KAFKA, Franz Narrativas Do Espolio - PDF

116

description

Livro de contos de KAFKA, remodelado de e-book para PDF

Transcript of KAFKA, Franz Narrativas Do Espolio - PDF

  • Obras de Franz Kafka: Descrio de uma luta (1904)Preparativos para um casamento no campo (1907)Contemplao (1912)O desaparecido (ex America) (1912)O foguista (1912)O veredicto (1912)A metamorfose (1912)O processo (1914)Na colnia penal (1914)Narrativas do esplio [coletnea elaborada por Modesto Carone] (1914-24)Carta ao pai (1919)Um mdico rural (1919)O castelo (1922)Um artista da fome (1922-24)A construo (1923) A Companhia das Letras iniciou em 1997 a publicao das obras completas de Franz Kafka, com traduo de ModestoCarone.

  • NDICE O mestre-escola da aldeiaBlumfeld, um solteiro de meia-idadeA ponteO caador GracoDurante a construo da muralha da ChinaA batida no porto da propriedadeO vizinhoUm cruzamentoUma confuso cotidianaA verdade sobre Sancho PanaO silncio das sereiasPrometeuO braso da cidadePosidonComunidade noiteA recusaSobre a questo das leisO recrutamento das tropasA provaO abutreO timoneiroO pioPequena fbulaVolta ao larA partidaAdvogados de defesaInvestigaes de um coO casalDesista!Sobre os smiles Posfcio, Modesto Carone

  • NARRATIVAS DO ESPLIO

  • O MESTRE-ESCOLA DA ALDEIA

    Aqueles que fao parte deles acham repelente uma pequena toupeira comum provavelmenteteriam morrido de repugnncia se tivessem visto a toupeira gigante que, faz alguns anos, foiobservada nas proximidades de uma pequena aldeia, a qual, por causa disso, alcanou certanotoriedade transitria. De qualquer modo ela j voltou h muito tempo ao olvido e nissocompartilha com a falta de fama do fenmeno inteiro, que ficou completamente sem explicao masque as pessoas no fizeram muito esforo para esclarecer e que, em conseqncia de uma neglignciaincompreensvel daqueles crculos que deveriam ter-se ocupado do caso e na verdade se ocupamcom dedicao de coisas muito menos significativas , foi esquecido sem uma investigaorealizada em maior profundidade. O fato de a aldeia ficar longe da ferrovia no pode, de modoalgum, constituir uma desculpa para isso, muita gente vem de longe por curiosidade, at do exterior;s aqueles que deveriam ter mostrado mais que curiosidade que no vieram. Se no tivessem sidopessoas completamente simples, cujo habitual trabalho dirio mal permite que respiremtranqilamente, se essas pessoas no houvessem assumido de modo desinteressado a questo, orumor a respeito do fenmeno provavelmente no poderia ter transcendido o mbito mais prximo. preciso admitir que mesmo o boato, que de outra maneira no seria contido, neste caso erafrancamente pesado e no teria se difundido se no houvesse sido literalmente empurrado. Mas semdvida no era esse o fundamento para no se preocupar com o caso; pelo contrrio, tambm dessemodo a questo deveria ter sido investigada. Em vez disso, deixou-se o nico tratamento por escritoda questo a cargo do velho mestre-escola da aldeia, que era um homem excelente em seu ofcio mascuja capacidade, to pequena quanto seu preparo, no possibilitava que ele oferecesse do fenmenouma descrio exaustiva, alm de aproveitvel sem mencionar, aqui, o esclarecimento do assunto.O pequeno escrito foi impresso e bem vendido aos que ento visitavam a aldeia; obteve tambmalgum reconhecimento, mas o mestre-escola era suficientemente inteligente para se dar conta de queseus esforos isolados e sem apoio de ningum no fundo eram desprovidos de valor. Mas que, apesardisso, insistisse no assunto, e o caso, em conseqncia de sua prpria natureza, se tornasse de ano aano mais desesperado, transformando-se na tarefa de sua vida, prova, por um lado, como era grandeo efeito que aquela apario podia exercer e, por outro, que perseverana e fidelidade de convico possvel encontrar num velho e despercebido mestre-escola. Contudo, o fato de haver sofrido

  • muito, diante da atitude desdenhosa das personalidades que impunham o tom, demonstra um pequenoapndice que ele acrescentou ao seu escrito, sem dvida depois de alguns anos, ou seja, numa pocaem que praticamente ningum mais podia se lembrar do que aqui se tratava. Nesse suplemento, ele,por honestidade e no, talvez, por habilidade, formula a queixa convincente contra a falta decompreenso que encontrou entre as pessoas das quais havia menos motivos de esper-la. Sobreessas pessoas diz com acerto: No sou eu, e sim eles, que falam como velhos mestres-escolas. Eentre outras coisas apresenta o veredicto de um erudito, ao qual, por conta prpria, havia se dirigidoneste seu caso. O nome do sbio no apresentado, mas, por diversos pormenores secundrios, possvel adivinhar quem tenha sido. Depois que o mestre-escola superara grandes dificuldades parachegar ao sbio, ao qual antes, durante semanas, se anunciara para ser afinal recebido, reparou, logoao ser saudado, que o erudito estava enredado num preconceito insupervel em relao ao tema. Otamanho da indiferena com que escutou o longo relatrio do professor que este havia feito com omanuscrito na mo ficou demonstrado na observao que, depois de alguma meditao aparente,ele manifestou:

    Certamente existem toupeiras diversas, pequenas e grandes. A terra, na regio em que seencontram, particularmente preta e pesada. Ora, ela oferece, por causa disso, tambm s toupeiras,alimentao especialmente nutritiva ali e elas se tornam grandes fora do que comum.

    Mas to grandes assim, no! exclamou o professor e, exagerando um pouco em sua raiva,mediu dois metros na parede.

    Oh, sim respondeu o sbio, a quem tudo aquilo evidentemente causava a maior graa. Porque no?

    Com essa resposta o professor voltou para casa. Conta como sua mulher e seus seis filhos ohaviam esperado noite sob a neve, na estrada, tendo de reconhecer perante todos o malogrodefinitivo de suas esperanas.

    Quando li a respeito do comportamento do sbio diante do mestre-escola, ainda no conhecia emabsoluto o escrito principal do professor. Mas resolvi imediatamente reunir e organizar tudo o quepodia vir a saber sobre o caso. Como, no entanto, no era possvel meter o punho diante da cara dosbio, pelo menos meu escrito devia defender o professor ou, expressando-me melhor, no tanto ele,mas a boa inteno de um homem honesto mas sem influncia. Confesso que mais tarde me arrependidessa resoluo, pois senti logo que aquilo que ele expunha era capaz de me levar a uma situaoestranha. Por um lado, minha influncia tambm no era nem de longe suficiente para mudar a opiniodo sbio ou do pblico em favor do mestre-escola, por outro, porm, o mestre-escola tinha de notarque, como alvo principal, me importava menos a prova da existncia da toupeira gigante do que adefesa de sua honradez, a qual, por sua vez, parecia bvia e com certeza no precisava de defesaalguma. Portanto, o que ia necessariamente ocorrer era que eu, desejando estar vinculado ao mestre-escola, no encontrasse nele a menor compreenso, e que, provavelmente, em vez de ajudar aquelapessoa, precisasse de um novo protetor, cuja entrada em cena era muito improvvel. Alm do maisme impunha, com essa deciso, um grande encargo. Se quisesse convencer, no podia recorrer aomestre-escola, que, por seu turno, no fora capaz de convencer. O conhecimento de seu escrito steria me induzido a erro, e evitei, por isso, l-lo antes de concluir meu prprio trabalho. Em verdade

  • nunca estabeleci vnculo com o mestre-escola. Seja como for, ele ficou sabendo, por intermdio deterceiros, das minhas pesquisas, mas no tinha conhecimento se eu trabalhava a seu favor ou contraele. provvel at que tivesse como pressuposto a ltima hiptese, embora posteriormente onegasse, pois eu disponho de provas de que ele havia colocado diversos obstculos em meu caminho.Podia faz-lo com muita facilidade, uma vez que fui obrigado a repetir todas as pesquisas que ele jtinha efetuado e, por essa razo, ele conseguia estar sempre em condies de se antecipar a mim. Eraa nica objeo, porm, que podia ser feita com razo ao meu mtodo, alis uma reprovaoinevitvel, mas que ficou muito enfraquecida pela cautela e at mesmo pela autonegao de minhasconcluses finais. No restante, entretanto, meu escrito estava livre de qualquer influncia do mestre-escola; nesse ponto talvez eu tenha apresentado uma meticulosidade excessiva: era como se at entoningum houvesse investigado o fenmeno; como se eu fosse o primeiro a interrogar as testemunhasoculares e de ouvido; o primeiro a alinhar os dados e o primeiro a tirar concluses. Quando, maistarde, li o escrito do mestre-escola ele tinha um ttulo muito complicado: Uma toupeira togrande como ningum ainda viu , achei que, de fato, no coincidamos em pontos essenciais,embora ambos acreditssemos ter demonstrado o principal, ou seja, a existncia da toupeira. Dequalquer modo, aquelas divergncias isoladas de opinio impediam o surgimento de uma relao deamizade com o mestre-escola, na qual, apesar de tudo, eu depositava esperana. Quase se manifestouuma certa hostilidade da parte dele. Na verdade ele sempre permaneceu modesto e humilde diante demim, mas era possvel notar por isso mesmo com mais nitidez seu verdadeiro estado de nimo.Inclusive sua opinio era que eu o havia prejudicado inteiramente, bem como causa, e que minhacrena, no sentido de t-lo beneficiado ou de poder faz-lo, era, no melhor dos casos, ingenuidade provavelmente, porm, arrogncia ou perfdia. Antes de tudo, apontou vrias vezes que todos os seusadversrios at o momento simplesmente no tinham mostrado sua oposio, a no ser a ss e apenasverbalmente, ao passo que eu havia considerado necessrio mandar imprimir a minha de imediato.

