Justo, Joana - Olhares que contam histórias. A fotografia como memórias

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JOANA SANCHES JUSTO OLHARES QUE CONTAM HISTÓRIAS: A fotografia como memórias e narrativas da família. ASSIS 2008

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    JOANA SANCHES JUSTO

    OLHARES QUE CONTAM HISTRIAS:A fotografia como memrias e narrativas da famlia.

    ASSIS2008

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    JOANA SANCHES JUSTO

    OLHARES QUE CONTAM HISTRIAS:A fotografia como memrias e narrativas da famlia.

    Dissertao apresentada Faculdade deCincias e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista paraobteno do ttulo de Mestre emPsicologia (rea de Conhecimento:Psicologia e Sociedade)Orientador: Prof. Dr. Jorge Lus FerreiraAbro

    Co-orientadora: Prof. Dr. Elisabeth daSilva Gelli

    ASSIS2008

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP

    Justo, Joana SanchesJ96o Olhares que contam histrias: a fotografia como memrias e

    narrativas da famlia / Joana Sanches Justo. Assis, 2008139 f. : il.

    Dissertao de Mestrado Faculdade de Cincias e Letras deAssis Universidade Estadual Paulista.

    1. Psicologia social. 2. Fotografias de famlia. 3. Imagens fo-togrficas. 4. Arte Psicologia. 5. Memria. I. Ttulo.

    CDD 153.35701.15

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    RETRATO DE FAMLIA

    Este retrato de famliaest um tanto empoeirado.

    J no se v no rosto do paiquanto dinheiro ele ganhou.

    Nas mos dos tios no se percebemas viagens que ambos fizeram.A av ficou lisa, amarela,sem memrias da monarquia.

    Os meninos, como esto mudados.usou os melhores sonhos.E Joo no mais mentiroso.

    O jardim tornou-se fantstico.As flores so placas cinzentas.E a areia, sob ps extintos, um oceano de nvoa.

    No semicrculo de cadeiras

    nota-se certo movimento.As crianas trocam de lugar,mas sem barulho: um retrato.

    Vinte anos um grande tempo.Modela qualquer imagem.

    Se uma figura vai murchando,outra, sorrindo, se prope.

    Esses estranhos assentados,

    meus parentes? No acredito.So visitas se divertindo

    numa sala que se abre pouco.

    Ficaram traos da famliaperdidos nos jeitos dos corpos.

    Bastante para sugerirque um corpo cheio de surpresas.

    A moldura deste retratoem vo prende suas personagens.

    Esto ali voluntariamente,saberiam - se preciso - voar.

    Poderiam sutilizar-se

    no claro-escuro do salo,ir morar no fundo de mveisou no bolso de velhos coletes

    A casa tem muitas gavetase papis, escadas compridas.Quem sabe a malcia das coisas,quando a matria se aborrece?

    O retrato no me responde,

    ele me fita e se contemplanos meus olhos empoeirados.E no cristal se multiplicam

    os parentes mortos e vivos.J no distingo os que se foramdos que restaram. Percebo apenasa estranha idia de famlia

    viajando atravs da carne.

    CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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    AGRADECIMENTOS

    Parafraseando um msico poeta, sem

    seus olhos nada existe: queimo o filme, rasgo a

    foto, fico cego-invisvel.

    Aos olhares atenciosos, crticos, esperanosos e acalorados daqueles que

    perpassaram esta longa - e interminvel - jornada.

    Aos meus orientadores Elisabeth Gelli e Jorge Abro pelos olhares-margem, que

    contm e do vazo s guas do rio.

    Aos caros amigos da banca, Isaac Camargo e Maria Lcia

    de Oliveira, pelos olhares-espelhos que me permitiram entrar em

    contato com meu prprio desejo. Seus olhares foram decisivos no

    andamento da pesquisa.

    Aos professores Ana Maria Domingues e Paulo Csar

    Boni, pela disponibilidade dos seus pontos de vista.

    Ao curso de Mestrado em Psicologia da UNESP de

    Assis, pelo incentivo realizao da pesquisa e s funcionrias da Seo de Ps-

    Graduao pelo auxlio nas questes institucionais.

    Ao grupo da UNATI UEL, especialmente Sandra Perdigo

    e aos voluntrios, que me abriram as portas para um olhar

    aproximado.

    Capes pela oportunidade da bolsa e do estgio de docncia.

    queles que ajudaram a consolidar idias e descobrir

    caminhos, olhares-presentes nas delongas dos nossos desabafos e, em

    particular, aqueles que nos acompanham constantemente, observando

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    e criando novas rugas a cada titubeio e

    vibrando nos sucessos.

    A estes olhares que no se traduzem

    em palavras porque so lmpidas janelas da alma: o olhar crtico

    do meu pai, Justo; o olhar constante da minha me, Carmem; o olhar companheiro do

    Gabriel; o olhar distante, mas presente, do meu

    irmo Peiw; os olhares luminosos dos meus

    avs, Victria e Florncio, como a chama da

    vela em prece; os olhares confidentes dos

    amigos Jlia B., Mnica, Thayane, Robson, Suzan, Lili, Mariele, Jlia A., David e

    Geoff.

    Enfim, a todos que ajudaram

    a construir o meu prprio olhar.

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    RESUMO

    Fotografias esto constantemente ao nosso redor: nos jornais, revistas, outdoors,galerias de arte, nos envolvendo tambm de forma mais ntima atravs dos lbuns de

    famlia. Colecionar imagens de momentos importantes tais como nascimentos,casamentos, aniversrios e viagens costume de quase toda famlia, mas por queregistrar e guardar estas lembranas? A fim de explorar detalhadamente a relao dosmembros da famlia com seus acervos fotogrficos, rastreando os sentidos dos lbuns,realizamos uma investigao tendo como participantes duas famlias: Arago e Silva.Cada famlia possua trs voluntrios que foram entrevistados individualmente, tendocomo foco as narrativas instigadas por fotografias previamente selecionadas demomentos importantes para a famlia. A conduta bsica do entrevistador pautou-se porintervenes mnimas, deixando os entrevistados discorrerem sobre as imagens. Como

    principais resultados observamos que, apesar das diferenas quanto ao relacionamentocom o lbum da famlia, as fotos guardadas permitem a revisitao de experincias, are-significao de acontecimentos e a criao de narrativas. No contato cominterlocutores possibilita-se a produo de sentido de forma que o sujeito se reconhececomo parte de uma histria construda coletivamente. Dessa forma, o lbum de famlia um importante acervo documental iconogrfico e patrimnio do grupo familiar.Funciona no somente como arquivo de registros da memria, mas, sobretudo, comoimagens disparadoras de afetos, sentimentos e recordaes instigadores de narrativascapazes de ampliar a compreenso do passado e do presente.

    Palavras-chave:fotografia, lbuns de famlia, narrativa, memria, produo desentido.

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    ABSTRACT

    Looks that count histories: Photagraphs as memories and narratives of thefamily.

    Photographs are constantly around us in newspapers, magazines, advertizing billboards, art galleries and specially through the family albums. Collecting pictures ofspecial occasions like births, weddings, birthdays, and trips are a custom of almost anyfamily. Why register and file these souveniers? In order to explore in detail the relationof the family with their photo album and trace the significance of the photo album forthe family, a recent study between two families, Arago and Silva was carried out. Thisstudy involved six volunteers, three in each family who were interviewed individuallyon their personal memories of each pre-selected picture shown of their own familypictures. The behavior of the interviewer was based on minimum interventions, leavingthe participants free to discourse about the images. As a result it was observed thatregardless of the differences in relationship of the photo album, the pictures allowed the

    participants to revisit experiences, re-signify events and create vivid memory narratives.The significance of recollective memory is made through contact with others and onerecognizes himself as part of a history constructed collectively. In this way, the familyalbum is an important iconographic documented legacy for the family and therefore, notonly a file of registered souveniers but over all as images of affection, feelings andmemories that instigate narratives capable of extending/amplifying the past and thepresent.

    Key words:photographs, family albums, narrative, memory and production ofsignificance

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    SUMRIO

    Resumo.............................................................................................................. 04

    Abstract.............................................................................................................. 05

    1. Apresentao...................................................................................................... 082. Introduo.......................................................................................................... 103. Reviso da Literatura.......................................................................................... 13

    3.1. O dilogo fotogrfico............................................................................. 133.2. Imagens: aparncia, poder, reflexo e fascnio...................................... 173.3. Recorte Fotogrfico............................................................................... 273.4. A fotografia como convite narrativa................................................... 303.5. O enlace da narrativa com a memria.................................................... 34

    2.5.1 A memria inventada................................................................. 363.6. Depois do enlace, a produo do sentido.............................................. 403.7. Resgate da histria familiar.................................................................... 43

    4. Objetivos............................................................................................................ 565. Procedimentos Metodolgicos........................................................................... 57

    5.1. Recursos e Instrumentos......................................................................... 585.2. Participantes........................................................................................... 605.3. Como realizamos as anlises................................................................. 61

    6. O que nos contaram........................................................................................... 656.1. Famlia Arago....................................................................................... 65

    6.1.1 Hildegard...................................................................................... 65

    6.1.2 Murilo e Luciano........................................................................... 81

    6.2. Famlia Silva........................................................................................... 956.2.1 Antnia.......................................................................................... 95

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    6.2.2 Graa........................................................................................... 106

    6.2.3 Giselle......................................................................................... 112

    7. Discusso........................................................................................................ 1198. Consideraes Finais....................................................................................... 1349. Referncias Bibliogrficas................................................................................ 137

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    1. APRESENTAO

    A fotografia, atualmente, uma forma de expresso usada tanto por especialistas

    quanto amadores e destinada a vrios fins, como manifestao artstica, fontedocumental, registros pessoais e outros. Um olhar aprofundado sobre o ato de fotografar

    explicita que as imagens possuem ntima relao com seu autor e com o momento

    histrico em que foi produzida.

