Jurisprudência de 1.ª Instância - Verbo Juridico · I – O ilícito previsto no art.º 283.º...

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Jurisprudência de 1.ª Instância JUÍZOS CRIMINAIS DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA TRIBUNAL Tribunal Judicial de Coimbra Referências 2.º Juízo Criminal Juiz Relator Dr. José Manuel Lourenço Quaresma Data da decisão 06.10.2005 Descritores Negligência médica – Ofensa à integridade física - Propagação de doença, alteração de análise ou de receituário verbojuridico ® ______________ 2006

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Jurisprudência de 1.ª Instância JUÍZOS CRIMINAIS DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA

TRIBUNAL Tribunal Judicial de Coimbra

Referências 2.º Juízo Criminal

Juiz Relator Dr. José Manuel Lourenço Quaresma

Data da decisão 06.10.2005

Descritores Negligência médica – Ofensa à integridade física - Propagação de

doença, alteração de análise ou de receituário

verbojuridico ®______________

2006

2 : NEGLIGÊNCIA MÉDICA VERBOJURIDICO

Título: JURISPRUDÊNCIA DE PRIMEIRA INSTÂNCIA – NEGLIGÊNCIA MÉDICA

Autor: Tribunal Judicial de Coimbra Juiz Relator: Dr. José Manuel Lourenço Quaresma

Data de Publicação:

Novembro de 2006

Classificação

Direito Criminal

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Nota Legal:

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TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA NEGLIGÊNCIA MÉDICA : 3

TRIBUNAL Tribunal Judicial de Coimbra

Referências 2.º Juízo Criminal

Juiz Relator Dr. José Manuel Lourenço Quaresma

Data da decisão 06.10.2005

Descritores Negligência médica – Ofensa à integridade física - Propagação de doença,

alteração de análise ou de receituário SUMÁRIO I – O ilícito previsto no art.º 283.º do Código Penal constitui, dogmaticamente, um crime de perigo

concreto , apelando à necessidade desse perigo ser “grave”, sendo também um tipo de crime de

resultado e em que é possível cindir, das perspectivas lógica e ontológica, uma acção e um resultado,

resultado esse que tem a particular circunstância de traduzir a efectiva possibilidade de produção de

um certo dano (de características mais graves) para o bem jurídico protegido. O evento perigo, que se

consegue destacar da acção, tem de ser objecto de dolo por parte do agente, extensível aos

elementos constitutivos do tipo e apto à imputação objectiva por via dos mecanismos da causalidade

adequada.

II - Exige-se, pois, na forma dolosa, que o agente tenha determinada função – no caso médico – que

queira praticar a acção típica de fornecer exame inexacto e que, através desta, queira gerar uma

situação de perigo para a vida ou integridade física de outrem, de uma forma intencional, mas que não

tenha, contudo, uma atitude reflexiva quanto às consequências lesivas desse perigo, implicando, pelo

exposto, uma negligência consciente de dano. E tanto é assim que, caso esse evento concreto perigo

implique uma conformação com as consequências lesivas da conduta, estaríamos no âmbito de um

crime doloso, tentado ou consumado, aferido, precisamente, às consequências mais gravosas da sua

resolução criminosa.

III – Para a sua punição, é necessário que o perigo para a vida ou integridade física, enquanto desvalor

do resultado, seja objectivamente imputável à conduta violadora do cuidado devido. Por isso, ainda

que se prove a actuação de um arguido em violação de um dever objectivo de cuidado, importa que

daí tenha resultado, em termos de causalidade, um concreto perigo para a vida ou integridade física da

doente, sabendo nós de antemão que, mais do que um perigo concreto, num dano efectivo na

integridade física, subjacente à ablação de um quadrante sem patologia.

IV – Já para a integração do crime de ofensa à integridade física por negligência (art.º 148.º do Código

Penal, cabem as actuações que implicam uma diminuição da substância corporal, as lesões da

mesma, as alterações físicas e a perturbação de funções físicas, se bem que não possa ser

insignificante, diminuta, existindo ofensa à saúde nas intervenções que ponham em causa o normal

funcionamento do corpo ou organismo da vítima, originando, mantendo ou agravando um estado

patológico.

V – Para o preenchimento do tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física, basta a verificação

desse resultado, independentemente da dor ou sofrimento causados, da gravidade ou da sua duração.

J.T.R.P.

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Conclusão em: 2005.10.06

I. Relatório Foram pronunciados para julgamento em processo comum e Tribunal singular:

A….., casada, médica, nascida a …., filha de …. e de ….., natural da freguesia de …., concelho de …., residente na Urbanização …..., em Coimbra, B..., divorciado, médico, nascido a ….., filho de … e de ….., nascido ….., residente na Praceta ….., em Coimbra, C...., casada, médica, nascida a ….., filha de … e de …., natural de … e residente na Rua …. – 2º, Coimbra, D...., casado, médico, nascido a …., filho de … e de …., natural da freguesia de …, concelho de …, residente na Quinta …., Coimbra e E..., casado, médico, nascido a …, filho de … e de …, natural de …, residente na Av. …. Abrantes,

pelos factos constantes do despacho de pronúncia de fls. 1433 e ss., por referência apenas à acusação de fls. 940 a 954, integrativos da prática, por cada um dos arguidos A..., D... e E... de um crime p. e p. pelos art.ºs 148º n.ºs 1 e 3 e 144º al. a) do Cód. Penal e, por cada um dos arguidos B... e C..., um crime p. e p. pelos art.ºs 283º n.ºs 1 al. b) e 3 e 285º, todos do mesmo diploma legal. Norberto …., Ana … e Inês …, respectivamente viúvo e filhas de Maria …, constituíram-se assistentes, acompanharam a acusação que fora deduzida pelo Ministério Público e que não é reiterada na pronúncia e formularam pretensão indemnizatória, peticionando a condenação dos demandados e de “C.... - Clínica de Diagnóstico ... Lda.” e “Hospitais da Universidade de Coimbra” no pagamento da quantia global de € 120.145,52

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e juros vencidos e vincendos, a título de reparação por danos de natureza patrimonial e não patrimonial decorrentes da conduta assacada aos demandados. A fls. 1572 o arguido E... contestou, oferecendo o merecimento dos autos e arrolando testemunhas. A fls. 1574 e ss. a co-arguida A... contestou, oferecendo também na parte criminal o merecimento dos autos e, na parte cível, negando a obrigação de indemnizar. O arguido D..., a fls. 1598 e ss., apresentou também contestação formal e o seu requerimento de prova. B... veio, a fls. 1602 e ss., contestar o pedido de indemnização civil contra si deduzido, alegando que não lhe pode ser imputado qualquer comportamento jurídico-penalmente relevante e, por maioria razão, inexiste qualquer obrigação de indemnizar. A fls. 1651 e ss. a demandada cível “CLÍNICA...” contestou, referindo não existirem factos que sustentem o pedido formulado. Os “HUC”, demandados cíveis, a fls. 1658 e ss., contestaram, excepcionando a incompetência deste Tribunal em razão da matéria. Apresentaram, também, defesa por impugnação. A fls. 1662 o arguido B... apresentou a sua contestação penal pugnando pela sua absolvição porquanto não estão preenchidos os elementos do tipo incriminador. A co-arguida C..., a fls. 1669 e ss., contestou, oferecendo o merecimento dos autos. Admitida a intervenção provocada da seguradora “AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A.”, veio a interveniente contestar a fls. 1792 e ss., excepcionando a incompetência do Tribunal, nos termos previamente expostos pelos demandados “HUC”, pronunciando-se, também, sobre o quantum indemnizatório. Após a prolação do despacho de pronúncia, nada ocorreu que afecte a validade e regularidade da instância aí afirmadas. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com registo da prova, na observância do formalismo legal conforme consta da respectiva acta.

* II. Factos provados II.1 Da pronúncia (fls. 1433 e ss. e 940 a 954) 1. No início do ano de 1995, a ofendida Maria... notou que lhe haviam aparecido alguns nódulos ao nível da mama direita, pelo que recorreu à consulta externa do Serviço de Ginecologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), onde passou a ser seguida pela arguida A..., médica daquele Serviço; 2. Em 01/03/95, a Maria... realizou exames de mamografia e ecografia na clínica CLÍNICA..., sita no Edifício …, Rua …, nesta cidade de Coimbra, em resultado dos quais foram detectados “Na união dos quadrantes superiores da mama direita (...) um nódulo com 2,6 cm, com contorno regular”, “(...) outro nódulo nos quadrantes inferiores da mama direita, apenas com tradução na incidência oblíqua, com cerca de 15 mm”, e

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ainda “dois pequenos quistos com 7,7 e 9,3 mm no quadrante infero-externo da mama esquerda”, com classificação na Escala de Marselha Modificada de direito R (2) E (2) e esquerdo R (2) E (2), conforme relatório de fls. 861, aqui dado por reproduzido; 3. Em consulta realizada em 10/03/95, a Maria... foi observada pela arguida A..., que procedeu à palpação das mamas direita e esquerda e analisou a mamografia e ecografia realizadas na CLÍNICA..., e respectivo relatório, referida em “2.” opinando que os nódulos detectados na mama direita, embora julgados benignos, deveriam, por mera cautela, ser extraídos; 4. Em 21/06/95, foi a Maria... internada nos HUC para efeitos de se realizar a extracção dos nódulos detectados na mama direita; 5. Mas porque, entretanto, os referidos nódulos haviam deixado de ser palpáveis, a intervenção cirúrgica não chegou a realizar-se, tendo a Maria... tido alta médica logo no dia seguinte (fls. 2482); 6. Em 13/10/95, a Maria... voltou à consulta de Ginecologia Oncológica dos HUC, sendo observada pela arguida A..., que considerou normal o seu estado clínico (fls. 248); 7. Em 14/06/96, a ofendida é de novo observada pela arguida A..., mantendo-se estacionário o seu estado clínico (fls. 2493); 8. Não obstante, a arguida recomendou a realização de uma mamografia, a qual foi feita na CLÍNICA..., não se registando alterações relativamente ao anterior exame também ali realizado, conforme relatório de fls. 884, aqui dado por reproduzido; 9. Em 11/04/97, a Maria... voltou à consulta e, não tendo a arguida A... verificado alterações significativas, registou no diário clínico: “seios simétricos, sem empastamentos ou nódulos”, e marcou nova consulta para 31/10/97 (fls. 249/2505); 10. Nesta data (31/10/97), foi a Maria... de novo observada pela arguida A..., tendo esta palpado, no quadrante superior externo da mama esquerda uma “pequena formação nodular, com 1x1 cm, móvel e indolor” (fls. 249 v.); 11. A arguida A... determinou então a realização de uma mamografia e uma ecografia, exames esses que deveriam ser feitos com a maior brevidade possível, por forma a esclarecer-se rapidamente a situação clínica da ofendida; 12. Como nos serviços dos HUC não fosse possível realizar os exames com a brevidade desejada, ficou assente que a ofendida iria realizá-los na CLÍNICA..., onde já haviam sido realizados os anteriores exames; 13. Tendo a arguida A... recomendado que os mesmos fossem efectuados pelo arguido B..., médico radiologista naquela clínica e também, então, Chefe de Serviço de Radiologia dos HUC, em quem aquela depositava plena confiança;

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14. Ficou também assente que este deveria analisar a mamogratia e a ecografia, e, caso dissesse que estava tudo normal, a Maria... só deveria voltar à consulta em Maio de 1998; caso contrário, deveria apresentar-se logo à consulta, levando consigo a mamografia, a ecografia e o relatório; 15. Os exames vieram a ser efectuados em 03/11/97, na CLÍNICA..., pelo arguido B..., e este, depois de ter analisado a mamografia e a ecografia, considerou que a formação nodular detectada na mama esquerda apresentava “características imagiológicas de benignidade francamente duvidosas, justificando no mínimo confirmação por biópsia dirigida”, conforme relatório de fls. 956, aqui dado por reproduzido; 16. Pelo que recomendou à Maria... que se apresentasse imediatamente na consulta de ginecologia oncológica dos HUC; 17. Da análise da mamografia e da ecografia resultava claramente que a lesão suspeita detectada se situava junto à união dos quadrantes externos da mama esquerda (fls. 89-917); 18. Porém, no relatório dactilografado resultante da transcrição da gravação voz do exame do arguido, transcrição essa efectuada por terceiro, consta, erroneamente, que a lesão se situava junto à união dos quadrantes “internos” da mama esquerda (fls. 95); 19. Para além disso, consta ainda da referida transcrição dactilografada do exame do arguido B... a “Classificação de Marselha Modificada” com a indicação “R ( 4 ); E ( 4 )”, sendo que o grau 4, na escala de gravidade das lesões cancerígenas, corresponde a um diagnóstico peremptório de cancro da mama; 20. Depois de dactilografado, o relatório não foi assinado pelo arguido B...; 21. E quando a Maria... se deslocou à CLÍNICA... para recolher os exames e o relatório, o arguido Dr. B... não se encontrava presente, pelo que foi solicitado à arguida C..., médica radiologista que prestava então serviço na CLÍNICA..., e é também médica nos HUC, que assinasse o referido relatório; 22. Esta, sem ter verificado se o conteúdo do relatório correspondia exactamente ao resultado dos exames efectuados, subscreveu o mesmo, apondo a sua assinatura, com a indicação “P’lo B...” (fls. 95); 23. A Maria... compareceu, em 06/11/97, na consulta de ginecologia oncológica dos HUC, entregando à arguida A... os exames e o relatório (fls. 89-958); 24. Tendo procedido à leitura dos elementos trazidos da CLÍNICA... pela ofendida, a arguida A..., porque não actuou com a diligência e atenção devidas, não valorizou a discrepância existente entre o relatório e as películas radiográficas quanto à exacta localização da formação nodular suspeita; 25. Não cuidou assim de esclarecer essa mesma discrepância, quer contactando com o arguido B..., a fim de esclarecer o evidente lapso do relatório, quer recorrendo a quaisquer outras medidas eficazes para esclarecimento do diagnóstico;

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26. Assim, e sem prévio esclarecimento adequado da questão, a arguida A... apresentou o caso clínico à Reunião de Decisão do Sector C do Serviço de Ginecologia dos HUC, não tendo proposto, como era sugerido no relatório, a realização de uma biópsia dirigida; 27. Na Reunião de Decisão Terapêutica foi então decidido, apenas, que a Maria... seria submetida a intervenção cirúrgica no quadrante interno da mama esquerda, com estudo extemporâneo histológico da peça operatória; 28. Isto é, durante a intervenção cirúrgica far-se-ia um exame histo-patológico de tecidos extraídos e, caso se confirmasse que o tumor era maligno, a intervenção cirúrgica continuaria, para ablação do quadrante respectivo da mama e esvaziamento dos gânglios axilares; 29. E, no diário clínico, a arguida A... limitou-se a escrever: “MAMOGRAFIA (CLÍNICA...) … “Lesão suspeita de benignidade nos Q. Int. de M. Esq.” (Dr. ….) R.D.T. – Pª exame extemporâneo” (fls. 249 verso9); 30. A intervenção cirúrgica foi marcada para o dia 04/12/97, tendo a Maria... sido internada no serviço de Ginecologia Oncológica dos HUC, para o efeito, na véspera, dia 3; 31. Nesse mesmo dia 3, a Maria... foi examinada pela Dra. Margarida …., médica daquele serviço, a qual procedeu a exames pré-operatórios, incluindo palpação do nódulo, o que consignou no diário clínico (fls. 250-25110); 32. No dia 4, a Maria... foi então sujeita a uma intervenção cirúrgica, sendo que a equipa médica escalada para realizar a mesma era constituída pelos arguidos D... e E..., aos quais coube a execução técnica da operação, e ainda a Dra. O…., que teve apenas funções de médica instrumentista; 33. O arguido D... é Assistente Graduado do Serviço de Ginecologia dos HUC; 34. O arguido E... é Assistente de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Distrital de Abrantes, e frequentava então o Ciclo de Estudos Especiais de Oncologia Ginecológica, no Serviço de Ginecologia C dos HUC, sob a orientação dos arguidos D... e A...; 35. No período pré-operatório, os arguidos D... e E... procederam à leitura do processo clínico e à palpação da doente; 36. Tendo verificado que, mencionando a decisão terapêutica apenas intervenção ao nível do quadrante interno da mama esquerda, o que conferia com o relatório dos exames complementares, à palpação, o nódulo detectável situava-se antes no quadrante externo; 37. O que aliás havia sido registado no diário clínico pela Dra. Margarida..., aquando do exame que realizou à doente no dia anterior, conforme fls. 25111;

9 Vol. II 10 Vol. II 11 Vol. II

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38. Nessa altura, os arguidos D... e E..., face à discrepância detectada, tiveram dúvidas quanto ao teor da decisão terapêutica, e ponderaram chamar à sala de operações a arguida A..., a fim de esclarecer a questão; 39. Todavia não o fizeram, nem consultaram, como deviam, as provas dos exames de mamografia e ecografia ou diligenciaram, em caso de falta, pela sua junção, através das quais, facilmente, poderiam constatar que a lesão cancerígena assinalada se situava na união dos quadrantes externos, e não na união dos quadrantes internos, como erroneamente mencionava o relatório; 40. Ainda assim, os arguidos decidiram fazer a excisão do nódulo palpável no quadrante superior externo, ao mesmo tempo que realizavam, desnecessariamente, a intervenção proposta na decisão terapêutica (ao nível do quadrante interno); 41. Sucede porém que, por não terem actuado com a diligência devida, a exploração cirúrgica que os arguidos D... e E... efectuaram ao nível do quadrante externo não atingiu a profundidade necessária à extracção do carcinoma detectado, pelo que, a peça operatória removida para exame extemporâneo não provinha da zona onde efectivamente se encontrava aquele carcinoma; 42. No mesmo tempo cirúrgico, e sem que houvesse razão para tal, os arguidos procederam também à quadrantectomia da transição dos quadrantes internos da mama esquerda da Maria..., sendo que a peça extraída foi igualmente enviada para exame extemporâneo; 43. O resultado dos exames extemporâneos realizados às peças extraídas, imediatamente comunicado aos arguidos, não revelou a existência de lesão maligna, pelo que o acto cirúrgico foi dado como terminado; 44. Em consequência da intervenção cirúrgica, a Maria... ficou com a mama esquerda mutilada e completamente deformada; 45. No quadrante externo da mama, a Maria... ficou com uma cicatriz com cerca de 5 centímetros de comprimento (fls. 96 e 9712); 46. E no quadrante interno, que foi removido, ficou uma cicatriz irregular, com cerca de 10 centímetros de comprimento (fls. 96 e 97); 47. Em 07/12/97, a Maria... teve alta hospitalar, e em 18/12/97 voltou aos HUC, tendo sido então retirados os pontos da cicatriz resultante da incisão cirúrgica; 48. Em 06/01/98, a Maria... foi vista nos HUC pelo Dr. António..., médico do serviço de Ginecologia, o qual a informou que os exames efectuados não haviam revelado a existência de lesões malignas; 49. Em 29/05/98 a Maria... voltou à consulta externa do Serviço de Ginecologia Oncológica dos HUC, tendo sido observada pela arguida A...; 50. Nesta altura, a Maria... queixou-se à arguida de que sentia um nódulo no mesmo sítio em que se encontrava o nódulo que supostamente havia sido removido na operação cirúrgica realizada;

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51. A arguida A... procedeu à palpação e, desvalorizando as queixas da Maria..., concluiu que se tratava apenas de uma fibrose pós-operatória; 52. E, no diário clínico, deixou consignado: “Mama esquerda — cicatriz retráctil nos Q. Int. com desvio interno do mamilo. Nos quadrantes externos da mesma mama existe uma outra cicatriz com cerca de 3 – 4 cm também com retracção e quelóide. À palpação não encontramos empastamentos ou nódulos. Ausência de adenopatias axilares.” (fls. 25313); 53. Marcou nova consulta para Novembro seguinte, e mandou fazer entretanto exames de controlo (mamografia e ecografia), que lhe deveriam ser presentes nessa nova consulta; 54. Esses exames vieram a ser efectuados 18/11/98, no Serviço de Radiologia dos HUC (fls. 100-10514); 55. Tendo desde logo sido assinalado pelo Dr. Luís..., médico radiologista do Serviço de Radiologia dos HUC, que o mesmo nódulo já detectado nos exames efectuados na CLÍNICA... em 03/11/97, era visível nos exames agora efectuados (fls. 23615); 56. E em consulta realizada em 24/11/98, a arguida A... observa de novo a Maria... e faz consignar no diário clínico (fls. 25416): “A doente realizou mamografia a 18/11/98 que revela a presença de formação nodular suspeita de malignidade localizada aos Quadrantes externos da Mama Esq. Observação clínica Cicatrizes quelóides na mama esquerda com cerca de 10 – 12 cm. No quadrante externo, palpamos uma formação dura, nodular com cerca de 4 x 4 cm, móvel, indolor, não aderente aos planos superficiais nem aos planos profundos, com ligeiro repuxamento da pele….”; 57. Na sequência, a Maria... efectuou um TAC da região lombar que revelou metastização da vértebra L2, e (fls. 23417) 58. Em 26/11/98, efectuou biópsia dirigida que confirmou a existência de cancro (fls. 255 início e 25618); 59. Depois de ter recebido, durante algum tempo, tratamentos de quimioterapia, a Maria... foi finalmente sujeita a nova intervenção cirúrgica nos HUC, realizada em 20/05/99, tendo sido efectuada mastectomia radical da mama esquerda; 60. Posteriormente, a Maria... veio a falecer em 25/06/2002, constando do respectivo certificado de óbito, como causa da morte, “neoplasia metastizada da mama” (fls. 74519); 61. A arguida C..., ao subscrever o relatório da mamografia e ecografias realizadas no dia 03/11/97 à ofendida Maria..., não verificou se o mesmo estava de acordo 13 Vol. II 14 Vol. I 15 Vol. II 16 Vol. II 17 Vol. II 18 Vol. II 19 Vol. IV