    Alm do mais, os poucos opositores que haviam realmente se ocupado com o caso, embora deforma superficial, poderiam ao menos ter escutado a opinio dele, mestre-escola, ou seja, aquela queento predominava, antes de terem eles prprios se expressado; mas eu produzira resultados a partirde dados reunidos assistematicamente e em parte mal compreendidos, que mesmo certos no essencialteriam de produzir efeitos infundados, na realidade tanto sobre a multido como sobre os ilustrados.Mas a aparncia mais fraca da inverossimilhana era o que podia acontecer de pior. Desse modo, ats objees oferecidas veladamente eu poderia responder-lhe com facilidade; assim, por exemplo, ocmulo da inverossimilhana era sem dvida representado justamente por seu escrito; mas mostrava-se menos fcil lutar contra suas outras suspeitas e isso constitua o fundamento em nome do qual meretra diante dele no conjunto. No ntimo, alis, ele acreditava que eu queria destitu-lo de sua famade ser o primeiro representante pblico da toupeira. Ora, na verdade j no existia para a pessoadele, de modo algum, essa fama, apenas um certo ridculo, que se limitava, porm, a um crculo cadavez menor e ao qual eu no queria me candidatar com toda a certeza. Fora isso, no entanto, eu haviaexplicado explicitamente na introduo do meu escrito que o professor devia ser considerado emqualquer tempo o descobridor da toupeira de fato ele no era nem mesmo isso e que s aparticipao no destino do mestre me compelira a redigir o escrito. O objetivo deste escrito

  • assim conclu, pateticamente demais, porm em consonncia com minha excitao naquela poca ajudar a difuso merecida do escrito do mestre-escola. Se isso for alcanado, ento meu nome,transitrio e s exteriormente envolvido neste assunto, deve ser de imediato extirpado dele.Rejeitei, pois, de modo cabal, qualquer participao maior no caso, quase como se tivesse intudo dealgum modo a objeo inacreditvel do professor. Apesar disso ele encontrou sustentao contramim justamente nessa passagem e no nego que houvesse um trao aparente de justificao naquiloque dizia ou talvez insinuasse; conforme algumas vezes me chamou a ateno que, em vriosaspectos, ele quase demonstrava uma perspiccia maior em relao a mim do que em seu escrito.Afirmava inclusive que minha introduo era dbia. Se de fato me movia o interesse de divulgar seuescrito, por que no me ocupava exclusivamente dele e do escrito, por que no mostrava seusmritos, sua irrefutabilidade, por que no me limitava a destacar o significado da descoberta,tornando-a compreensvel, por que, ao contrrio, me intrometia na prpria descoberta,negligenciando por completo o escrito? Por acaso ela j no tinha sido feita? Nesse sentido, faltavaporventura alguma coisa por fazer? Mas, se eu realmente acreditava ter de refazer a descoberta, porque ento me desligava dela to solenemente na introduo? Poderia ser uma modstia hipcrita, masera algo pior. Eu desvalorizava a descoberta, chamava a ateno sobre ela apenas com o objetivo dedesqualific-la, eu a estudara e a deixara de lado, talvez houvesse se manifestado em torno daquelecaso um pouco de silncio, agora eu voltava a fazer barulho outra vez, mas ao mesmo tempo tornavaa situao do mestre-escola mais difcil do que ela jamais fora. O que significava ento para oprofessor a defesa de sua honradez? Era o caso, s o caso que lhe importava. Este porm eu traa,porque no o entendia, porque no o avaliava certo, porque no tinha nenhuma sensibilidade paraele. O assunto superava desmedidamente minha compreenso. Ele estava sentado minha frente e mefitava tranqilamente com seu velho rosto rugado e no entanto era essa, apenas essa, a suaopinio. De qualquer forma, no era certo que s o caso o interessava, ele era at bem ambicioso equeria tambm ganhar dinheiro, o que, levando-se em conta sua numerosa famlia, era muitocompreensvel; apesar disso, minha ateno pelo assunto lhe parecia comparativamente to pequena,que ele se julgava inteiramente apto a me apresentar como algum sem o mnimo interesse, noincorrendo nisso numa inverdade muito grande. E com efeito no bastava, nem mesmo para minhasatisfao interior, quando dizia, de mim para comigo, que as reprovaes desse homem derivavam,no fundo, do fato de que ele, de certo modo, segurava sua toupeira com as duas mos e chamava detraidor quem quer que quisesse chegar perto s com o dedo. Mas no era assim; seu comportamentono podia ser explicado nem por avareza nem, menos ainda, s por ela; devia, antes, ser atribudo excitao que seus grandes esforos e sua total falta de xito haviam provocado nele. Mas tambm aexcitao no explicava tudo. Talvez meu interesse pela questo fosse realmente reduzido; para omestre-escola a falta de interesse por parte de estranhos j era algo comum, em geral ele sofria comaquilo, mas no nos casos particulares; aqui, no entanto, aparecia algum, finalmente, que seinteressava pelo assunto de maneira extraordinria, e mesmo essa pessoa no compreendia a questo.Uma vez impelido nessa direo, eu no quis negar absolutamente nada. No sou um zologo, talveztivesse me entusiasmado por esse fenmeno at o fundo do corao se eu mesmo o houvessedescoberto, mas no o descobrira. Certamente uma toupeira to gigantesca uma curiosidade; no se

  • deve, porm, exigir a ateno duradoura do mundo inteiro por ela, principalmente se a existncia datoupeira no est comprovada de uma maneira de todo incontestvel e, seja como seja, no se podeexibi-la. Reconheci tambm que provavelmente no teria me engajado tanto, de modo algum, pelatoupeira, mesmo que fosse eu o descobridor, como o fiz pelo mestre-escola, livremente e com gosto.

    Ora, provvel que a divergncia entre mim e o mestre tivesse se dissolvido logo se meu escritohouvesse alcanado xito. Mas foi exatamente esse xito o que faltou. Talvez ele no fosse bom,redigido de um jeito no totalmente convincente; sou comerciante, a redao de um relato dessanatureza talvez ultrapasse bem mais o mbito que me foi imposto do que fora o caso do mestre-escola; seja como for, eu, apesar disso, superava em todos os conhecimentos aqui necessrios omestre de longe. O malogro podia tambm ser interpretado de outra maneira, alm dessa: omomento da apario talvez fosse inoportuno. A descoberta da toupeira, que no pudera se difundir,no estava, por um lado, to distante ainda, a ponto de que pudessem t-la esquecido de todo eportanto, por meio do meu escrito, capaz de causar, porventura, alguma surpresa; por outro lado,entretanto, havia decorrido tempo bastante para esgotar inteiramente o mnimo interesse, que deincio existira. Aqueles que de algum modo meditaram sobre meu escrito disseram a si mesmos, comuma espcie de desconsolo que fazia anos j dominara esta discusso , que precisam, agora,recomear com certeza os esforos inteis em torno desse caso estril, e muitos so os que atconfundiram meu escrito com o do mestre-escola. Numa revista importante de agricultura encontrava-se a seguinte observao, felizmente s no fim e impressa em letras pequenas: O escrito sobre atoupeira gigante nos foi remetido de novo. Recordamos j ter rido a valer dele, faz alguns anos.Desde ento esse escrito no se tornou mais inteligente e ns no ficamos mais estpidos. Oproblema que simplesmente no conseguimos rir pela segunda vez. Ao contrrio, perguntamosagora a nossas associaes de mestres se um mestre-escola de aldeia no pode encontrar trabalhomais til do que ficar atrs de toupeiras gigantes. Um equvoco lamentvel! No tinham lido oprimeiro nem o segundo escrito, e as duas miserveis palavras, engolfadas s pressas toupeiragigante e mestre-escola j bastaram para aqueles senhores encenar que so representantes deinteresses reconhecidos. Em sentido contrrio, vrias coisas poderiam certamente ser empreendidascom sucesso, mas o entendimento reduzido com o mestre-escola me impediu de faz-lo. Tentei, antes,ocultar dele a revista tanto quanto me era possvel. Mas muito em breve ele a descobriu; j oreconheci atravs de uma observao contida na carta, na qual me anunciava sua visita nos feriadosde Natal. Escrevia ele: O mundo mau e tornam as coisas fceis para ele palavras com quequeria exprimir que eu pertencia ao mundo mau, porm no me contentava com a maldade inerente amim mesmo, mas, alm disso, tornava-a mais fcil ainda ao mundo, isto : estava empenhado empuxar para fora a maldade geral, ajudando-a na vitria. Bem, eu j havia tomado as decisesnecessrias, podia esper-lo calmamente e observar com tranqilidade como ele chegava. Ele atsaudou com menos polidez do que habitualmente, sentou-se mudo diante de mim, retirou com cuidadoa revista do bolso do casaco curiosamente forrado e a empurrou para mim j aberta.

    Conheo-a eu disse e empurrei a revista de volta. Conhece-a disse ele com um suspiro; tinha o velho hbito dos professores de repetir as

    respostas de estranhos. Naturalmente no vou aceitar isso sem defesa.

  • Foi assim que prosseguiu; bateu com o dedo na revista, excitado, olhando para mim de maneiracortante, como se eu fosse de opinio contrria. Tinha com certeza um pressentimento do que euqueria declarar; j em ocasies anteriores eu havia julgado notar, no tanto por suas palavras, maspor outros sinais, que ele possua uma sensibilidade muito certeira em relao a minhas intenes,embora no cedesse a elas ou se deixasse desviar. O que ento eu lhe disse, sou capaz de reproduzirquase literalmente, uma vez que anotei as palavras logo aps a conversa.

    Faa o que quiser eu disse. A partir de hoje nossos caminhos se separam. Julgo que noconsidera isso nem inesperado nem incmodo. A nota desta revista no a causa de minha deciso,apenas a reforou de forma definitiva. A causa real reside no fato de que, no incio, supus ser-lhe tilcom minha interveno, ao passo que agora posso ver que eu o prejudiquei em todos os sentidos. Porque as coisas tomaram esse rumo eu no sei, os motivos para o xito e o fracasso so sempremltiplos; no procure apenas aquelas interpretaes que falam em meu desfavor. Pense tambm emsi mesmo; tinha as melhores intenes e no entanto sofreu um revs quando se abarca o conjuntocom o olhar. No digo isso por brincadeira, algo que vai contra mim mesmo se afirmo que aligao comigo conta, infelizmente, entre os seus fracassos. Que agora eu me retire do caso no covardia nem traio. Acontece at mesmo com certa auto-superao: a considerao que lhe dedicoj se evidencia no meu escrito. Em certo sentido, foi para mim um professor e at a toupeira quasese tornou objeto da minha afeio. Apesar disso me ponho de lado, o descobridor e, seja de quemodo for que eu me situe, impeo sempre que a fama possvel o alcance, ao passo que atraio omalogro e o transmito sua pessoa. Pelo menos essa sua opinio. Mas chega disso. A nicaexpiao que posso assumir pedir perdo e, se o exige, a confisso que lhe fiz aqui, eu a repitopublicamente, por exemplo nessa revista.

    Foram essas na poca minhas palavras; no eram totalmente sinceras, mas era fcil extrair delas asinceridade. O efeito nele foi mais ou menos o que eu havia esperado. A maioria das pessoas deidade tem, diante das mais jovens, algo enganoso, falaz, no seu ser; continua-se vivendotranqilamente ao lado delas, acreditando que a relao est assegurada: conhecem-se as opiniesdominantes, recebem-se continuamente confirmaes de paz, toma-se tudo por natural e de repente,quando ocorre alguma coisa decisiva e deve reinar a calma preparada por tanto tempo, essas pessoasde idade se erguem como estranhos, tm opinies mais profundas, mais fortes, desfraldamliteralmente, ento, sua bandeira e nela se l com susto o novo lema. Esse espanto acontecesobretudo porque aquilo que os idosos agora dizem realmente muito mais justificado, tem maissentido e, como se existisse uma intensificao do evidente, mais evidente ainda. O insuperavelmentefalaz que aquilo que dizem agora, no fundo sempre o fizeram e que, no geral, jamais podia serprevisto. Devo ter-me aprofundado muito neste mestre-escola da aldeia para que ele, nesse momento,no me surpreendesse de todo.

    Filho disse ele, colocando a mo sobre a minha e esfregando-a amigavelmente , como que chegou idia de enveredar por esse assunto? Logo que ouvi falar disso pela primeira vez,conversei com minha mulher sobre a questo.