    Desta relao surge uma forma de expresso muitas vezes imperceptvel queles

    que a observam rapidamente: a linguagem visual. Ainda que esta linguagem passedespercebida por muitos, comum o seu uso em diferentes mdias que nos cercam no

    dia-a-dia, como propagandas, filmes, ilustraes. Estes podem ser exemplos que

    chegam s pessoas atravs do mundo e da sociedade, contudo, existe um exemplo muito

    mais prximo, ntimo e familiar: os lbuns fotogrficos.

    Esta linguagem comumente usada por cidados ordinrios que, mesmo sem umdomnio refinado desta ferramenta comunicativa, dela se utilizam ao organizarem suas

    fotos em lbuns que contam inmeras histrias da saga pessoal e familiar, cristalizando

    memrias, salvando lembranas de perderem-se com o passar do tempo.

    Entretanto, o dilema de utilizar esta linguagem na Psicologia algo sobre o qual

    a autora deste texto vem refletindo desde que escolheu, durante a adolescncia, cursarPsicologia. A graduao foi uma tentativa difcil de encontrar, s vezes na Psicanlise,

    outras vezes na Psicologia Social, uma forma de aliar a arte (em suas formas plsticas

    de expresso) e a Psicologia. De fato, alguns estudos tericos foram publicados sobre o

    tema, mas estes no extinguiram o incmodo da falta de articulao terica com a

    prtica, pois no espao de trabalho da Psicologia a arte geralmente usada como um

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    acessrio e poucas vezes vista como possibilidade de manifestao da subjetividade e

    como produto agregado de significao.

    Mesmo aps cursar as disciplinas regulares do curso de Psicologia e algumaseletivas em Artes Plsticas, bem como realizar estgios com crianas usando a

    manipulao de materiais plsticos, a interlocuo destas duas reas no parecia

    satisfatria. Contudo, na etapa final do curso de graduao tornou-se possvel o ingresso

    em uma especializao, oferecida pela Universidade Estadual de Londrina, intitulada

    Fotografia: Prxis e Discurso Fotogrfico.

    Apesar de a Psicologia no ser abordada diretamente em nenhum momento da

    especializao, alguns dilogos puderam ser feitos a fim de legitimar a interlocuo das

    duas reas. Pensar a produo plstica como um dilogo (que envolve o leitor, a obra e a

    sociedade), tornou clara a possibilidade de trazer esta linguagem Psicologia, no com

    o propsito de substituir a fala, mas de complement-la.

    A inteno de cursar o Mestrado, ento, surgiu como a forma de consolidar o

    encontro entre teoria e prtica, psicologia e fotografia, permitindo um estudo mais

    aprofundado e a reflexo sobre o discurso fotogrfico, a subjetividade e a famlia. Este

    encontro possibilita a ns, psiclogos, repensar mais uma vez o amplo campo de

    atuao da Psicologia, bem como introduzir novos olhares sobre a nossa prtica, abrindo

    caminhos e possibilidades de nos posicionarmos frente ao fenmeno psicolgico.

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    2. INTRODUO

    Capaz de registrar inmeros momentos, a fotografia um veculo de transmisso

    simblica que contm cdigos e mensagens a serem decifradas. uma linguagemexplorada pela Semitica e Comunicao, como nos trabalhos de Fabiana Bruno1 e

    Etienne Samain (2004), que abordam a construo da memria na velhice atravs de

    ferramentas comunicativas como a verbalidade nas entrevistas e a visualidade nas

    fotografias (SANTOS; SUGIMOTO, 2003).

    A Educao outra rea que envolve a fotografia na produo de conhecimento,como Park (2000) que sugere a incluso da fotografia na elaborao de projetos

    pedaggicos. Esta autora enfatiza que a fotografia um suporte privilegiado para a

    memria e quando tratada como documento torna-se um instrumento capaz de capturar

    o cotidiano da escola e gerar novos conhecimentos.

    Na Psicologia, a fotografia vem ganhando espao nas prticas de interveno emgrupos, por meio de oficinas como, por exemplo, no estudo de Carmem Justo (2003) em

    que atravs de oficinas de teatro, msica e outras, inclusive de fotografia, buscou-se

    mergulhar no universo de crianas de rua e apreender os sentidos que atribuam s suas

    histrias de vida.

    Para maiores informaes ver:

    BRUNO, F.Imagens da velhice, imagens da infncia: formas que se pensam.Cadernos do CEDES(UNICAMP), Campinas, v. 26, n. 68, p. 21-38, 2006.

    BRUNO, F.Retratos da velhice, um duplo percurso: metodolgico e cognitivo.Dissertao (Mestrado),Campinas, SP : [s.n.], 2003.

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    Alm das oficinas, outra forma explorada pela Psicologia quanto ao uso da

    fotografia como resgate da memria, tal como nos apresenta Ecla Bosi (1983), em

    seu trabalho Memria e sociedade: lembranas de velhos.

    Ainda que a fotografia seja utilizada no campo de atuao e interveno da

    Psicologia, pouco se encontra em publicaes cientficas, talvez porque a incluso da

    fotografia nas pesquisas desta rea no tenha ainda uma estrutura consolidada. Parecem

    ser poucos os estudos que relacionam a fotografia expresso e subjetividade mais do

    que ilustrao do texto. A possibilidade produo de sentido trazida pela imagem

    fotogrfica abre um vasto campo e a presente pesquisa pode ser vista como uma

    maneira inovadora de investigao aliada iconografia da atualidade produzida

    especificamente pela fotografia.

    No decorrer deste trabalho so apresentadas, inicialmente, consideraes sobre o

    papel da imagem na comunicao. Comeamos discorrendo sobre como se desencadeia

    o processo comunicativo em meio hiper estimulao da viso na atualidade, a

    velocidade da mensagem contida na imagem e, afunilando a temtica da fotografia,

    falamos da virtualizao da realidade trazida pelo recorte fotogrfico, da iluso criada

    pelo testemunho da fotografia e a traduo da experincia em imagens fotogrficas.

    Em seguida, discutimos a imagem como aparncia, poder, reflexo e fascnio.

    Para discutir a aparncia, dialogamos com os conceitos de espetculo proposto por

    Debord (1997); da imagem como mercadoria, de Novaes e Bucci (2005) e a mediao

    do mundo pela imagem, como nos apresenta Kehl (2005). A partir desta ltima autora,

    tecemos consideraes a respeito do poder que a fotografia exerce sobre ns e

    dialogamos com as opinies de Wolff sobre este mesmo assunto para, finalmente,

    pensarmos sobre a necessidade de reflexo em oposio ao fascnio que nos provoca o

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    primeiro contato com algumas imagens, principalmente as publicitrias. Aps estes

    primeiros dilogos pensamos a fotografia, sobretudo a de famlia, inserida nestas

    reflexes.

    Para isso, discorremos sobre o recorte imposto pelo ato fotogrfico que seleciona

    parte da realidade e congela uma frao do tempo para, em seguida, pensar o lbum de

    fotografias como uma quebra desta estaticidade, uma vez que a revisitao dos lbuns

    cria histrias vivas, dinmicas e d sentido tanto memria quanto s fotografias.

    Assim, tornou-se necessrio ponderarmos sobre o resgate da narrativa provocadapela fotografia, bem como a incitao da rememorao. Nada melhor do que Walter

    Benjamin (1994) para nos ajudar na tarefa de refletir sobre o valor do resgate de uma

    narrativa abandonada atualmente e, nos apoiando no pensamento de Halbwachs (2004),

    traamos os percursos da memria e da lembrana.

    Depois de dialogar a narrativa com a memria, inserimos nesta interao aproduo de sentido, tema amplamente discutido por Spink e colaboradores. Pensamos

    no sentido construdo aos poucos, como a histria de cada pessoa que desabrocha em

    narrativa diante de suas fotografias guardadas.

    Pensando na histria da famlia explicitada pelo contato com as fotografias, nos

    aprofundamos na formao da famlia como o grupo base de todas as vivncias erelaes sociais, exploramos os conceitos de famlia nuclear burguesa de Marx e Engels

    () e as novas possibilidades de vivncia da famlia contempornea.

    Aps esta reviso da literatura, apresentamos a metodologia e os objetivos da

    pesquisa, seguidos do relato e discusso das entrevistas.

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    3. REVISO DA LITERATURA

    3.1. O dilogo fotogrfico

    Toda imagem um mundo, um retrato cujo modelo apareceu em uma viso sublime,

    banhada de luz, facultada por uma voz interior, posta a nu por um dedo celestial que aponta,

    no passado de uma vida inteira, para as prprias fontes da expresso.

    ALBERTO MANGUEL

    De acordo com Berlo (1963), tudo aquilo a que pode ser atribuda uma

    significao pode ser usado na comunicao, fazendo com que esta tenha um amplo

    campo de possibilidades. As pessoas comunicam-se o tempo todo, verbalmente ou no.

    O vento, as temperaturas, os aromas, o toque nas pessoas e objetos so informaes que

    recebemos por todos os nossos sentidos. Tudo isso fornece pistas sobre o local em que

    estamos, indica-nos algo e provoca impresses que podem desencadear o processo

    comunicativo.

    Blikstein (1983) afirma que o signo, ou at mesmo o referente, no se constri

    fora de uma comunidade lingstica, de uma prxis, enfim, de um contexto scio-

    cultural. Portanto, o signo e as percepes do homem so produzidas ou fabricadas

    socialmente, isto , possuem uma forte inscrio num dado tempo e lugar marcado pelas

    relaes entre os homens. A comunicao, por sua vez, enquanto jogo ou trama de

    veiculao de signos, enunciados e discursos tambm est profundamente revestida pela

    constituio scio-histrica do homem, ou seja, no apenas um recurso tcnico para a

    veiculao de intenes e informao, mas um importante instrumento de produo ou

    sustentao de relaes sociais.