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com o teor dos exames realizados, não corrigindo, assim, o lapso manifesto de que o relatório enfermava quanto à localização da lesão detectada; 62. Ao proceder do modo descrito, a arguida C... agiu sem o devido cuidado, entregando relatório clínico com dados inexactos; 63. A arguida A..., ao apreciar o resultado dos exames efectuados na CLÍNICA... em 03/11/97, não procedeu com o cuidado necessário à análise das películas radiológicas e ecográficas, caso em que necessariamente teria constatado que o relatório elaborado enfermava de lapso evidente quanto à localização da lesão nele mencionada; 64. E também não propôs, na Reunião de Decisão Terapêutica, que a realização da operação cirúrgica fosse precedida de biópsia dirigida, como era sugerido no relatório; 65. Bem como, já depois da operação, na consulta realizada em 29/05/98, desvalorizou as queixas da Maria..., interpretando incorrectamente os sintomas do nódulo como uma simples fibrose, o que determinou que só em Novembro desse mesmo ano viesse a ser finalmente esclarecido que o carcinoma inicialmente diagnosticado não tinha sido removido na intervenção cirúrgica realizada; 66. Os arguidos D... e E..., em consequência da deficiente decisão terapêutica originada pela omissão da arguida A..., e porque não procederam antes da intervenção a um cuidadoso estudo dos exames complementares realizados pela ofendida, não cuidando de esclarecer, como deviam, o evidente lapso de que enfermava o relatório, procederam indevidamente à ablação do quadrante interno da mama esquerda da ofendida Maria..., causando-lhe assim sofrimento físico e desfiguração grave e permanente do seio esquerdo; 67. Depois, tendo os arguidos decidido complementar o inicialmente proposto pela Reunião de Decisão Terapêutica com a exérese do nódulo detectado no quandrante supero-externo, porque efectuaram uma exploração cirúrgica insuficiente, extraíram tecido mamário sem patologia maligna, deixado intocado o carcinoma que se tinham proposto extirpar; 68. E, quando lhes foi comunicado que o exame extemporâneo realizado tinha revelado que o tecido mamário extraído não evidenciava patologia, os arguidos não procederam, como deviam, a uma reavaliação da situação, confirmando se o nódulo havia sido de facto extirpado, tendo decidido antes dar o acto cirúrgico por terminado; 69. Ao procederem do modo descrito, os arguidos A..., D... e E... agiram de forma descuidada e pouco diligente, sem prestarem a devida atenção aos elementos que constavam do processo clínico, violando os deveres de cuidado e atenção exigíveis na preparação e execução de operações cirúrgicas desta natureza; 70. Em consequência do que provocaram, injustificadamente, a mutilação parcial da mama esquerda da ofendida, causando-lhe sofrimento físico e a desfiguração grave e permanente daquele órgão;

* II.2

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Do pedido de indemnização civil (fls. 1047 e ss.) e ainda não referidos supra 71. Na consulta referida em “3.” fez constar do respectivo diário clínico de consulta: - “(…) Há sinais de moderada hiperplasia fibrosa associada a proeminência de ductos. Há um ou outro quisto em ambos os seios, o maior à direita com 2 cm. No qd. inf. ext. da MD20 há outro nódulo que poderá corresponder a um quisto de conteúdo não homogéneo ou a um nódulo sólido com características de benignidade.... presenças de alguns nódulos em ambos os prolongamentos axilares.... que atribuímos a estruturas glanglionares de natureza benigna. Fez citologia (24/2/95). Aspectos hiperplasia glandular acino-lobular s/ atipias evidentes”, decidindo que os nódulos detectados na mama direita, deveriam ser extraídos (fls. 244 e 24521); 72. Na consulta referida em “6.” a arguida A... fez constar do diário clínico da consulta “MD sem nódulos à palpação. ME na união dos quadrantes externos apresenta zona de empastamento com 2 x 2,5 cm, indolor. Mantém vigilância. Consulta em 14/06/96” (fls. 248 e 24922); 73. Na consulta referida em “9.” a Maria..., por sentir à palpação um nódulo localizado ao nível do mamilo, no bordo exterior da mama esquerda e no plano profundo, isto é na união dos quadrantes externos da mama esquerda, dirigiu-se à consulta, antecipando em cerca de dois meses a consulta anual. Nessa ocasião, a arguida A... apenas registou no diário clínico a referência a um nódulo localizado na mama direita, acrescentando “seios simétricos, sem empastamentos ou nódulos”, omitindo qualquer referência a nódulo da mama esquerda e marcou nova consulta para 31/10/97 (fls. 249/249v23). Na consulta de 11/04/97 a arguida A... receitou o medicamento “Estracomb TTS 50”, que segundo o índice Nacional Terapêutico é contra-indicado para o “carcinoma da mama suspeito ou conhecido”, sendo aconselhado as seguintes precauções na sua administração: “só deve ser prescrito após a realização de exame médico e ginecológico completo, de forma a excluir a presença de quaisquer anomalias do endométrio ou de cancro da mama”; 74. Na consulta referida em “10.” a arguida A... acrescentou no diário clínico, também, “Ausência de adenopatias axilares”; 75. Na manhã de 6/11/97, os serviços administrativos da CLÍNICA... entregaram à Maria... os exames (mamografias craneo caudal da mama direita, de perfil da mama direita, craneo caudal da mama esquerda, de perfil da mama esquerda, e ecografia mamaria) e o respectivo relatório; 76. No momento referido em “23.” a arguida A... requisitou a realização de ecotomografia abdominal, TAC à coluna vertebral, bacia e tórax, e ecografia abdominal.

20 Quadrante inferior externo da mama direita 21 Vol. II 22 Vol. II 23 Vol II

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Realizados os ditos exames na manhã de 7/11/97, conclui-se pela ausência de metástases (fls. 223 e 22424); 77. Na tarde do dia 7/11/97, a Maria... volta à consulta de ginecologia oncológica dos HUC, fazendo-se acompanhar dos ditos exames, que a arguida A... analisou, inteirando-se do seu teor, tendo-lhe comunicado que a decisão terapêutica consistiria numa intervenção cirúrgica, na qual, orientados pela mamografia e permanecendo a Maria... sob anestesia total, seria colocado um arpão sobre o nódulo localizado na união dos quadrantes externos da mama esquerda e suspeito de cancro, sua extracção e análise extemporânea anatomo-patológica dos tecidos extraídos e, caso se confirmasse que o tumor era maligno, de imediato, a intervenção cirúrgica continuaria para ablação do quadrante respectivo da mama e esvaziamento dos gânglios axilares; 78. A ausência de metástases e adenopatias axilares indicava que a lesão maligna seria provavelmente um “cancro in situ” ou no máximo no “estadio 2” com possibilidade de cura de pelo menos 70%, tendo a arguida A... tranquilizado a Maria...; 79. A peça extraída da quadrantectomia tinha o peso de 110 g (fls. 22525); 80. Em consequência da intervenção cirúrgica levada a cabo pelos arguidos D... e E..., nos quadrantes interno e externo da mama esquerda, para além das cicatrizes, houve uma redução da dimensão da mama; 81. Na consulta referida em “50.” a arguida A... receitou, novamente, o medicamento “Estracomb TTS 50”; 82. No momento mencionado em “56.” o Dr. Luís... assinalou o aumento das dimensões e da densidade relativa da lesão, concluindo pela existência de “lesão com 3,5 cm na união dos quadrantes externos da mama esquerda, com características radiológicas e ecográficas compatíveis com carcinoma mamário” (fls. 23626 e fls. 82527); 83. Nessa data o Dr. Luís... deu conhecimento à Maria... que o nódulo maligno detectado na mamografia de 3/11/97, da CLÍNICA..., não havia sido removido na intervenção cirúrgica de 4/12/97; 84. O cancro, nesta fase, tem uma hipótese de cura nula, sendo que menos de 40% vivem 5 anos; 85. Os arguidos D... e E..., aquando da exérese do nódulo existente no quadrante externo, não fizeram preceder a intervenção de biópsia dirigida disponível nos HUC; 86. A Maria... era licenciada em Geografia e exercia a profissão de professora de Geografia do Ensino Secundário, e do quadro da Escola Secundária N.° 2 de Abrantes, auferindo um vencimento base de € 2.795,04 (doc. fls. 108128);

24 Vol. II 25 Vol. II 26 Vol II 27 Vol. IV 28 Vol. V

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87. A Maria... era uma mulher activa e integrada na sociedade, participando nos eventos culturais, sendo co-autora do livro “Abrantes, 20 anos de Poder Local”, edição da Câmara Municipal de Abrantes, de 1996; 88. A título gracioso leccionava no Projecto Homem (Centro de Recuperação de Toxicodependentes em Abrantes); 89. Em face das cicatrizes resultantes da intervenção de 04/12/97 a ofendida teve que alterar a sua maneira de vestir, de forma a ocultá-las durante o tempo de verão; 90. Aceitou esse resultado face à informação prestada pela Dra. A..., que referiu ter sido uma intervenção cirúrgica correcta muito embora o exame histológico não acusasse cancro, o que a mesma reforçou com a expressão: “A senhora esteve à beira do abismo”; 91. Em 29/05/98 em consulta com a Dra. A..., esta reiterou-lhe a correcção da intervenção cirúrgica de 04/12/97; 92. Em virtude dos factos mencionados em “56., 82. e 83.” a Maria... toma conhecimento, nesta data, 18 de Novembro de 1998, do comportamento da equipa médica na intervenção cirúrgica de 4 de Dezembro de 1997, constituída pelos Dr. D... e Dr. E..., equipa de que a Dra. A... faz parte, que naquela data além de a mutilarem desnecessariamente haviam deixado o cancro da mama em desenvolvimento na união dos quadrantes externos da mama esquerda; 93. A angústia, a indignação e o terror do cancro já ter desenvolvido metástases instala-se; 94. Passa a ter dificuldades em dormir e a concentrar-se no trabalho; 95. Em 23 de Novembro de 1998 não consegue aceitar a explicação da Dra. A..., de que tinha havido um engano não sabia se na passagem do relatório ou já da parte do colega que fez o relatório da mamografia de 3 de Novembro de 1997, e que depois leva toda a cirurgia em 4 de Dezembro de 1997 também a ser enganada; 96. Tão pouco consolava a Maria... o facto da Dra. A... afirmar que lamentava profundamente o que sucedeu e que portanto estava extremamente magoada, aborrecida com o acontecido; 97. E explicava a razão porque é que foi extirpado na intervenção cirúrgica de 4 de Dezembro de 1997 o quadrante oposto àquele onde se localizava o cancro e onde a Maria... dele se queixava, deixando o cancro intacto dizendo “porque era uma lesão fracamente palpável”; 98. E quando em 25 de Novembro de 1998 lhe é assinalada a metástase na vértebra, tem conhecimento de que tem a vida a prazo; 99. Convencendo-se de que, em 4 de Dezembro de 1997, no estadio 2, ainda sem metástases, se tivesse sido extraído, não a impediria de continuar a viver normalmente e com saúde; 100. Em 25 de Novembro de 1998, toma conhecimento que a sua saúde tinha sido afectada, o seu bem-estar, a tranquilidade física e psíquica suas, e do seu marido, das duas filhas, e outros familiares, posta em causa, constituindo ainda uma ameaça terrível

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e permanente à sua própria vida, cuja sombra não mais viram afastada do horizonte imediato das suas preocupações, das suas dúvidas, das suas angústias; 101. Entre 4 de Dezembro de 1998 e 20 de Abril de 1999, faz 7 ciclos de quimioterapia (5 Fluoracilo – 1200 mg; ciclofosfamida – 900 mg; 4 Epirrudicma – 110mg) (fl.84329); 102. Perde o cabelo, passa a usar peruca, a ter enjoos permanentes, perde o apetite, deixa de poder conduzir a sua própria viatura, a capacidade para o trabalho é afectada; 103. Em Janeiro de 1999 efectuou no Centro de Oncologia de Coimbra, 15 sessões de “radioterapia dirigida a metastização óssea de carcinoma da mama esquerda localizada na vértebra L2. Realizou uma dose total de 206y/5F/15”. (fls. 29030); 104. Após a mastectomia radical esquerda a 20 de Maio de 1999, iniciou nova quimioterapia adjuvante com a mesma associação FEC e nas mesmas doses tendo sido o 1° ciclo desta série a 1 de Junho de 1999. (fls. 843); 105. Após alguma recuperação, volta a perder o cabelo, passa novamente a usar peruca, enjoos permanentes, perde o apetite, deixa de poder conduzir a sua própria viatura, a capacidade para o trabalho é afectada; 106. Entre 22 de Junho de 1999 e 11 de Outubro de 1999 fez 6 ciclos de quimioterapia, (fls. 844); 107. Continua sem cabelo, mantém o uso da peruca, enjoos permanentes, perde o apetite, continua sem poder conduzir a sua própria viatura, a capacidade para o trabalho continua afectada; 108. Entre 29/11/99 e 06/01/00 no Centro de Oncologia de Coimbra foi submetida a radioterapia com uma dose de 50 Gy/25 fracções; 109. Estes tratamentos depauperaram-na profundamente; 110. Em Julho de 2000 é-lhe detectada metástase no fígado; 111. A sua angústia é redobrada, sente que o fim da vida se aproxima; 112. A 18 de Agosto de 2000 iniciou quimioterapia de Taxotere – 120 mg que foi interrompido a 8 de Setembro de 2000 por trombositopenia; 113. E em 1 de Novembro de 2000 é informada da progressão do cancro no esqueleto ósseo; 114. Entre 10 e 20 de Outubro de 2000 faz radioterapia a localizações metastáticas da coluna e da bacia, tendo sido ministrada uma dose de 20 Gy/20 fracções; 115. A 28 de Novembro é informada que não tem capacidade física para suportar a quimioterapia e inicia tratamento endócrino com Arimidex; 116. O seu estado agrava-se, não consegue andar; 117. Angustiada, dirige-se a consulta no Instituto Europeu de Oncologia de Milão Itália, sendo consultada no dia 12 de Janeiro de 2001 pelo Prof. Dr. Aron...;

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118. Vai em busca da esperança perdida ao encontro do Prof. Aron... que exerce além das actividades de médico, as funções de Director do Departamento de Medicina e de Director da Divisão de Oncologia Médica do Instituto Europeu de Oncologia de Milão – Itália, reconhecido como Instituto Científico de Internamento e Cura; 119. Porque o Ilustre Professor é investigador no tratamento do cancro mama sendo de referir o estudo sobre o 5 FU – fluoracilo em infusão contínua associado a vinorelbina e cisolatinio em doentes com cancro da mama metastizado; 120. Tendo prescrito a administração de tratamento quimioterapia 5 – FU Fluoracilo, 200 mg/dia em infusão contínua, em ciclos de duas semanas de tratamento, com uma semana de intervalo; 121. Tendo o referido médico afirmado que o tratamento prescrito podia ser administrado no Hospital que a vinha seguindo, apresentou-se na consulta do Hospital de Dia do Serviço de Ginecologia Oncológica dos HUC; 122. O Serviço de Ginecologia dos HUC rejeita este tratamento com o argumento que a toxicidade nas plaquetas se revela ao fim de 11 dias, pelo que poderia ser fatal; 123. Passa a ser feita a administração semanal de 750 mg de 5 – FU, que é efectuada entre 31 de Janeiro e 15 de Fevereiro de 2001; 124. Que é abandonado ao fim de 3 tratamentos por toxicidade nas plaquetas e insuficiência pré-renal; 125. Sendo internada nos HUC durante quase 2 semanas em finais de Abril, por quadro de diarreia profusa, com desidratação e insuficiência pré-renal, também hipoalbuminémia e ascite; 126. Entre 18 de Abril e 9 de Maio de 2000 passa a receber tratamento quimioterápico de 100 mg de 5 – FU administrado mensalmente; 127. Mantém-se sem cabelo, ânimo perdido e com pouca esperança; 128. Esta terapia é abandonada, ao fim de dois tratamentos, por trombocitopenia, toxicidade nas plaquetas; 129. Em 23 de Maio de 2001, volta ao Instituto Europeu de Oncologia de Milão, onde é novamente consultada pelo Prof. Aron... que afirma que ao contrário do referido pelos HUC o 5 – FU em infusão contínua é completamente atóxico para as plaquetas e reitera a sua administração; 130. O Serviço de Ginecologia dos HUC alega não dispor dos meios técnicos para administrar o 5 – FU em infusão contínua, pelo que a Maria... transfere-se, em 20 de Junho de 2001, para o Hospital Militar de Belém, em Lisboa, que dispõe desse tipo de tratamento; 131. Entretanto no Hospital Militar de Belém passa a dispor do medicamento de nome Xeloda-Capecitabine, que substitui o 5 – FU no combate ao cancro da mama metastizado, pelo que o Prof. Aron... em 22 de Junho de 2001 define por fax a dosagem;

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132. Em 22 de Junho de 2001 iniciou a quinta linha de quimioterapia com capecitabina (XELODA); 133. Por toxicidade na mucosa que a impedia de se alimentar e síndroma de pé-mão que a impedia de andar foi reduzida a dosagem; 134. Manteve-se com anemia trombocitopenia até Novembro de 2001. (fls. 89231); 135. Em 5 de Novembro de 2001 é assistida no Centro de Saúde da Região Militar do Sul em Évora por hemorragia gástrica, (fl. 895); 136. Na noite de 5 de Novembro de 2001 é transferida para o Hospital Militar Principal em Lisboa onde é internada durante uma semana; 137. Em 16 de Novembro de 2001 volta à consulta com o Prof. Aron... no Instituto Europeu de Oncologia de Milão em Itália, onde o ilustre Professor emite o seguinte parecer clínico: “Comparando as mamografias da mama esquerda de 3 de Novembro de 1998, 18 de Novembro de 1998 e de 19 de Abril de 1999, a lesão (carcinoma) situada e/n todas as mamografias na união dos quadrantes externos é radiologicamente a mesma lesão em fases diferentes’’ (fls. 883, 884, 885, 886, 887, 888 dos autos e doc. de fls. 89732); 138. Em 4 de Fevereiro de 2002 é assistida no Centro de Saúde da Região Militar do Sul em Évora por hemorragia gástrica, e no mesmo dia é transferida para o Hospital Militar de Lisboa, onde tem alta em 8 de Fevereiro; 139. E na Nota de Alta consta a provável coexistência de metastização no pulmão esquerdo e derrame pleural; 140. Em Abril deixa de poder mover-se por dificuldade respiratória; 141. Fica limitada a viver em casa, sem poder sair, e tem já dificuldade em alimentar-se; 142. A 20 de Maio de 2002 é internada no Hospital Militar de Belém por derrame pleural, tendo alta a 3 de Junho de 2002; 143. Em 9 de Junho de 2002 dá entrada no Hospital Distrital de Abrantes, cidade onde tinha a sua residência habitual; 144. Em 25 de Junho de 2002 morre no Hospital Distrital de Abrantes, aos 56 anos de idade; 145. Para o marido e filhas Ana e Inês ficou a mágoa; 146. Afectando o rendimento escolar da filha Inês, a frequentar o curso de Arquitectura; 147. Fez entre Abril de 1997 e Junho de 2001, 23 (vinte e três) deslocações de Abrantes aos HUC em Coimbra conforme extraído do Processo Clínico (fls. 182 a 34533);