    Afastou-se da mesa, abriu os braos e olhou para o cho como se a esposa estivesse l embaixo,minscula, e ele falasse com ela:

  • Durante tantos anos disse-lhe lutamos sozinhos, agora porm aparece na cidade, parainterceder por ns, um poderoso mecenas de nome tal e tal. Devamos nos alegrar muito agora, no? Um comerciante da cidade no significa pouca coisa; quando um campons esfarrapado acreditaem ns e o expressa, isso no pode nos ajudar em nada, pois o que um campons faz sempreindecoroso, mesmo que diga: o velho mestre-escola tem razo; ou por acaso cospe algo inadequado:ambas as coisas tm um efeito igual. E se em vez de um campons se levantam dez mil, o efeito , sepossvel, pior ainda. Um comerciante da cidade , pelo contrrio, outra coisa: um homem desses temrelaes, mesmo aquilo que diz de passagem se propaga em crculos mais amplos, novos protetoresassumem o caso, um deles afirma, por exemplo: at de mestres-escolas possvel tirar ensinamentos,e no dia seguinte um grande nmero de pessoas j o sussurra, pessoas de cujo aspecto exterior nuncaalgum esperaria concluir isso. Surgem ento recursos financeiros para o caso, um faz a coleta e osoutros pem-lhe o dinheiro na mo; a opinio de que o mestre-escola deve ser transportado daaldeia; as pessoas vm, no se preocupam com seu aspecto exterior, levam-no para o meio em quevivem e, uma vez que a mulher e os filhos dependem dele, levam-nos tambm. J observou aspessoas da cidade? um gorjeio incessante. Se uma fileira delas est reunida, o gorjeio vai dadireita para a esquerda e de volta, para cima e para baixo. E desse modo, gorjeando, erguem-nospara os carros, quase no se tem tempo para acenar a todos com a cabea. O homem da bolia ajeitaas lunetas, brande o chicote e partimos. Todos se despedem da aldeia com as mos como se aindaestivssemos l, e no sentados no meio deles. Da cidade vm ao nosso encontro carros com algunsparticularmente impacientes. Quando ns nos aproximamos eles se levantam dos assentos, esticando-se para nos ver. O que havia coletado o dinheiro pe tudo em ordem e nos exorta tranqilidade. J uma grande fila de carros quando entramos na cidade. Acreditvamos que a saudao de boas-vindas j tivesse terminado, mas s agora ela comea diante da hospedaria. que na cidade serenem logo muitas pessoas a um chamado. Por aquilo que um se interessa, o outro tambm seinteressa em seguida. Com o flego extraem uns aos outros as opinies e se apropriam delas. Nemtoda essa gente pode ir de carro e esperar diante da hospedaria. Na verdade h outros que poderiamfaz-lo, mas se recusam por orgulho. Tambm estes ficam esperando. inacreditvel como aqueleque coletou o dinheiro supervisiona tudo.

    Escutei-o tranqilamente, j durante o seu relato fui me tranqilizando cada vez mais. Haviaempilhado sobre a mesa todos os exemplares do meu escrito que ainda possua. Faltavam apenas unspoucos, pois ultimamente tinha solicitado, por meio de uma circular, todos os exemplares remetidose recebido de volta a maioria deles. No mais, de muitos lugares me escreveram cortesmente que nose lembravam, em absoluto, de haver recebido um escrito como esse e se por casualidade elehouvesse chegado devia, lamentavelmente, ter-se extraviado. Tambm isso me bastava, no fundo euno queria outra coisa. S um me pediu permisso para conservar o escrito como curiosidade,comprometendo-se, nos termos da minha circular, no mostr-lo a ningum nos prximos vinte anos.O mestre-escola ainda no vira essa circular; alegrei-me com o fato de que suas palavras mefacilitavam tanto mostr-la. Mas podia, de resto, tambm faz-lo sem preocupao, porque procederacom muito cuidado na redao e no tinha jamais deixado de levar em conta o interesse do mestre-escola da aldeia e seu caso. As frases principais da circular tinham o seguinte teor: No solicito a

  • devoluo do escrito porque tenha, acaso, me desviado das opinies nele apresentadas, ou talvezporque, em partes isoladas, as considerasse errneas, ou ento apenas indemonstrveis. Meu pedidose fundamenta unicamente em motivos pessoais, apesar de terem muito peso; a circular no afeta,contudo, o mnimo que seja, minha atitude a respeito do assunto; rogo que essa circunstncia sejalevada em especial considerao e, se lhe apraz, que tambm a divulgue.

    No momento eu ainda conservava a circular coberta com as mos. Disse: Pensa em me recriminar porque as coisas no saram assim? Por que deseja fazer isso? No

    amarguemos a separao. E tente reconhecer, finalmente, que fez uma descoberta, mas que ela noest acima de todas as outras coisas e que, em conseqncia disso, tambm a injustia que lhefizeram no uma injustia que exceda tudo o mais. No conheo as normas das sociedadescientficas, mas no acredito que, mesmo no melhor dos casos, lhe tivesse sido preparada umarecepo que sequer se aproximasse daquelas que talvez houvesse descrito sua pobre mulher.Quando ainda tinha esperana de que o escrito surtisse algum efeito, supunha que talvez um professorde universidade pudesse prestar ateno no seu caso, que encarregaria qualquer jovem estudante doassunto, que esse estudante viajasse para visit-lo e l examinaria mais uma vez minhas pesquisas sua maneira; que finalmente, quando o resultado lhe parecesse digno de meno aqui precisoinsistir que todos os estudantes jovens esto cheios de dvidas , que ele publicaria depois umescrito prprio, no qual estaria fundamentado cientificamente o que escreveu. Entretanto, mesmo queessa esperana tivesse se realizado, certamente no teria sido alcanada muita coisa. O escrito doestudante, que teria feito a defesa de um caso to singular, poderia talvez se tornar alvo de ridculo.Aqui, no exemplo da revista agrcola, v como fcil que algo assim possa acontecer, e revistascientficas so, nesse sentido, mais desconsideradas. compreensvel tambm: os professoresuniversitrios tm uma responsabilidade muito grande diante de si mesmos, da cincia, daposteridade, no podem acolher de braos abertos, imediatamente, cada nova descoberta. Diantedeles estamos em vantagem a esse respeito. Mas quero deixar isso de lado e supor, agora, que oescrito do estudante houvesse se imposto. O que teria acontecido, ento? Seu nome teria sido semdvida mencionado algumas vezes com as devidas honras; teria tambm, provavelmente, beneficiadosua posio; teriam dito: Nossos mestres-escolas de aldeia mantm os olhos abertos, e esta revistaaqui, se que as revistas possuem memria e conscincia, precisaria pedir-lhe publicamentedesculpas; talvez aparecesse tambm, ento, um professor bem-intencionado para arranjar-lhe umabolsa de estudos; realmente possvel que houvessem tentado lev-lo cidade para conseguir-lheum lugar numa escola primria municipal, dando-lhe assim oportunidade de utilizar os recursoscientficos que a cidade oferece para o incremento de sua formao. Mas se devo falar comfranqueza, preciso ento dizer que isso teria sido apenas tentado. Seria chamado para c; teriavindo na verdade como requerente comum h centenas deles sem qualquer recepo festiva;teriam reconhecido seu esforo honesto, mas tambm visto, ao mesmo tempo, que um homem idoso,que nessa idade o incio de um estudo cientfico no conta com perspectivas e que chegou suadescoberta sobretudo por acaso, mais do que por planejamento; que, fora este caso isolado, nemmesmo cogita em continuar trabalhando. Por essas razes, portanto, o teriam certamente deixado naaldeia. Sua descoberta, de qualquer modo, seria prosseguida, pois no to insignificante assim; uma

  • vez alcanado o reconhecimento, jamais poderia ser esquecida. Mas no teria mais recebido muitasnotcias a respeito dela, e as que houvesse recebido mal teria entendido. Toda descoberta logoremetida ao conjunto das cincias e com isso deixa, at certo ponto, de ser descoberta: dissolve-seno todo e desaparece, preciso ter um olho cientificamente escolado para depois reconhec-la. Elaser em breve vinculada a teses de cuja existncia ns no ouvimos em absoluto falar e na discussocientfica ser arrebatada at as nuvens junto com elas. Como iremos compreender essas coisas?Quando escutamos uma discusso de sbios assim, acreditamos, por exemplo, que se trata dadescoberta, mas por trs disso se trata de coisas muito diferentes; na vez seguinte, julgamos que outra coisa, e no da descoberta, embora agora se trate exatamente dela.

    Compreende isso? Permaneceria na aldeia, poderia alimentar e vestir um pouco melhor sua famliacom o dinheiro recebido, mas sua descoberta teria sido subtrada, sem que tivesse podido sedefender com qualquer justificao, pois s na cidade que ela atingiu sua real legitimidade. Etalvez no tenham sido de modo algum ingratos a seu respeito; quem sabe haveriam de mandarconstruir um pequeno museu no lugar da descoberta; teria sido uma atrao da aldeia, lhe confiariamo posto de depositrio das chaves e, para que no deixassem faltar insgnias de honra, teriam lheconferido uma pequena medalha para trazer no peito, como costumam fazer os servidores deinstitutos cientficos. Haveria possibilidade de tudo isso; mas era isso o que queria?

    Sem parar para responder, replicou decidido. Era isso ento o que procurava conseguir para mim? Talvez eu disse. Naquela poca eu no agi tanto por reflexo a ponto de poder responder,

    como agora, com preciso. Queria ajud-lo, mas no deu certo; inclusive a coisa mais malsucedidaque jamais empreendi. Por isso quero, neste momento, retirar-me e, na medida das minhas foras,desfazer o que foi feito.

    Muito bem disse o mestre-escola, tirou o cachimbo e comeou a ench-lo com o tabaco quelevava solto em todos os bolsos. Ocupou-se voluntariamente deste caso ingrato e agora se retiratambm voluntariamente. Est tudo em perfeita ordem.

    No sou obstinado eu disse. Acha na minha proposta algo a ser discutido? No, absolutamente nada disse o mestre-escola, e do seu cachimbo j saa fumaa.Eu no suportava o cheiro do tabaco e por isso fiquei em p, andando de l para c no aposento.

    Por entrevistas anteriores j estava acostumado com o fato de que, diante de mim, o mestre-escolaficava muito calado e no entanto, depois de haver chegado, no queria ir embora. Isso j me causaraestranheza muitas vezes: ele quer algo mais de mim, era o que eu sempre pensava nessas ocasies, eoferecia-lhe dinheiro, que ele aceitava regularmente. Mas s ia embora quando lhe dava vontade.Habitualmente j havia terminado de fumar o cachimbo: dava umas voltas em torno da poltrona, queempurrava ordeira e respeitosamente at a mesa, pegava seu basto cheio de ns num canto,apertava-me a mo calorosamente e saa. Hoje porm seu hbito de ficar ali sentado em silnciotornou-se literalmente aborrecido. Quando algum apresenta ao interlocutor a despedida definitiva,como eu fiz, e o gesto considerado pelo outro como algo absolutamente correto, ento a pessoa levao pouco que ainda resta em comum para o fim o mais rpido possvel e no sobrecarrega o parceiroinutilmente com sua muda presena. Quando se via pelas costas o velho pequeno e pertinaz, da

  • maneira como ele ficava sentado junto minha escrivaninha, era possvel crer que no seria de modoalgum possvel p-lo para fora do aposento.