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    Um olhar atento sobre o momento histrico e social atual revela que vivemos

    constantemente em um mundo de hiper estimulao dos sentidos. A viso parece ser o

    maior alvo desta estimulao abrasiva, uma vez que as imagens integram,

    cotidianamente, o nosso olhar: independentemente de onde estejamos, seja em casa ou

    na rua l esto elas. A plasticidade est to impregnada nas cidades - no traado das

    ruas, na arquitetura dos edifcios, nas cineses de carros e pedestres, nas vitrines das

    lojas, nos produtos oferecidos ao mercado - que acabou por acostumar o transeunte a

    uma nova linguagem, tornando-o um leitor constante de signos visuais.

    O cdigo visual amplia e modifica a forma de ver o mundo e de selecionar o

    que vale a pena olhar. Tomando como ponto de partida a idia de que o homem prefere

    a imagem coisa, Debord (1997) interpreta o mundo atual denunciando a chamada

    crise da representao, na qual a imagem ou espetacularizao da realidade ganha

    autonomia, deixando de ser uma representao para assumir o lugar da prpria

    realidade. Imagens fotografadas no parecem manifestaes a respeito do mundo, mas

    sim pedaos dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir

    (SONTAG, 2004, p. 14-15).

    Nessa mesma direo, Paul Virilio (1996) destaca o papel da imagem numa

    sociedade baseada, cada vez mais, na corrida, na movimentao e na circulao de tudo,

    desde as mercadorias, os capitais, sujeitos, subjetividades at da significao e

    comunicao. Segundo Virilio (1996, p.21), tal supremacia da imagem na comunicao

    decorre da rapidez com a qual ela se propaga e de sua capacidade de condensao de

    mensagens, de seu poder de sntese visual.

    O sucesso da fotografia digital tambm pode ser compreendido pela velocidade

    que imprime a todo o processo fotogrfico, o que gera uma grande disponibilidade para

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    captao e distribuio de imagens. Qualquer pessoa, hoje, pode produzir suas prprias

    fotografias amadoras: o que a facilidade da fotografia digital nos induz a pensar e,

    neste momento, no detalharemos este assunto.

    O interessante notar que a digitalizao da fotografia e a produo em massa

    de mquinaspowershot (com zoom embutido que dispensa a troca de objetivas) fazem

    um movimento contrrio quele que sobreveio com a inveno da fotografia: se outrora

    a reproduo fiel da realidade era uma sensao e luxo, atualmente o contato com as

    imagens tornou-se proporcionalmente mais freqente e ordinrio.

    O grande avano nas tecnologias de comunicao visual criou uma nova

    realidade: o mundo-imagem, o aumento das possibilidades de virtualizao da realidade,

    de materializao da subjetividade e dos registros semiticos em formas que podem

    permanecer no tempo, driblando a efemeridade das coisas, das pessoas fotografadas e,

    tambm, daquele que fotografa.

    A linguagem imagtica abre espao para uma relao idiossincrtica entre o

    homem e as coisas: a mediao imagtica entre este e sua realidade. A fotografia produz

    um tipo de imagem que serve muito bem como mediador da realidade, uma forma de

    capturar os objetos e tornar desnecessria a sua presena. Por ela possvel conhecer

    lugares ou pessoas sem sair do lugar.

    De referncia passa realidade concreta, torna-se um objeto que se confunde

    com o que mostra seu recorte. possvel observar que, quando uma pessoa mostra suas

    fotos de figuras humanas, as imagens so nomeadas como se fossem as prprias

    pessoas. Aponta-se para a fotografia dizendo que esta a Fulana sendo raros os casos

    em que se comenta ser uma foto da Fulana. Em outros casos pode-se dizer esta

    uma imagem tomada de Fulana.

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    Quando falamos na produo de fotografias usamos os verbos tirar, tomar,

    capturar; como se algo fosse roubado do objeto fotografado. Sontag (2004) diz que

    alguns ndios no se deixam fotografar pela crena de que a alma fica aprisionada na

    fotografia. O intuito ao se fotografar um objeto justamente o aprisionamento de sua

    essncia.

    uma representao capaz de substituir o objeto ou a cena fotografada,

    eternizando-os de forma que possam ser evocados, recordados, revividos. Uma vez que

    a fotografia2necessita de um objeto que pr-exista mesma, a este tipo de imagens

    atribudo um valor testemunhal. Mostrar fotografias de uma viagem um atestado de

    que as pessoas que aparecem nas imagens de fato l estiveram. Parece decididamente

    anormal viajar por prazer sem levar uma cmera. As fotos oferecero provas

    incontestveis de que a viagem se realizou, de que a programao foi cumprida, de que

    houve diverso (SONTAG, 2004, p. 19-20).

    Atravs da cmera, as experincias so traduzidas em imagens (SONTAG,

    2004) que lhes do forma, tornando-se menos abstratas, mais palpveis. Apesar desta

    materialidade, o contedo capturado no se torna completamente concreto ou explcito:

    a fotografia possibilita mltiplas leituras. De acordo com Kossoy (2001), a comunicao

    no verbal, presente nas fotografias, ilude e, por isso, deve-se ler nas entrelinhas a

    mensagem nela inscrita. Os significados passam a ter sentido desde que sejam

    compreendidos tambm os elementos ausentes da imagem, alm da verdade (ou iluso)

    iconogrfica.

    Aqui se trata da fotografia convencional, amadora, comumente encontrada nos lbuns de fotografias

    familiares produzida com intuito de registro e documentao, sem propsitos artsticos. Consideraremos

    estas fotografias livres de manipulaes via software (como, por exemplo, remover ou incluir pessoas,objetos ou lugares, modificar aparncias ou expresses faciais) que diminuiriam seu valor testemunhal.

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    Se por um lado, o olhar do autor no instante da tomada da fotografia seleciona o

    que quer mostrar, por outro lado, quem a olha tambm seleciona o que observar e,

    dentro de um contexto social, temporal, reflexivo e subjetivo, constri uma imagem

    mental daquilo que lhe est sendo apresentado (LEITE, 1998).

    O dilogo que a fotografia proporciona , portanto, uma possibilidade de entrar

    em contato com questes, de se colocar frente a si mesmo e reconstruir-se, atravs da

    imagem fotogrfica que, tal como a imagem nos sonhos, abre caminho para a expresso

    do sujeito, de sua subjetividade e dos significados construdos coletivamente pelos

    grupos dos quais faz parte.

    3.2. Imagens: aparncia, poder, reflexo e fascnio

    A fotografia , ento, uma forma de representar objetos, de registrar e

    documentar, de virtualizar a realidade e produzir uma discursividade imagtica, um

    mundo espetacularizado, no qual, como ainda enfatiza Debord (1997), o importante no

    mais ser ou ter, como ocorria respectivamente na antiguidade e no auge da

    modernidade governada pelo capitalismo acumulador, mas sim parecer.

    O mundo contemporneo o da aparncia, da separao da coisa e sua imagem.

    com imagem que a mercadoria circula (BUCCI, 2005, p. 219) e na imagem est seu

    valor. O objeto material, corpreo, tornou-se apenas um suporte para a mercadoria. O

    convencimento de que vale a pena consumir um produto deve estar no rtulo e no no

    produto em si, deve estar na aparncia. Certa vez, em uma aula de fotografia de

    marketing, um decepcionado fotgrafo expe que, apesar de estar por trs das cortinas

    da manipulao das aparncias, decepcionou-se ao comprar um congelado de frangoempanado que era apetitoso na ilustrao da embalagem, mas depois de pronto deixava

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    a desejar. Mesmo trabalhando na rea de marketing no pde resistir tentao que

    aquela fotografia bem sucedida o provocou.

    a aparncia do produto que torna real o seu valor, transformando a mercadoriana imagem de si mesma, a um ponto em que a fabricao da imagem da mercadoria

    sobrepe-se e mesmo determina a fabricao da mercadoria como coisa corprea

    (BUCCI, 2005, p. 219). A mercadoria atinge o grau abstrato da aparncia e invade com

    intensidade as relaes sociais criando o espetculo. Neste mesmo sentido, Kehl (2005)

    afirma que a vida deveria ser aquilo que est alm do espetculo, mas infelizmente, o

    espetculo que abarca a vida. Este no o espetculo no sentido que costumamos

    pensar uma pea de teatro ou uma apresentao infantil na escola, pois permeia todas as

    relaes scias, em tempo integral. O espetculo sai do palco e chega at ns, ordinrios

    cidados.

    No toa o comentrio feito por um colega sobre uma amiga entusiasmada com seus

    novos culos: Antes voc usava apenas uns culos, agora voc usa uma mscara. Este

    elogio provoca certo estranhamento (talvez devido a uma sinceridade incomum que

    explicita desavergonhadamente o espetculo), mas retrata muito bem nossa vida

    espetacular. Usar culos est muito menos relacionado com a correo de uma

    deficincia do que escolher cuidadosamente um acessrio, uma mscara que mostrar

    aos outros o seurtulo. Se voc quer parecer um profissional competente, deve usar tal

    modelo, mas se quer parecer descolado, use aquele outro.

    Cada acessrio, roupa ou penteado depende de como se deseja a apario no

    espetculo cotidiano3. O espetculo promove a afirmao da vida humana como

    Estamos aqui utilizando a palvra cotidiano no sentido comum, dicionarizado, ou seja, como aquilo quese vive habitualmente no dia-a-dia.