31 Vol. IV 32 Vol. IV 33 Vols. I e II

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148. Entre 13 de Janeiro de 1999 e 31 de Janeiro de 2000 faz 30 (trinta) deslocações aos HUC em Coimbra para análises clínicas conforme extraído do Processo Clínico; 149. Entre 16 de Novembro de 1998 e 24 de Julho de 2000 faz 15 (quinze) deslocações aos HUC em Coimbra para efeitos de exames radiológicos conforme extraído do Processo Clínico; 150. Entre 19 de Novembro de 1999 a 6 de Janeiro de 2000 e de 10 de Outubro de 2000 a 20 de Outubro de 2000 faz 15 (quinze) deslocações ao Centro de Oncologia de Coimbra para efeitos de tratamentos de rádio conforme extraído do Processo Clínico; 151. Entre 21 de Julho de 2001 e 10 de Maio de 2002 faz tratamentos quinzenais no Hospital Militar de Belém num total de 15 (quinze) deslocações; 152. Sendo que a ofendida tinha que ser acompanhada, o que duplicava custos em alimentação, e não estava em condições de utilizar transportes públicos terrestres; 153. E quando se deslocou via aérea ao Instituto Europeu de Oncologia de Milão em Itália, em Janeiro, Maio e Novembro de 2001 necessitou da companhia e do apoio permanente de seu marido e de sua filha Ana …. tendo alugado uma viatura, em Novembro de 2001 no valor de € 266.74; 154. Em 12 de Janeiro de 2001, 25 de Maio de 2002 e 16 de Novembro de 2001 deslocou-se via aérea ao Instituto Europeu de Oncologia de Milão em Itália, onde pagou pelas consultas respectivamente 350.000 Liras, 250.000 Liras e 250.000 Liras; 155. Tendo pago por cada passagem aérea, respectivamente, em Janeiro Esc. 71.924$00 x 3 passagens, em Maio de 2001 € 663,40 e em Novembro € 778.12 (docs. de fls. 1093 a 109534); 156. Como o seu estado de saúde era precário embarca em 9 de Janeiro e regressa a 14 de Janeiro, embarca a 19 de Maio e regressa a 24 de Maio e embarca a 13 de Novembro e regressa a 18 de Novembro, num total das três deslocações a consultas em Milão. (docs. fls. 1096 a 1098);

* II.3 Da contestação da demandada A... (fls. 1577 e ss.) 157. O estudo de uma doente recebida para diagnóstico na consulta poderá processar-se da seguinte forma: - 1° Exame clínico: com inspecção e palpação; 2° Exames complementares, sendo que estes se determinam de acordo com a idade, ou seja, até aos 35 anos ecografia, após os 35 anos mamografia. Subsistindo qualquer dúvida na interpretação da mamografia o radiologista para sanação da mesma, normalmente, realiza ecografia; 3° Se em tais exames complementares de diagnóstico, mamografia e/ou ecografia, for detectado um nódulo e este for palpável, o estudo da doente é completado por uma citologia, sendo a biopsia feita por agulha. Se se tratar de uma zona não palpável, a doente

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deverá ser submetida a uma biopsia orientada por “arpão” (pequeno arame que é colocado pelo radiologista o mais próximo da lesão ou mesmo na lesão para poder orientar o cirurgião). Se a mamografia mostra uma zona mal definida, mas palpável, pode realizar-se uma biopsia alargada, podendo no mesmo acto e por forma a evitar novo acto cirúrgico e nova anestesia proceder-se a um estudo extemporâneo – a significar a obtenção de um estudo histológico ainda com a doente anestesiada; 158. A biopsia cirúrgica incisional é uma atitude de diagnóstico; 159. No local de uma cirurgia os mecanismos de cicatrização podem provocar zonas de “endurecimento”, vulgo fibrose, que dificultam a identificação de alguma estrutura subjacente; 160. A decisão terapêutica determinou a intervenção mas não a profundidade do campo a explorar, cabendo ao cirurgião uma tal tarefa;

* II.4 Da contestação do arguido B... (fls. 1662 e ss.) 161. Foi uma dactilografa que passou a escrito o que o arguido B... ditou para o gravador quando relatou o exame.

* II.5 Da contestação da demandada C... Morais (fls. 1670 e ss.) 162. A arguida celebrou com a seguradora AXA Portugal Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua Gonçalo Sampaio, 39, Porto, contrato de seguro de responsabilidade civil pela prática de actos, omissões ou erros profissionais cometidos na actividade médica (apólice n.º 84/05/934.259).

* II.6 Mais se provou 163. Aquando da prática dos factos era usual na CLÍNICA... e chegava a suceder nos HUC a assinatura de relatórios por médico radiologista distinto daquele a quem os mesmos eram atribuídos, nomeadamente quando os resultados eram solicitados e o médico que efectuou os exames ainda não os havia assinado; 164. A película da ecografia correspondente ao relatório de fls. 95 contém um pictograma através do qual é possível determinar o quadrante correcto onde se encontrava a lesão (fls. 8935), o mesmo sucedendo com indicações constantes das mamografias para determinar os lados esquerdo e direito: 165. Por contrato de seguro titulado pela apólice 942662, a demandada A... havia transmitido para a interveniente seguradora a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional, até aos capitais de € 249.398,95 por “danos corporais” e € 74.891,68 por “danos materiais”;

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166. Por contrato de seguro titulado pela apólice 934785, o demandado B... havia transmitido para a interveniente seguradora a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional, até aos capitais de € 249.398,95 por “danos corporais” e € 74.819,68 por “danos materiais”; 167. Por contrato de seguro titulado pela apólice 304377, o demandado D... havia transmitido para a interveniente seguradora a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional, até ao capital de € 49.879,79; 168. Por contrato de seguro titulado pela apólice 942777, o demandado E... havia transmitido para a interveniente seguradora a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional, até ao capital de € 74.891,68; 169. Por escritura pública de 16 de Julho de 2002, outorgada no Cartório Notarial de Abrantes, por óbito de Maria..., foram julgados habilitados como seus únicos herdeiros os assistentes Norberto …., Ana … e Inês … (doc. de fls. 762 a 76436); 170. Os arguidos A..., D... e E..., a partir do momento em que as relações com a Maria... se deterioraram e que esta apresentou queixa, não admitiram que tivesse existido qualquer lapso ou erro da sua parte; 171. A arguida A... aufere, na actividade prestada nos HUC, quantia não inferior a € 1.750,00 mensais líquidos, a que acresce quantia não inferior a € 4.000,00 mensais líquidos derivados da actividade clínica exercida em consultório privado; 172. O marido da arguida A... é médico, auferindo vencimento não apurado mas aproximado ao da arguida; 173. A arguida A... vive em casa própria e não tem filhos a cargo, tomando conta dos progenitores; 174. A arguida A... é licenciada em medicina, com especialidade em Ginecologia; 175. A arguida A... não tem antecedentes criminais; 176. O arguido B... é sócio da CLÍNICA..., com uma quota de 15,5%, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 5.000,00 líquidos; 177. O arguido B... vive com a mulher, da qual se divorciou, sendo esta radiologista e auferindo mensalmente quantia equivalente à recebida pelo arguido; 178. O arguido B... tem um filho, com 17 anos, estudante; 179. O arguido B... é licenciado em medicina, tendo a especialidade de Radiologia; 180. O arguido B... vive em casa própria; 181. O arguido B... não tem antecedentes criminais; 182. A arguida C... é licenciada em medicina, com a especialidade de radiologia; 183. A arguida C... trabalha nos HUC e no “Centro de Senologia”, do qual tem uma quota de 10%, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 5.000,00 líquidos;

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184. A arguida C... tem dois filhos a cargo, de 16 e 18 anos, ambos estudantes; 185. O marido da arguida C... é médico, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 2.500,00; 186. A arguida C... vive em casa própria; 187. A arguida C... não tem antecedentes criminais; 188. O arguido D... exerce a sua actividade nos HUC, praticando cumulativamente medicina privada, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 4.000,00 líquidos; 189. A esposa do arguido D... é professora do ensino secundário; 190. O arguido D... é licenciado em medicina e especialista em Ginecologia e Obstetrícia; 191. O arguido D... vive em casa própria; 192. O arguido D... não tem antecedentes criminais; 193. O arguido E... exerce as suas funções no Hospital de Abrantes, praticando cumulativamente medicina privada, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 3.750,00 líquidos; 194. A esposa do arguido E... é doméstica; 195. O arguido E... tem dois filhos a cargo, de 16 e 11 anos de idade, ambos estudantes; 196. O arguido E... não tem antecedentes criminais; 197. Os arguidos são considerados profissionais experientes e competentes pelos seus pares e por doentes inquiridos.

* Não há outros factos por provar com relevância para a decisão.

* III. Factos não provados III.1 Da pronúncia A) No relatório de fls. 95 foi o co-arguido B... quem, erroneamente, fez constar do relatório transcrito o erro de localização da lesão; B) A comparência referida em “23.” ocorreu no dia 7 de Novembro de 1997; C) Do processo clínico que os arguidos D... e E... consultaram antes da operação constavam as películas da mamografia e da ecografia; D) A intervenção cirúrgica levada cabo pelos arguidos D... e E... iniciou-se mesmo pela tentativa de excisão do nódulo palpado no quadrante externo; E) Ao elaborar o relatório relativo aos exames de mamografia e ecografia que efectuou em 03/11/97 à ofendida Maria..., o arguido B..., porque não actuou com a atenção devida, localizou erradamente a lesão cancerígena detectada na união dos

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quadrantes internos da mama esquerda, quando a localização correcta era, de facto, na união dos quadrantes externos; F) O arguido B... e, fornecendo um relatório clínico com dados inexactos, a arguida C..., criaram um perigo grave para a integridade física da ofendida Maria...; G) Os arguidos D... e E... não extraíram o nódulo palpável do quadrante externo apenas porque não fizeram preceder a intervenção de biopsia dirigida;

* III.2 Do pedido de indemnização civil (para além dos já referidos) H) Em 07/11/97 a ausência de metástases e de adenopatias axilares implicavam, no caso concreto, uma possibilidade de cura de precisamente 90%; I) Com as suas condutas os arguidos A..., D... e E..., causaram, neste caso, a evolução de um cancro inequivocamente no estadio 2, em que havia 90 % de probabilidade de cura, para o estadio 4 em que era nula a possibilidade de cura; J) Se o nódulo visível na mamografia tivesse, em 4 de Dezembro de 1997, sido extraído, a Maria... poderia continuar a viver normalmente e com saúde; L) O carcinoma que a Maria... tinha no quadrante externo da mama esquerda levaria pelo menos um ano a atingir o estadio 4;

* III.3 Da contestação da demandada A... M) Foi o erro do relatório, por todos reconhecido, que conduziu à deliberação, em reunião, de opção por via mais alargada de diagnóstico e mais esclarecedora da dúvida suscitada quanto ao tipo de lesão; N) Foi precisamente por ter notado a discrepância entre o exame imagiológico e o exame clínico, que apresentou o processo na reunião de serviço, onde estão presentes todos os médicos do serviço tendo neste caso concreto sido discutido, pelo conjunto de especialistas, os elementos complementares de diagnóstico e deliberada a actuação médica, sendo que a decisão terapêutica foi tomada por todos os médicos daquele serviço; O) E a determinação e realização da biopsia cirúrgica dos quadrantes internos salvaguardava o facto de a hipótese clínica estar errada e de o radiologista estar certo; P) Na RDT foi discutida a hipótese de erro dos exames tendo-se concluído por uma decisão terapêutica que salvaguardasse qualquer hipótese consentânea com a revisão da arguida perante o relatório do exame; Q) Tanto assim é que por consideração à valia técnica do colega B... e à sugestão de diagnóstico proposta, a arguida ponderou todas as hipóteses naquela reunião entendendo que a resolução da reunião de serviço contemplava as duas hipóteses possíveis e que as biopsias a realizar iriam esclarecer o diagnóstico; R) A peça da quadrantectomia continha uma lesão pré-maligna já assinalada na mamografia;

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S) Antes da primeira intervenção cirúrgica a arguida A... advertiu a ofendida, no que esta consentiu, da eventual necessidade da amputação quase total, ou mesmo total, da mama;

* Os restantes factos, não especificamente dados como provados ou não provados, ou são apenas a negação ou afirmação de outros especificamente considerados provados ou não provados, ou são conclusivos, ou contém matéria irrelevante para a decisão da causa.

* IV. Fundamentação da decisão de facto Os arguidos, nas declarações prestadas, negaram qualquer responsabilidade, quer no infeliz desfecho, quer no percurso por qualquer má prática médica ou opção errada. Concretizando e muito resumidamente, a co-arguida A... confirma que a ofendida era sua doente desde 1995 e que, na consulta de 1997, palpou uma formação nodular no quadrante externo da mama esquerda. Afirma ter visto as películas da CLÍNICA... – o que sabe fazer – e constatado, logo ali, a existência de lapso na localização da lesão. Sendo prática corrente nos HUC a realização de biópsias extemporâneas, entende que as “lesões”, a descrita, sem lapso no quadrante interno e a que, situando-se no quadrante externo, estava erradamente localizada no quadrante interno deveriam ser biopsadas, tendo avisado a doente de que poderia acordar sem a mama e recebendo daquela consentimento esclarecido. Também nega qualquer desvalorização das queixas subjectivas na primeira consulta que teve com a doente após a intervenção cirúrgica. Entendeu que o quadrante externo não estava esclarecido mas a palpação, com as cicatrizes, era difícil, sendo necessário um período de 4 a 6 meses de permeio para a estabilização dos tecidos. Afirmando-se preocupada, pretende demonstrar objectivamente a valorização das queixas subjectivas da doente através do facto de ter solicitado a realização posterior de exames, não podendo ser responsabilizada pelo atraso na sua marcação, imputando essa demora aos HUC. Afirma que, na RDT, todos os clínicos ficaram conscientes da existência do erro de localização e da necessidade de biopsar ambos os quadrantes, estribando o acerto da decisão no facto de a “hiperplasia lobular atípica”, que afiança ter resultado do exame da médica anatomo-patologista, ser uma “lesão pré cancerosa” e, por isso, nunca se poderia concluir pela desnecessidade da ablação do quadrante interno e, por conseguinte, não se pode falar em mutilação ou ofensa à integridade física. Por fim é assertiva na defesa do entendimento de que o nódulo posteriormente detectado pelo Dr. Cruz poder não ser o mesmo que tinha tradução radiológica no relatório de fls. 95 atribuído ao arguido B..., cuja valia técnico-científica reconhece, até porque a equipa cirúrgica retirou um fibroadenoma, sendo em seu entender

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possível que tenham “tirado” o que havia e, depois, a doente ter desenvolvido outro nódulo distinto. Referiu as suas condições pessoais e a ausência de antecedentes criminais mostra-se documentada nos autos através do respectivo CRC. Quanto ao arguido B..., não obstante o teor da missiva de fls. 845 e 84637, admite a existência de erro patente mas não a sua autoria. Isto é, não exclui a hipótese de o mesmo ser da sua responsabilidade, em virtude de um eventual lapsus linguae, mas também não afasta a possibilidade de se ter tratado de um erro da dactilógrafa. Referiu as suas condições pessoais e a ausência de antecedentes está, também, confirmada. A arguida C..., de forma singela e contrita, afirmou a autoria da assinatura constante do relatório em causa, a não verificação da sua correcção com as películas e a justificação avançada para o facto: - não era hábito, nem na CLÍNICA... nem nos HUC, essa verificação, sendo até usual a assinatura “de cruz” de relatórios alheios. Após este evento, mudou o seu procedimento. Referiu as suas condições pessoais e a ausência de antecedentes mostra-se documentada. O co-arguido D..., por seu turno, refere categoricamente que a decisão terapêutica não contemplava a intervenção no quadrante externo e que a quadrantectomia, referida como objecto da intervenção na folha que acompanhava a doente, se dirigia ao quadrante interno. Conferindo verosimilhança ao depoimento do assistente, tema que a seguir se retomará, este arguido confirma que quis falar com a arguida A..., face ao nódulo que notou à palpação. Refere que as mamografias não acompanhavam o processo clínico mas que as solicitou à enfermeira, verificando-as. Não viu o relatório imputado ao co-arguido B... e planeou a sua actuação através das películas e pela nota de entrada da doente, onde era proposta a quadrantectomia. Imputa a execução material da quadrantectomia ao co-arguido E..., que reconhece como seu formando, e assume a exérese do nódulo, alargando assim o âmbito da RDT38. Foi-lhe comunicado, pelo departamento de anatomo-patologia, ao exame extemporâneo, um fibroadenoma na peça resultante do quadrante externo, e uma lesão atípica na peça proveniente da quadrantectomia. Porque só o carcinoma invasivo exige o esvaziamento axilar e sendo o fibroadenoma uma lesão benigna, deu por encerrada a intervenção cirúrgica. Referiu as suas condições pessoais, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais. Por fim o co-arguido E... refere ter efectuado a avaliação da doente com o co-arguido D..., seu tutor.

37 Vol IV 38 Em sentido cronológico inverso ao afirmado na pronúncia.

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Assegura que se apercebeu, logo, da desconformidade entre a imagem e a RDT. O resultado do exame macroscópico à peça, comunicado telefonicamente à sala, foi no sentido da benignidade do tumor pelo que a intervenção foi dada – e bem – por concluída. Porém, a intranquilidade vivenciada pelo arguido e as dúvidas que o terão assaltado são expressadas pelo próprio ao afirmar que, face à desconformidade detectada, hoje em dia pediria uma nova reunião de decisão terapêutica, asseverando ter sugerido isso mesmo ao co-arguido D.... Referiu as suas condições pessoais e verifica-se a ausência de antecedentes conhecidos. A bondade da conduta dos arguidos A..., D... e E... sustenta-se nas suas próprias declarações, acima mencionadas sinteticamente, nos depoimentos que a seguir se analisarão e, ainda, no teor do relatório da consulta técnico-científica do Conselho Médico-Legal, inserto a fls. 677 dos autos. Sustentando a posição dos arguidos, acabada de referir, depôs o Prof. Carlos …., inquirido na 4ª sessão, realizada no dia 21 de Abril último. Afirma a testemunha que a hiperplasia não é uma lesão benigna, podendo evoluir para carcinoma invasivo, sendo para si um “cancro in situ”. Ora, verificada a lesão na peça extraída da quadrantectomia, a intervenção é perfeitamente justificada e no estrito cumprimento da legis artis. Quanto ao entremetimento da co-arguida A..., posterior à intervenção cirúrgica, também o reputa de correcto já que a palpação não pode ser valorizada naquela fase e nova mamografia não pode também ser feita menos de 6 meses após a operação, sob pena de “vir tudo alterado”. Não encontra esta testemunha justificação para o desfecho trágico, pelo menos na conduta dos arguidos, sendo que a ofendida tinha marcadores graves e uma mama “difícil”. O Prof. Henrique ….. manteve um depoimento aproximado. A quadrantectomia era aconselhável porque estava descrito no relatório da CLÍNICA... um pequeno nódulo, bem localizado no quadrante interno, e não palpável. Sendo a mama “granitada”, fibrótica, a quadrantectomia, que pode ser classificada como uma biópsia dirigida, justificava-se plenamente porque havia já um cancro, nesse quadrante, embora ainda não invasivo. A realização de exames imagiológicos era desaconselhada nos 6 meses subsequentes à intervenção. Também o facto de, posteriormente, ter sido detectado um nódulo no quadrante externo e na zona intervencionada é interpretado pela testemunha, não como o aumento da lesão preexistente, mas como um outro nódulo que surge no mesmo local ou em localização adjacente, o que reputa de vulgar e afirmando também um prognóstico muito desfavorável para a doente, face à agressividade das células malignas e à ausência de receptores hormonais para a progesterona, aumentando em 4 vezes a taxa de morbilidade. O tumor maligno depois detectado era extremamente agressivo, tornando-se uma doença sistémica, com rápida invasão de outras zonas do corpo. Põe inclusivamente a

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hipótese sólida de a doente já estar metastizada aquando da primeira intervenção cirúrgica, embora as metástases ainda não tivessem tradução radiológica. Segundo esta testemunha, na RDT são vistas as imagens, as 2 lesões estavam descritas, sendo uma “tolice” (sic.) afirmar-se que a quadrantectomia não era necessária. Por fim, a consulta técnico-ciêntífica aponta, também, para a probidade do comportamento dos clínicos, acrescentando um elemento de peso à defesa dos arguidos face ao valor probatório reconhecido ao exame, confirmado em audiência pelo perito relator, Prof. Dr. Francisco …. Contudo, sopesados todos estes elementos e face aos factos dados por assentes, é fácil concluir que o Tribunal não seguiu as conclusões do relatório pericial ou aceitou como boas todas as afirmações dos arguidos, passando a esclarecer e, desta forma, justificando os factos provados (não confessados pelos arguidos) e os não provados. Em primeiro lugar, de sinal contrário, temos o depoimento do assistente. De forma muito digna, por vezes tolhido pela emoção e pelo vivenciar de toda esta situação necessariamente traumática, o assistente confirmou todo o caminho percorrido pela esposa, as primeiras inquietações, o diagnóstico, a abrangência do consentimento, a intervenção e o alívio de uma cura esperada, as queixas subsequentes, a desilusão, a indignação com o comportamento dos arguidos e a longa e penosa caminhada, inexorável, em direcção ao desfecho conhecido. Através do assistente também tivemos acesso às percepções da vítima, de forma indirecta mas permitida (face ao decesso da ofendida), sendo o depoimento do assistente claro, documentado, assertivo e acompanhado por todos os elementos clínicos que estribam parte dos factos assentes e desde logo referidos nessa sede por facilidade de operação. Considerado o natural interesse na causa, sendo demandante e marido da ofendida, e aceitando que, para promover uma condenação crime, os elementos probatórios devam ser inequívocos e, de alguma forma, desinteressados, temos que a assunção factual não se fez, em exclusivo, com base nas declarações do assistente. Muito pelo contrário. Na verdade, como refere Enrico Altavilla39, “Ele [o ofendido] é, todavia, demasiadamente interessado para que, abstractamente, não deva parecer uma prova bastante suspeita. (…) Na verdade, nos casos em que o ofendido haja sido testemunha do acontecimento que ofendeu os seus direitos, acentuam-se todas as razões que (…) alteram os processos psicológicos das testemunhas e principalmente as emoções”. Não obstante o acabado de mencionar, essa fragilidade quase congénita que, como defende o insigne autor é, em abstracto, identificável, não implica que, no caso concreto, não se trate de um meio de prova válido que, aqui, não constitui o único suportar a sedimentação dos factos. O seu depoimento é tornado verosímil pela prova testemunhal que a seguir se referirá, por aquilo que foi também dito pelos elementos de prova já analisados e por elementos objectivos e documentais sólidos.