  • BLUMFELD, UM SOLTEIRODE MEIA-IDADE

    Blumfeld, um solteiro j meio idoso, subia uma noite ao seu apartamento, o que era uma tarefacansativa, pois morava no sexto andar. Enquanto subia, ia pensando como fazia com freqncianos ltimos tempos que aquela vida totalmente solitria era bastante penosa, que agora tinha desubir os seis andares em absoluto segredo para chegar, l em cima, aos seus aposentos vazios; umavez ali, outra vez em completo silncio, vestir o roupo, acender o cachimbo, ler um pouco a revistafrancesa que, fazia anos, tinha assinado, bebericar enquanto isso a aguardente de cereja preparadapor ele mesmo e finalmente, meia hora depois, ir para a cama, no sem antes precisar arranjar denovo, de cabo a rabo, a roupa de cama que sua empregada, refratria a toda instruo, dispunha dequalquer jeito, seguindo sempre o seu humor. Qualquer acompanhante, qualquer espectador dessasatividades teria sido muito bem-vindo a Blumfeld. J havia pensado se no devia adquirir umcachorrinho. Um animal como esse engraado e principalmente grato e fiel; um colega de Blumfeldtinha um cachorro assim; ele no se d com ningum a no ser com o dono e, se passa alguns instantessem v-lo, recebe-o logo com grandes latidos, com os quais evidentemente quer expressar suaalegria por ter encontrado o dono, esse benfeitor extraordinrio. certo, no entanto, que um cotambm oferece desvantagens. Por mais que seja mantido limpo, vai sempre sujar a casa. umacoisa que no se pode evitar; no possvel, toda vez que vai entrar no quarto, lav-lo com guaquente, e sua sade tampouco agentaria isso. Mas Blumfeld, por seu turno, no suporta sujeira noquarto; a limpeza da casa algo imprescindvel para ele; vrias vezes por semana discute com suaempregada, que neste ponto, infelizmente, no muito escrupulosa. Como meio surda, elehabitualmente a arrasta pelo brao aos lugares onde h algo a objetar quanto limpeza. Por contadessa severidade ele conseguiu que a ordem na pea corresponda mais ou menos aos seus desejos.Com a introduo de um cachorro, porm, ele iria levar sujeira por conta prpria justamente aocmodo at ento cuidadosamente protegido. Pulgas, as eternas companheiras dos ces, tambmcompareceriam. Mas, uma vez instaladas ali, no estaria distante o momento em que Blumfelddeixaria o quarto confortvel ao cachorro e procuraria outro. A sujeira, no entanto, era apenas umadesvantagem dos ces. Eles ficam doentes e de enfermidades de ces na verdade ningum entende. O

  • animal fica agachado num canto, coxeando de l para c, gane, tem uma tossinha, sufoca por causa dealguma dor; envolvem-no numa coberta, assobiam-lhe qualquer coisa, empurram-lhe leite emsuma: tratam-no com a esperana de que seja, o que tambm possvel, um mal passageiro; mas emvez disso pode ser uma doena sria, repulsiva e contagiosa. E, mesmo que o cachorro permaneasadio, chega o dia em que ele sem dvida envelhece e a pessoa deve tomar a deciso de se desfazerdele em tempo, e vem a ocasio em que a prpria idade dela a olha atravs dos olhos lacrimejantesdo co. preciso, a, atormentar-se com o animal meio cego, fraco dos pulmes, quase imvel emvirtude da gordura e com isso pagar caro as alegrias que o cachorro deu antes. Por mais queBlumfeld gostasse agora de possuir um co, prefere sem dvida subir mais trinta anos a escada asuportar mais tarde um co velho desses, que, gemendo mais alto do que ele, se arrasta ao seu ladode degrau em degrau.

    De modo que Blumfeld permanecer s; no alimenta os apetites de uma velha solteirona quedeseja ter perto de si um ser vivo subalterno qualquer, ao qual deve proteger, com o qual pode sercarinhosa e atender continuadamente, de tal maneira que, para alcanar essa finalidade, bastam umgato, um canrio ou at peixinhos dourados. E, se isso no for possvel, contenta-se inclusive comflores na janela. Blumfeld, pelo contrrio, s quer um acompanhante, um animal com quem no tenhanecessidade de se preocupar bastante, a quem no prejudique um piso ocasional, que em caso defora maior possa tambm pernoitar na rua, mas que, caso Blumfeld o exija, esteja disposio, deimediato, com latidos, saltos, lambidas na mo. a alguma coisa assim que Blumfeld aspira, masque, como ele prprio percebe, no pode conseguir seno com desvantagens muito grandes, por issorenuncia a ela; entretanto, de tempos em tempos, como nesta noite, segundo a base de sua natureza etemperamento, volta aos mesmos pensamentos.

    Quando est l em cima, diante da porta de entrada, tira a chave do bolso; percebe um rudo quevem de dentro: um rumor especial, de guizos, muito vivaz, muito regular. Como Blumfeld tinhaacabado de pensar em ces, o barulho lembra-lhe o que produzem as patas dos animais, quandobatem alternadamente no cho. Mas no h patas que imitem o chacoalhar de guizos: no se trata depatas. Abre s pressas a porta e acende a luz eltrica. Porm no estava preparado para aquela viso. uma bruxaria duas pequenas bolas de celulide, brancas, com estrias azuis, saltam sobre oassoalho, uma ao lado da outra e de c para l; quando uma bate no solo, a outra est no alto e assim,incansveis, executam o seu jogo. Certa vez, no curso secundrio, Blumfeld viu, durante umaconhecida experincia eltrica, bolinhas saltarem de forma semelhante, mas, em comparao comaquelas, estas so esferas relativamente grandes; elas saltam no aposento livre e ningum estrealizando um experimento eltrico. Blumfeld agacha-se para observ-las melhor. So sem dvidabolas comuns, provavelmente contm em seu interior outras menores e so estas que produzem obarulho de guizos. Blumfeld passa a mo no ar para verificar se elas no pendem, por acaso, de fios;no, elas se movem com completa autonomia. Pena que Blumfeld no seja um menino, duas bolasassim teriam sido uma alegre surpresa para ele, ao passo que agora tudo aquilo lhe causa umaimpresso acima de tudo desagradvel. Certamente no totalmente sem valor viver como umsolteiro ignorado, mas em segredo; agora algum, no importa quem seja, ventilou esse segredo eintroduziu em sua vida essas duas ridculas bolas.

  • Blumfeld quer agarrar uma delas, mas as duas se desviam, recuando, e o atraem a persegui-laspelo aposento. estupidez demais pensa ele correr atrs das bolas desse jeito; ficaparado e segue-as com o olhar, enquanto elas, uma vez que a perseguio parece ter cessado, tambmpermanecem no mesmo lugar.

    Mas eu tenho, apesar de tudo, de tentar peg-las volta ele a pensar e corre em direo a elas.Imediatamente as bolas fogem; Blumfeld, no entanto, com as pernas abertas, as impele para um

    canto da pea e, diante da mala que ali se encontra, consegue agarrar uma bola. Ela fria e pequena egira em sua mo, evidentemente ansiosa para escapulir. A outra bola, como se visse a aflio de suacompanheira, salta mais alto que antes e alarga os saltos at roar a mo de Blumfeld; desfere umgolpe contra ela; bate com saltos cada vez mais rpidos, muda os pontos de ataque; depois, uma vezque no consegue nada contra a mo que encerra a outra bola por completo, pula mais alto ainda,querendo provavelmente atingir o rosto de Blumfeld, que poderia tambm agarr-la e prender as duasem algum lugar; mas no momento parece-lhe aviltante tomar medidas como essa contra duaspequenas bolas. Pois afinal divertido possuir duas bolas como aquelas; elas tambm vo logo ficarcansadas, rolar para baixo de um mvel e dar sossego. A despeito dessa reflexo, porm, Blumfeldlana com uma espcie de raiva a bola de encontro ao solo: um milagre que nesse ato a coberturaquase transparente de celulide no quebre. Sem transio, as duas esferas recomeam seus saltosanteriores, baixos, sincronizados por oposio.

    Blumfeld se despe calmamente, arruma as roupas no armrio; costuma verificar sempre se aempregada deixou tudo em ordem. Uma ou duas vezes olha por cima do ombro para as bolas, queagora, livres da perseguio, parece at que o perseguem; avizinharam-se e saltam bem atrs dele.Blumfeld coloca o roupo e faz meno de ir at a parede do lado oposto para apanhar um doscachimbos que esto pendurados ali num suporte. Involuntariamente, antes de se voltar, d umapassada para trs com um dos ps, mas as bolas conseguem se desviar e no so atingidas. Quandoento vai buscar o cachimbo, as bolas logo o acompanham; ele arrasta as chinelas, realiza passosirregulares, mas cada passo, quase sem pausa, seguido por um golpe das bolas, que acertam amarcha com ele. Blumfeld vira-se inesperadamente para ver como elas se comportam. Mas mal haviase virado as bolas descrevem um semicrculo e j esto de novo atrs dele; isso se repete todas asvezes que ele se volta. Como se fossem acompanhantes subalternos, procuram no se deter diante deBlumfeld. At esse momento, ao que parece, ousaram somente apresentar-se, mas agora j entraramem servio.

    At o presente Blumfeld, em todos os lances excepcionais, nos quais suas foras no foramsuficientes para dominar a situao, escolheu o expediente de agir como se no notasse nada. Muitasvezes isso ajudou e na maioria dos casos pelo menos melhorou a situao. Agora tambm procedeassim: pra diante da grade de cachimbos, escolhe um levantando os lbios, carrega-ometiculosamente, tirando o tabaco da bolsa, preparado para a ocasio e, ignorando as bolas, deixa-assaltar, despreocupado, atrs de si. S hesita para ir at a mesa, pois ouvir os pulos coordenados e osprprios passos quase lhe causa dor. Por isso estaca, carregando o cachimbo por um tempodesnecessariamente longo e calcula a distncia que o separa da mesa. Finalmente, porm, vence aprpria fraqueza e percorre o trecho batendo os ps de tal forma que no escuta absolutamente as

  • bolas. Seja como for, uma vez sentado, elas continuam a saltar atrs de sua cadeira de modo toperceptvel quanto antes.

    Sobre a mesa, ao alcance da mo, na parede, est fixada uma prateleira, na qual se encontra,rodeada por copos pequenos, a aguardente de cereja. Ao lado dela fica uma pilha de exemplares darevista francesa. Justamente hoje chegou um nmero novo e Blumfeld o apanha. Esquececompletamente a bebida, tem a sensao de que hoje se apega s suas ocupaes habituais s porconsolo, no tem tambm nenhuma necessidade real de ler. Contra seu costume, em outras ocasies,de voltar atentamente pgina por pgina, abre a revista num lugar qualquer e d ali com uma grandeimagem. Fora-se a olh-la mais de perto. Ela mostra o encontro entre o czar da Rssia e opresidente da Frana. O encontro a bordo de um navio. Em torno, at se perder na distncia, hvrios outros navios, a fumaa das chamins se desfaz no cu claro. Ambos, o czar e o presidente,acabam de ir um na direo do outro em passadas largas e agora apertam-se as mos. Tanto atrs doczar como do presidente esto presentes dois senhores. Comparados com os rostos alegres do czar edo presidente, os rostos dos acompanhantes esto muito srios; os olhares de cada um dos grupos serenem dirigidos aos seus superiores. Muito mais embaixo a cena se passa evidentemente noconvs mais alto do navio aparecem longas filas de marinheiros, cortadas pelas margens daimagem, batendo continncia. Blumfeld observa com interesse crescente a cena, a mantm depois umpouco distante e fita a imagem pestanejando. Sempre teve gosto por esses atos imponentes. Consideramuito verdico que os personagens principais apertem as mos com tanta desenvoltura, cordiais edespreocupados. E igualmente correto que os acompanhantes alis, como natural, senhores deuma posio muito elevada, cujos nomes esto assinalados embaixo mantenham, com sua atitude,a gravidade do momento histrico. E, em vez de baixar tudo o que lhe faz falta, Blumfeld fica sentadoquieto e dirige o olhar para o cachimbo, que continua sem acender. Est na espreita: de repente, demodo completamente inesperado, sua imobilidade cede e ele se volta, num solavanco, com a cadeira.Mas as bolas esto vigilantes de forma correspondente ou seguem, sem pensar, a lei que as domina e,ao mesmo tempo que Blumfeld gira na cadeira, elas tambm mudam de lugar e se escondem atrsdele. Agora Blumfeld est sentado de costas para a mesa, o cachimbo frio na mo. As bolas saltamsob a mesa e como ali h um tapete s podem ser pouco ouvidas. uma grande vantagem; produzem-se apenas rudos muito fracos e abafados, preciso prestar muita ateno para ainda perceb-loscom o ouvido. Blumfeld no entanto mantm-se bem alerta e as ouve perfeitamente. Mas apenas agora assim, num instante provvel que no sero mais de maneira alguma escutadas. Para Blumfeldparece um grande sinal de fraqueza das bolas s poderem ser percebidas to pouco sobre tapetes.Basta colocar um deles por baixo, talvez dois, para torn-las quase impotentes. Seja como for, porum perodo determinado de tempo; alm do mais, sua existncia j significa um certo poder.

