido, depois de terem esgotado todas as formas de traio possveis, numa velocidade tamanha que oleitormaltemtempodeseajustaraosacontecimentosantesqueoutras ocorrncias impulsionem a narrativa adiante. Violncia: direo e controleAo contrrio do que pode parecer, no se postula aqui buscar a origem daviolnciacomotemana!cohard-boiled,oumesmoforadela,poistal ato simpli!caria em excesso a sua relao com a narrativa. O romance hard-boiled tem antecedentes tanto histrico quanto literrios, como vrios crticos jnotaram7.EmboraacorrupodacidadegrandeapsaPrimeiraGuerra Mundial e os efeitos nocivos da Proibio tenham in"uenciado o surgimento desse tipo de !co, a tematizao da violncia na tradio literria europeia remonta aos picos homricos e reaparece, no contexto norte-americano, nos romances de fronteira.98Noentanto,aviolnciafoicapazdedardireoeformaaognero. Representaradurezadodetetiveedosubmundo,dospolticosedos empresrios,porexemplo,tornou-seoobjetivodoautordeliteraturahard-boiled(PANEK,1987,p.152).Aviolncialidacomnecessidadesedesejos; elaabreapossibilidadedemotivaesprimitivas.Emboradesejossejam unicamentehumanos(atondesabemos),quandoaviolnciaocorre,as sutilezas desaparecem. Processos complexos podem levar resoluo brutal, e o escritor competente consegue mostrar isso, mas a descarga destrutiva cria um problema para o autor, se ele a emprega com muita frequncia. De fato, uma crtica constante e consistente dos primeiros romances hard-boiled era o uso excessivo da violncia para resolver problemas de enredo (MOORE, 2006, p.50).OfamosoconselhodeChandler(1960,p.6)paraoescritoriniciante Na dvida, faa um homem entrar pela porta com uma arma na mo um reconhecimento da simplicao provocada pelo confronto fsico, mas , tambm, uma reexo sobre o apetite dos leitores por aes violentas.No mesmo ensaio, Chandler escreve que o cheiro de medo gerado por essas histrias era evidncia da resposta do pblico s condies modernas: Assuaspersonagensviviamnummundoquedera errado,ummundoonde,bemantesdabomba atmica, a civilizao tinha criado o mecanismo da sua prpria destruio e estava aprendendo a us-lo com o mesmo prazer idiota de um gngster experimentando a sua primeira metralhadora. A lei era algo manipulado para obter lucro e poder. As ruas eram escurecidas por algo mais do que a noite. (CHANDLER, 1960, p. 5)Acohard-boiledcomeouasetornarpopularnorastrodeuma guerra devastadora e atingiu a maturidade nas duas dcadas que terminariam num segundo conito global. Nas suas narrativas mais caractersticas, algum acontecimentotraumticoaltera,demaneirairrecupervel,ascondiesde vida e cria, para as personagens, um abismo experiencial entre a sua depen-dncia de padres estveis e regulares, de um lado, e, de outro, a percepo 99de que a vida , na verdade, moralmente catica, sujeita ao acaso e ao deslo-camento mais absoluto.Essesentimentodedesilusonosanosentreasguerrasmundiais foiampliadopordesastrespolticoseeconmicosquepegaramaspessoas completamentedespreparadas.NosEstadosUnidos,houvealoucurada Proibioeoconsequentegangsterismo,assimcomoevidnciascadavez maiores das conexes entre o crime, os negcios e a poltica. Crises afetaram a economia europeia e a norte-americana, provocando a quebra dos mercados de ao em 1929 e a Grande Depresso, talvez a pior catstrofe dos tempos modernos. Com o fracasso dos governos parlamentares na Europa e a ascenso degovernostotalitrios,surgiuoespectrodeoutraguerra.Nacohard-boiled da poca, a ansiedade fatalista se liga, em geral, convico pessimista de que as circunstncias econmicas e sociopolticas retiraro das pessoas o controlesobreasprpriasvidas,aodestruirsuasesperanasecriarnelasa fraqueza de carter que as marcaro como vtimas. Esses romances exageram traos reais da vida nos Estados Unidos das dcadas de 1920 e 1930 para dar ao leitor uma viso do outro lado do Sonho Americano, a sua faceta do pesadelo angustiante de uma sociedade economicamente injusta e fragmentada. RefernciasBATAILLE, George. X Marks the Spot. Documents, Paris, n. 7, 1930, p. 437-438.BURNETT,W.R.LittleCaesar.Harpenden:NoExit,1989.Primeirapublicao em 1929.CAIN, Paul. Murder in blue. In: ___. Seven slayers. [S.l.]: Black Mask, [2008]. p. 66-94. Disponvel em: . Acesso em: 23 mar. 2011.CARNES, Mark C.; GARRATY, John A. Mapping Americas past: a historical atlas. 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Este trabalho conta com o apoio do CNPq, por meio de bolsa de pesquisa. 2AsinformaesdestepargrafoedosprximosforamretiradasdeThetimetablesofhistory,deBernard Grun, e Mapping Americas past, de Mark C. Carnes e John A. Garraty. 3 Al Capone usa a palavra graft, que pode signi!car corrupo, suborno, fraude, logro, politicagem, trapaa, aliciao e tramoia, entre outras acepes. Optei pela primeira por ser a mais geral e cobrir os outros signi!cados, de um modo ou de outro. 4 Pequeno Csar se refere ao romance Little Caesar (1929), de W. R. Burnett, sobre um criminoso que se muda do campo para a cidade e recebe a alcunha que deu ttulo ao livro. Adaptado para o cinema em 1931, tornou-se o primeiro grande !lme americano de gngster. No Brasil, o !lme se chamou Alma no lodo. 5 O Crime do Sculo, como o caso Lindgergh !cou conhecido, reapareceria vrias vezes na literatura criminal, em obras to diferentes como After dark, my sweet (1955), de Jim Thompson, e Assassinato no Expresso do Oriente (1974), de Agatha Christie. 6 O site MyAlCaponeMuseum a!rma que o reprter Harold Hal Andrews teria criado a revista X Marks the Spot, em vista do sucesso da brochura. O autor teria se mantido annimo por segurana. 7 Ver, por exemplo, CAWELTI (1977), GEHERIN (1985) e GRELLA (1988), entre outros.