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    visibilidade: existir, hoje estar na imagem, segundo uma estranha lgica da

    visibilidade que estabelece que, automaticamente, o que bom aparece/ o que aparece

    bom (KEHL, 2005, p. 242). A relao do homem com o mundo no direta, mas

    mediada por imagens, pela visibilidade do que aparece (um constante parecer para

    aparecer e vice-versa). Capaz de controlar a mgica do aparecimento/desaparecimento

    a imagem torna-se detentora de um grande poder.

    O poder das imagens est, em primeiro lugar, no fato de elas acompanharem o

    homem por toda a evoluo, sendo criadas de diversas formas ao longo da Histria.

    Contudo existe outro aspecto deste poder que as imagens exercem sobre ns e que pode

    ser fundamental para refletirmos sobre os lbuns de fotografias. A imagem nos

    mobiliza, nos faz sentir. As imagens de santos, por exemplo, atraem peregrinos; retratos

    de pessoas queridas podem ser beijados enquanto os de inimigos so rasgados,

    cuspidos, queimados.

    As imagens so capazes de suscitar aos poucos quase todas as emoes epaixes humanas, positivas e negativas, todas as emoes e paixes que ascoisas ou pessoas reais que elas representam poderiam suscitar: amor, dio,desejo, crena, prazer, dor alegria, tristeza, esperana, nostalgia etc (WOLFF,2005, p. 20).

    Francis Wolff levanta alguns pontos a serem considerados quanto ao poder das

    imagens: a irracionalidade, a afirmao, o tempo. Irracionalidade, por este ponto de

    vista, remete-se ausncia de conceito. O que a imagem representa s pode ser bvio

    quando o representado um objeto concreto como um animal ou uma pessoa. No

    entanto encontramos maiores dificuldades ao tentarmos, por exemplo, mostrar a fome, a

    f ou a humanidade atravs de uma fotografia.

    claro que, pensando uma pouco alm, quando a fotografia deixa de ser

    documento e registro para se aproximar da arte, as exposies e montagens podem, a

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    partir de conjuntos de fotografias de mesmo tema, representar conceitos abstratos. Por

    exemplo, uma exposio de fotografias com cenas de guerra poderia sugerir que o tema

    tratado a guerra, assim evidenciando este conceito. Entretanto seriam necessrias

    cenas estereotipadas, significados socialmente construdos que indicassem ao

    espectador tal conceito e, ainda assim, cada visitante da exposio poderia refletir de

    forma diferente sobre o que v, tendo impresses no apenas de guerra, mas de

    violncia, sofrimento, morte, holocausto etc. Para descrever tais conceitos em seus

    pormenores provavelmente escolheramos como primeira opo a fala ou a escrita.

    No necessrio, todavia, pensar esta caracterstica como um defeito ou falha da

    expresso imagtica, pois se a escrita descreve pormenores de idias, a imagem nos

    incita s sensaes. Wolff (2005) assinala que, em contrapartida dificuldade

    conceitual, a imagem descreve cores, formas, paisagens, luz e sombra sem maiores

    delongas, com um simples olhar.

    Embebidos na visualidade apresentada pela imagem, percebemos outro aspecto

    de seu poder: a afirmao. Uma imagem afirma que o cu azul, que aquela fruta uma

    ma, mas no diz que a ma no uma banana. No existe negao na imagem,

    apenas a afirmao do que ali est explcito. Qualquer significado que possa ser

    explorado alm do que est explicitado tem que ser acompanhado pelo discurso. O

    pensamento de Wolff (2005) neste ponto corrobora o de Novaes (2005): diante da

    imagem preciso acionar o pensamento e a reflexo para que possamos realmente

    desvendar seus significados e nos deixarmos envolver por seu poder de mobilizao.

    Se quisermos tocar, emocionar, provocar uma reao imediata, nocontrolada, de admirao, de identificao, de atrao, ou, ao contrrio, demedo, de compaixo, de repulsa, nada vale tanto quanto uma imagem. Umartigo sobre a fome que tenha causado 100 mil mortos na frica umainformao, uma estatstica, interessa pessoa, mas no a deixa indignada.

    Uma foto de uma nica criana africana morrendo de fome no informa, no

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    diz nada, no explica nada, mas pode provocar piedade, indignao, revolta(WOLFF, 2005, p.26).

    Sensibilizar-se ao ver uma foto de uma criana sofrendo de inanio ou

    emocionar-se ao encontrar a fotografia amarelada do casamento dos tataravs

    imigrantes bem diferente de extasiar-se diante de um outdoor da Ellus. Faamos aqui

    uma breve distino a respeito do fascnio provocado pela fotografia. As imagens que

    estamos acostumados a consumir produz um fascnio, como se estivssemos sob um

    encantamento. Magia provavelmente possvel pela rapidez com que passamos os olhos

    por tais imagens.

    Sem tempo para pensar sobre o que nos dizem, a nica possibilidade o fascnio

    por sua impecvel esttica e obviedade. Diante da imagem preciso a reflexo e no o

    fascnio. Fascinar-se pelas imagens seria, segundo Novaes (2005), o cmulo da

    distrao, o oposto ao deciframento, porque o fascnio separa a imagem do pensamento

    e, por conseguinte, da sensibilizao.

    Tendo assinalado a distino entre fascnio e reflexo ou sensibilizao,

    voltemos ao aspecto da afirmao inerente imagem. Wolff (2005) ainda ressalta que

    esta caracterstica se afunila um pouco e revela o indicativo da imagem, ou seja, no h

    espao para o seou o talvez, apenas para o e exatamente essa caracterstica que traz a

    veracidade da imagem, que nos faz acreditar incondicionalmente no que nos apresentam

    as fotografias. Se eu me reconheo em uma fotografia do aniversrio do meu irmo,

    ento posso afirmar com toda certeza que estive l e, caso algum duvide, posso

    confront-lo com esta prova incontestvel. Podemos duvidar destas afirmaes

    categricas, ainda mais neste momento fluido onde quase tudo, at mesmo nosso corpo,

    nome, identidade, pode ser manipulado e distorcido atravs de softwares como o

    Photoshop.

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    Contudo, insistindo mais uma vez, diante de uma fotografia geralmente no

    questionamos a veracidade do que est explcito nas imagens. Talvez este costume de

    acreditar na veracidade incontestvel da fotografia seja simultnea ao surgimento da

    mesma que, independentemente de qualquer manipulao sobre as chapas de vidro,

    sobre os negativos ou sobre a imagem revelada tenha surgido como forma de imitar a

    realidade. Esta funo da fotografia, que a livrou de uma competio com as pinturas na

    busca de status artstico, pode ter se arraigado na sociedade de forma a conservar-se, ao

    menos em parte, at os dias atuais.

    A idia de dissoluo desta veracidade tem, de fato, se consolidado com a

    popularizao dos softwares de manipulao da imagem, contudo no podemos

    dispensar completamente o valor de realidade atribudo s fotografias, j que a pintura

    sobre as fotografias em preto e branco eram comuns (como nos retratos de bebs em

    que se pintavam as vestes de rosa, azul ou amarelo pastel, dava-se cor pele e aos

    cabelos) e essa manipulao explcita no diminuiam o sentimento de realidade (ou seja,

    a me no deixava de dizer que aquele beb pintado com aquarela era seu filho).

    Ainda, o testemunho das imagens custa a se dissolver mais porque mais fcil

    olh-las rapidamente, sem fazer muitas questes sobre o que est sendo visto. Sem

    questionamentos, tornamo-nos ainda mais vulnerveis ao mercado de consumo que,

    atravs da propaganda, conta com o nosso desapercebimento diante da imagem para nos

    atingir com mensagens velozes, plsticas, que no precisam ser digeridas, mesmo

    porque, quando digeridas, perdem seu poder de fascnio.

    A ltima caracterstica apontada por Wolff (2005) quanto ao poder da imagem

    sobre o homem refere-se ao tempo. De acordo com este autor, a imagem no conhece o

    passar do tempo. Nela, tudo vive no presente e a ns assim se apresenta. No possvel

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    distinguir o tempo de um acontecimento registrado atravs de uma imagem: pode ser

    recente ou remoto. Quanto a este aspecto faremos algumas ressalvas.

    Pensar em um nico tempo, o presente, um pouco difcil quando tratamos daimagem fotogrfica. Primeiro, porque tudo que existe sob a forma de uma fotografia s

    pode dizer de algo que no , mas que j foi. Depois, o prprio suporte fotogrfico

    irremediavelmente delata, em sua cor amarelada, que uma fotografia antiga. No

    esqueamos a fotografia digital desfaz este paradigma da marca do tempo no suporte (o

    papel que amarela com o tempo) e, esta sim, torna difcil um desvendamento temporal

    da cena capturada. Ainda assim, insistimos, quando a fotografia (digital ou analgica)

    compe-se com a narrativa aparecem os vestgios do tempo e, de qualquer forma, uma

    coisa certa: torna-se presente o que adormecia no passado.

    Existe, portanto, no uma atemporalidade na fotografia, mas uma retomada do

    ausente e, neste sentido, concordamos com o autor: A imagem faz reviver os mortos e

    mostra o tempo passado no como passado, mas como sempre presente (WOLFF,

    2005, p. 28). O acervo fotogrfico familiar, sobretudo, envolve as nuances da ausncia.

    Wolff sabiamente aponta que a ausncia no percebida de uma nica maneira.

    Existe aquilo que um dia estava presente, mas agora est inacessvel, distante,

    como os imigrantes que retornam, atravs das fotografias, aos familiares deixados em

    sua ptria natal. Ter em mos a fotografia destes entes queridos, separados por pases ou

    continentes, faz o pensamento ultrapassar distncias e esta sensao de proximidade

    pode diminuir a saudade.