    Agora Blumfeld bem que poderia fazer uso de um cachorro um animal jovem, selvagem,acabaria logo com as bolas; imagina-o correndo atrs das duas para ca-las com as patas; como asexpulsa dos seus postos, como as persegue de um extremo a outro do aposento e finalmente as prendeentre os dentes. bem provvel que dentro em breve arranje um cachorro.

    Mas no momento as bolas tm de temer apenas Blumfeld, e agora ele no est com vontade dedestru-las, talvez para isso lhe falte poder de deciso. Chega cansado, noite, do trabalho, e justo

  • nessa hora, quando necessita de repouso, fazem-lhe essa surpresa. S agora sente como estrealmente cansado. Sem dvida ir destruir as bolas, na verdade o mais breve possvel, mas nonesse instante, provavelmente s no dia seguinte. Quando se considera a questo imparcialmente,alis, as bolas se comportam com bastante modstia. Poderiam, por exemplo, saltar para a frente detempos em tempos, mostrar-se e regressar ao seu lugar; ou poderiam pular mais alto, para bater natbua da mesa e desse modo se ressarcir do amortecimento do tapete. Mas no o fazem, no queremirritar Blumfeld sem necessidade, limitam-se evidentemente ao que estritamente preciso.

    verdade que essa exigncia basta para amargurar a permanncia de Blumfeld mesa. S ficaalguns minutos l e j pensa em ir dormir. Um dos motivos para isso que ali no pode fumar, poisdeixou os fsforos em cima do criado-mudo. Teria, portanto, de ir busc-los, mas, uma vez que estperto do criado, com certeza melhor ficar por l e deitar-se. Atrs disso existe uma segundainteno: acredita, na verdade, que as bolas, no seu af cego de ficarem sempre atrs dele, vo saltarsobre a cama e, uma vez ali, quando ele se deitar, ir esmag-las, querendo ou no. Rejeita a objeode que os restos das bolas tambm seriam capazes de ficar saltando. At o inusitado precisa terlimites. Bolas inteiras saltam tambm em outras ocasies, embora no ininterruptamente; pedaosdelas, ao contrrio, nunca saltam, e neste caso tambm no iro dar pulos.

    Para cima! brada, tornando-se quase imprudente com essa reflexo; dirige-se para a camaem passos pesados com as duas esferas outra vez atrs dele. Suas esperanas parecem confirmar-se:quando se pe deliberadamente bem perto da cama, imediatamente uma das bolas salta sobre o leito.Pela via contrria, porm, entra em ao o inesperado a outra bola se coloca debaixo da cama.Blumfeld no havia absolutamente pensado na possibilidade de que as bolas pudessem tambm saltarpara baixo da cama. Est indignado com a bola embora sinta como isso injusto, uma vez que, comesse salto, a bola talvez realize ainda melhor sua tarefa do que a bola em cima do leito. Tudo entodepende do lugar pelo qual as bolas se decidam, pois Blumfeld no cr que elas possam trabalharseparadas por muito tempo. Com efeito, no instante seguinte a bola de baixo tambm pula para cimada cama. Agora elas so minhas, pensa Blumfeld, ardente de alegria, e arranca o roupo do corpopara se lanar sobre o leito. Mas justamente nesse momento a mesma esfera volta a saltar para baixoda cama. Sobremaneira decepcionado, Blumfeld literalmente desmorona. provvel que a bolatenha apenas dado uma olhada em cima e no gostado do que viu. A a outra a segue e naturalmentepermanece na posio de baixo, pois ali melhor. Agora vou ter esses dois batedores de tambor anoite inteira aqui, pensa Blumfeld, morde os lbios e balana a cabea.

    Est triste, sem saber propriamente como as bolas podero prejudicar-lhe a noite. Seu sono excelente, ir superar com facilidade o pequeno rumor. Para ficar totalmente seguro disso, empurrapor baixo delas dois tapetes segundo a experincia feita. como se tivesse um pequeno cachorropara o qual preparasse uma caminha macia. Porque as bolas talvez estejam cansadas e com sono,seus saltos so mais baixos e vagarosos do que antes. Quando Blumfeld se ajoelha diante da cama eilumina a parte de baixo com o abajur do criado-mudo, julga por vezes que as bolas vo permanecerpara sempre sobre os tapetes, por carem to debilmente, rolarem to devagar mais um curto trecho.Claro que depois se erguem de novo de acordo com o seu dever. Mas bem possvel que quandoBlumfeld olhar de manh debaixo da cama ir encontrar duas silenciosas e inofensivas bolas de

  • criana.Mas parece que no conseguem agentar os saltos nem mesmo at a manh seguinte, pois quando

    Blumfeld j est deitado no as escuta mais de maneira alguma. Empenha-se em ouvir uma coisa ououtra, espia inclinando-se para fora da cama nenhum som. Tanto assim no podem influir ostapetes; a nica explicao que as bolas no pulam mais: ou no so capazes de se destacar osuficiente dos tapetes macios e por isso renunciaram temporariamente a dar saltos, ou ento o que mais provvel nunca mais vo saltar. Blumfeld poderia levantar-se e ir ver o que de fatoacontece, mas, na sua satisfao com o fato de finalmente reinar silncio, prefere ficar deitado; noquer nem roar com os olhos as bolas que se apaziguaram. Desiste com prazer at de fumar, vira-sede lado e adormece logo.

    Porm no permanece tranqilo; como de costume, tambm desta vez tem um sono sem sonhos, masmuito intranqilo. Inmeras vezes, durante a noite, se sobressalta com a iluso de que algum bate porta. Sabe sem dvida que ningum bate, pois quem iria noite bater porta justamente na sua, ade um solteiro solitrio? Mas, por mais que tenha conscincia disso, acorda assustado sem cessar epor um momento olha tenso para a porta, a boca aberta, os olhos arregalados e os tufos de cabelosacudindo sobre a fronte mida. Tenta contar quantas vezes despertado, mas, aturdido com as cifrasmonstruosas que resultam desse cmputo, cai outra vez no sono. Supe saber de onde vm as batidas,no so da porta, mas de outra parte qualquer; porm, na atrapalhao do sono, no consegue selembrar em que se baseiam suas suposies. Sabe somente que muitas batidas, pequenas erepulsivas, se juntam, antes da batida grande e poderosa. Suportaria toda a repugnncia dos pequenosgolpes se pudesse evitar essa batida, mas por algum motivo tarde demais, neste caso no podeintervir, uma parada perdida, no tem nem mesmo palavras, a boca s se abre para um bocejomudo; furioso com isso afunda o rosto nos travesseiros. E assim passa a noite.

    De manh despertado pelas batidas da empregada na porta de entrada; com um suspiro de alvioacolhe os golpes suaves, de cuja imperceptibilidade ele sempre se queixou; quando quer bradarentre!, ouve outra pancada, vivaz apesar de fraca, mas literalmente belicosa. So as bolas debaixoda cama. Elas acordaram: ser que ao contrrio dele reuniram novas foras durante a noite?

    Vou indo! grita Blumfeld para a empregada.Salta da cama, mas, de um modo to cauteloso a ponto de manter as bolas atrs dele, lana-se ao

    cho com as costas sempre voltadas para as duas e, a cabea virada, olha em sua direo porpouco no lhe escapa uma blasfmia. Como crianas que durante a noite se livram das cobertasimportunas, as bolas provavelmente mediante sacudidelas que devem ter durado a noite toda empurraram os tapetes para to longe, sob a cama, que conquistaram outra vez o assoalho livredebaixo delas e agora podem fazer rudos.

    Voltem para os tapetes! diz Blumfeld de cara feia e, s quando as esferas, graas aostapetes, voltaram a ficar quietas, exclama para a empregada entrar.

    Enquanto esta uma mulher gorda, obtusa, que anda sempre rigidamente ereta coloca o caf-da-manh sobre a mesa e faz algumas arrumaes necessrias, Blumfeld permanece em p, imvel,de roupo, junto cama, para reter as bolas sob o mvel. Segue a empregada com o olhar, paraverificar se ela nota alguma coisa. Dada sua dificuldade de audio isso muito improvvel, e

  • Blumfeld atribui sua superirritao causada pelo mau sono da noite quando acredita ver quea empregada permanece parada ora aqui, ora ali, segura-se em algum mvel e fica escuta com ossobrolhos levantados. Estaria feliz se ela conseguisse apressar um pouco seu trabalho, mas aempregada anda quase mais lerda do que habitualmente. meticulosa quando carrega as roupas e asbotas de Blumfeld e passa com elas para o corredor; fica fora um longo tempo; montonos e bemdiferenciados soam os golpes com que l trabalha as roupas e que chegam at ele aqui. Durante todoesse tempo Blumfeld tem de permanecer perto do leito, no pode se mover caso no queira arrastaras bolas atrs de si; obrigado a deixar esfriar o caf que gosta tanto de beber o mais quentepossvel e no pode fazer outra coisa seno fitar a cortina descida da janela, atrs da qual o dia vaiescurecendo turvo. Finalmente a empregada terminou; deseja-lhe bom-dia e se dispe a ir embora.Mas antes de se afastar definitivamente, detm-se junto porta, mexe um pouco os lbios e dirige umlongo olhar a Blumfeld. Este j est a ponto de perguntar-lhe alguma coisa, mas ela afinal se vai.Blumfeld tem uma forte vontade de escancarar a porta e gritar-lhe que mulher estpida, velha eobtusa ela . Mas, quando reflete sobre o que na verdade poderia objetar contra ela, s descobre ocontra-senso de que ela com certeza no percebeu nada e quis dar aparncia de que teria notadoalguma coisa. Como seus pensamentos esto confusos! E tudo por causa de uma noite maldormida!Para o mau sono s encontra uma pequena explicao no fato de ontem noite ter se desviado dosseus hbitos no fumou nem bebeu aguardente. Quando no fumo nem tomo aguardente, durmomal esse o resultado das suas reflexes.