39 Psicologia Judiciária II – Personagens do Processo Penal, pág. 146 e 147.

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Segundo o assistente a hiperplasia, já mencionada em 1995 e referida no relatório histológico da citologia (do Prof. Matos…) mereceu da arguida A... uma palavra de tranquilização e não motivou, como agora seria defensável na tese dos arguidos, a realização de uma quadrantectomia, sendo certo que a intervenção cirúrgica então programada nem chegou a realizar-se, como se alcança do diário clínico da doente. Referiu a preocupação da esposa ao detectar um “caroço” no dia 1 de Abril de 1997, na união dos quadrantes externos da mama esquerda que, na consulta de 14 de Abril, é caracterizado pela arguida A... como uma zona de empastamento, receitando o “Estracomb” que, conforme elemento junto pelo assistente, estaria desaconselhado sem que se tornasse clara a ausência de patologia da mama. A toma do medicamento é inclusivamente interrompida, por conselho de médica de clínica geral amiga da ofendida, facto que não é bem aceite pela arguida A... que fez consignar no diário clínico essa interrupção, voltando a prescrevê-lo em Maio de 1998. Referiu também o assistente o diagnóstico peremptório de cancro maligno aquando da observação efectuada pelo arguido B.... Ilustrou, igualmente, o consentimento da doente no pressuposto de que se efectuaria uma biópsia excisional do nódulo suspeito – e não mais do que isso – ainda que com recurso à técnica do arpão que poderá, de facto, acrescentamos nós, ser dispensável em nódulos claramente palpáveis. Menciona o episódio de a testemunha Margarida..., nas rotinas pré operatórias, estranhamente não ter consigo o processo clínico da doente, facto que é confirmado pela própria em audiência e exarado na folha integrada a posteriori nesse mesmo processo, com a referência ao processo único em falta, bem como as mamografias. A esposa do assistente transmitiu-lhe, também, o facto de o cirurgião ter verbalizado a intenção de chamar a Dra. A... ao bloco, facto que é confirmado pelo arguido D... e que confere credibilidade à fidedignidade do relato. Referiu, também, a comunicação do Dr. Carlos …. atinente à inexistência de cancro e à sensação posterior, manifestada pela esposa, de o nódulo se encontrar no mesmo local, inquietação que é transmitida à arguida A... e por esta encarada como uma fibrose, voltando a receitar o “Estracomb TTS 50”, afastando assim liminarmente a possibilidade de cancro. A nova consulta é marcada para Novembro, com o pedido de exames aos próprios serviços dos HUC, com base num convencimento de ausência de urgência que a arguida A... referiu em audiência inexistir mas sem que justificasse, então, se estava “desconfiada” porque não sugeriu a realização dos exames no exterior, como anteriormente o fizera sendo que, da parte da ofendida, não existiriam, certamente, dificuldades económicas para a sua concretização, sendo inclusivamente beneficiária da ADME. Refere a convicção do Dr. Luís…., assumindo que se trata do mesmo nódulo, mas maior (facto que o próprio confirma em audiência), o terror da esposa e a indignação do depoente, interpelando a arguida A..., que confirma a conversa mas não o teor relatado pelo assistente: - a assunção da existência de erro, do radiologista ou dos cirurgiões, apresentando desculpas. Detectada a existência de metástases, o assistente fez o relato pungente de todo o sofrimento suportado pela esposa e familiares, os tratamentos debilitantes a que se

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sujeitou, a evidente degradação física e psicológica até ao “descanso” inerente ao parar de viver. As deslocações, as despesas, os ciclos de quimioterapia, a ajuda que procuraram no exterior, tudo foi relatado ao pormenor pela testemunha e encontra sustentação documental na sede referida nos factos assentes. A assunção da existência de erro por parte da arguida A... resulta, também, do depoimento da testemunha Ana Paula …., secretária clínica nos HUC e cunhada do assistente. Para além dos documentos já alinhados nos factos assentes, o percurso de sofrimento da família e da ofendida, esta com uma depressão reactiva perante a interiorização do pouco tempo de vida que tinha, a humanidade da vítima, as suas qualidades, foram transmitidas de forma segura e credível pelas testemunhas Ana Paula …, Lígia …., Ana Maria …, Nélson …, Eduardo …, Adelina …, Maria… e Fernanda… Prosseguindo na fundamentação e na identificação dos suportes da convicção do Tribunal, considerou-se, ainda, o depoimento do Dr. Luís …, médico radiologista, à época em funções nos HUC. Confirmou ter efectuado um relatório comparativo com uma mamografia da CLÍNICA... do ano anterior, concluindo que a lesão assinalada se mantinha, estando maior. Foi feita uma biópsia orientada por ecografia para terem a certeza de que atingiam a lesão, embora a mesma fosse palpável, técnica que, a ter sido utilizada, evitaria a incerteza verbalizada pelos arguidos da equipa cirúrgica. Ao contrário da tese dos arguidos A..., D... e E..., secundada pelos depoimentos já mencionados, a testemunha afirmou que com características de malignidade apenas existia uma lesão relatada no exame atribuído ao co-arguido B…. (a que na verdade se situava no quadrante externo). Para além disso, embora reconheça que as cicatrizes existentes poderiam mimetizar um cancro da mama, as mesmas não o impediram de ver uma imagem típica de cancro da mama, que à semelhança do anterior foi classificada de R 4. Embora os nódulos palpáveis possam dispensar o arpão, a testemunha não dispensaria a técnica. Quanto às mamografias em causa têm a seguinte tradução gráfica: Craneo-caudal (1997)

De perfil (1997)

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Craneo-caudal (1998)

Perfil (1998)

*

António..., médico especialista em obstetrícia e ginecologia, a prestar serviço nos HUC, que seguiu a ofendida e efectuou a mastectomia radical, pôde transmitir que o relatório do exame histológico de fls. 225 não revela a presença de cancro. Refere a revolta da ofendida e a sensação de que o cancro preexistia, confirmando a carta de fls. 825 e a afirmação de que a hiperplasia atípica, invocada para defender a necessidade da intervenção ao quadrante interno, não é uma lesão maligna. Estranha, também, que tenha sido comunicado à equipa cirúrgica um fibroadenoma e depois o resultado histológico do exame definitivo da anatomo-patologia ser diverso. Manuel …, médico, especialista em cirurgia-geral, com 30 anos de prática na patologia da mama e que foi Director do Departamento de Oncologia do IPO, também verificou e comparou as duas mamografias, antes e após a intervenção cirúrgica, concluindo pela evolução da mesma lesão. A igual conclusão chegou a testemunha Nuno

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… que, não sendo especialista e, por isso, chegando quase a ser “humilhado” pela intervenção dos arguidos transmitiu, com base na formação comum inerente ao curso de Medicina e através da prática clínica, a ideia, que nos pareceu honesta e sincera, da identidade das lesões. João …, Director do Serviço de Cirurgia no IPO e arrolado pela defesa, declarou a prática seguida de biopsia dirigida com arpão para as lesões não palpáveis (e, na óptica da defesa, a “lesão” do quadrante interno não era palpável). Por aqui, e quanto ao facto mencionado em G), sendo a lesão do quadrante externo palpável, a ausência de biopsia dirigida por arpão não justifica a não excisão do nódulo. Retomando o depoimento da testemunha referiu que, não obstante serem frequentes os espessamentos infra-cicaticiais, pode fazer-se uma mamografia de suspeição, dependendo do resultado do estudo histológico. Embora o controlo radiológico possa obedecer ao espaçamento de 1 ano, pode fazer-se no imediato se o resultado histológico oferecer motivos para desconfiança, o que no caso sucedia. Cerca de 1 mês depois da intervenção, e ao contrário do afirmado pelos arguidos e testemunhas que os secundaram, seria possível pedir o exame ecográfico para dissipar dúvidas e sustentar uma intervenção mais breve do que a seguida. Com base na mamografia da CLÍNICA... e faltando apenas as microcalcificações para um R 5, faria biópsia dirigida por arpão ao quadrante superior externo e, se o lapso de localização fosse conhecido, como afirmaram unanimemente os arguidos A..., D... e E..., não existia motivo para a quadrantectomia efectuada. Quanto ao nódulo do quadrante externo, a comunicação de um fibroadenoma no exame extemporâneo não deveria descansar o cirurgião já que “não aparecem fibroadenomas aos 52 anos” e o nódulo era suspeito. A testemunha Maria João …, médica anatomo-patologista nos HUC, fez o estudo extemporâneo das peças provenientes da intervenção levada a efeito pelos arguidos e, no registo da transmissão dos resultados, não se apontam lesões. Existem alterações fibróticas e quísticas, vulgares nas mulheres, e tecido mamário, não tendo recebido nódulo algum, não tendo comunicado fibroadeanoma ou hiperplasia, pondo em causa, nesta parte, as afirmações, as certezas e os motivos para darem por finda a intervenção referidas pela equipa cirúrgica4041. Maria Teresa …, também médica anatomo-patologista, efectuou o estudo histológico definitivo, junto aos autos42, afirmando peremptoriamente que a hiperplasia lobular atípica não é um carcinoma invasivo. É apenas um factor de risco, exigindo vigilância. Todos estes depoimentos, com reflexos na conduta dos co-arguidos A..., D... e E..., põem em crise a afirmada necessidade da quadrantectomia, da perfeita excisão do nódulo e da correcção dos procedimentos, nomeadamente após a operação, sendo bastante assertiva a testemunha João … ao afirmar que a consulta de pós-operatório, levada a cabo

40 Ver, também, folha de enfermagem de fls. 317 – Vol. II 41 Indirectamente pondo também em causa o diário clínico e aquilo que os arguidos aí exararam. 42 Cfr. fls. 1386

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pela testemunha Carlos …, se destina basicamente a retirar os pontos das suturas, quando os co-arguidos pretenderam, de alguma forma, enfatizar a necessidade deste clínico actuar como forma de sublimar o demonstrado atraso na percepção do erro e na tomada de medidas destinadas a obstar à produção de efeitos lesivos embora se reconheça que, nesta parte, o arguido E... já nada poderia fazer por, entretanto, ter abandonado os HUC43 sem conhecer o resultado do exame histológico definitivo. Reflexamente os depoimentos acabados de transmitir abalam a credibilidade dos defensores da necessidade da quadrantectomia, não obstante a sua (daqueles) indiscutível valia técnica e científica. As declarações dos arguidos também contêm inverosimilhanças e fragilidades. A arguida A... refere que se apercebeu imediatamente do erro de localização no relatório mas transpõe para o diário clínico esse mesmo erro com o argumento de que não era ética a alteração o que, francamente, não é credível e seria, em si mesma, uma atitude negligente. A prescrição de “Estracomb TTS 50” e a requisição dos exames nos HUC, quando em urgência sugeriu a sua realização na CLÍNICA..., também deixa antever a desconsideração das queixas subjectivas da doente. Refere que todos os médicos presentes na RDT ficaram conscientes do erro e que a decisão é colegial e por todos discutida. Porém o Dr. D... não assume a presença na RDT, o mesmo sucedendo com as testemunhas Carlos F…. e Henrique …., chegando-se à conclusão de que todos devem estar presentes mas todos podem estar ausentes. Entende possível que o nódulo alegadamente excisado fosse qualificável como fibroadenoma e que, posteriormente, tenha surgido outro e refere a bondade da extemporânea para uma putativa lesão suspeita não palpável no quadrante interno. No entanto, subscreve o estudo científico, de fls. 2194 e ss.44, onde se afirma para as lesões impalpáveis a pouca segurança do exame extemporâneo e a existência de cancros malignos confirmados em 100% das lesões classificadas em R 4, como sucedia com a lesão do quadrante externo, o que por si era motivo de alerta imediato após a operação. Não seria indicado procedimento diverso e intervenção mais prematura face às queixas da doente e ao resultado da histologia? Aos arguidos D... e E..., face àquilo que disseram ter tomado conhecimento antes da operação e o que alegadamente lhes foi comunicado após exame extemporâneo, não seria exigível uma reavaliação? A própria arguida A... admite ter confessado ao assistente a hipótese de a exploração cirúrgica não ter atingido a profundidade suficiente. Se existiam dúvidas, porque não o esclarecimento cabal prévio? A testemunha Carlos F… emite os juízos e opiniões que já referimos em apoio das justificações avançadas pelos arguidos, conferindo-lhes autoridade consentânea com o alto mérito técnico e científico que se lhe reconhece. Porém, a testemunha é, também, Chefe de Serviço de Ginecologia dos HUC, com menor afastamento do que, por exemplo, o Dr. Bívar que a seguir se referirá; confessa que o contacto com o processo foi

43 Findando o período de formação 44 Vol. X

32 : NEGLIGÊNCIA MÉDICA VERBOJURIDICO

muito “superficial”, não sabe se esteve na RDT e afirma que, não obstante a menção telegráfica exarada no diário clínico, a decisão terapêutica foi correctamente e sem margem para equívocos transcrita numa folha avulsa, que acompanha a doente e que, depois, é destruída por contingências de espaço, facto que é incongruente quando a ofendida tem um diário clínico tão volumoso. Como é que a singela indicação “Pª extemporânea” permite concluir pelo local e âmbito da intervenção? Para si é RDT é uma orientação. Na visão dos cirurgiões é “mandatória”. O Prof. Henrique…, por seu turno, não pondo em causa a sua competência técnica e científica foi, também, Director do Serviço a que pertencem os arguidos e foi constituído também arguido no processo que a IGS instaurou na sequência de participação da ofendida. Dir-se-á, e concorda-se, que tais factos não permitem concluir por um depoimento menos honesto. Porém, aparte isso, a testemunha desde logo afirmou que foi alertado para o caso já no âmbito das averiguações da IGS, nunca tendo observado a doente nem tendo participado na RDT. Seguindo o seu depoimento, então, na base do “dever ser”, é incôngruo afirmar-se que a RDT é transmitida para o diário clínico telegraficamente, sob pena de ser necessário um escrivão e, depois, afirmar-se que a RDT é complementada de forma pormenorizada em folha autónoma pelo Prof. Carlos O…, incluindo o pressuposto trabalho material, para o destino ser o lixo e sendo que este45 pode nem ter estado na RDT. Afirma a importância da RDT, na qual não participou, como reunião colegial, acrescentando que aí são discutidos os casos e observadas as imagens quando o Prof. Carlos Freire de Oliveira indica que em RDT são vistos, em média, os casos de 50 doentes no espaço de 4 horas, bastando a decomposição do tempo referido pelo número de doentes para se determinar o tempo que terá sido dispensado ao caso de uma doente, apresentado por uma médica experiente como a arguida A..., em que existe uma classificação R 4 e em que se escreve no diário clínico, singelamente, “Pª extemporânea”. A testemunha Henrique … também afirma que, no rascunho destruído, estava a descrição da intervenção a realizar e sua localização ao mesmo tempo que afirma terem sido realizadas mais de 7.500 intervenções em 8 anos, o que deixa pouca margem para conhecer, em pormenor, o que diria este rascunho específico. Por fim coloca a norma do espaçamento entre mamografias em 5 ou 6 meses “espantando-o” o facto de, no caso concreto, ter mediado quase um ano, não merecendo acolhimento a indicação da co-arguida A... que tal se deve a contingências própria dos HUC quando, se tivesse assumido, verdadeiramente, que o acto era urgente, em ligação com uma afirmada mas não concretizada valorização das queixas da doente, teria aconselhado a sua realização no exterior, logicamente na CLÍNICA..., como anteriormente o fizera. Não pondo em causa o depoimento das referidas testemunhas e muito menos a honestidade pessoal dos seus autores, os mesmos afiguram-se-nos produzidos em

45 Assumindo as funções do dito “escrivão”

TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA NEGLIGÊNCIA MÉDICA : 33

ordem ao “dever ser” e ao procedimento padrão e não com base num conhecimento directo do sucedido. Resta a questão da prova pericial. Também aqui, e não podendo deixar de registar alguma “altivez” ou mesmo sobranceria por parte do Sr. Perito para quem tudo seria, mais ou menos, “óbvio”, temos que a informação pericial produzida e por si relatada parte de premissas tidas por insofismáveis que o caso não permite. O relatório em causa, a fls. 677 e ss., refere que o relatório da mamografia “(…) confirmou a presença de duas lesões suspeitas nos quadrantes internos da mama esquerda. O que levou a referida especialista a sugerir a remoção das lesões; indicação cirúrgica reafirmada na Reunião de Orientação Terapêutica do Serviço e que a paciente veio a aceitar. Sinalize-se que nessa reunião, se detectou uma discrepância entre o relatório da mamografia – que sinalizava lesões nos quadrantes internos da mama – e o exame clínico que punha em evidência uma lesão situada nos quadrantes externos. Decidiu-se então que se deveria proceder à biópsia extemporânea das duas lesões (…) perante a benignidade das duas lesões biopsadas (…) Os resultados histológicos foram, aliás, confirmados pelo relatório anatomo-patológico definitivo (…) O resultado do exame histológico de ambas as peças operatórias, efectuado no Serviço de Anatomia Patológica dos HUC, após a primeira intervenção, foi inteiramente tranquilizador; já que classificou ambas as lesões como benignas. (…)”. Considerando que o referido “rascunho” é destruído, a percepção de que, após RDT, terá sido indicada uma quadrantectomia por referência ao quadrante interno resultou das declarações e das dúvidas dos cirurgiões e do que a Dra. Margarida... fez exarar no diário clínico. Sem outra prova, o parecer parte do pressuposto que as duas “lesões” relatadas como sendo localizadas no quadrante interno são suspeitas quando o arguido B... só referiu a existência de suspeição em relação a uma delas, aquela que deveria ter sido relatada como estando situada no quadrante externo. Depois assume-se que na RDT se detectou a discrepância quando o diário clínico não o traduz e essa afirmação apenas decorre das declarações da co-arguida A.... Por fim, conclui-se que se decidiu proceder à biópsia extemporânea das duas lesões quando o exarado no diário clínico não sustenta essa afirmação, não foi como tal entendido pelos cirurgiões e o alegado rascunho foi destruído. Por fim assume a benignidade das lesões e o seu efeito tranquilizador quando, para justificar a quadrantectomia, se partiu para a preexistência de um “cancro in situ” que deveria ser extirpado e que não se poderia falar em lesão benigna no quadrante interno. Lembre-se, por fim, que a decisão de operar obedece a uma certa trajectória lógica, em que a doente, pessoa esclarecida e com formação universitária, se vai apercebendo da patologia, procurando informação e esclarecimento junto do médico e sabendo, de antemão e até para efeitos de consentimento, o que irá ser em princípio efectuado. Ora, se essa lesão no quadrante interno fosse suspeita e a ponto de impor, desde logo, a exérese, seria natural que a doente soubesse que tinha não um mas dois nódulos e que ambos iriam ser intervencionados. Não foi isso que resultou da audiência.