    Por outro lado, a ausncia pode se manifestar, na imagem, de uma forma menos

    afvel, lembrando-nos daqueles que no podem mais voltar: o passado e os mortos. Este

    elemento pode causar o efeito oposto ao primeiro, intensificando a nostalgia daquilo que

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    se perdeu e no pode ser revivido. Reconhecemos que, no momento capturado pela

    fotografia, ramos jovens, o que imediatamente nos lembra que esta juventude foi

    perdida. como olhar em um espelho de uma mquina do tempo imaginria: de repente

    percebemos que a imagem refletida no nos acompanhou ao longo do tempo. Retornar

    ao lbum de fotografias e nos depararmos com imagens h muito tempo no revisitadas

    pode ser um susto: vejo, presente na imagem, aquilo que nunca mais estar presente na

    realidade (WOLFF, 2005, p. 30)

    A fotografia, portando, compartilha do poder concedido s imagens: ela

    evidencia o concreto, porque no pode inventar conceitos; afirma, porque no pode

    negar; indica, porque no pode supor e, finalmente, pode reviver o que parecia

    perdido e ausente. O poder da imagem est em no representar fielmente o real e,

    mesmo assim, evoc-lo com tamanha intensidade que no podemos resistir

    sensibilizao.

    Contudo, para que uma imagem possa sensibilizar preciso ser vista. Em um

    primeiro momento parece bvio pensar que para ver ou perceber uma imagem basta

    apenas enxergar, mas talvez apenas a viso no seja suficiente.

    De acordo com Novaes (2005), o excesso de imagens o que nos impede de

    aprender a ver. Decifrar as imagens pode ser particularmente difcil nesta poca em que

    passamos to rapidamente por elas, pois apreender a imagem a ponto de construir-lhes

    um sentido ntimo e nico exige tempo, um tempo que hoje nos falta. As imagens

    sempre exigiram de ns tempo para ver, o tempo lento da vidncia e da evidncia, isto

    , o tempo necessrio para o desvelamento das idias contidas em cada uma delas

    (NOVAES, 2005, p.11)

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    Talvez o sentido de cada imagem no seja to explcito quanto estamos

    acostumados a acreditar. Observar uma imagem como ler um livro, em que nos

    surpreendemos a cada releitura, no porque o que est escrito mudou, mas porque ns

    no somos os mesmos. A imagem, to exuberante e majestosa quanto a esfinge, nos

    interpela: decifra-me ou te devoro. Sem tempo nem pacincia para exercitarmos o

    pensamento, nos tornamos presas frgeis.

    A imagem apartada do pensamento torna-se apenas o decalque do mundo.

    Contudo a funo da imagem no reproduzir fielmente o mundo ao seu redor. Um

    fotgrafo, quando faz um retrato, no intenta reproduzir fielmente os traos de seu

    modelo, mas deixar nas entrelinhas algumas pistas sobre a personalidade daquele que se

    doa ao seu olhar.

    A imagem, sobretudo a fotografia, surgiu a partir do desejo de reproduzir o

    mundo e, transparecendo este intuito, existe uma relao de identificao entre a

    representao (imagem) e o representado (pessoa, cena, objeto). A identificao baseia-

    se, portanto, na similitude entre o real e a imagem que aparece na fotografia o que,

    conseqentemente liga-se a outro conceito, o da aparncia. Uma fotografia deve parecer

    com o objeto fotografado a ponto que possa ser indicado na imagem e reconhecido

    como tal. Contudo uma imagem e sempre deve ser uma representao daquilo que est

    ausente, para que no possa confundir-se com o prprio objeto que representa.

    Wolff aponta que para melhor representar preciso no se assemelhar tanto

    (2005, p. 22). De fato poderia ser um tanto assombroso se uma fotografia nossa fosse

    to fiel que transparecesse nossos pensamentos e sentimentos. Provavelmente

    abandonaramos prontamente tal recurso capaz de nos colocar diante de ns mesmos e

    dos outros com tamanha clareza. O interesse pela imagem est justamente em uma

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    incompletude que nos permite preencher com algo nosso, com o que se extrapola alm

    do bvio.

    Entretanto, para perceber o que est nas entrelinhas, uma olhadela no basta, preciso contemplao. O esforo do pensamento consiste, pois, em decifrar imagens,

    entender o mundo a partir delas. Traduzir o enigma das imagens uma forma de

    reconciliao do esprito com os sentidos. Nesse processo, cada imagem quer tornar-se

    palavra, logos; e cada palavra, imagem (NOVAES, 2005, p.12-13).

    Mas como deter-se diante da imagem para decifr-la se hoje ela no se traduzem palavras, mas atinge diretamente o desejo? Atravs da imagem nos dito o que

    devemos consumir e at mesmo a prpria imagem tornou-se um objeto de consumo.

    mais fcil acumular imagens do que refletir sobre elas. Sem o pensamento, sem o olhar

    mais uma vez, corremos o risco de nunca aprendermos a ver. claro que, em

    contrapartida, desvendar a imagem tem seus riscos (NOVAES, 2005). Um olhar atento

    nunca ingnuo e, se a imagem se forma a partir da escrita com luz (foto + grafia),

    tambm se faz atravs da sombra. Contemplar imagens, sobretudo aquelas de seu acervo

    pessoal ou familiar, ter em mos a caixinha de pandora e todos os significados que ali

    repousam. estar em posse da prpria histria, de momentos prontamente lembrados e,

    tambm, de outros h muito esquecidos.

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    3.3. Recorte fotogrfico

    A fotografia , necessariamente, um enquadramento da realidade e a captura de

    um momento que, agora, pertence ao passado (BARTHES, 1984).

    Para que tal fragmento selecionado se componha como imagem fotogrfica

    necessrio que ocorra um corte sobre o tempo e o espao. O tempo, capturado na

    fotografia, tem seu fluxo interrompido e se instala numa imagem suspensa, fixa e fora

    da continuidade temporal. O seu contedo apresentado de uma s vez, em um instante

    nico e pontual - diferente daquele em que a cena foi fotografada. Esse momentotorna-se, uma vez pego, um instante perptuo: uma frao de segundo, decerto, mas

    [...] destinada tambm a durar, mas no prprio estado em que ela foi capturada e

    cortada. (DUBOIS, 1993, p.168)

    Desta forma, a fotografia revela no apenas o corte da realidade, mas tambm

    traz a idia de passagem e transformao de um tempo contnuo em um tempopetrificado, transcendido. Deflagra-se um instante transitrio da continuidade que se

    converte em permanncia. Certamente esta transformao se d com alguma angstia ou

    expectativa de uma fotografia bem sucedida mas serve, enfim, como forma de

    proteger o objeto de sua prpria perda.

    Dubois (1993) acentua, ainda, que o ato fotogrfico executa um golpe de corte.Atravs deste corte as facetas so reveladas da mesma forma que as lminas de citologia

    e botnica em que cortes transversais ou longitudinais permitem o estudo de diferentes

    camadas do objeto.

    O ato fotogrfico cria o paradoxo de tornar esttica a ao para depois oferec-la

    ao olhar. A fotografia, inerte, convida o espectador a reproduzir mentalmente a cenacapturada, permitindo reviver de forma singular o passado que ali se apresenta.

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    Ainda que o corte temporal obtido pelo ato fotogrfico incomode a ponto de

    colocar o observador em movimento existe, ainda, outro golpe simultneo: o corte

    espacial. Congelar a ao do tempo implica necessariamente em tambm capturar o

    espao em que a cena ocorre. O espao fotogrfico deve ser selecionado, escolhido

    dentre toda a informao visual presente. um ato irremedivel e que determina a

    imagem como um todo, criando o espao da fotografia e s vezes insinuando um espao

    que est fora, ausente, excludo do recorte e do olhar.

    Mesmo excludo do enquadre, o espao virtual pode aparecer marcado na

    imagem por uma relao de contigidade com o espao aparente na fotografia. Ou seja,

    sabe-se que esteve ali no instante da tomada da fotografia, mas foi deixado de lado.

    Qualquer fotografia, pela viso parcial que nos apresenta, duplica-se assim

    necessariamente de uma presena invisvel, de uma exterioridade de princpio,

    significada pelo prprio gesto de recorte que o ato fotogrfico implica (DUBOIS,

    1993, p.180).

    inerente fotografia o corte, a seleo e, conseqentemente, a lacuna. No

    possvel nela capturar a realidade absoluta. No se pode ter certeza do tempo e do

    espao que a fotografia apresenta devido sua materialidade esttica e ao

    enquadramento fixo. Entretanto, estes aspectos limitantes da imagem fotogrfica

    justamente o que nos permite ir alm do explcito. A transcendncia do tempo e do

    espao permite que a memria e a narrativa preencham as lacunas impostas pelo recorte

    fotogrfico.

    Existe, ainda, outro elemento que evoca a narrativa e a memria a partir dos

    lbuns: o conjunto de fotografias que se relacionam como um arranjo de imagens.

    Organizar as fotografias em lbuns (no formato livro, em albinhos,envelopes ou caixas)

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    impe uma seqncia. Este arranjo certamente menos explcito quando as fotografias

    esto soltas em caixas mas, ainda assim, um arranjo dado no momento de guardar ou

    rever tais imagens.

    Este arranjo no fixo, mas sim uma estrutura passvel de modificaes cada

    vez que tais imagens so retomadas. Por outro lado, esta mobilidade acontece inclusive

    no lbum em formato de livro (aparentemente perene), pois podemos folhe-lo de trs

    pra frente, pular fotografias e, assim, observar diferentes imagens a cada retorno ao

    lbum.

    Assim, pode-se pensar que a fotografia recorta a imagem no tempo e no espao,

    mas o lbum a coloca em relao com outras imagens de registros mnemnicos de onde

    retira suas possibilidades de significao.

    A partir da revisitao dos lbuns, as fotografias so colocadas em relao com

    outros fragmentos de imagens, fotografados ou mnmicos, e deste contatoinevitavelmente surgem histrias evocadas pelas memrias sobre o acervo4.