    De agora em diante vai prestar mais ateno no seu bem-estar e comea pegando algodo dafarmacinha que pende sobre o criado-mudo e tampona os ouvidos com duas bolinhas feitas com ele.A seguir se levanta e, para fazer um teste, d um passo. Na verdade as bolas o perseguem, mas elemal as ouve; mais um acrscimo de algodo as torna totalmente inaudveis. Blumfeld d mais unspassos ainda e tudo caminha sem um inconveniente especial. Cada um vai por si, tanto ele quanto asbolas, na realidade ambos esto ligados entre si, mas no se importunam mutuamente. S quandoBlumfeld faz uma volta com maior rapidez e uma das bolas no pode descrever o contramovimentodepressa o suficiente, que ele bate com o joelho nela. o nico incidente, de resto Blumfeld bebe ocaf tranqilamente; tem fome como se durante a noite no tivesse dormido, mas andado um longocaminho; lava-se com gua fria, incomumente refrescante, e se veste. At aquele momento nolevantou as cortinas, preferindo por cautela ficar na penumbra: no necessita de olhares estranhospara as esferas. Mas agora, quando est pronto para partir, precisa de algum modo tomarprovidncias, caso as bolas tenham a ousadia de segui-lo at a rua, no que alis no acredita.Ocorre-lhe uma boa idia para isso: abre o grande armrio de roupas e coloca-se de costas para ele.Como se as bolas tivessem o pressentimento dessa pretenso, refugiam-se no interior do mvel; cadalugarzinho que permanece livre entre Blumfeld e o roupeiro elas aproveitam; quando no h outrojeito, saltam por um instante dentro do armrio, mas em seguida voltam a sair, fugindo daobscuridade; no vivel de maneira alguma faz-las entrar no mvel por cima da borda do guarda-roupa, preferem antes transgredir seu dever e ambas se detm quase ao lado de Blumfeld. Mas seuspequenos truques no as ajudam em nada, pois agora o prprio Blumfeld que sobe de costas paradentro do mvel e de qualquer modo elas precisam acompanh-lo. Mas com isso sua sorte est

  • selada, uma vez que no cho do armrio h diversos objetos pequenos, como botas, caixas, pequenasvalises, todos eles certamente o que Blumfeld agora lamenta muito bem organizados, mas queapesar disso significam um srio empecilho para as bolas. E quando ento Blumfeld, que nesse meio-tempo quase fechou a porta do armrio, com um grande salto, como h anos no o fazia, sai doguarda-roupa, fecha a porta e vira a chave, as bolas esto presas. Ento eu consegui, pensa ele elimpa o suor do rosto. Que barulho as bolas fazem dentro do guarda-roupa! A impresso de queestavam desesperadas. Blumfeld, ao contrrio, est muito satisfeito. Deixar o quarto e o corredorermo produz um efeito benfico sobre ele. Livra as orelhas do algodo, e os mltiplos rudos doprdio que desperta o encantam. Vem-se poucas pessoas, ainda muito cedo.

    No corredor embaixo, diante da pequena porta que d para o apartamento de subsolo daempregada, est o filho dela de dez anos. o retrato da me, nenhuma feira da velha foi esquecidanaquele rosto de criana. Pernas tortas, as mos nos bolsos das calas, ele est parado ali eresfolega, porque j tem um bcio e s pode respirar com dificuldade. Habitualmente, quandoBlumfeld d com o menino no caminho, aperta o passo para se poupar o mais possvel desseespetculo; hoje porm quase sente vontade de ficar ao seu lado. Se o pequeno jovem foi posto nomundo por aquela mulher e carrega todos os sinais de sua origem, por enquanto no mais que umacriana; naquela cabea informe h pensamentos infantis; quando o interpelam com clareza eperguntam alguma coisa, ir responder provavelmente com uma voz clara, inocente e respeitosa e,superando-se um pouco, a pessoa poder at acariciar-lhe as mas do rosto. Assim pensa Blumfeld,mas passa ao largo. Na rua nota que o tempo est melhor do que havia julgado quando se encontravano quarto. As nvoas da manh se repartem e aparecem nesgas no cu azul varrido por um ventoforte. Blumfeld deve s bolas o fato de ter sado muito mais cedo do quarto do que costuma fazer, ato jornal ele deixou sem ler, esquecendo-o em cima da mesa; de qualquer maneira ganhou muitotempo com isso e agora pode andar sem pressa. digno de nota quo pouco as bolas o preocupamdesde que ele se separou delas. Enquanto elas estavam atrs dele, era possvel consider-las comoalgo que lhe pertencia, como algo que de algum modo precisava ser levado em conta no julgamentoda sua pessoa; agora, pelo contrrio, eram somente um brinquedo no armrio da casa. E nessemomento ocorre a Blumfeld que talvez a melhor forma de torn-las incuas fosse obrig-las adesempenhar sua verdadeira funo. L no corredor permanece ainda o menino, Blumfeld vai dar-lheas bolas, no eventualmente emprest-las, mas literalmente d-las de presente, o que sem dvidaequivale a uma ordem de destruio. E, mesmo que elas continuem ss, iro significar nas mos domenino muito menos do que no armrio, o prdio inteiro ver como o menino brinca com elas, outrascrianas vo se juntar a ele, a opinio geral, de que se trata aqui de bolas de brinquedo, e no poracaso de acompanhantes de vida de Blumfeld, ser inabalvel e irresistvel. Blumfeld volta correndopara casa. Justo nesse momento o jovem desceu a escada do subsolo e l embaixo est empenhadoem abrir a porta. Blumfeld precisa, por causa disso, chamar o menino e pronunciar seu nome, que ridculo como tudo o que est relacionado com ele.

    Alfred, Alfred! grita.O menino vacila por muito tempo. Venha aqui, venha! brada Blumfeld. Vou dar-lhe uma coisa.

  • As duas meninas do zelador saram pela porta em frente e agora se colocam, curiosas, direita e esquerda de Blumfeld. Compreendem muito mais rapidamente do que o jovenzinho e no entendempor que ele no vem logo. Acenam para ele, enquanto no tiram os olhos de Blumfeld, mas nopodem descobrir que presente aguarda Alfred. A curiosidade as atormenta e elas saltitam ora comum, ora com outro p. Blumfeld ri tanto delas quanto do menino. Este parece afinal ter tomadoconscincia do que acontece e sobe teso e pesado a escada. Nem sequer no modo de andar capazde negar que filho de sua me, que alis aparece embaixo, na porta do subsolo. Blumfeld grita bemalto para que a empregada tambm o escute e, caso seja necessrio, supervisione a execuo de suatarefa.

    Tenho l em cima no meu quarto duas bonitas bolas diz Blumfeld. Quer ficar com elas?O menino apenas torce a boca, no sabe como deve se comportar, volta-se e olha para a me l

    embaixo como se a consultasse. As meninas porm comeam imediatamente a pular em volta deBlumfeld, pedindo as bolas.

    Vocs tambm vo poder brincar com elas diz-lhes Blumfeld, mas esperando a resposta dojovem.

    Ele poderia dar logo as bolas de presente s meninas, mas elas lhe parecem irresponsveis demaise agora ele confia mais no menino. Este, nesse meio-tempo, sem haver trocado uma palavra com ele,buscou conselho com a me e acena positivamente com a cabea a uma nova pergunta de Blumfeld.

    Ento preste ateno diz Blumfeld, que percebe com prazer que aqui no vai receberagradecimento nenhum pelo presente. Sua me est com a chave do meu apartamento, voc tem depedi-la emprestada, dou-lhe a chave do meu guarda-roupa e nele que esto as bolas. Feche depoiso armrio e a casa cuidadosamente. Mas com as bolas voc pode fazer o que quiser e no precisatraz-las de volta. Entendeu?

    Mas infelizmente o rapaz no entendeu. Blumfeld queria deixar tudo bastante claro a esse meninoilimitadamente duro de cabea e exatamente por causa dessa inteno repetiu os itens com tantafreqncia, alternadamente falou de chaves, apartamento e armrio, que o menino, em conseqnciadisso, fita-o no como seu benfeitor, mas como algum que o tenta. As meninas, no entanto,compreenderam tudo rpido, apertam-se de encontro a Blumfeld, estendendo as mos para pegar achave.

    Esperem a diz Blumfeld, j irritado com todos.O tempo, alm disso, est passando, e ele no pode mais se deter ali.Se a empregada dissesse, finalmente, que o havia entendido e que se incumbir de tudo pelo filho!

    Em vez disso continua ainda l embaixo, junto porta, sorri afetadamente como uma surdaenvergonhada e talvez acredite que Blumfeld, na parte de cima da escada, tenha cado num sbitoentusiasmo por seu filho e o esteja fazendo repetir a tabuada. Blumfeld porm no pode descer aescada para o subsolo e gritar no ouvido da empregada que o menino faa o obsquio, pelamisericrdia de Deus, de livr-lo das bolas. J teve muito a superar quando quis confiar a chave doseu armrio por um dia todo a essa famlia. No para se poupar que passa a chave ao jovem, emvez de lev-la ele prprio at o andar de cima e l entregar as bolas. Mas no pode primeiro subir lem cima e dar as bolas de presente e como de se prever que acontea em seguida tir-las do

  • rapaz na medida em que as arrasta como squito atrs de si. Voc ento ainda no me compreende? pergunta Blumfeld quase melanclico depois de ter

    iniciado uma nova explicao, interrompendo-a porm logo a seguir diante do olhar vazio do menino.Um olhar vazio como aquele desarma a pessoa. Poderia lev-lo a dizer mais do que quer, s parapreencher desse modo o vcuo com o entendimento.

    Vamos pegar as bolas para ele! exclamam as meninas.Elas so espertas, deram-se conta de que as bolas s podem ser alcanadas por algum tipo de

    mediao do jovem, mas que so elas prprias que tm de pr em andamento essa mediao. Doquarto do zelador chega o som de uma hora e exorta Blumfeld pressa.

    Fiquem ento com as chaves! diz ele, e a chave mais arrancada de sua mo do que ele aentrega.

    Teria sido infinitamente maior a segurana se ele desse a chave ao menino. Pegue l embaixo, com a senhora, a chave do apartamento diz ainda Blumfeld. Quando

    voltarem com as bolas, vocs tm de dar a chave para ela. Sim, sim! gritam as meninas e descem correndo a escada.Sabem tudo, absolutamente tudo, e como se Blumfeld fosse contagiado pelo embotamento mental

    do menino, ele agora no entende, pessoalmente, como as meninas puderam captar tudo torapidamente.

    Agora as meninas j esto embaixo, puxando a saia da empregada, mas por mais sedutor queisso seja Blumfeld no pode observar por mais tempo o modo como elas se desincumbem de suatarefa, na verdade no s porque tarde demais, como tambm no quer estar presente quando asbolas reconquistarem a liberdade. Seu desejo j estar a algumas ruas de distncia quando asmeninas abrirem l em cima a porta do seu apartamento. No tem a menor idia do que ainda podeesperar das bolas. Assim que, pela segunda vez nessa manh, ele sai para o ar livre. Ainda vcomo a empregada se defende afanosamente das jovenzinhas e como o menino pe em movimento aspernas tortas para ir em socorro da me. Blumfeld no compreende por que pessoas como aempregada crescem e se multiplicam no mundo.