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Se não podemos deixar de mencionar estas fragilidades que abalam a versão dos arguidos A..., D... e E..., podemos também contrapor prova pericial constante dos autos e com conclusões diversas. Falamos no exame com tradução a fls. 927 e ss., subscrito pelo Sr. Perito nomeado em sede de inquérito, Dr. Bívar ….. Neste relatório a intervenção da equipa cirúrgica é qualificada de deficiente por não ter conseguido detectar a excisar o nódulo descrito no processo clínico e detectável à palpação. O facto de o nódulo que, pretensamente, teria sido excisado vir traduzido no estudo histológico como tecido mamário sem patologia deveria ter motivado a reavaliação da situação, o que não sucedeu sem justificação plausível. Abalando as conclusões científicas de um relatório pericial com outro de igual relevância probatória fica, quanto a nós, expressa a deficiente intervenção da equipa cirúrgica, na execução material da mesma – sem obliterar que se lhes impunha o esclarecimento prévio das dúvidas surgidas – e, quanto à arguida A..., deficiências na preparação da mesma intervenção e no posterior acompanhamento da doente. Chama-se ainda à colação o facto de ambos os peritos, nos esclarecimentos prestados, terem afirmado que o resultado do exame anatomo-patológico não era tranquilizador. O perito, Dr. … Bívar …., nos esclarecimentos prestados, enfatiza a circunstância de a hiperplasia ser um achado histológico que não justifica, a priori, a necessidade de intervenção. Para além disso não é, como reiteradamente afirmado na tese dos arguidos, uma lesão maligna ou pré maligna. É “apenas” um factor de risco, aumentando em 4 vezes as hipóteses genéricas de contrair um cancro, fazendo apelo a controlo e vigilância e não à necessidade da quadrantectomia efectuada que, assim, perde a sua justificação, contribuindo a conduta dos co-arguidos A..., D... e E... para o resultado verificado: - a ofensa à integridade física que decorre da intervenção injustificada, resultado que é objectivamente imputável à conduta imprevidente destes arguidos. Neste momento importa abordar uma questão imbricada no objecto dos presentes autos, definido pela pronúncia, mas que não faz, verdadeiramente, parte deles. Face ao crime de ofensa à integridade física imputado e à qualificação constante da pronúncia o resultado danoso objectiva-se na ofensa, verificada logo após a intervenção que se revela desnecessária e que implicou a ablação do quadrante interno. Porém, a tónica que é posta no comportamento posterior da arguida A... parece querer apontar para a imputação do resultado morte à manutenção do carcinoma. Não obstante isso, a pronúncia não retira qualquer conclusão prática dessa conduta posterior à verificação do resultado ofensa corporal. Em boa verdade, e face à qualificação jurídica efectuada e à transcrição dos elementos subjectivos do tipo, a conduta posterior à produção do evento danoso acaba por ser irrelevante em termos estritos. É que, rigorosamente, se avançasse para a imputação do resultado morte à conduta imponderada dos arguidos, anterior e posterior à intervenção cirúrgica, estaríamos a considerar um crime de homicídio por negligência e não um crime de ofensa à integridade física. Também em sede cível e como teremos ocasião de retomar e desenvolver no local próprio, a alegação de toda a factualidade adjacente aos tratamentos de quimioterapia,

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o pedido de danos não patrimoniais próprios dos demandantes e a própria dinâmica dos factos alegados levam a aventar que foi pressuposta a existência de nexo causal entre a actividade dos arguidos e a produção do resultado morte. Estribando-se a causa de pedir na prática de ilícito criminal, o crime de ofensa à integridade física não permite essa conclusão. Poder-se-á então referir que, detectado esse nexo de imputação objectiva, sempre o Tribunal poderia usar do mecanismo a que aludem os art.ºs 358º e 359º do Cód. Proc. Penal consoante existissem, ou não, factos novos. Em termos perfeitamente empíricos parece lógica a afirmação e conclusão de que, se o tumor tivesse sido extirpado numa fase mais embrionária, em que existiam boas hipóteses estatísticas de cura e, não o tendo sido, permanece no corpo e aumenta, disseminando-se, sendo extraído num estadio em que a cura é inviável e a morte deriva de neoplasia da mama metastizada, a tentação é, nestes termos, estabelecer o nexo de imputação objectiva. No entanto, em consciência, e estando a prova pericial, em princípio, subtraída à livre apreciação do julgador, não podemos levar o raciocínio silogístico às últimas consequências. A este propósito referiu-se no despacho de arquivamento que “Põe-se a questão de saber se é possível imputar à conduta dos arguidos o resultado morte, caso em que a incriminação se faria por referência ao crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art.º 137º do Código Penal. Para o efeito, seria necessário poder afirmar-se que a morte da ofendida se teria verificado em resultado da acção (negligente) dos arguidos. OU seja, que uma actuação com escrupulosa observância dos deveres de cuidado que o caso suscitava teria evitado a morte da ofendida. Ora, segundo o parecer do Dr. …Bívar …., não é possível afirmar-se que, se a operação cirúrgica realizada em 04/12/97 tivesse sido bem sucedida, estava assegurada a cura total da doença”.46 A mesma dificuldade operativa mantém-se inultrapassável após a audiência já que o juízo pericial que sustenta a acção negligente dos arguidos referidos é peremptório ao afirmar que, com o tamanho do nódulo à observação clínica (maior do que a sua tradução radiológica) e o historial clínico, as hipóteses de cura seriam, não de 90% mas de 70% e só se poderia adiantar, em concreto, se havia ou não hipóteses de cura após o estudo histológico do nódulo que, lembre-se, nessa altura não foi excisado. Assim sendo, de facto, e face a este juízo pericial, inexistem outros elementos seguros, produzidos em audiência, que permitam sair do estado de dúvida e afirmar, cientificamente, que a morte é consequência directa da não excisão do nódulo. Assim se justifica a alteração das percentagens genéricas de cura e esta conclusão terá, necessariamente, reflexos em sede cível. Quanto à consideração social e profissional granjeada pelos arguidos e sua caracterização, o Tribunal considerou os depoimentos de Francisco M…. (este acrescentando que, com um telefonema, se consegue o encaminhamento de doentes para

46 Cfr. fls. 939 e 875, respectivamente nos Vols. V e IV.

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um médico específico dos HUC, pondo em crise o carácter aleatório que os arguidos pretenderam transmitir), Susana …, Manuela ..., Mário …, Abel …, Carlos …, Pedro …, Carlos A… (este acrescentando que, mesmo estando na mesma situação do arguido E... é possível e até saudável questionar uma RDT), Elisabete…, José E…, Elsa …, Mário J… (que desaconselhava a palpação perante uma queixa álgica na zona das cicatrizes, o que, no limite, retiraria todas as hipóteses de diagnóstico se considerarmos a afirmada inadequação de exames imagiológicos) e David …. Quanto às dúvidas que nos assaltaram se o erro do relatório era atribuível ao arguido B... ou a lapso na parte da dactilografia, o Tribunal considerou o depoimento de Teresa …., inexistindo elementos seguros para atribuir o lapso a conduta do próprio arguido. No que tange ao procedimento corrente da assinatura de relatórios por outrem que não o seu autor e sem confirmação da correcção científica, o Tribunal estribou-se nos depoimentos de Elisabete … e José E... Finalmente, no que concerne à susceptibilidade de o erro detectado ter gerado uma situação de perigo concreto para a doente a prova pericial é unânime no sentido de que o erro era facilmente detectável, circunstância que até é acolhida na própria pronúncia e que será ao diante retomada. A não existir uma situação de perigo concreto, tal terá reflexos, necessariamente, também na conduta da co-arguida C.... Quanto aos factos alegados não especificamente dados como provados ou não provados, tal resulta de, ou serem factos instrumentais, de outros fundamentais dados como provados ou não provados conforme análise crítica supra, ou estarem, em particular ou em geral, em contradição lógica com a matéria fáctica supra referida ou de não terem interesse para a decisão da causa.

* *

V. Enquadramento jurídico-penal dos factos V.1 Do crime de alteração de análise por negligência - A conduta imputada aos co-arguidos B... e C... Vêm os co-arguidos B... e C... pronunciados pela prática de um crime de alteração de análise por negligência, agravado pelo resultado, p. e p. pelos art.ºs 283º n.ºs 1 al. b) e 3 e 285º, ambos do Cód. Penal. Dispõem os preceitos legais referidos:

... art.º 283º

(Propagação de doença, alteração de análise ou de receituário) 1. Quem: a) Propagar doença contagiosa;

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b) Como médico ou seu empregado, enfermeiro ou empregado de laboratório, ou pessoa legalmente autorizada a elaborar exame ou registo auxiliar de diagnóstico ou tratamento médico ou cirúrgico, fornecer dados ou resultados inexactos; ou c) Como farmacêutico ou empregado de farmácia fornecer substâncias medicinais em desacordo com o prescrito em receita médica; e criar deste modo perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem é punido com pena de pisão de 1 a 8 anos. 2. Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos. 3. Se a conduta referida no n. ° 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

art.º 285º (Agravação pelo resultado)

Se dos crimes previstos nos artigos 272.°, 273.°, 277.°, 280.°, ou 282.° a 284.°, resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

... O crime em epígrafe visa proteger a visa e a integridade física. Prevêem-se no art.º 283º do Cód. Penal três situações autónomas: - acção dolosa com perigo doloso, no caso do n.º 1, acção dolosa com perigo negligente, na hipótese do n.º 2 e, por fim, a acção negligente, contemplada no n.º 3 do preceito em análise. Para efeitos da definição legal existem resultados inexactos “(…) quando, intencionalmente, o agente altera os elementos que colheu através dos exames efectuados, fornecendo deles informação não correspondente com a realidade. Essa viciação pode provir da subversão dos próprios resultados obtidos (…) ou de acção exercida sobre os mecanismos ou utensílios fornecedores desses dados” sendo que “são meios auxiliares de diagnóstico ou de tratamento todos os exames que se destinam a apoiar o médico no conhecimento ou tratamento da saúde dos cidadãos e a que ele não tem acesso por simples observação”47. O ilícito em análise constitui, dogmaticamente, um crime de perigo concreto48, apelando à necessidade desse perigo ser “grave”.

47 Leal-Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, vol. 3, 1986, em anotação ao art.º 274º, pág. 377. 48 Cfr., a este propósito, J. M. Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 1007 e

1008.

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Na lei penal substantiva, pode o perigo surgir como evento típico, destacado da própria acção; como motivo da incriminação; em referência ao desenrolar objectivo da acção típica; ou como substrato objectivo de agravação pelo resultado. Para uma correcta compreensão da forma de preenchimento deste crime, cumpre fazer um breve bosquejo sobre a estrutura dogmática dos crimes de perigo, ainda que restrita à distinção entre crimes de perigo concreto e de perigo abstracto, não nos ocupando da destrinça entre crime de perigo singular e crimes de perigo comum. Nos crimes de perigo, a protecção penal do bem jurídico começa logo que o perigo se manifesta, ou seja, quando se verifica uma grande probabilidade de dano, de lesão do bem jurídico. Numa definição objectiva e prática, diríamos com Frederico Costa Pinto49 que, "Em Direito Penal o perigo corresponde à possibilidade de dano; esta é uma noção real, objectiva, que assenta na natureza das coisas e uma leitura que parte da natureza das coisas". Podem ser crimes de perigo concreto, que são crimes de resultado, mas em que o evento causado pela acção é a situação de perigo para um determinado bem jurídico – resultado de perigo50 – caso em que, para o preenchimento do tipo objectivo, é necessário que se verifique o perigo concreto. Assim, tem de existir um objecto de perigo, ou seja, determinados bens jurídicos em relação aos quais se possa verificar uma enorme possibilidade de lesão, ou seja, o perigo; esse objecto de perigo tem de entrar no círculo de perigo; e, por fim, verificar-se um nexo de causalidade entre o perigo e a conduta do agente, ou seja, a lesão não poderá ocorrer por força de circunstâncias inesperadas ou esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis de terceiros ou do ameaçado, ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis ou irrepetíveis. Dito de outra forma, neste tipo de ilícitos, os crimes materiais de perigo, como refere Rui Pereira51 "(...) o destacamento do evento é uma exigência normativa (...) Tal exigência tem um fundamento de restrição da responsabilidade jurídico-penal que deriva, imediatamente, da consideração do desvalor do resultado como momento autónomo do juízo de ilicitude". Este é um tipo de crime de resultado e em que é possível cindir, das perspectivas lógica e ontológica, uma acção e um resultado, resultado esse que tem a particular circunstância de traduzir a efectiva possibilidade de produção de um certo dano (de características mais graves) para o bem jurídico protegido. O evento perigo, que se consegue destacar da acção, tem de ser objecto de dolo por parte do agente, extensível aos elementos constitutivos do tipo e apto à imputação objectiva por via dos mecanismos da causalidade adequada.

49 Apontamentos das aulas proferidas na cadeira de Direito Penal II, ano lectivo de 92/93, F.D.L., pág. 113 50 Ac. TC 426/91 de 06.11.1991, BMJ 411/57 51 Dolo de Perigo, tese de mestrado policopiada, F.D.L., pág. 134.

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Os crimes de perigo abstracto, por seu lado, não pressupõem nem o dano nem o concreto perigo de um bem jurídico protegido pela incriminação. O legislador parte do risco geral da acção, da presunção iuris et de iure de que os factos constituem normalmente um perigo de lesão para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens jurídicos. Dado que o resultado de perigo não faz parte do tipo legal, não se requer a prova da criação do perigo ou que o meio de cometimento do crime foi perigoso, ao contrário do que sucede nos crimes de perigo concreto. Resumindo, os crimes de perigo abstracto ou perigo presumido são próprios de um perigo não integrativo do tipo, nem na acção descrita mas que, a título de opção do legislador de política criminal, servem de fundamento à incriminação, partindo-se de uma presunção iuris et de iure de perigosidade, susceptível apenas de um juízo negativo de perigo aferido ao caso concreto. Por fim, surge ainda um tertium genus, os chamados crimes de perigo abstracto-concreto, nos quais basta a conduta para presumir o perigo, mas a demonstração da inexistência de perigo determina o não preenchimento do tipo, ou seja, é possível a elisão da presunção de perigo, mostrando que inexiste no caso52. Prevêem-se e incriminam-se situações em que, por referência aos meios empregues na lesão, seja legitimo – aferindo-se a comprovação judicial a critérios de experiência – conotar a acção como intrinsecamente perigosa.

* No caso vertente, e para efeitos de verificação e apreciação da qualificação operada com base na conduta do agente em face da factualidade provada, importa compaginar a situação dos autos à luz das duas situações vertidas no tipo legal transcrito. Em consonância com o n.º 1 do art.º 283º do Cód. Penal, as condutas típicas aí referidas e espraiadas nas diversas alíneas são conducentes a uma situação de perigo concreto. O perigo é um resultado autónomo, destacado das várias acções que o agente pode praticar, e concretizado a final: - “(...) e criar deste modo perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem.”. Exige-se, pois, na forma dolosa, que o agente tenha determinada função – no caso médico – que queira praticar a acção típica de fornecer exame inexacto e que, através desta, queira gerar uma situação de perigo para a vida ou integridade física de outrem, de uma forma intencional, mas que não tenha, contudo, uma atitude reflexiva quanto às consequências lesivas desse perigo, implicando, pelo exposto, uma negligência consciente de dano. E tanto é assim que, caso esse evento concreto perigo implique uma conformação com as consequências lesivas da conduta, estaríamos no âmbito de um crime doloso, tentado ou consumado, aferido, precisamente, às consequências mais gravosas da sua resolução criminosa.

52 Rui Patrício, Apontamentos sobre um Crime de Perigo Comum e Concreto Complexo, in RMP, n.º 81, 2º trimestre de

2000, pág. 91 e ss.

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Tanto o elemento intelectual como volitivo se restringem à configuração da situação de perigo – com um juízo volitivo negativo, não reflexivo, quanto à possibilidade de produção do dano, e um elemento activo, volitivo, quanto à criação do perigo, destacado este da própria acção. A alteração de exame, embora querida, não é cotejada em toda a multiplicidade de concretização danosa, apenas se perspectivando como um meio mediato para a criação do perigo, com negligência, no máximo, consciente, da probabilidade de transmutação do perigo em grave lesão do bem jurídico protegido. Como refere Nelson Hungria53 "O dolo de perigo é intenção de fazer nascer o evento perigoso. O agente quer o perigo, quer a ameaça efectiva de um bem jurídico, mas não quer, nem mesmo eventualmente, a lesão do bem ou interesse concreto. Pelo que, ainda que seja indubitável que o agente, ao querer o evento perigoso, prevê também o resultado danoso este, contudo, está para além da sua vontade.". Na hipótese que agora nos ocupa e seguindo a qualificação jurídica dos factos proposta na pronúncia, vêm os co-arguidos B... e C... acusados da prática de um crime de alteração de análise, por negligência, agravado pelo resultado, p. e p. pelos art.ºs 283º n.ºs 1 al. b) e 3 e 285º, ambos do Cód. Penal. Não se pressupõe uma atitude dolosa na alteração constante do relatório nem quanto à criação de perigo mas, tão só, uma actuação temerária, culposa, na acção. Fazendo-se a imputação a título negligente terá forçosamente que existir nexo de causalidade entre a conduta do agente e o crime. É necessário que o resultado – criação de perigo para a vida ou integridade física – seja objectivamente imputável à actividade do agente traduzida na alteração involuntária de exame. Uma acção será adequada para produzir um resultado (teoria da causalidade adequada) quando uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente, tivesse podido prever, em circunstâncias correntes, que tal resultado se produziria inevitavelmente (raciocínio de prognose póstuma). Isto significa que só será objectivamente imputável um resultado causado por parte de uma acção humana quando a mesma acção tenha criado um perigo juridicamente desaprovado que se perfez num resultado típico (imputação objectiva do resultado à acção). “O conceito de negligência compreende, não só as situações em que se não cumpre um determinado dever jurídico prescrito em lei ou regulamento, como aquelas em que se não procede com a diligência que é um dever geral do cidadão”54; ou seja, trata-se de situações em que o agente não usou da diligência exigida, segundo as circunstâncias concretas, para evitar o evento danoso. Beleza dos Santos sustentava que a par dos deveres concretos havia um dever geral de atenção, de cuidado, de previdência quanto ao “respeito pelos interesses

53 Citado por Leal Henriques / Simas Santos, in O Código Penal de 1982, Vol. II, pág. 111. 54 Cfr. Acórdão da Relação de Évora de 04/02/1992 (CJ, 1992, T.I, p. 291.

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alheios”55. Não havendo disposição legal que diga como deverá determinar-se esse dever geral, há que ir buscar tal determinação à sua razão de ser que é a razão social. Assim, para saber se em tais condições é culposa uma conduta deve aferir-se a mesma pelo conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo, do modo e do lugar, não obliterando as particulares qualidade do agente de médico especialista. Revertendo ao caso em apreço, ainda em sede de tipo objectivo, é necessário que o perigo para a vida ou integridade física, enquanto desvalor do resultado, seja objectivamente imputável à conduta violadora do cuidado devido. Como se refere no Ac. RP de 2004.10.2756, “Tratando-se de responsabilidade negligente, o comportamento do agente haverá de configurar a violação de um dever objectivo de cuidado (cfr. art. 15.º do Cód. Penal), sendo este o elemento normativo nuclear em torno do qual se estrutura o ilícito típico em presença.”. Definindo o conceito, Faria Costa esclarece que o dever de cuidado é, “em termos dogmáticos, o ideal de um cânone de comportamento que a sociedade julga como o mais adequado à protecção de bens jurídico-penais57” e “os crimes negligentes inscrevem-se, justamente em razão da imprecisão do conceito, na categoria dos chamados tipos abertos. O dever objectivo de cuidado não tem uma origem necessariamente formal, bastando a sua idoneidade, em abstracto, para, em face das concretas circunstâncias do caso, evitar o resultado proibido.”58. No caso sub judice, atendendo às especiais características dos arguidos em causa, o “dever objectivo de cuidado” deverá ser concretizado e apreciado à luz do que é expectável e exigível tendo em conta os usos e normas que regem a actividade médica. O dever objectivo de cuidado decompõe-se em duas vertentes. A perspectiva interna, consistente num dever de representar o perigo, valorando-o correctamente, e, por outro lado, a óptica externa, reivindicando a obrigatoriedade de adopção de condutas idóneas a evitar o evento danoso ou agindo de forma prudente em situações intrinsecamente perigosas, envolvendo vários outros deveres parcelares como o “cumprimento de deveres de preparação e informação”59. Compulsados os factos assentes temos por provado que o relatório de fls. 9560, realizado pela vítima na CLÍNICA..., onde ambos os arguidos trabalhavam, continha um erro de localização da lesão suspeita, afirmando que se situava na união dos quadrantes internos da mama esquerda quando, na verdade, a mesma se situava na união dos quadrantes externos da mesma mama.

55 RLJ, 67-162, 70-225. 56 In www.dgsi.pt 57 Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, p. 478, citado no Ac. RP de 2004.10.27. 58 Ac. RP de 2004.10.27 in www.dgsi.pt 59 Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General, 4ª ed., Editorial Comares, Granada, 1993, pág.