    Entrar em contato com as fotografias do nosso acervo reatar pedacinhos da

    nossa histria que, impregnados de lembranas e afetos, incitam narrativas. Histrias

    existem para serem contadas.

    Ao conjunto de fotografias nos referiremos como acervo e no como coleo uma vez que coleo

    refere-se a um agrupamento de objetos da mesma natureza, enquanto acervo tambm uma reunio deobjetos, mas associada herana ou patrimnio.

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    3.4. A fotografia como convite narrativa

    Ningum morre to pobre que no deixe alguma coisa

    atrs de si. Em todo caso, ele deixa reminiscncias, embora nem

    sempre elas encontrem um herdeiro. WALTER BENJAMIN

    A palavra narrativa atualmente pode nos remeter imediatamente quelas

    imagens de jovens na escola aprendendo as variadas formas de escrita na aula de

    redao. Fora da sala de aula a narrativa apenas uma forma de escrita literria usada

    por especialistas e uma lembrana remota para o resto das pessoas. Segundo Walter

    Benjamin (1994), como se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia

    segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias. (BENJAMIN, 1994,

    p.198) Para ele, uma das causas deste fenmeno estarmos pobres em experincia

    comunicvel, aquela transmitida de boca em boca.

    A experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a que recorreram todos os

    narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores so as que menos se distinguem

    das histrias orais contadas pelos inmeros narradores annimos. (BENJAMIN, 1994,

    p.198) So viajantes que retornam e tm muito que contar ao povo, pessoas que vm de

    longe, de outras naes ou, ainda os que nunca saram de sua cidade natal, mas

    conhecem suas histrias e tradies.

    Para Benjamin (1994), o ato de narrar est intimamente ligado sabedoria

    popular, transmisso de experincias orais transcursadas por inmeras geraes e que

    atualmente est definhando porque esta sabedoria est em extino.

    A narrativa perdeu seu lugar aos romances, advindos com o modernismo,

    essencialmente vinculados aos livros. O que diferencia o romance da narrativa no

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    apenas a prensa, j que o narrador fala de experincias, suas ou de outros, e o romance

    tem sua origem no indivduo isolado. Ela no est interessada em transmitir o puro

    em si da coisa narrada como uma informao ou um relatrio. Ela mergulha a coisa na

    vida do narrador para em seguida retira-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca

    do narrador, como a mo do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p205)

    A narrativa tem sempre em si, s vezes de forma latente, uma dimenso

    utilitria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto

    prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida de qualquer maneira o narrador

    um homem que sabe dar conselhos. Mas, se dar conselhos hoje parece algo antiquado,

    porque as experincias esto deixando de ser comunicveis. Em conseqncia, no

    podemos nem dar conselhos a ns mesmos nem aos outros. Aconselhar menos

    responder a uma pergunta que fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria

    que est sendo narrada (BENJAMIN, 1994).

    neste momento que a narrativa mostra-se parte indissocivel da construo de

    lbuns de famlia, uma vez o sentido de cada foto compe-se pela imagem que a

    antecede e pela que a sucede no arquivo fotogrfico. possvel pensar que os lbuns

    permitem o resgate da sabedoria popular da narrativa, em forma de livros de fotografias.

    Tal como o ato fotogrfico, [...] a relao entre o ouvinte e o narrador dominada pelo

    interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante

    assegurar a possibilidade de reproduo. (BENJAMIN, 1994, p.210)

    A reminiscncia funda a tradio, o ato de transmitir os acontecimentos de

    gerao a gerao. Da reminiscncia se desdobram a memria e a rememorao.

    Fazendo uso da memria, o narrador tece uma rede de acontecimentos articulados. So

    histrias que contrastam com as novelas, crnicas, enfim, romances vigentes em nosso

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    tempo. Aos romances cabe a rememorao de fatos consagrados que giram em torno de

    apenas um heri, uma guerra, uma peregrinao, uma famlia contrastando com os

    muitos enredos difusos da narrativa. (BENJAMIN, 1994)

    A narrativa no depende de nenhuma cincia, mas composta pela existncia

    humana e pela afinidade entre a alma, o olho e a mo.

    A narrao, em seu aspecto sensvel, no de modo algum o produtoexclusivo da voz. Na verdadeira narrao, a mo intervm decisivamente,com seus gestos que sustentam de cem maneiras o fluxo do que dito. [...] Onarrador figura entre os mestres e os sbios. Ele sabe dar conselhos no paraalguns casos, como o provrbio, mas para muitos casos, como o sbio. Pois

    pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que no inclui apenas aprpria experincia, mas em grande parte a experincia alheia). O narradorassimila sua substncia mais ntima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seudom poder contar a sua vida; sua dignidade cont-la inteira. (BENJAMIN,1994, p.221)

    Narrar trafegar entre as trajetrias de vida individuais e coletivas. A

    maleabilidade dos narradores e de suas estrias existe porque as verses das pessoas

    sobre seus passados mudam quando elas prprias mudam. (PORTELLI apud

    FERNANDES; PARK, 2006, p. 41). Cada estria nica. Nunca ser contada duas

    vezes de forma idntica, pois transforma-se ao longo do tempo, conforme a experincia

    acumulada pelo narrador ou pelos aspectos intencionalmente enfatizados durante a

    narrativa. (FERNANDES; PARK, 2006)

    Olhar fotografias guardadas abrir um livro de memrias que pede para ser lido.

    Por isso, comum a observao de fotografias ser acompanhada pela narrativa oral, que

    complementa os seus sentidos a partir do olhar daquele que descreve cuidadosamente

    cada imagem do lbum. Ao falar sobre os lbuns todas as histrias contadas pelo

    narrador inscrevem-se dentro da sua histria, a de seu nascimento, vida e morte

    (BOSI, 1983, p. 47).

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    Diante da imagem o pensamento se estende e acaba por criar especulaes sobre

    as formas e cenas fotografadas: surge um antes e um depois daquela imagem esttica,

    daquele fragmento do real, incompleto, que nos incita a complet-lo com palavras.

    De acordo com Leite (1998), as lembranas permanecem guardadas no

    inconsciente, esquecidas, at que algo as evoque ou mobilize. Por isso, produzir

    imagens tambm criar histrias pessoais e culturais, mediante as quais o homem pode

    narrar, comunicar e pensar sua prpria existncia.

    As fotografias antigas revividas atravs dos lbuns e aliadas s narrativas podemter um papel integrador na estrutura familiar e passar para as geraes mais jovens os

    valores e a histria do grupo. Desta forma atua como memria viva, palpvel, fonte de

    informao. Atravs das imagens que nos restaram e das estrias que nos chegam pela

    trama familiar, construmos uma interpretao da figura e da atuao de nossos

    antepassados no tecido social e a transmitimos para as novas geraes (SIMSON,

    1998, p. 22).

    Quanto transmisso de tais valores a partir de fotografias parece que a mulher

    se destaca no trato com a fotografia e na montagem dos lbuns como um livro imagtico

    de histria. So as guardis da histria da famlia, garantindo a documentao para as

    genealogias (LEITE, 1998, p. 40).

    As mes fazem os lbuns dos bebs, das festinhas de aniversrio, dos

    casamentos, arrumam os porta-retratos nas estantes. As mulheres, na maioria das vezes,

    so tambm as responsveis pela organizao dos lbuns. (LEITE, 1998)

    Cuidadosamente escolhem as fotos que devem comp-los, a seqncia, os personagens

    e as cenas que merecem ser guardadas na histria da famlia.

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    3.5. O enlace da narrativa com a memria

    O mundo que habitamos um universo de histrias, de narrativas que povoam

    experincias do nosso cotidiano transformadas em contos, casos, causos (s vezes boasprosas, outras vezes ensaios de poesia). Somos, em contrapartida, destinatrios das

    histrias que os outros nos contam sobre suas vidas. Relatamos acontecimentos do

    passado, remoto ou recente, do presente quase imediato, criamos fices sobre o futuro

    pessoal e at mesmo o da humanidade (uma especulao criativa que impulsiona

    inmeros filmes apocalpticos e futuristas).

    Em muitas situaes, os interlocutores se buscam ansiosamente para contar um

    ao outro seus feitos, realizaes ou acontecimentos que os afetaram denotando a

    necessidade de compartilhar experincias marcantes e acontecimentos significativos.

    Em vrias ocasies, o relato posterior dirigido a um outro, confidente, torna-se to ou

    mais importante do que o prprio vivido. Parece que algumas coisas so vividas apenas

    para que possam ser contadas, como se observa nas animadas conversas de jovens sobre

    acontecimentos de festas do dia anterior.

    As fotografias, por exemplo, retratam muitas vezes cenas que duraram apenas

    alguns segundos, mas que precisavam ser registradas para que outros pudessem v-las.

    Talvez estas imagens fossem menos atraentes caso no se destinassem ao olhar de

    outros, inclusive, para muitos daqueles que nela tambm aparecem. Ser que algumas

    das fotografias que produzimos em lugares ou momentos especiais so tomadas apenas

    para que digamos aos outros o quanto perderam no participando daquela cena, ou,

    ainda, para ressaltar a importncia queles que l estiveram?

    O que merece ser destacado nessas consideraes que todo ato de linguagem

    pressupe um interlocutor, um outro para o qual o falante se dirige, ainda que seja o

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    prprio sujeito. O contedo da narrao estar povoado de personagens, de outros, que

    fazem parte dos acontecimentos narrados. No vivemos isoladamente e, por isso, no

    somos protagonistas solitrios de histrias. O prprio ato de relatar a outrem um

    acontecimento o torna participante da narrao, muitas vezes, um participante que

    corrige, acrescenta, nos auxilia em certas passagens, fazendo-se um co-editor de nossas

    prprias histrias.