    No caminho para a fbrica de roupas de baixo em que Blumfeld est empregado os pensamentosacerca do trabalho aos poucos prevalecem sobre tudo o mais. Acelera o passo e, a despeito do atrasode que o menino culpado, chega ao escritrio em primeiro lugar. um espao cercado por vidros,contm uma escrivaninha para Blumfeld e duas carteiras de tampa reclinvel para os aprendizessubordinados a Blumfeld. Do mesmo modo que as carteiras so to pequenas e estreitas como sefossem destinadas a escolares, no escritrio tudo muito estreito, e os aprendizes no podem sentar-se porque caso contrrio no haveria mais espao algum para a poltrona de Blumfeld. Por isso ficamo dia inteiro premidos contra suas carteiras. Sem dvida muito desconfortvel para eles, mas dessemodo fica difcil para Blumfeld vigi-los. Com freqncia comprimem-se com fervor na carteira,no porventura para trabalhar, mas para cochichar entre si ou at para tirar uma soneca. Blumfeld seirrita muito com eles, que nem de longe o auxiliam o suficiente no gigantesco trabalho que lhe imposto. A tarefa consiste em manejar todo o movimento de mercadorias e dinheiro com astrabalhadoras da casa, incumbidas pela fbrica da produo de certas peas mais finas. Para poder

  • julgar a magnitude desse trabalho preciso ter uma viso mais precisa do conjunto. Mas desde quemorreu o superior imediato de Blumfeld, alguns anos antes, ningum mais possui esta viso, por issonem mesmo ele capaz de conceder a quem quer que seja o direito de emitir um julgamento sobreseu trabalho. O industrial, senhor Ottomar, por exemplo, subestima ostensivamente o trabalho deBlumfeld; naturalmente ele reconhece os mritos que Blumfeld acumulou na fbrica no curso de vinteanos, no s porque tem de faz-lo, mas tambm porque aprecia Blumfeld como pessoa fiel, digna deconfiana; seja como for, subestima seu trabalho, acreditando, inclusive, que poderia ser organizadode modo mais simples e, nesse aspecto, mais vantajoso em todos os sentidos do que a maneira comoBlumfeld o realiza. Dizem, e certamente no algo destitudo de verdade, que s por isso Ottomaraparece to raramente na seo de Blumfeld para se poupar da irritao que lhe causa ver osmtodos de trabalho de Blumfeld.

    Com certeza triste para Blumfeld no ser reconhecido dessa maneira, mas para isso no hremdio, pois no pode forar Ottomar a permanecer, por exemplo, por um ms ininterrupto, naseo de Blumfeld, estudando as mltiplas formas dos trabalhos que ali devem ser executados,fazendo valer seus prprios mtodos supostamente melhores, e deixar-se por fim convencer da razoque assistia a Blumfeld com a conseqncia, no caso inevitvel, do colapso da seo. Por essemotivo Blumfeld prossegue firme como antes na sua tarefa, sobressalta-se um pouco quando Ottomaraparece depois de muito tempo; ento, com o sentido de dever do subordinado, empreende uma dbiltentativa de explicar a Ottomar esta ou aquela forma de organizar o trabalho, com a qual este assentemudo, de olhos baixos, e segue em frente; no mais, sofre menos com a falta de reconhecimento do queante a idia de que, se abandonar o posto, o resultado imediato disso ser uma grande confuso, queningum ser capaz de deslindar, pois no conhece ningum na fbrica que possa substitu-lo eassumir seu cargo de maneira a evitar, durante alguns meses, no andamento do negcio, pelo menosos entraves mais srios. Se o chefe subestima algum, ento natural que os empregados procuremultrapass-lo, nesse aspecto, o mximo possvel. Da que todos menosprezam o trabalho deBlumfeld; ningum considera necessrio sua formao trabalhar um tempo na seo dele e, quandoso admitidos novos empregados, nenhum, por iniciativa prpria, destinado ao departamento deBlumfeld. em conseqncia disso que lhe falta renovao do pessoal. Foram semanas da luta maisrdua quando Blumfeld, que at ento havia cuidado de tudo na seo completamente sozinho,ajudado apenas por um servente, solicitou a contratao de um auxiliar. Quase todos os diasBlumfeld aparecia no escritrio de Ottomar e lhe explicava, de uma forma tranqila epormenorizada, por que precisava de um auxiliar na seo. Ele no era necessrio, certamente,porque Blumfeld queria se poupar; Blumfeld no queria se poupar, cumpria sua tarefa mais queabundante e no cogitava em deixar de faz-lo; queria apenas que o senhor Ottomar refletisse como,no decurso do tempo, o negcio se desenvolvera e todas as sees foram aumentadas de modocorrespondente; s a de Blumfeld era sempre esquecida. E de que modo o trabalho ali aumentara!Quando Blumfeld entrou o senhor Ottomar com certeza no se lembrava mais daquele tempo era preciso se haver com cerca de dez costureiras; hoje esse nmero oscila entre cinqenta esessenta. Um trabalho como esse exige energia, Blumfeld pode assegurar que se empenhainteiramente naquele trabalho, mas lev-lo a cabo devidamente algo que a partir de agora no pode

  • mais garantir. O caso que o senhor Ottomar nunca rejeitou taxativamente os pedidos de Blumfeld;no podia fazer isso com um antigo funcionrio, mas o modo como quase no prestava ateno,conversava com outras pessoas passando por alto os apelos de Blumfeld, a maneira como concediaas coisas pela metade, esquecia tudo outra vez em alguns dias essa maneira de agir era bemofensiva. No para Blumfeld, na realidade; ele no fantasioso; por mais belos que sejam honrariase reconhecimento, Blumfeld pode dispens-los; a despeito de tudo vai-se aferrar ao seu postoenquanto de algum modo isso for possvel; de qualquer maneira tem razo e, por mais que s vezesdemore, a razo finalmente tem de encontrar reconhecimento. Assim que, de fato, Blumfeld no fimrecebeu at mesmo dois ajudantes mas que ajudantes! Seria possvel acreditar que Ottomar intuiuque podia mostrar, mais nitidamente do que pela recusa dos ajudantes, o seu desprezo seo pelaconcesso desses auxiliares. Era at possvel que Ottomar houvesse alimentado tanto tempo asesperanas de Blumfeld porque estava procura de dois ajudantes como aqueles e, como era fcilcompreender, no conseguira, durante todo esse tempo, ach-los. E agora Blumfeld no podia sequeixar, a resposta era previsvel: ele tinha recebido dois auxiliares, embora s tivesse exigido um.Ottomar havia conduzido to jeitosamente as coisas! Evidentemente Blumfeld se queixou, mas sporque o aperto de sua situao o impelia a isso literalmente, no porque agora ele ainda esperasseajuda. Alm do mais no se queixava expressamente, mas apenas de passagem, quando se ofereciauma oportunidade propcia. Apesar disso se espalhou em breve, entre os colegas mal-intencionados,o rumor de que algum havia perguntado a Ottomar se era mesmo possvel que Blumfeld, tendo agorarecebido uma ajuda to extraordinria, ainda assim se queixasse. Ottomar respondeu que sim, queBlumfeld continuava a se queixar, mas com razo. Ele, Ottomar, finalmente o havia percebido epretendia destinar a Blumfeld, pouco a pouco, um ajudante por costureira, ou seja, um total de cercade sessenta. Mas, se esses no fossem suficientes, mandaria outros mais, e no cessaria de faz-lo atficar completo aquele manicmio que se desenvolvia na seo de Blumfeld j fazia anos. Ora, nessaobservao estava de algum modo bem imitado o discurso do chefe, mas ele prprio Blumfeld no duvidava de que Ottomar estivesse longe de algum dia se expressar de forma anloga acercadele. Tudo aquilo era uma inveno dos preguiosos dos escritrios do primeiro andar; Blumfeld nose importava; se apenas pudesse no se importar tambm com a presena dos auxiliares de maneirato tranqila! Mas eles estavam l e no havia o que fazer para afast-los. Crianas plidas, frgeis.Por seus documentos j deviam ter atingido a idade ps-escolar, mas na realidade no era possvelacreditar nisso. No era desejvel confi-los nem mesmo a um mestre, de tal modo era ntido queainda permaneciam nos braos da me. Ainda no conseguiam se mover razoavelmente, ficar em ppor muito tempo os cansava de modo incomum, especialmente nos primeiros dias. Se ningum osvigiava, dobravam-se logo de fraqueza, punham-se num canto tortos e curvados. Blumfeld tentavafaz-los compreender que se tornariam aleijados para a vida toda, caso cedessem sempre, dessamaneira, comodidade. Incumbir os ajudantes de um pequeno movimento era uma coisa ousada:certa vez um deles quis transportar algo apenas uns passos, excedeu-se na velocidade e feriu o joelhona carteira. A sala estava cheia de costureiras, as carteiras cheias de mercadorias, mas Blumfeld tevede largar tudo, levar o ajudante que chorava ao escritrio e ali aplicar-lhe uma pequena atadura. Masesse zelo dos auxiliares era s aparente; como verdadeiras crianas que eram, queriam destacar-se

  • uma ou outra vez, mas com mais freqncia ainda, ou antes: quase sempre, desejavam somentedesviar a ateno do superior e engan-lo. Num momento em que o trabalho era dos maiores,Blumfeld passou correndo, pingando de suor, pelos dois e observou como eles, entre fardos demercadorias, trocavam selos. Sua vontade foi descarregar os punhos sobre suas cabeas para umcomportamento como aquele teria sido a nica punio possvel; mas eles eram crianas, Blumfeldno podia desferir um golpe mortal sobre elas. E desse modo continuou a se torturar com os doisajudantes. A princpio imaginou que os auxiliares o ajudariam em pequenos servios na poca emque a distribuio das mercadorias exigia tanto esforo e ateno. Havia pensado que ficaria em patrs da carteira, conservando sempre a superviso sobre tudo e cuidando dos assentamentos noslivros, enquanto os aprendizes corriam de um lado para o outro atentos s suas ordens, repartindotudo. Imaginara que sua superviso que, por mais severa, no era capaz de dar conta de um apertocomo aquele seria complementada pela vigilncia dos auxiliares e que aos poucos elesacumulariam experincia, sem precisar depender de suas ordens em todos os detalhes, e quefinalmente aprenderiam, por conta prpria, a distinguir as costureiras umas das outras no que diziarespeito quantidade necessria de mercadoria e confiana que se podia depositar em cada umadas empregadas. Aplicadas a esses ajudantes, eram esperanas completamente vs; Blumfeld logopercebeu que no podia de modo algum deix-los falar com as costureiras. Com efeito, desde oincio, isso no era vivel com muitas delas, porque tinham antipatia ou medo deles; em relao aoutras, pelo contrrio, pelos quais eles tinham preferncia, muitas vezes saam correndo at a portapara receb-las. A estas levavam tudo o que desejassem e, mesmo que as costureiras tivessem direitoa elas, apertavam-lhes a mo com uma espcie de mistrio; para essas prediletas juntavam numaestante vazia diversos retalhos, restos sem valor, mas tambm miudezas ainda utilizveis; acenavam-lhes de longe com estas, felizes, pelas costas de Blumfeld e, como recompensa, elas os presenteavamcom bombons que lhes enfiavam na boca. Obviamente Blumfeld ps fim, logo, a essa anomalia e,quando as costureiras chegavam, forava os auxiliares a irem para o seu canto. Mas por muito tempoeles consideraram essa atitude uma grande injustia: resistiam, quebravam de propsito as canetas evrias vezes sem apesar de tudo ousar erguer a cabea batiam forte nos vidros para chamar aateno das costureiras para o mau tratamento que na opinio deles Blumfeld os fazia suportar.