527 – trad. livre. 60 Vol. I

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Para além disso sabemos que o erro de localização no relatório obteve tradução no diário clínico da doente e que a intervenção cirúrgica que sobreveio à RDT61 incidiu sobre o quadrante interno da mama esquerda, tendo sido retirado, pela quadrantectomia efectuada, aquele mesmo quadrante. Foi ainda realizado acto cirúrgico por alargamento da RDT, visando a exérese do nódulo palpável, situado no quadrante externo, sendo esta, na verdade, a lesão suspeita, classificada de R4, a que o relatório pretendia aludir e que deveria fundamentar a intervenção cirúrgica. Por deficiente execução, temos também por inequívoco que o tecido retirado para análise extemporânea, proveniente da incisão cirúrgica no quadrante externo, por não ter atingido a profundidade necessária, não revelou patologia e muito menos compatível com a indicação de grau 4 na Classificação de Marsellha (modificada)62. Mantendo o carcinoma a sua localização, veio a revelar-se em exames posteriores, subsequentes à sua avaliação clínica, mas diminuindo dramaticamente as hipóteses de cura ou sobrevida da doente caso tivesse sido extirpado na primeira intervenção. A doente veio a falecer na sequência de neoplasia metastizada, após um doloroso percurso de degradação física e anímica. Na lógica interna da pronúncia necessário se tornaria a demonstração segura e incontestável de que o erro de localização da lesão constante do relatório era directamente atribuível a uma acção (negligente) do arguido B..., putativo autor do erro, concorrendo para a sua difusão e perpetuação a conduta, negligente também, da co-arguida C…. que, contrariamente àquilo que seria expectável e exigível, não terá confrontado o teor do relatório com as películas da mamografia, não reparando o erro do relatório. Para além disto, teria que fazer-se a demonstração de que o perigo para a vida ou integridade física da vítima era objectivamente imputável à conduta dos co-arguidos em referência. Confrontando agora o segmento em causa da pronúncia com aquilo que se provou após julgamento. Como em qualquer outra acção humana que é pressuposto ser típica, ilícita e culposa, a sua punição depende, em primeira linha, da identificação de um sujeito responsável. É insofismável que o relatório de fls. 95 contém um erro de localização da lesão e que é assacado ao arguido B.... Como já tivemos a oportunidade de referir, em sede de fundamentação da decisão de facto, o arguido em causa não exclui ter sido o responsável por esse erro. Mas também não afirma peremptoriamente a sua autoria já que os relatórios não são directamente dactilografados pelos clínicos mas sim por secretárias que sustentam essa operação em gravações áudio do relato do médico, não sendo esta operação impermeável ao erro e inexistindo hipótese de aferição da conformidade já que o arguido não chegou a assinar o relatório. Destarte, sendo a matéria de facto provada a que acima ficou descrita, não pode o arguido ser criminalmente censurado pela cominação do preceito típico que lhe foi

61 Reunião de Decisão Terapêutica 62 O mesmo tendo acontecido com o tecido proveniente da peça da quadrantectomia.

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imputado e, por isso, face ao princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, impõe-se, a sua absolvição. Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objecto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma actividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve sempre ser precedida de uma mínima e suficiente actividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras. Sendo esse princípio uma norma directamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. artigo 18º, n.º 1 da Constituição), direito esse reconhecido no direito internacional (cfr. artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição. Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao acto de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida, deve absolver o arguido por falta de prova. Como bem sustentou Cavaleiro Ferreira, “Em processo penal, a justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição de um culpado e nunca o de condenação de um inocente”63. Concluindo e utilizando uma fórmula consagrada, da autoria do Professor Figueiredo Dias, pode dizer-se que “(...) um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido”64 – pois a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção de inocência. Por tudo o exposto, e porque o Tribunal não obteve, quanto ao co-arguido B..., a convicção positiva acerca dos elementos constitutivos do crime, resta apenas, à luz do princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência, absolver este arguido do crime por que vinha acusado.

* Importa agora prosseguir a análise que se iniciou, desta feita apenas quanto à conduta da co-arguida C.... Sem pretender discutir, desde já, os campos da (in)exigibilidade – adiantando que não obstante as rotinas estabelecidas e os costumes instalados a assinatura de um relatório não será um acto meramente formal – está demonstrado que a co-arguida C…. colocou a sua assinatura no relatório de fls. 95, que era atribuído ao co-arguido B..., embora pretendendo alguma “salvaguarda” ao apor, não só a sua assinatura como também

63 Cfr. Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa, 1986, pág. 216. 64 Cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, 1974

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a indicação de que o fazia “pelo” co-arguido. O relatório continha um erro e a arguida não o detectou por não ter confrontado a análise com as películas. Sabemos, também, que o erro não foi corrigido pela co-arguida A... e que foi efectuada, desnecessariamente, quadrantectomia no quadrante interno da mama esquerda, precisamente a área na qual, segundo a indicação errónea do relatório, se situava a lesão suspeita. Por último temos ainda por demonstrado que o carcinoma que era assinalado nas películas e no relatório, embora aqui com erro de localização, por deficiente exploração cirúrgica, não foi extirpado e, mantendo-se no corpo da vítima por mais tempo, cônscio da importância da intervenção precoce neste tipo de patologias, diminuiu bastante a probabilidade estatística de cura. Temos, então, uma intervenção da co-arguida C... que, ao “pôr em circulação”65 um meio auxiliar de diagnóstico importante cujo relatório continha um erro, ficou aquém daquilo que era expectável que fizesse e daquilo que as regras de prudência lhe impunham. Tudo isto sem obliterar que a aposição da sua assinatura obedeceu a uma rotina que, até aí, não lhe tinha criado constrangimentos e, além disso, visava possibilitar a entrega imediata do relatório no escopo de favorecer a vítima e a rapidez de intervenção. Porém, é duvidoso que se possa falar de autoria na alteração de exame. Todavia, mesmo que se considere a actuação da co-arguida como em violação de um dever objectivo de cuidado, importa que daí tenha resultado, em termos de causalidade, um concreto perigo para a vida ou integridade física da doente, sabendo nós de antemão que, mais do que um perigo concreto, falamos neste processo num dano efectivo na integridade física, subjacente à ablação de um quadrante sem patologia. Temos também o perigo para a vida em resultado da manutenção do carcinoma no quadrante externo. Entendemos, porém, não verificado o necessário nexo causal. Nem quanto aos elementos factuais que o suportariam – na vertente da demonstração se determinada dinâmica factual funcionou como condição motivadora de determinado efeito – nem em termos de direito enquanto apreciação, no plano abstracto, se determinada condição foi ou não causa adequada do evento final. Chamando à colação a defesa apresentada pelo co-arguido B... (sendo que o que acabamos de afirmar também lhe seria aplicável caso não tivesse soçobrado a prova da autoria), é o teor factual da própria pronúncia e que se demonstrou que vai degradando o estabelecimento do necessário nexo causal. É a pronúncia que vai por diversas vezes afirmando, com propriedade e no sentido de demonstrar a atitude temerária dos demais arguidos, que o erro do relatório era claro, evidente e facilmente detectável (cfr. II. 17., 24. e 25. – factos provados). Ora, assim sendo, não é, de facto, o erro de localização da lesão constante do relatório que conduziu, em concreto, à colocação em risco da vida e da integridade física da vítima. Foi, ao invés, a atitude temerária dos clínicos que se seguiram.

65 Não directamente sobreponível às condutas típicas constantes do preceito legal

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Em primeiro lugar esse “risco” para a integridade física derivou da decisão tomada para o caso, embora nesta concorrendo o facto de não ter sido apreciado correctamente o meio complementar de diagnóstico. Só que aí, sendo o erro “claro” e “facilmente” detectável no confronto com a película e o exame clínico (palpação), o resultado é derivado não do erro do relatório, que era claro, mas sim da violação que se lhe seguiu e que analisaremos, já no âmbito da conduta da arguida A.... O risco para a integridade física, que acabou por traduzir-se num dano efectivo consistente na quadrantectomia desnecessária, não é assim objectivamente decorrente do erro do relatório que a arguida C... pôs em circulação mas sim da conduta temerária que se lhe seguiu. Como refere Jescheck66, na negligência não basta que a acção contrária ao dever de cuidado constitua uma causa do resultado. O resultado só pode ser atribuído ao agente quando teve precisamente como pressuposto específico a violação do dever de cuidado que lhe é imputada, o que no caso não se verifica já que deriva de comportamentos negligentes posteriores. O erro do relatório, por si só, sendo facilmente detectável e destinando-se o exame a ser apreciado por outros médicos, seria, em termos de normalidade, detectável e portanto não seria idóneo67 para gerar a situação de perigo para a integridade física. Como refere Muñoz Conde68 “(…) as acções negligentes só são puníveis, por imperativo do princípio de intervenção mínima do Direito penal, na medida em que produzam determinados resultados. O desvalor da acção (a acção negligente) não é, por si, suficiente para determinar uma sanção penal, sendo necessário que se ligue ao desvalor do resultado (…)”. Embora se possa considerar imprudente a conduta da arguida C... verifica-se aqui o que o autor citado designa por processo causal irregular, sendo que o desvalor do resultado advém da conduta imponderada dos que lhe seguiram e nos termos sobreditos. Quanto ao perigo para a vida, o decorrente da manutenção do carcinoma, deriva da deficiente intervenção da equipa cirúrgica, que detectou inclusivamente o nódulo à palpação e pretendeu retirá-lo e, portanto, já sem qualquer relação com o erro de localização do relatório da mamografia. Concluímos, pois, e laborando no campo dos crimes de perigo concreto, pela falta de nexo causal entre a imputada violação do dever objectivo de cuidado e a efectiva situação de perigo para a vida ou integridade física da doente. O risco existiu – e aliás concretizou-se num dano consistente na ablação desnecessária do quadrante interno – mas não derivou directamente do erro mas sim da conduta posterior dos médicos que, em circunstâncias normais, podiam e deviam tê-lo detectado facilmente, quer no confronto com as películas quer, ainda, através do exame clínico.

66 Op. cit., pág. 530. 67 Sobre a questão da idoneidade e da teoria da adequação cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, Coimbra Editora,

Coimbra 2004, págs. 309 e ss. 68 Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán, Derecho Penal – Parte General, 4ª ed., Tirant lo Blanch, Valência

2000, pág. 328. A tradução do castelhano é livre.

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Pelo exposto, e na falta deste elemento, deverá a arguida C... Amaral ser absolvida.

* V.2 Do crime de ofensa à integridade física por negligência - A conduta imputada aos arguidos A..., D... e E... Vêm os co-arguidos A..., D... e E... pronunciados pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos art.ºs 148º n.ºs 1 e 3 e 144º al. a) do Cód. Penal. Dispõem os artigos em referência:

… art.º 148º

(Ofensa à integridade física por negligência) 1. Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2. No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando: a) O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou b) Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias. 3. Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. 4. O procedimento criminal depende de queixa.

art.º 144º (Ofensa à integridade física grave)

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; (…)

… O preceito legal em referência visa proteger a integridade física numa perspectiva corporal objectiva, isto é, não abrangendo a integridade psíquica, embora possam nele ter cabimento ofensas com consequências psíquicas. Tendo por objecto o corpo humano, para o seu preenchimento tem de haver a lesão do corpo ou saúde de outrem.

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No conceito de ofensa do corpo cabem as actuações que implicam uma diminuição da substância corporal, as lesões da mesma, as alterações físicas e a perturbação de funções físicas, se bem que não possa ser insignificante, diminuta69. Tem de ser observada em termos objectivos, se bem que tendo em consideração as condições pessoais. A ofensa à saúde refere-se às intervenções que ponham em causa o normal funcionamento do corpo ou organismo da vítima, originando, mantendo ou agravando um estado patológico. Para o preenchimento do tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física deverão estar presentes, portanto, três elementos: alteração da saúde ou corpo; com tradução material no corpo humano; e que essa alteração seja produzida por outrem70. Basta a verificação desse resultado, independentemente da dor ou sofrimento causados, da gravidade ou da sua duração. In casu, a punição da violação do bem jurídico protegido e acima referido faz-se a título negligente, com base legal no estatuído no art.º. 15º do Cód. Pen.. Daquele normativo extrai-se a desvaloração decorrente da não observância de um dever objectivo de cuidado, adequado, segundo as circunstâncias de experiência e das circunstâncias concretas, a evitar o resultado lesivo. No debuxo do fundamento da punição por negligência resulta, também, a culpa, vista esta como a censura penal pela falta de representação ou de correcta representação do resultado e da omissão do dever de cuidado para evitar a lesão (ou perigo de lesão) do bem jurídico e o resultado danoso71. A definição doutrinária de crime – como a acção típica, ilícita e culposa – vale neste enquadramento jurídico-penal, com as necessárias adaptações. No pressuposto de que todo o facto punível parte de um comportamento voluntário socialmente relevante, o já referido art.º. 15º do Cód. Penal apela à exigência da violação de um dever de cuidado, na perspectiva interna do agente – o dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico protegido e de o valorar, não o representando na negligência inconsciente, ou não o valorando correctamente, na negligência consciente. Do ponto de vista externo, o dever de cuidado manifesta-se na exigência da adopção de um comportamento adequado, quer omitindo acções perigosas, quer actuando prudentemente nessas circunstâncias quer, ainda, desrespeitando o dever de preparação prévia. Dependendo dos casos, a afirmação de um dever de cuidado poder-se-á reportar a normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras

69 Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág.

206 70 J. PINTO DA COSTA, Ofensas Corporais – Introdução ao seu Estudo Médico-legal, in Revista do Ministério Público, n.º

23, pág. 70 e ss. 71 - cfr. Eduardo Correia, Les problèmes posés dans le Droit Pénal moderne par le dèveloppment des infractions non

intentionelles, in Revue de Droit Pénal, 33º année, pags. 223 - 236;

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de conduta no âmbito de actividades perigosas. O dever objectivo de cuidado decorre, assim, na maior parte dos casos, das circunstâncias particulares do caso em análise, ou de normas (não necessariamente penais) que visam limitar ou diminuir os riscos próprios de certas actividades, como o exercício da medicina. A construção de premissas e a perspectivação da conclusão pela existência de uma violação do já caracterizado dever objectivo de cuidado deve efectuar-se à luz do meio social e profissional do agente, naquela situação concreta, fazendo apelo à concepção civilista do art.º. 487º n.º. 2 do Cód. Civ., ou seja, através de um juízo ex ante fundado no critério do “homem médio”. Como refere Figueiredo Dias72, a esta personificação do bom senso interessam também os elementos extraídos das precisas circunstâncias de tempo e local em que se vê envolvido o agente, de modo a melhor retirar os elementos que, objectivamente, impunham outro tipo de actuação. É o que entende aquele autor ao referir: - "Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido – e só nestas condições – é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição". Visto o desvalor da acção, importa analisar, em traços gerais, o desvalor do resultado. A eclosão do resultado danoso deve encontrar-se em relação tal com a acção desconforme ao identificado dever de cuidado de modo a que se afirme, com certeza, que o primeiro é resultado do segundo. O nexo de imputação objectiva não deve realizar-se quando for certo que o resultado adveniente da actividade imponderada se verificaria mesmo adoptando o agente um comportamento licito. Dir-se-á ainda, por fim, que “Constitui orientação dominante dos tribunais superiores que a negligência se presume quando tenha havido inobservância de leis ou regulamentos”73. Revertendo as considerações expendidas ao caso concreto. No que agora nos ocupa refira-se que os arguidos A..., D…. e E... são, todos eles, médicos, sendo que os dois primeiros eram especialistas e davam formação ao co-arguido Mário. Considerado o seu grau de formação, a apreciação da eventual violação de um dever objectivo de cuidado navega à vista das especiais qualidades dos agentes. Observados os factos provados entendemos que era exigível à co-arguida A... comportamento diverso. A montante da intervenção cirúrgica são já relatados na pronúncia factos que se alinham para fundamentar um comportamento negligente. No entanto daí não são

72 - Pressupostos da Punição in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 71. 73 Acórdão da Relação de Coimbra de 30/05/1996, BMJ 457-458.

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extraídas conclusões com relevância para o evento danoso: - a ofensa à integridade física. De igual sorte, e como já tivemos oportunidade de referir em sede de fundamentação da decisão de facto, a jusante são referidos outros factos que, quanto à ofensa à integridade física e ao resultado produzido, são também irrelevantes dando a entender uma eventual pretérita intenção de acusar pelo crime de homicídio por negligência que não veio a concretizar-se. Retomando a análise do caso concreto a arguida A... não valorizou a discrepância da localização a lesão reputada de suspeita, não a esclareceu junto do arguido B... e, sem o esclarecimento prévio que se impunha colocou a questão em RDT, não sem antes transcrever para o próprio diário clínico da doente o erro manifesto, dando origem a uma intervenção equívoca e em primeira linha orientada para o quadrante errado, isto quando sabemos, como se referiu em sede e fundamentação da decisão de facto, que a reunião do serviço é breve, que os escritos são muitas vezes telegráficos e que a RDT, para a equipa cirúrgica, é o elemento que normalmente se segue. A tudo isto soma-se o desvalorização das queixas subjectivas da doente em consulta após a operação, desta forma diminuindo as hipóteses de reparação atempada do erro. Porém, este elemento apenas permite concluir pela diminuição das hipóteses percentuais de cura ou sobrevida e não, pelo que já se referiu em sede de fundamentação da decisão de facto, estabelecer nexo de imputação objectiva à morte da doente, caso em que estaríamos a falar de homicídio. Lembre-se que a pronúncia se dirige à ofensa à integridade física que já existia à data desta consulta, consistente na ablação do quadrante interno e à cicatriz provocada no quadrante externo sem resultados. De forma diversa ao que se decidiu e comentou a propósito da actuação da co-arguida C..., a co-arguida A... contribui, de forma adequada, para o evento danoso tendo em conta a importância da RDT e do diário clínico para os contornos da intervenção cirúrgica a realizar, isto não obstante a actividade culposa concorrencial que se lhe seguiu, assacável à equipa cirúrgica. Agora quanto aos co-arguidos D... e E..., pela sua atitude, potenciaram o risco e contribuíram também, materialmente e de forma adequada, para o evento final. Na verdade, os arguidos tiveram dúvidas no início da operação, facto que por si só ilustra a actuação deficiente da co-arguida A.... Porém, perante essas dúvidas e numa situação potencialmente perigosa como é a própria intervenção cirúrgica, impunha-se-lhes que dissipassem tais dúvidas, que se esclarecessem através do confronto com as películas, que adiassem, se necessário fosse, a própria intervenção. Não o fazendo efectuaram uma intervenção desnecessária – a quadrantectomia – que produziu materialmente o resultado que a norma incriminadora procurava evitar e, mesmo já animados da vontade de completar a RDT, alargando o seu âmbito ao quadrante externo, não o fizeram de forma a atingirem o nódulo, que era palpável, dando origem a mais uma cicatriz que se justificaria apenas como forma de extrair o nódulo. Deram o acto cirúrgico por terminado face a uma informação de lesão benigna que, mesmo que se traduzisse no que exararam no diário clínico e não no que a médica anatomo-patologista diz ter transmitido, não era tranquilizador quando havia uma suspeita tão consistente de malignidade (lembre-se as

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conclusões do estudo dos co-arguidos A... e B..., apontando para 100% de lesões malignas quando a informação radiológica conclui pelo grau R 4). A conduta destes três arguidos é assim violadora dos deveres gerais de diligência e informação consentâneos com a sua habilitação técnica e funções que desempenharam, bem como os deveres de zelo que o próprio estatuto profissional lhes impõe. A esta conclusão se chega mesmo considerada a relação de dependência do co-arguido E.... Embora o mesmo estivesse em formação, em avaliação74, e tendo que ser tutelado pelo co-arguido D... não deixa, porém, de ser um médico, com capacidade de emitir opinião e dever de consciência de não executar indicações que previsse erradas e prejudiciais à doente. A sua actuação não se insere, assim, nas causas de exclusão da culpa por obediência indevida, isto sem prejuízo de a sua condição específica relevar em sede de determinação da pena. Alinhado o contributo material e psicológico destes três arguidos para o facto danoso, este não pode deixar de ser uma consequência directa e necessária da acção culposa daqueles, que se complementam. Para que haja culpa é necessário que, no mínimo, não tendo o agente sequer representado a possibilidade da realização do facto, não tivesse procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz (negligência inconsciente). Os arguidos, segundo a pronúncia, não se conformaram com a realização desse resultado danoso. Os deveres de cuidado analisados e violados, quer os directamente decorrentes da função, quer os gerais de diligência e informação, atentando contra o direito de personalidade que assistia à vítima, atestam o carácter ilícito da conduta e denotam a existência de negligência no comportamento. Na perspectiva da acção, a conduta dos arguidos é penalmente censurável, porque desconforme ao que, naquelas circunstâncias, lhes era exigível na salvaguarda do bem jurídico protegido. As consequências físicas da intervenção encontram-se directamente dependentes do não acatamento do dever de cuidado imposto. Face ao acima exposto, no entanto, não importa somente a realização do tipo negligente mas também a expressão de uma atitude pessoal de descuido revelada no facto. São pois elementos necessários à formulação daquele juízo de culpa a imputabilidade dos arguidos, a consciência da ilicitude e a não intervenção do elemento negativo traduzido na concorrência de causas de desculpa. Quanto ao primeiro aspecto, o juízo de censurabilidade deriva da capacidade pessoal dos arguidos de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o evento danoso causal, apreciadas subjectivamente no plano estritamente pessoal do agente.

74 Cfr., por exemplo, ponto 8.2.1 do Despacho 10/92 do Sr. Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, in DR II

Série n.º 195, de 1992.08.25, pág. 7848. Cfr., também, Portaria n.º 1223-a/92, de 1982.12.28.