    O que contado atravs da narrativa no , portanto, o que cada um viveu, mas

    sim o que lembrado e acrescentado por outros, construindo uma histria viva que se

    transforma no percurso quando os narradores examinam a imagem do seu prprio

    passado enquanto caminham. (PORTELLI apudFERNANDES; PARK, 2006, p. 47).

    A nossa histria est atada memria e lembrana. Lembrar existir, ser gente,

    acumular vivncias. Atravs da lembrana nos situamos no mundo e construmos

    identidades individuais e grupais. O que somos e o que o outro reconhece em ns dado

    por aquilo que lembramos.

    A fim de ampliar um pouco esta questo reportemo-nos aos estudos sobre

    memria coletiva de Halbwachs (2004). Segundo este autor, a memria pode ser algo

    muito pessoal, particular, construda a partir de experincias singulares, mas para que se

    fixe, que seja parte do acervo pessoal, precisa estar apoiada em uma comunidade

    afetiva. Para permanecerem vivas, as experincias precisam ser rememoradas.

    Entretanto, a lembrana vai muito alm de relatar fatos passados ainda que,

    rpida e superficialmente, isso nos parea suficiente. Halbwachs (2004) sensivelmente

    nos aponta que uma lembrana s permanece viva enquanto apoiada por outras

    lembranas. Se uma viagem em grupo muito significativa nos foge memria porque

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    h muito tempo no pertencemos mais a este grupo onde este momento e suas

    implicaes afetivas permanecem.

    Para que nossa memria se auxilie com a dos outros, no basta que eles nostragam seus depoimentos: necessrio ainda que ela no tenha cessado deconcordar com suas memrias e que haja bastante pontos de contato entreuma e as outras para que a lembrana que nos recordam possa serreconstruda sobre um fundamento comum. (HALBWACHS, 2004, p. 38)

    A lembrana no apenas coser pedaos do passado, mas reconstru-los em um

    contexto que o reconhece como verdadeiros. Contar memrias partilhadas a um grupo

    que no as recorda como parte de sua experincia, apenas inventar uma estria.

    Lembrar de algo particular vlido, mas lembrar de uma experincia partilhada

    verdico, uma vez que pode ser testemunhado. Se a rememorao se alicera

    inevitavelmente no grupo, podemos pensar em uma inveno social da memria.

    3.5.1 A memria inventada

    At mesmo alguns momentos do nosso passado mais particular precisam ser

    reafirmados por outros, geralmente adultos que l estavam quando mal podamos

    balbuciar as primeiras palavras e guardar as primeiras impresses sobre o mundo.

    Algumas lembranas confundem-se com as histrias contadas sobre o momento

    rememorado. No podemos discernir ao certo at que ponto o que lembramos sobre o

    passado remoto so rememoraes de vivncias pessoais ou flashesacrescentados de

    narrativas. A edio de nossas histrias, um percurso que parece to solitrio, conta com

    a ajuda dos outros ou, no mnimo, com um ouvido atento ao qual nos dirigimos e

    ajustamos nossos relatos. Em situaes ainda mais radicais da participao dos outros

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    nas edies de nossas prprias histrias, tornamo-nos ouvintes das histrias que os

    outros nos contam sobre ns mesmos. Exemplos paradigmticos so aqueles nos quais

    nossos interlocutores nos lembram de episdios que esquecemos ou que no registramos

    como acontece quando um adulto relata para criana ocorrncias de sua prpria vida.

    As lembranas da primeira infncia podem ser particularmente nebulosas,

    imprecisas, inventadas a partir das narrativas dos outros e a fotografia, por sua vez,

    serve muito bem a este papel de inventar ou construir memrias. As fotos de infncia

    trazem imagens de momentos e acontecimentos selecionados por outros, recortados e

    registrados como cenas primevas de nossas fundaes.

    A fotografia um suporte tecnolgico que possibilita a fixao da imagem fora

    da nossa memria e da dos outros, como uma extenso das mesmas. Funciona como um

    dispositivo de auxlio da memria na evocao de cenas e acontecimentos ou na

    produo de registros mnmicos a posteriori. Fotografias podem representar um auxilio

    imprescindvel para que possamos criar registros de acontecimentos bastante remotos,

    tanto de nossas vidas como da histria coletiva, da vida de nossos antepassados.

    Essa construo a posteriori de registros de memria, levanta a intrigante

    questo da origem daquilo que lembramos. O que nos recordamos e que tomamos como

    sendo nossa histria inclui os registros que os outros realizaram de acontecimentos de

    nossas vidas e que atualizaram em vrios momentos para ns, mediante relatos verbais

    ou o uso de outros recursos de linguagem como a fotografia.

    Enfatizamos que a memria to produzida coletivamente que admite uma

    afirmao que pode soar bastante paradoxal: nossas memrias so as memrias dos

    outros, ou ainda, nossas memrias contm aquilo que os outros se recordam de ns

    mesmos. Assimilamos como sendo a histria de nossa civilizao, aquilo que outros nos

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    contam sobre ela (os historiadores); assimilamos como sendo a histria de nossa

    linhagem familiar, aquilo que os mais velhos se lembram dessa histria e, sobretudo,

    assimilamos aquilo que nossos pais nos contam sobre ns mesmos. Tais histrias se

    tornam mais verossmeis quando se apiam em registros fotogrficos - os grandes

    documentos da nossa histria de vida.

    Para ilustrar um pouco o carter alheio ou exgeno da memria podemos

    recorrer ao filme Blade Runner, uma histria de fico na qual robs construdos como

    rplicas quase exatas de seres humanos possuem memrias artificiais de suas histrias

    de vida, implantadas por aqueles que os construram.

    O enredo desse filme se passa no incio do sculo XXI, quando uma grande

    corporao desenvolve um rob mais forte e gil que o ser humano e equiparado em

    inteligncia. So conhecidos como replicantes e utilizados como escravos na

    colonizao e explorao de outros planetas. Para que no se assemelhassem

    demasiadamente aos humanos, aos replicantes no foram dadas histrias de vida ou

    memrias do passado. Quando um grupo de robs provoca um motim em um planeta-

    colnia, os replicantes tornam-se ilegais na Terra, sob pena de morte. A partir de ento,

    policiais de um esquadro de elite, conhecidos como Blade Runner, tm ordem de

    executar replicantes encontrados na Terra. Em 2019, quando cinco replicantes chegam

    Terra, provocando questionamentos sobre sua origem e criao, um ex-blade runner

    encarregado de ca-los e depara-se com uma replicante em cuja mente foram

    implantadas memrias de infncia. Essa replicante um modelo avanado que possui

    registros bastante reais de sua pressuposta infncia, detentora de uma histria de vida

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    totalmente artificial e fictcia, criada pelos programadores responsveis pela fabricao

    ou informatizao de seu crebro5.

    Thasa Bueno (2007), em seu artigo lbum de Famlia: A Criao de umaCrnica Particular utiliza esse filme para discutir o papel da memria na constituio

    do sujeito. Ela enfatiza, no filme, exatamente a importncia dos registros mnmicos das

    experincias vividas para a construo da identidade. medida que se implantavam nos

    replicantes imagens de sua pressuposta infncia, estes se tornavam mais convictos de

    sua origem e de sua natureza humana, e assim eram evitados descontroles emocionais

    relacionados falta de uma identidade definida. A autora acentua a possibilidade de se

    revisitar o passado como um elemento importante no reconhecimento da prpria

    existncia.

    Entretanto, podemos tambm realar outro fato significativo trazido pela trama

    desse filme: a memria construda por um especialista e implantada nos replicantes. At

    que ponto nossas imagens da infncia no possuem exatamente a mesma natureza, isto

    , tambm no foram de certa forma implantadas em ns?

    Retratos espalhados pelos mveis, comentrios sobre a infncia esquecida,

    estrias sobre ancestrais desconhecidos so elementos do ambiente familiar que

    certamente participam da construo da nossa memria. O lbum de famlia e as

    narrativas sobre as imagens ali compostas poderiam, em algum momento, implantar

    imagens no sujeito, tal como fizeram os criadores dos replicantes no filme Blade

    Runner?

    Adaptado da sinopse disponvel em: http://www.unicamp.br/unicamp/divulgacao/mostracinema.htm

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    3.6. Depois do enlace, a produo de sentido

    Se at mesmo a memria da prpria histria de vida pode ser implantadaou, no

    mnimo, construda na relao com aqueles de convvio prximo, fica difcil pensar em

    qualquer produo humana apartada da relao com o outro.

    Como assinalado anteriormente, tanto a narrativa quanto a memria se apiam

    no coletivo, seja na fala que busca um confidente ou na lembrana de um passado

    socialmente construdo. Neste mesmo sentido, as histrias narradas a partir do contato

    com fotografias tambm so geralmente direcionadas a um interlocutor.

    Na trajetria da memria, disparada pela fotografia e expressa em narrativas,

    existe sempre uma relao entre pessoas, seja esta disparada por uma lembrana ou pela

    prpria situao de entrevista: nesta interao insurge o sentido.

    Lidamos no com osentido dado pelo significado de uma palavra ou conceitoque espelham o mundo real, mas com sentidos mltiplos, o que nos leva escolha de verses dentre as mltiplas existentes. Lidamos com umarealidade polissmica e discursiva, inseparvel da pessoa que a conhece [...].Ao longo de sua histria de vida, o indivduo vai se posicionando e buscandouma coerncia discursiva, recolhendo e processando narrativas que vo lhedar a identidade. Em outras palavras, o sentido produzido interativamente ea interao presente no incluiu apenas algum que fala e um outro que ouve,mas todos os outros que ainda falam, que ainda ouvem ou que,imaginariamente, podero falar ou ouvir (PINHEIRO, 2000, p. 193-194).