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A capacidade pessoal dos arguidos não é, face aos elementos disponíveis, inferior. Antes pelo contrário, os arguidos são médicos com boa reputação. Aliás, a actividade médica assenta sobre um conhecimento especializado, próprio de um perito, sendo exigível uma diligência na actuação adequada à condição de especialista, assim como um extremado dever de cuidado. A consciência da ilicitude afere-se na medida em que o agente deva conhecer as medidas de cuidado objectivamente devidas o que no caso se verifica. Não concorrem causas de exclusão da culpa, existindo capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado. Resumindo, ao nível da imputação objectiva, como elemento do tipo, obedecendo ao critério da causalidade adequada previsto pelo art.º 10º, n.º1, do Cód. Penal – que radica na ideia de que a responsabilidade penal não pode ir além da capacidade geral do homem de dirigir e dominar os processos causais – a ofensa à integridade física da doente que sobreveio das condutas verificou-se através de um processo de causa e efeito típico, normal e previsível para uma pessoa com as habilitações dos arguidos, colocada na concreta posição daqueles. No plano do elemento subjectivo do tipo, e dependendo o preenchimento do tipo legal da possibilidade de representação do perigo da realização do tipo, da violação do dever objectivo de cuidado e da produção de um dano/resultado típico é uma evidência o perigo que representa o não esclarecimento do erro e a intervenção cirúrgica sem a sua dissipação. Exigia-se a adopção do comportamento apropriado ao objectivo de evitar a produção do resultado típico, o que os arguidos não fizeram. Visto o disposto no art.º. 15º e 148º n.º 1 do Cód. Pen., estão preenchidos todos os seus elementos típicos, sendo os arguidos autores do crime de ofensa à integridade física por negligência. Sabemos que nos termos do disposto no art.º 150º do Cód. Penal, “As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa a integridade física.”. Sabemos, também, que a intervenção dos arguidos visava a cura e que a doente prestara consentimento pelo menos na parte atinente à extracção do nódulo. Porém, a intervenção só se justificaria e, face a isso, o seu resultado só não configuraria uma ofensa à integridade física se fosse apta a diagnosticar ou minorar a doença, tornando a conduta atípica. Ora aqui, pelas razões que já desenvolvemos em sede de fundamentação da decisão de facto, a quadrantectomia não se justificava e não exclui, por isso, a ilicitude da intervenção. Verificado agora o resultado, a quadrantectomia e a extracção daquela quantidade de tecido é, para efeitos do art.º 144º al. a) do Cód. Penal, uma ofensa grave. Na verdade, a ablação de cerca de ¼ da mama esquerda é uma alteração perene da mama e, considerada a idade da vítima, a conotação estética e sexual do órgão atingido, constitui desfiguração, agravando a pena abstractamente aplicável.

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* VI. Escolha e medida da pena Dentro da elasticidade da moldura penal acima referida, e em face do Direito Penal vigente, mesmo quando a punição se faz a título negligente, é a culpa (com as adaptações acima expostas) que fixa o limite máximo da pena que no caso deve ser aplicada. A finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa e relaciona-se com a prevenção especial de socialização para que seja esta a determinar, em último termo, a medida final da pena. A partir do momento em que se admite a incriminação das condutas a título negligente, por bulirem com bens jurídicos fundamentais insuficientemente protegidos pelas sanções civis e administrativas, deparamos com a necessidade de aplicação da pena, que deve conciliar-se com as exigências de prevenção geral e com a menor culpa do agente, fazendo neste caso apelo a medidas de substituição. Visto o tipo legal em causa, prevê-se a aplicação – em alternativa – de medida detentiva (a prisão) e não detentiva (a multa). Retendo o vertido no art.º. 70º do Cód. Pen.: - "Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Neste invocado art.º 70º o legislador manifestou preferência pela aplicação de penas não privativas da liberdade nos casos em que ao julgador seja dada a faculdade de escolha, com a condição de realizar adequadamente as finalidades da punição. As penas visam, em primeira linha, a prevenção geral positiva de integração, ou seja, a protecção dos bens jurídicos, o que, numa enunciação mais normativista, propugnada por Günther Jakobs, consiste na reafirmação contrafáctica da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas75. A incursão neste capítulo começa, pois, pela escolha da pena a aplicar. Tendo em mente, também, as finalidades das penas agora com cristalização doutrinária no art.º 40º do Cód. Penal, a prevalência tem de ser dada à prevenção especial de socialização, por ser ela que justifica, político-criminalmente, o movimento de luta contra a pena de prisão, que apenas deverá ser considerada em segunda linha. As penas são ainda tributárias de uma finalidade de prevenção especial positiva, isto é visam ainda a reintegração do indivíduo na sociedade, como decorre do n.º 1 do art. 40º e do n.º 1 do art. 71º do Cód. Penal. Os arguidos são médicos, reputados de competentes, sem antecedentes criminais. É certo que criará alguma apreensão a aplicação da pena de multa se empiricamente se considerar a morte da vítima. Porém, reitera-se que não obstante todas as

75 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial

Notícias, 1993, pág. 228, § 303

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evidências genéricas das grandes probabilidades de cura para o cancro da mama se detectado a tempo, no caso dos autos e como melhor se referiu em sede de fundamentação de facto teremos de desconsiderar esse certamente doloroso desfecho. Inexistem estudos efectuados com base na realidade portuguesa que permitam, em termos de prevenção geral, observar a realidade certamente existente de ofensas à integridade física por má prática médica, má organização dos serviços e deficientes equipamentos ou comportamentos negligentes como aqueles aqui detectados. As exigências de prevenção, face ao crime de ofensa à integridade física com esta génese, não são ainda muito prementes. É contudo de assinalar a mudança que os próprios arguidos sentem ao referirem que a “Justiça anda em cima dos médicos”. Quando, em 1983, no relatório preparado para a “workshop” sobre “Medical Responsability in Western Europe”, realizada em Coimbra de 12 a 17 de Abril daquele ano, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro76 escreviam que “Utilizando a linguagem de Christian von Bar, podemos dizer que não se produziu ainda em Portugal, na prática, a democratização da responsabilidade profissional”, sendo a atitude vulgar de resignação e afirmando que “os casos até agora levados a tribunal são pouquíssimos (...)”, sendo “a convicção social, ainda predominantemente, de que as decisões e actuações profissionais do médico devem, por via de princípio, considerar-se juridicamente insindicáveis e insusceptíveis de constitui-lo em responsabilidade jurídica, apenas podendo desencadear uma responsabilidade moral e deontológica (...)”77, hoje assiste-se ao fenómeno inverso, já naquela época detectável noutras sociedades com maior consciência cívica, provocando, às vezes por via do exagero, efeitos perversos, empurrando os clínicos para uma medicina cada vez mais defensiva. É preciso não perder de vista que o médico intervém, fundamentalmente, com a intenção de curar e que “O exercício da actividade médica, na medida em que contende com a vida e a integridade física das pessoas, revela-se susceptível de, pela sua própria natureza e pelos meios que emprega, causar danos”78. Porém, nos dias de hoje e como já assinalamos, “A tradicional resignação fatalista dos pacientes cede o lugar à crítica e à exigência”79, impondo nova postura dos clínicos, o abandono da tradicional desconfiança e sentimento de perseguição e a definição de uma nova estratégia de responsabilidade que proteja o médico e o doente, avançando-se para soluções mutualistas e de responsabilidade em primeira linha dos hospitais. Não é, pois, a Justiça que injustificadamente persegue, é a sociedade que se transmuta e se reflecte nela. É verdade que o profissional de saúde, muitas vezes, à semelhança do que sucede noutras sociedades (sendo paradigma, pelo exagero, a realidade dos E.U.A.), é

76 BMJ 332º – págs. 21 e ss. 77 Op. cit., pág. 60. 78 Ana Raquel Gonçalves Moniz, Responsabilidade Civil Extracontratual por Danos Resultantes da Prestação de

Cuidados de Saúde em Estabelecimentos Públicos: O Acesso à Justiça Administrativa, FDUC – Centro de Direito

Biomédico, Coimbra Editora, 2003, pág. 9. 79 Rui Miguel Prista Patrício Cascão, A Responsabilidade Civil e a Segurança Sanitária in Lex Medicinae – Revista

Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 1, n.º 1, 2004, pág. 99.

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“imolado na ara do name, blame and claim”80. De um ponto em que os factos indiciadores de negligência médica eram encarados como circunstâncias inerentes ao risco de vida e à sujeição a qualquer intervenção cirúrgica, passou-se a um ponto próximo do exagero em que tudo ou quase tudo é questionado, fruto das sociedades hodiernas, mais reivindicativas, mais exigentes quanto a padrões de qualidade e informação. Sendo tudo o referido de verificação frequente e no dia-a-dia apreensível pelos profissionais de saúde, também é verdade que a cirurgia, sendo a actividade em que, em zonas estudadas, existem mais erros, também será aquela em que será exigível um redobrado dever de cuidado e preparação81. Se a aeronáutica é, por exemplo, um campo onde a segurança atinge os mais elevados padrões, por ser uma actividade intrinsecamente perigosa, é também porque são exigíveis aos profissionais determinados padrões de comportamento e duplas verificações para que uma sucessão de erros não leve a tragédia. Aí o erro, ocorrendo, é encarado como forma de evitar comportamentos semelhantes, existindo dever de denúncia. Também na Medicina, o erro deverá começar a ser encarado, não como um estigma ou na lógica da culpabilização mas, antes, inserido numa razão de responsabilização, sendo “frequente, nos países escandinavos, serem os próprios profissionais de saúde implicados a preencher os formulários dos pedidos de indemnização e a ajudar os pacientes na instrução do processo”82. Não sendo a ratio de erros em meio hospitalar portuguesa muito diversa da dos restantes países da OCDE existe ainda um longo caminho a percorrer quando os erros, os acidentes, os comportamentos de risco e os negligentes são omitidos, mantidos em segredo e defendidos a todo o transe como se a sua verificação fosse impossível. Não é, como os presentes autos infelizmente o demonstram. As exigências de tutela mínima do ordenamento jurídico não são porém, de molde a obstaculizar a opção pela pena de multa, a qual, atenta a gravidade dos factos, se mostra suficiente para a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma violada.

* Efectuada a escolha da pena, importa agora determinar o seu quantum. Quanto à determinação em concreto da pena de multa a aplicar, importa ter em consideração os critérios fornecidos pelo art.º. 71º do Cód. Pen.. Assim, quanto aos elementos de individualização da pena referentes à ilicitude, entende-se que o grau de violação do interesse ofendido é muito elevado. Embora não se trate de um crime de perigo, a conduta dos arguidos foi de molde a poder provocar e perpetuar na ofendida lesões bastante mais graves, reduzindo as perspectivas percentuais de cura, sem perder de vista e não escamoteando a não demonstração de que, em caso de correcção da intervenção o desfecho seria distinto. No entanto, importa não perder de vista que, em virtude desta actuação dos arguidos, as expectativas criadas pela ofendida numa

80 Rui Miguel Patrício Cascão, op. cit., pág. 101 81 Sobre os estudos efectuados, cfr. José Fragata e Luís Martins, O Erro em Medicina, Almedina, Coimbra, pag. 32 82 Rui Miguel Patrício Cascão, op. cit., pág. 103

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situação já de si difícil são desfeitas de forma extremamente dolorosa ao saber que o carcinoma ainda se mantinha, diminuindo as probabilidades de cura e ficando a ofendida sem a ilusão de que estava curada, guardando apenas as cicatrizes – o cerne do tipo legal – para lhe lembrar o infortúnio. Os arguidos não admitiram um comportamento próprio dos humanos – o erro, o insucesso, no fundo a assunção de que não existem médicos perfeitos insusceptíveis de errar, ainda que em situação criminalmente censurável – mantendo a afirmação de que agiram correctamente mesmo quando essa afirmação se tornou insustentável. Este ruidoso silêncio quanto à assunção de culpa é, muitas vezes, pior para as vítimas que o próprio insucesso da intervenção. Os arguidos, mormente a arguida A... e o arguido D..., são médicos experientes, tendo todas as condições para adoptarem o comportamento lícito que no caso era expectável, ficando-se por uma conduta a todas as luzes censurável e próxima da negligência grosseira. Esta afirmação é ainda mais indiscutível no caso da arguida A... que, embora tenha mencionado as contingências e o carácter mais ou menos aleatório na definição do médico assistente era, de facto, quem seguia de perto a situação, o historial clínico e quem mantinha com a doente a necessária relação de confiança e maior proximidade. A zona do corpo atingida pela mutilação, embora em princípio insusceptível de fazer perigar a vida, é de extrema importância para a mulher. Como referiu em audiência o Prof. Henrique …., a mama tem uma representação psico-afectiva muito grande. A favor dos arguidos refere-se a consideração pessoal e profissional que granjearam, a ausência de antecedentes criminais, a motivação da conduta, pretendendo a cura, sendo que o facto de não se tratar de uma decisão pré-ordenada já é contemplado no tipo legal, sendo a imputação a título negligente. Os arguidos cirurgiões intervieram numa fase em que a RDT lhes impõe, normalmente, determinado tipo de intervenção que, no caso, era errada por decorrência da actuação da arguida A..., tendo visado o alargamento daquela decisão para a obtenção de um resultado que desejaram, embora não o tendo conseguido por nova conduta temerária. O arguido E... era mais inexperiente, estava em formação e, por essa via, tem uma panóplia de opções de sinal contrário ao trajecto seguido mais limitada e com maiores constrangimentos face à figura tutelar do formador, o que deverá ser claramente valorado a seu favor. Considerados todos estes elementos, a moldura legal aplicável e o diferente grau de contribuição para o resultado final consideram-se adequadas, dentro da moldura aplicável que se situa entre o mínimo de 10 e o máximo de 240 dias, as penas de 150 dias de multa para a co-arguida A..., 120 dias de multa para o arguido D... e 90 dias de multa para o co-arguido E..., considerando aqui que, sendo uma culpa mais sublimada existe um limite mínimo a considerar para a manutenção das exigências de prevenção. Considerada a situação económica de cada um dos arguidos, claramente acima da média, julga-se adequada a taxa diária de € 80,00 quanto à arguida A..., € 65,00

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quanto ao arguido D... e € 45,00 para o arguido E..., perfazendo, respectivamente, € 12.000,00, € 7.800,00 para o arguido D... e € 4.050,00 para o arguido E.... Não se afiguram adequadas penas de substituição.

* * *

VII. Do pedido de indemnização civil VII.1 Da incompetência do Tribunal Vieram os HUC excepcionar a incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, entendimento esse que veio a ser acompanhado, também, pela interveniente “AXA”. Refere expressamente o demandado HUC, em abono do entendimento sufragado – admitindo como base de raciocínio que os médicos que intervieram no âmbito da assistência prestada pelos HUC o possam ter feito da forma censurável pressuposta pelo pedido – que: “A imputação de responsabilidade fundante do pedido de indemnização civil é possível em duas modalidades (subjectiva ou a titulo de culpa e objectiva, a titulo de risco) sendo que esta, a objectiva, liga o facto a uma certa e determinada pessoa por um laço de carácter meramente jurídico que a lei constrói. Nos termos do disposto no artº 3º do Dec. Lei nº 48051 de 21/11/67, os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente”. O disposto nos artº 500º e 501º do Cód. Civ. só é aplicável ao Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos de gestão privada. São actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da administração no exercício de uma função pública, sob o domínio das normas de direito público sendo pacífico que a sujeição à jurisdição comum ou administrativa depende da natureza dos actos envolvidos. (…)os actos de gestão pública regulam-se pelos normativos contidos no D.L. nº 48051 de 27/11/67 sendo este o caso dos autos no que respeita aos actos praticados nos HUC que é parte integrante do Serviço Nacional de Saúde e consequentemente, uma entidade de direito público. (…) sendo os HUC uma entidade de direito público, então de acordo com o disposto no artigo 44º nº1 do ETAF conjugado com o disposto no nº 2 al.f) do artigo 37º do CPTA compete aos Tribunais Administrativos de Circulo, actualmente Tribunais Administrativos e Fiscais, conhecer das acções sobre responsabilidade civil das pessoas colectivas bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, incluindo acções de regresso.”. Em face do entendimento explanado, conclui pela procedência da excepção.

*

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Decidindo: Temos por assente que a intervenção cirúrgica a que a ofendida se submeteu, na qual foi efectuada a quadrantectomia, efectuada pelos demandados D... e E..., assim como o acompanhamento clínico anterior e posterior efectuada pela demandada A... se inseriu na prestação de cuidados de saúde proporcionados pelos HUC e nos quais aqueles demandados prestavam serviços. Os HUC são “hospitais públicos”, que se reconduzem à noção de institutos públicos83, integrados na administração estadual indirecta. Como refere Sérvulo Correia84, são estabelecimentos públicos de saúde “todas as pessoas colectivas públicas que, no seio do Serviço Nacional de Saúde, asseguram cuidados de saúde aos beneficiários deste”. Sendo a justiça administrativa definida, em sentido estrito, por Vieira de Andrade85, como “conjunto institucional ordenado normativamente à resolução de questões de direito administrativo, nascidas de relações jurídico-administrativas externas, atribuídas à ordem judicial administrativa e a julgar segundo um processo administrativo específico” e estando em causa, como no caso vertente, questões relacionadas com a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas, no âmbito daquilo que o Prof. Marcello Caetano definia como “função técnica do estado”86, e por actos funcionais praticados por servidores do Estado, afigura-se, em primeira linha, a competência dos Tribunais Administrativos, nos termos definidos pelo demandado excipiente. Porém, no caso em apreço, não cuidamos da “culpa institucional”. Estriba-se o pedido na responsabilidade criminal assacada aos médicos em causa – que são, também, qualificáveis de funcionários – e deduzido por dependência do respectivo processo criminal. Os factos que se traduzem na prática de uma infracção penal e que são objecto do processo penal servem de fundamento à responsabilidade criminal, despoletando as diversas reacções penais. Estes factos, ao lesarem ou criarem uma situação de perigo para bens jurídicos fundamentais da comunidade, não são encarados, apenas, como pressupostos da responsabilidade penal, pois frequentes vezes implicam a lesão de interesses susceptíveis de serem reparados patrimonialmente, nos termos da lei civil. Esta responsabilidade civil emergente da prática de um crime tem por causa de pedir a própria infracção criminal, ou seja, os factos que são pressuposto da responsabilidade penal. Havendo, pois, no fundo, duas acções, uma penal e outra civil, criaram-se três modelos teóricos que, do ponto de vista processual, têm por fim determinar qual o modo como será possível fazer valer estes dois tipos de responsabilidade em conexão:

83 Ana Raquel Gonçalves Moniz, op. cit., pág. 11. 84 “As Relações Jurídicas de Prestação de Cuidados pelas Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde, in Direito

da Saúde e Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, pág. 31, citado por Ana Raquel Gonçalves Moniz, op. cit., pág. 12. 85 Apud. Ana Moniz, op. cit., pág. 24. 86 Manual de Direito Administrativo, vol. I, pág. 10.

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- O sistema da identidade, também denominado por sistema da "confusão total"87, já ultrapassado; - O sistema da absoluta independência, de carácter individualista, típico dos ordenamentos anglo-saxónicos e - O sistema da interdependência, preconizado pela nossa lei, e que permite uma grande variedade de soluções concretas, mas que impõe a possibilidade ou a obrigatoriedade de juntar a acção civil à penal, cabendo ao juiz penal decidir, também, da acção civil. Presidem razões de economia processual e evita-se contradição de julgados. Uma questão se colocava (principalmente durante a vigência do Código de Processo Penal de 1929) no que diz respeito à configuração da natureza desta obrigação de indemnizar face ao direito positivo. A sua qualificação suscitava muitas dúvidas face ao anterior Código de Processo Penal. Figueiredo Dias, contrariando a opinião maioritária da doutrina, entendia que esta obrigação tinha natureza penal face ao estipulado no artº 34º88. De acordo com este artigo "o juiz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida". Deste modo era preterido um dos princípios fundamentais do processo civil, o princípio da necessidade do pedido, ou princípio do dispositivo. Concomitantemente, atendia-se a uma noção de dano mais abrangente que o conceito civil de dano, pois, a reparação em processo penal apresentava-se como tendo efeito necessário, automático. De acordo com o § 2º deste artigo "o quantitativo da indemnização será determinado segundo o prudente arbítrio do julgador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor". Não era, pois, o dano o único critério determinante do quantitativo da indemnização, nem sequer o primordial, como propugna a teoria civilista. Era, antes, o princípio da culpa (ínsito na expressão "a gravidade da infracção") que presidia à determinação do montante da reparação a arbitrar no processo penal. A obrigação de indemnizar era considerada como uma sanção reparatória, que actuava com uma função de defesa social, visando proteger os interesses dos lesados. Funcionava como um elemento da repressão penal; fazia "parte da pena pública"89. Face ao Direito vigente e hodiernamente é inquestionável a autonomia de ambas as responsabilidades. A indemnização arbitrada em processo penal tem natureza civil. Neste sentido dispõe o artº 128º do Código Penal: "a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil". Tal regulação enquadra-se, assim, nas normas de direito civil, essencialmente nos artsº 483º e segs. e 562º e segs. do Código Civil.