    A produo de sentidos um processo por meio do qual as pessoas descrevem e

    explicam o mundo em que vivem. Para que se produza sentido preciso criar espao

    para novas construes. Decorre da a espiral dos processos de conhecimento, um

    movimento que permite a convivncia de novos e antigos contedos (conceitos, teorias)

    e a ressignificao contnua e inacabada de teorias que j caram em desuso (SPINK;

    FREZZA, 2000, p. 27). Isso significa que existem vrias formas de perceber e construir

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    o mundo e o conhecimento no algo prontamente adquirido, inato, mas construdo

    socialmente, ao longo da vida.

    O conhecimento de si mesmo e, por conseguinte, do mundo no pode serconstrudo a partir da experincia de um indivduo. No senso comum existe um

    pensamento constante: sou eu quem conhece melhor a mim mesmo. Mas qual a

    jornada do autoconhecimento? Eu s me conheo atravs do outro, do espelhamento

    fruto do convvio e da interao. , portanto, um processo dialgico onde se atinge no

    averdade em si, mas umaverdade relativa a cada indivduo.

    O sentido uma construo coletiva e interativa permeada pelas relaes sociais

    em que se constroem os mecanismos de compreenso dos fenmenos. Dar sentido ao

    mundo uma fora poderosa e inevitvel na vida em sociedade (SPINK; MEDRADO,

    2000, p. 41) e, sendo uma relao dialgica, implica linguagem e contexto.

    O sentido no mudo, para acontecer precisa da fala, de uma linguagem comumpara que aquele que diz possa ser escutado e compreendido. Entretanto, os sentidos no

    esto na fala propriamente dita, predeterminados pelas frases, mas na linguagem como

    instrumento de compreenso da realidade. A linguagem nada mais que uma

    ferramenta psicolgica, fabricada em um contexto social,

    pela qual estabelecemos diferentes relaes com os que nos cercam eproduzimos sentido para as nossas circunstncias. Estas circunstncias soparcialmente estruturadas e o sentido que damos ou emprestamos a elas, duma forma e possibilita a comunicao desse sentido aos que esto ao nossoredor e que falam a mesma linguagem (PINHEIRO, 2000, p. 193).

    preciso, portanto, no perder de vista o entrelaamento da linguagem com o

    contexto, pois os grupos e relaes sociais perpassam os passos do processo: contextos

    diferentes produzem sentidos diferentes.

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    Contudo, linguagem e contexto no so suficientes para desencadear

    espontaneamente a produo de sentidos: preciso que ocorra uma ruptura no

    cotidiano, no comum, para que se busque o sentido. Em uma situao de entrevista a

    dinmica da relao entre pesquisador-entrevistado que abrir caminho para esta

    produo. O pesquisador, atravs de perguntas que apontam caminhos no dilogo,

    proporciona a ruptura necessria ressignificao e ao desvelamento do mundo do

    entrevistado (SPINK; MEDRADO, 2000). Nesta pesquisa, a busca pelos lbuns de

    fotografias, o contato com documentos antigos e lembranas remotas, foi outro

    elemento de ruptura com o cotidiano cristalizado.

    Nestes contextos facilitadores permeados pelo dilogo, os sentidos novos se

    entremeiam com os antigos, rompendo quaisquer limites temporais:

    Mesmo os sentidos passados, decorrentes de dilogos travados h muitossculos, no so estveis; so sempre passveis de renovao nosdesenvolvimentos futuros do dilogo. Em qualquer momento, essas massasde sentidos contextuais esquecidas podem ser recapituladas e revigoradas

    assumindo outras formas (em outros contextos) (SPINK; MEDRADO, 2000,p.49).

    As construes do passado e do presente se complementam reciprocamente. Os

    conceitos formados ao longo da Histria permeiam a sociedade atual e podem ser

    ressignificados no decorrer da histria pessoal. O tempo vivido o da memria

    traduzida em afetos. nosso ponto de referncia afetivo, no qual enraizamos nossas

    narrativas pessoais e identitrias (SPINK; MEDRADO, 2000, p. 52). Para estes

    autores, o tempo vivido por uma pessoa difere do tempo histrico que abraa os

    sentidos das geraes e da humanidade tanto quanto difere dos momentos sociais

    instantneos, face-a-face, que do sentido s experincias. Existe, portanto, um tempo

    nico que abarca a vida de uma pessoa e que, juntamente com o tempo decorrido na

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    histria da humanidade e o tempo, mais imediato, das relaes sociais, proporciona o

    contexto no qual emerge o sentido.

    2.7. Resgate da histria familiar

    J exploramos algumas relaes entre os lbuns de fotografia, a narrativa e as

    memrias da famlia. Mas o que vem a ser, hoje, este grupo denominado famlia?

    Pensemos um pouco a respeito da dinmica deste grupo no cenrio atual da sociedade.

    A contemporaneidade produziu grandes transformaes na estruturao e na

    vivncia do tempo e do espao. Segundo Deleuze (1992) uma das principais

    transformaes do contemporneo a substituio dos espaos fechados pelos

    espaos abertos. Segundo ele, a sociedade disciplinar descrita por Foucault, baseada

    no enclausuramento dos corpos, estaria cedendo lugar para outro tipo de sociedade, a

    sociedade de controle, capaz de comandar os corpos em movimento e administr-los por

    eficientes mecanismos de agenciamentos da subjetividade. Torna-se desnecessrio o

    confinamento dos corpos e sua submisso vigilncia panptica mediante a colocao

    lado a lado do vigilante e do vigiado.

    A sociedade atual seria capaz de destrancar o sujeito, faz-lo circular em espaos

    abertos e, no entanto, mant-lo igualmente dcil e funcionalizado para as novas

    demandas do capitalismo. Com efeito, podemos verificar que as instituies modernas

    clssicas tais como a famlia, os manicmios, a fbrica, os orfanatos, a escola e mesmo

    as prises, esto flexibilizando suas fronteiras, algumas se desmanchando totalmente.

    Os espaos de conteno e aprisionamento esto tornando-se contraproducentes

    para o capitalismo atual. A flexibilizao das relaes trabalhistas um dos casos

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    exemplares: no se trata mais de atrelar o trabalhador a um patro ou ao cho de uma

    fbrica, mas sim de faz-lo trabalhar ainda mais em servios temporrios, terceirizados

    ou como autnomo.

    Assim como a sociedade contempornea prescinde da colocao do sujeito em

    territrios bem delimitados e estveis, tambm no o circunscreve a unidades de tempo

    segmentadas. Se antes, havia fronteiras temporais bem estabelecidas, hoje elas tambm

    so relativizadas e tendem mobilidade. O tempo do trabalho, do lazer, do estudo da

    infncia, da adolescncia e assim por diante no so mais delimitados com preciso. Um

    pode invadir o outro, chegando at a uma indiferenciao. Fala-se, por exemplo, em

    adultizao da criana ou em infantilizao do adulto, assim como se funde

    trabalho com lazer.

    Segundo Deleuze (1992) o principal da diluio das fronteiras temporais que

    vivemos um tempo contnuo e no segmentado, de forma que nada se termina, nada se

    conclui. Nunca completamos nossa formao profissional, nosso projeto profissional ou

    de vida pessoal. Alis, como enfatiza Carlisky e outros (2000), vivemos um tempo em

    que no h espao para projetos. Vivemos sem projeto, afirmam esses autores, num

    mundo em que o presente avassalador e a efemeridade e provisoriedade no permitem

    projees de futuro, a visualizao do amanh.

    A vertigem do tempo e do espao, na atualidade, que faz o sujeito girar

    rapidamente numa autntica roda viva, no d chance para qualquer historicidade e

    contextualizao. Faz tudo evaporar no tempo e se estilhaar no espao.

    O capitalismo atual no precisa de um sujeito assentado, fixo, rgido, estvel e

    slido, mas sim, de um sujeito malevel, plstico, mutante, flexvel capaz de atender as

    repentinas e infindveis mudanas do mercado. Tal exigncia de transformao se

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    contrape quilo que outrora marcava o sujeito: uma identidade solidamente

    constituda. A identidade convencional pressupunha a existncia de um ncleo estvel e

    permanente da personalidade, que permitiria o reconhecimento do sujeito em tempos e

    lugares diferentes. Pressupunha uma continuidade de si no tempo ou certa permanncia

    e durabilidade, por exemplo, as fases fixas da vida como a infncia, a adolescncia, a

    maturidade e a velhice. A famlia, por sua vez, tambm deveria ser estvel, slida e

    perene, pois atravs do sobrenome cada membro poderia se reconhecer e se reafirmar

    como parte do grupo e, assim, a identidade estaria assegurada.

    Mas a fluidez dos tempos vindouros forariam esta configurao a se modificar.

    Harvey (1998) aponta uma srie de mudanas na economia, na cultura, na organizao

    social e na subjetividade que, segundo ele, alteraram significativamente o paradigma da

    modernidade clssica. O capitalismo tornou-se mais dispersivo e gil, fazendo com que

    a lucratividade advenha mais do jogo do mercado e do investimento do que da simples

    produo e acumulao, como fazia Tio Patinhas. Vencidos os obstculos e desafios da

    produo em massa, presentes no incio da industrializao, com as novas tecnologias,

    sobretudo, com a automao, o plo do consumo passou a ser crucial, forando a

    valorizao no mais do sujeito produtivo, do trabalhador, mas sim, do sujeito

    consumidor e consumista, entusiasta da grife.

    As mudanas apontadas por Harvey (1998) sinalizam a emergncia de

    subjetividades bem diferenciadas daquelas que forma tpicas da modernidade: a noo

    de projeto de vida substituda pelo noo de jogo; a neurose pela esquizofrenia; o

    objeto real pela fotografia. Nesse cenrio de profundas transformaes que marcam o

    contemporneo, a famlia no passaria inclume. A famlia moderna, surgida