87 Rui Sá Gomes, As Partes Civis (sujeitos secundários, ou intervenientes). O pedido de indemnização civil em processo

penal. O sistema de adesão, in Teresa Pizarro Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, Lisboa, 1992, p. 216;

Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 540. 88 Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., pp. 546 e ss. 89 Designação dada por A. Schönke citado por Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 541.

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Decorre do artº 71º que a acção civil de indemnização fundada na prática de um crime deve ser deduzida no respectivo processo penal. Consagra-se o princípio da adesão cujo desrespeito poderá acarretar, inclusivamente, a renúncia à prossecução criminal, conforme resulta do disposto no art.º 72º n.º 2 do Cód. Proc. Penal. No caso sub judice, fundando-se a dedução do pedido na responsabilidade criminal dos médicos, é o citado preceito legal que impõe a dedução do pedido no próprio processo penal. O processo penal é, por definição, suficiente, com capacidade para acolher e decidir todas as questões relacionadas com a responsabilidade criminal do indivíduo, sendo que os benefícios decorrentes dessa solução global integrada protagonizada pelo princípio da adesão – possibilitando um menor dispêndio de meios, uma concentração da produção de prova numa só sede e evitando a contradição de julgados – são incomensuravelmente superiores ao apelo da especialização quando as normas de direito público são aqui chamadas apenas em segunda linha para definir, não a responsabilidade do funcionário, que decorre da prática de um crime mas, apenas, como forma de enquadrar a responsabilidade solidária do Estado apenas para efeitos de ser sujeito passivo da obrigação de indemnizar. A solução preconizada – a da prevalência do princípio da adesão em detrimento de uma competência dos tribunais administrativos caso não concorresse a responsabilidade criminal – não é inédita. Procurando soluções no direito comparado temos o caso espanhol. Também naquele país, por via da reforma operada na regulamentação administrativa nos anos de 1998 a 2000, por via da Lei Reguladora da Jurisdição Contencioso-Administrativa90, se existir responsabilidade por parte da Administração Pública, ainda que actuando em relações de Direito privado, é competente exclusivamente a ordem contencioso-administrativa, resolvendo-se a questão aplicando-se apenas as normas próprios definidoras da responsabilidade patrimonial do Estado. Porém, à semelhança do que defendemos para o caso português, “(…) a Ordem Penal tem “vis attractiva” sobre os restantes ordenamentos (civil, social e contencioso administrativo) para conhecer da responsabilidade civil se os factos são constitutivos de delito ou falta. Em caso contrário, a Ordem contencioso-administrativa tem competência exclusiva para conhecer dos pedidos por responsabilidade patrimonial dirigidas contra a Administração. Finalmente, se os factos não são constitutivos de delito nem se dirige reclamação contra a Administração é competente a ordem civil (…)”91. Concluindo, fundando-se o pedido na responsabilidade extracontratual derivada da prática de um crime e dirigido, em primeira linha, contra os autores da prática desse crime, pelo princípio da adesão e pelas decorrências deste acima assinaladas, é este

90 Lei 29/1998, de 13.07 e reforma de 9.4 da “Ley Organica del Poder Judicial” pela Lei Orgânica 6/1998 (BOE de 14 de

Julho de 1998), assim como a Lei 4/1999 que modificou a Lei 30/1992, de 13.01 (BOE de 14 de Janeiro de 1992). 91 Javier Plaza Penadés, El Nuevo Marco de la Responsabilidad Médica y Hospitalaria in Revista Aranzadi de Derecho

Patrimonial, n.º 7, Monografia Associada, Pamplona, 2002, págs. 59 e 60 – a tradução do castelhano é livre.

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Tribunal competente sem prejuízo de o Estado, com fonte no art.º 22º da CRP, ser solidariamente responsável.

*

VII.2 Da apreciação do pedido Em conformidade com o disposto no art. 129º do Cód. Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, o que se reporta ao estatuído nos arts. 483º e ss. do Código Civil – Cód. Civil. Dispõe o art.º. 70º, n.º. 1 do Cód. Civ. que: - "A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral". Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art. 483º do Código Civil – Cód. Civil – “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. De acordo com o preceituado no segundo comando legal referido, o direito ao peticionado ressarcimento e a consequente assunção da obrigação de indemnizar reconduz-se à verificação dos seguintes pressupostos: facto ilícito acção humana que lese interesses directamente protegidos (violação dos direitos de outrem) ou interesses indirectamente protegidos (disposição legal destinada a proteger interesses alheios); culposo, isto é, que o lesante, pela sua capacidade e, em face das circunstâncias concretas da situação, pudesse e devesse ter agido de outro modo, tornando-se, ainda, necessário averiguar se existiu ou não um nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante (sob a forma de dolo ou mera culpa), tendo como paradigma o padrão do homem médio (art.º 487º Cód. Civil); nexo de causalidade (teoria da causalidade adequada) que coloca a exigência de que uma causa seja em concreto, como em abstracto (pela sua natureza geral), apropriada a produzir determinado efeito típico; dano ou prejuízo, perda sofrida pelo lesado reflectida na sua situação patrimonial (dano material) ou insusceptível de avaliação pecuniária, mostrando-se digna de satisfação (dano moral). Para que se afirme a responsabilidade por factos ilícitos têm de estar preenchidos, pois, os pressupostos elencados. Desde logo, a existência de um facto voluntário do lesante, dominável pela vontade. Esse comportamento tem de ser ilícito por força da violação do direito absoluto de outrem ou da infracção de norma destinada a proteger interesses alheios, caso em que há um desrespeito de leis que, não conferindo um direito subjectivo, tutelam interesses particulares, ou que, protegendo interesses colectivos, não deixam de atender aos

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interesses particulares subjacentes, cabendo nesta segunda modalidade da ilicitude a violação de normas penais. Tem ainda de se verificar, como referido, um nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, é necessário que o agente tenha actuado com culpa, que se traduz num juízo de censura ou reprovação do Direito em relação à sua conduta, na medida em que tinha capacidade, ante as circunstâncias concretas, de actuar de uma outra forma, segundo o critério do bom pai de família. Em virtude desse comportamento têm de ser produzidos danos patrimoniais, traduzidos em danos emergentes ou lucros cessantes; ou não patrimoniais, se consistem em prejuízos sobre bens que não integram o património do lesado. Por fim, é essencial a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano, isto é, que possa ser considerado consequência do comportamento do indivíduo. Preenchidos os requisitos de que depende a responsabilidade civil, haverá que proceder à determinação da indemnização, nos termos do art. 562º e ss. do Cód. Civil. A regra é a reconstituição natural, apenas preterida nas situações em que não se mostre possível, suficiente, ou se afirme excessivamente onerosa, caso em que há recurso à indemnização por equivalente, nos termos do disposto no art. 566º do Cód. Civil, por aplicação da teoria da diferença: há que reintegrar o património do lesado, tendo como medida a diferença entre a sua situação patrimonial na data mais recente e a que teria nessa data se não existissem danos.

* No caso sub iudice estão preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual enunciados. Os demandados A..., D... e E..., com a sua conduta incorreram na prática do crime de ofensa à integridade física, tendo agido de forma culposa, afirmando o carácter ilícito da sua conduta. Para além da violação demonstrada da integridade física da ofendida, a conduta dos arguidos é violadora do dever geral de diligência imposto à actividade médica e não temos dúvidas em afirmar que a atitude dos clínicos é, efectivamente, culposa e geradora de danos, merecendo, por isso, a censura do direito. A culpa "é o estado jurídico daquele cuja actuação é reprovada pelo direito"92, por em face das circunstâncias concretas poder e dever agir de outro modo. No caso vertente os demandados em causa podiam (porque a sua vontade não estava limitada) e deviam (pois a tanto os obrigava a legis artis) ter verificado da conformidade do relatório da mamografia com as películas radiológicas e o exame clínico, dissipando todas as dúvidas antes do início da operação. As suas condutas, objectiva e subjectivamente ilícita, é susceptível de um juízo de reprovação ou culpabilidade. A ofendida sofreu danos patrimoniais decorrentes das deslocações para as sessões de quimioterapia e exames, bem como aqueles que decorrem de três viagens a Milão para procurar a opinião de especialista face ao delicado estado de saúde.

92 Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. II, pág. 316.

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Nos termos do art.º 562º do C. Civil, o responsável pela reparação "deve reconstituir a situação que existiria, se o facto se não tivesse verificado". A reparação do dano deve abrange todos os prejuízos se que o acidente foi causa adequada (art.º 563º do Cód. Civil), devendo deduzir-se todas as vantagens que o lesado não teria tido se o acidente não tivesse ocorrido. Relativamente à forma de reparação, o nosso Código opta, em princípio, pela reconstituição natural da situação "que existiria" à qual se refere o art.º 562º do Cód. Civil (cfr. art.º 566º do Cód. Civil). Todavia, sempre que a reparação natural não seja possível, seja insuficiente ou não seja meio idóneo para operar a reparação (art.º 566º do Cód. Civil), a indemnização deve ser fixada em dinheiro. In casu, a reparação natural não é possível, nem suficiente, pelo que, verificando-se os restantes pressupostos, haveria lugar a uma indemnização pecuniária (art.º 566º, n.º 2 do Cód. Civil). Esta medir-se-ia pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido, reportadas à data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal: - é a chamada teoria da diferença93. No entanto, como se referiu, entre o dano verificado e o facto ilícito tem de verificar-se uma relação de causalidade. Como também já foi avançado em sede de fundamentação da decisão de facto, o crime e a actuação geradora de responsabilidade esgota-se na produção de uma ofensa à integridade física. O resultado danoso verificou-se logo após a operação, consideradas as cicatrizes e a mutilação da mama inerente a uma intervenção cirúrgica injustificada e inútil. Ora, os danos patrimoniais peticionados resultam, não propriamente da existência das cicatrizes e da mutilação mas sim da existência de patologia maligna. Como se referiu, embora empiricamente se pudesse adivinhar o contrário, não se demonstrou que se a intervenção tivesse sido bem sucedida e da parte dos arguidos não tivesse existido uma actuação negligente o resultado não seria o mesmo, ou seja, que a ofendida não continuasse doente e a necessitar dos cuidados por cuja realização a família peticiona o ressarcimento das correspondentes despesas. Destarte, soçobrando a demonstração do necessário nexo causal, improcede nesta parte o pedido.

* Foi ainda peticionado o ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos pela vítima e pelos próprios demandantes. A indemnização por danos não patrimoniais funda-se no art.º 496º do Cód. Civil, que dispõe que apenas são merecedores de reparação os danos que se revelem graves. Ora, a gravidade de lesão de um bem há-de aferir-se pela própria natureza do bem em causa, através de “um padrão objectivo (conquanto a apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias concretas) (...). O dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão da indemnização pecuniária ao lesado"94.

93 cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª ed., pág. 778. 94 A. Varela, op. cit., pág. 428.

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É certo que as dores e o sofrimento não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, mas é possível proporcionar ao lesado uma satisfação "em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, no qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal"95. Relativamente à vítima da intervenção e que veio a falecer96 temos por assente que a ofendida, em consequência da intervenção para cujo insucesso contribuiu, também, a demandada A..., ficou com uma cicatriz com cerca de 5 cm no quadrante externo da mama esquerda e, ainda no mesmo quadrante, ficou com uma cicatriz com cerca de 10 cm de comprimento, com uma redução do volume da mama equivalente ao tecido retirado que, no caso da quadrantectomia, equivale a 110g. A mutilação da mama, nos termos sobreditos, poderia ter sido encarada – e foi numa primeira fase – como uma consequência normal de uma intervenção cirúrgica destinada a extirpar um cancro e a salvar a vida da ofendida o que, a ser verdade, criaria um convencimento e uma aceitação da inevitabilidade da conduta como forma de prevenir um mal maior. Porém, nada disso aconteceu já que a quadrantectomia não se justificava e a incisão no quadrante externo não serviu para retirar o nódulo detectável à palpação. Lembremo-nos da grande relevância psico-afectiva do seio na mulher. Se ouvirmos as gravações áudio dos depoimentos encontraremos expressões bem elucitativas, ilustrando-se “com as garras de fora” a atitude defensiva da mulher face à perspectiva da perda da mama. Imaginemos, agora, a ofendida, pessoa de formação superior, válida, de meia-idade, integrada numa família feliz, dedicada à comunidade onde vivia, professora de profissão, preocupada com a sua saúde e consciente da importância da intervenção precoce na cura do cancro da mama a descobrir que tem um nódulo suspeito. Imaginemos todo o sofrimento interior, a angústia, a inquietação, a tristeza inerente ao facto. Neste esforço interpretativo encontramos, no entanto, o conforto da vítima no facto de saber que o nódulo fora descoberto num estadio em que as hipóteses de cura eram francamente animadoras, aquecendo a perspectiva sombria que se abatera sobre uma alma que por todos foi descrita como bondosa, interessada na comunidade, amiga da família, boa mãe. Alguém que irradiava uma certa luz. A vítima é operada. Certamente terá visto os efeitos da cirurgia que implicam uma nova aceitação do corpo, a mudança de hábitos no vestuário, um aumento da insegurança. Certamente, porém, ter-se-á reconfortado na perspectiva da cura e refugiado na salvaguarda da vida e fora evitado um mal maior. Agora imaginemos tudo isto e a descoberta de que o carcinoma, afinal, não fora extirpado, que se mantinha no corpo, de que havia metástases e de que as hipóteses de cura eram praticamente nulas. Falamos de uma pessoa esclarecida.

95 Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª ed., pág. 115 96 Desfecho não directamente imputável aos lesantes, como vimos.

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Somemos o facto de a ofendida saber que a intervenção, na fase de desenvolvimento precoce, fora um insucesso pela actuação imprevidente dos médicos a quem reconhecera o salvamento da vida. Consideramos agora todo o sofrimento posterior até à morte. É certo – nunca é demais frisá-lo – que nunca poderemos imputar o resultado morte à actuação dos demandados. Nem tão pouco poderemos fazê-lo quanto à necessidade dos tratamentos. Podemos, contudo, considerar, para efeitos de concretização da gravidade dos danos morais, que as hipóteses de cura foram estatisticamente diminuídas pela actuação dos arguidos e que a vítima não deixou de pensar, nas horas mais amargas, que tudo poderia ter sido diferente (e podia, pois estatisticamente a intervenção precoce era favorável), não fora a intervenção cirúrgica realizada de forma deficiente e mal preparada. Por vezes a morte surge como uma forma de pôr termo suave ao sofrimento, sendo maior a angústia de ficar vivo. O drama da mutilação inútil e a angústia de ver reduzidas as hipóteses de cura merecem, certamente, a tutela do Direito e de uma forma que tenha em conta o estatuto e capacidade dos lesantes. Ainda assim, embora não exista uma correspondência entre o plano axiológico e o plano patrimonial, chamando à colação os critérios de equidade orientadores da determinação do quantitativo indemnizatório, urge objectivar um valor para a necessária compensação. Ora, a tutela do direito no âmbito dos danos de natureza não patrimonial que agora nos ocupam, depara-se com um problema de princípio, consubstanciado no facto de existir uma natural inconciliabilidade entre um bem de natureza imaterial - integridade física e a expressão monetária da sua violação. Muito embora não exista uma correspondência directa entre o plano dos valores e o plano patrimonial deverá procurar-se um critério para fixar o montante indemnizatório que é devido nestas situações. Ter-se-á em atenção o princípio de que a compensação pela violação deste bem jurídico, assim como pelas respectivas consequências, tem de ser adequada e realmente significativa, respondendo aos padrões sociais vigentes. Os padrões indemnizatórios tendem a acompanhar a subida do nível de vida dos portugueses nos últimos anos. “Na determinação do quantum da compensação por danos não patrimoniais deve atender-se à culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, à flutuação do valor da moeda e à gravidade do dano, tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico por ele experimentado, sob o critério objectivo da equidade, envolvente da justa medida das coisas, com exclusão da influência da subjectividade inerente a particular sensibilidade”97. “As indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, "valem" hoje mais do que ontem”98.

97 AC STJ de 2004.12.09 www.dgsi.pt 98 Ac STJ de 2005.05.24 www.dgsi.pt

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Considerando todos estes vectores, entende-se como adequada a quantia actualizada de € 32.500,00, a título de reparação por danos de natureza não patrimonial atribuída à vítima e a receber pelos demandantes por via sucessória e a pagar pelos demandados, respondendo solidariamente os HUC, conforme referido supra, bem como a interveniente, mercê dos contratos de seguro. No que tange à quantia peticionada pelos demandantes a título de danos não patrimoniais próprios, não se oblitera o grande sofrimento pelo qual passaram, angustiados e desesperados com o drama vivido pela esposa e mãe, com desgaste físico e emocional subjacente, acompanhando de perto o sofrimento. É verdade que se deu por assente essa angústia e sofrimento, mais do que justificada face ao impressivo evoluir negativo do estado de saúde da ofendida que, embora não objectivamente imputável aos demandados tinha pelo menos a certeza de que diminuiu as hipóteses estatísticas de cura ou sobrevida com qualidade. Contudo, a nossa lei não contempla o direito pressuposto e a morte, como se referiu, não é assacável à conduta dos demandados. Poderá parecer de alguma forma injusto mas o preceito base limita a panóplia de interessados com legitimidade para o pedido sob pena de, perante ofensas sofridas por outrem, se entrar no campo do subjectivismo.

* O disposto no art.º 496º do Cód. Civil tutela os danos sofridos directamente e pela própria vítima do facto ilícito e só em caso de morte poderia contemplar os sofridos pelos familiares referidos no corpo do artigo (cfr. art.º 496 n.ºs 2 e 3 do Cód. Civil e 495º).99

99 Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 1993.04.28 – Proc. 43918 – CJ 1993, t. 2, pág. 207, Ac. RC de 1993.04.28 – Proc. 43/93 – CJ 1993, t. 2, pág. 70, Ac. RP de 1997.06.25 – Proc. 80/97 – CJ 1997, t. 3, pág. 239 e Ac. STJ de 1992.10.28, CJ, t. IV, pág. 29, Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, pág. 277.

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Perante uma ofensa à integridade física é a vítima e não os seus familiares, ainda que próximos, que dispõe do direito à indemnização, ainda que aqueles também possam ter sofrido interiormente com a conduta. Improcede, pois e nesta parte, o pedido.

*

VIII. Decisão Por todo o exposto, julgo a pronúncia parcialmente procedente e, consequentemente, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos art.ºs 148º n.ºs 1 e 3, com referência ao art.º 144º al. a), ambos do Cód. Penal, condeno: - A arguida A...... na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 80,00 (oitenta euros), perfazendo € 12.000,00 (doze mil e quatrocentos euros) ou, subsidiariamente, 100 (cem) dias de prisão; - O arguido D.... na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 65,00 (sessenta e cinco euros), perfazendo € 7.800,00 (sete mil e oitocentos euros) ou, subsidiariamente, 80 (oitenta) dias de prisão; - O arguido E... na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 45,00, perfazendo € 4.050,00 (quatro mil e cinquenta euros) ou, subsidiariamente, 60 dias de prisão.

* Na improcedência parcial da pronúncia absolvo os arguidos B... e C... do crime pelo qual vinham pronunciados.

* Julgo o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, consequentemente, condeno solidariamente os demandados A......, D...., E..., “Hospitais da Universidade de Coimbra” e a interveniente “AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A.”, esta com base no contrato de seguro e com limite no capital assegurado, a pagarem aos demandantes a quantia de € 32.500,00 (trinta e dois mil e quinhentos euros) a título de reparação por danos não patrimoniais sofridos por Maria... e devidos aos demandantes por via sucessória, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento. Na improcedência parcial, absolvo os demandados B..., C... “C.... - Clínica de Diagnóstico ... Lda.” do pedido.

* Mais condeno cada um dos arguidos A..., D... e E... no pagamento individual de 5 UC’s de taxa de justiça, com ¼ de procuradoria (art.ºs 513º, n.º1, do Cód. Proc. Penal, 85º, al. b) e 95º, do Cód. Custas Judiciais) e no pagamento de montante equivalente à centésima parte da taxa de justiça devida (art.º 13º, n.º3, do DL 423/91, de 30 de Outubro e Decreto Regulamentar n.º4/93 de 22 de Fevereiro), condenando ainda o co-

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arguido D... no pagamento dos honorários legais devidos à sua Ilustre defensora, acrescidos das despesas que se venham a julgar justificadas, a adiantar pelos cofres caso este arguido não pague as custas no prazo legal.

* Nos termos do art.º 515º n.º 1 al. a) do Cód. Proc. Penal fixo em 5 UC’s a taxa de justiça devida pelos assistentes, face à absolvição dos co-arguidos, levando-se em conta o já pago (Ac. do STJ 1/2004).

* Sem custas quanto aos arguidos absolvidos.

* Custas do pedido de indemnização civil pelos demandantes e pelos demandados condenados, na proporção do decaimento.

* Boletins à DSICCOC.

* Notifique.

*

Coimbra, d.s.

(elaborado em processador de texto e revisto – Em substituição do Mm. Juiz do 1º Juízo)