    O comportamento incorreto que praticam, eles prprios no compreendem. Assim, por exemplo,chegam quase sempre tarde demais no escritrio. Blumfeld, seu superior, que desde a mais tenrajuventude considerou natural que as pessoas comparecessem ao escritrio no mnimo meia hora antesque ele abrisse no era vontade de se mostrar, nem conscincia excessiva do dever, apenas umcerto sentimento de compostura que o motivava , Blumfeld tem de esperar seus ajudanteschegarem, na maioria das vezes, mais que uma hora. Mastigando o pozinho do caf-da-manhcostuma postar-se atrs da carteira na sala fazendo o balano das contas nas cadernetas dascostureiras. Logo se concentra no trabalho e no pensa em outra coisa. De repente se sobressaltatanto que ainda algum tempo depois a pena treme na sua mo. Um dos auxiliares entrou como umfuraco; como se fosse desabar, com uma das mos segura-se com firmeza em algum lugar, com aoutra aperta o peito que respira com dificuldade; mas tudo isso no significa nada seno que, por terchegado tarde, quisesse alegar uma desculpa to ridcula que Blumfeld intencionalmente a ignora,

  • pois, caso no o fizesse, teria de surrar devidamente o jovem. Assim que s o olha por um instante;depois, com a mo estendida, aponta para o tabique e volta a se dedicar ao trabalho. Ora, seria ocaso de esperar que o ajudante percebesse a benevolncia do superior e corresse para o seu posto.No, ele no corre, fica saracoteando, caminha na ponta dos ps, e agora vai p ante p. Querdebochar do seu chefe? Tambm no. outra vez aquela mistura de medo e auto-suficincia, contra aqual se fica desarmado. Como, portanto, explicar de outro modo que Blumfeld, hoje dia em queele prprio, fora dos seus costumes, chegou tarde no escritrio, depois de uma longa espera (no estcom vontade de conferir as cadernetas) , possa, agora, atravs das nuvens de p que odesconsiderado servidor levanta, contemplar os dois ajudantes que se aproximam tranqilamentepela rua? Andam estreitamente abraados e parecem contar um para o outro coisas importantes, masque certamente mantm uma relao no mnimo ilcita com o trabalho. Quanto mais se aproximam daporta de vidro, tanto mais retardam o passo. Por fim um deles agarra a maaneta, mas no a abaixa;continuam contando coisas um para o outro, escutam e riem.

    Abra a porta para os nossos cavalheiros! grita Blumfeld para o servente, erguendo osbraos.

    Mas, quando os aprendizes entram, Blumfeld no quer mais ralhar com eles; no responde saudao dos dois e vai para sua escrivaninha. Comea a fazer contas, s vezes levanta a vista paraver o que os ajudantes esto fazendo. Um deles parece estar muito cansado e esfrega os olhos; assimque pendura o sobretudo no cabide aproveita a oportunidade para ficar ainda um pouco recostado naparede; na rua estava ativo, mas a proximidade do trabalho o deixa extenuado. O outro ajudante, pelocontrrio, tem nimo para trabalhar, mas s numa ou noutra coisa. Desse modo que desde sempreseu desejo foi poder varrer. Acontece porm que essa uma tarefa que no lhe compete: varrer atribuio s do servente; em si mesmo Blumfeld no teria nada contra o aprendiz ficar varrendo; elepode varrer, pior que o servente ele no capaz de fazer; mas, se o ajudante pretende varrer, entodeve justamente chegar mais cedo, antes que o servente comece, e no empregar o tempo nisso, umavez que tem de se dedicar exclusivamente aos trabalhos do escritrio. Mas, visto que o jovemauxiliar inacessvel a qualquer reflexo razovel, pelo menos o servente, aquele ancio meio cegoque o chefe com certeza no toleraria em nenhuma outra seo que no a de Blumfeld e que s viveainda pela graa de Deus e do chefe ento esse servente poderia pelo menos ser condescendente epassar por um instante a vassoura ao jovem, que alis desajeitado; logo perder a vontade devarrer e ir correndo atrs do servente com a vassoura para convenc-lo a varrer de novo. Parece noentanto que o servente se sente especialmente responsvel pela tarefa de varrer; pode-se ver comoele, mal o rapaz se aproxima, procura segurar melhor a vassoura com mos trmulas, prefere ficarquieto e deixa de varrer, para dirigir toda a ateno posse da vassoura. Mas o ajudante no pedeapenas por meio de palavras, pois tem medo de Blumfeld, que na aparncia faz contas; alm do maispalavras comuns seriam inteis, pois, para fazer o servente ouvir, preciso dar os gritos mais fortes.Portanto, o auxiliar comea a puxar o servente pela manga. Evidentemente este sabe do que se trata;dirige um olhar sombrio para o aprendiz, balana a cabea e puxa a vassoura at apert-la contra opeito. O ajudante junta as mos e suplica. Seja como for, no tem esperana de conseguir algumacoisa por meio de rogos; s que suplicar o diverte, e por isso que o faz. O outro ajudante

  • acompanha a cena com risos abafados e, embora seja incompreensvel, acredita obviamente queBlumfeld no escuta. Os rogos no provocam a menor impresso no servente; d uma volta,acreditando agora que pode usar a vassoura outra vez com segurana. Mas o aprendiz o seguiusaltitando na ponta dos ps e esfregando as mos suplicantes uma na outra; a ento implora do outrolado. As voltas do servente e a perseguio saltitante do auxiliar se repetem vrias vezes. Finalmenteo servente se sente bloqueado por todos os lados e observa o que poderia ter feito desde o inciose fosse um pouco menos simplrio que vai ficar fatigado antes que o ajudante. Conseqentementebusca auxlio de fora; ameaa o jovem com o dedo e aponta para Blumfeld, para o qual ir se queixarse o outro no o deixar em paz. O ajudante reconhece que agora, se quiser ficar com a vassoura, temde se apressar bastante, por isso faz meno de agarr-la atrevidamente. Um grito involuntrio dooutro aprendiz anuncia a proximidade de uma deciso. Na verdade o servente ainda consegue pr asalvo, desta vez, a vassoura, dando um passo para trs e arrastando-a consigo. Agora porm oajudante no cede mais; com a boca aberta e os olhos lanando chispas, salta para a frente; oservente quer fugir, mas suas velhas pernas tremem ao invs de correr; o ajudante disputa a vassourae, apesar de no se apoderar dela, consegue alcan-la de modo a faz-la cair: com isso ela estperdida para o servente. Ao que parece, tambm para o ajudante, pois a vassoura, ao cair no cho,paralisa os trs, os ajudantes e o servente, j que agora tudo ser descoberto por Blumfeld. Comefeito, este levanta os olhos para sua janelinha, como se apenas naquele instante tivesse seapercebido dos acontecimentos; com severidade, inquiridor, fixa a vista em cada um deles; tambm avassoura cada no cho no escapa ao seu olhar. Seja porque o silncio dura demais, seja porque oajudante culpado no pode reprimir sua nsia de varrer, o certo que este curva o corpo, sem dvidacom muita cautela, apanha a vassoura, como se devesse pr a mo sobre um animal e no sobre ela,pega a vassoura, passa-a sobre o solo, mas de repente a atira fora, sobressaltado, quando Blumfeldse levanta com um pulo e sai do seu posto no escritrio.

    Os dois para o trabalho! E sem mais um pio! brada Blumfeld apontando com o braoestendido, aos auxiliares, o caminho para suas carteiras.

    Eles obedecem logo, mas no, entretanto, envergonhados e de cabea baixa; ao contrrio, giramrgidos quando passam por Blumfeld e o fitam firme nos olhos, como se desse modo quisessemdemov-lo de bater neles. Certamente esto sabendo, por experincia suficiente, que Blumfeld porprincpio nunca bate. Mas so excessivamente medrosos e sempre sem o menor tato procuram fazervaler seus direitos reais ou aparentes.

  • A PONTE

    Eu estava rgido e frio, era uma ponte, estendido sobre um abismo. As pontas dos ps cravadasdeste lado, do outro as mos, eu me prendia firme com os dentes na argila quebradia. As abas domeu casaco flutuavam pelos meus lados. Na profundeza fazia rudo o gelado riacho de trutas. Nenhumturista se perdia naquela altura intransitvel, a ponte ainda no estava assinalada nos mapas. Assim eu estava estendido e esperava; tinha de esperar. Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixarde ser ponte sem desabar.

    Certa vez, era pelo anoitecer o primeiro, o milsimo, no sei , meus pensamentos se moviamsempre em confuso e sempre em crculo. Pelo anoitecer no vero, o riacho sussurrava mais escuro foi ento que ouvi o passo de um homem! Vinha em direo a mim, a mim. Estenda-se, ponte,fique em posio, viga sem corrimo, segure aquele que lhe foi confiado. Compense, sem deixarvestgio, a insegurana do seu passo, mas, se ele oscilar, faa-se conhecer e como um deus damontanha atire-o terra firme.

    Ele veio; com a ponta de ferro da bengala deu umas batidas em mim, depois levantou com ela asabas do meu casaco e as ps em ordem em cima de mim. Passou a ponta por meu cabelo cerrado eprovavelmente olhando com ferocidade em torno deixou-a ficar ali longo tempo. Mas depois euestava justamente seguindo-o em sonho por montanha e vale ele saltou com os dois ps sobre omeio do meu corpo. Estremeci numa dor atroz, sem compreender nada. Quem era? Uma criana? Umsonho? Um salteador de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E virei-me para v-lo. Uma ponte que d voltas! Eu ainda no tinha me virado e j estava caindo, desabei, j estavarasgado e trespassado pelos cascalhos afiados, que sempre me haviam fitado to pacificamente dagua enfurecida.

  • O CAADOR GRACO

    Dois meninos estavam sentados na amurada do cais jogando dados. Um homem lia um jornal naescadaria de um monumento, sombra do heri que brandia o sabre. Uma jovem enchia o balde degua na fonte. Um vendedor de frutas estava estendido ao lado de sua mercadoria e olhava para omar. No fundo de uma taverna viam-se dois homens tomando vinho, atravs dos buracos vazios daporta e da janela. O taverneiro estava sentado a uma mesa adiante e cochilava. Uma barca balanavasuavemente, como se fosse levada sobre as guas ao pequeno porto. Um homem de bluso azul saltoupara a terra e puxou o cabo pelas argolas. Outros dois homens de casacos escuros com botes deprata transportavam atrs do barqueiro um esquife sobre o qual era evidente que jazia um serhumano, debaixo de um grande tecido de seda estampado de flores e provido de franjas.

    No cais ningum prestou ateno nos recm-chegados, mesmo quando eles depositaram o atadepara aguardar o barqueiro, que ainda manipulava os cabos; ningum se aproximou, ningumperguntou nada a eles, ningum os olhou mais detidamente.

    O barqueiro foi retardado mais um pouco por uma mulher que, com uma criana ao colo, cabelosdesfeitos, apareceu naquele momento no molhe. A o barqueiro veio, apontou para uma casaamarelada, de dois andares, que se erguia retilnea, esquerda, perto da gua; os carregadoreslevantaram a carga e a transportaram pelo porto baixo, mas feito de colunas esguias. Um rapazinhoabriu uma janela, conseguiu ainda ver como o grupo desaparecia na casa, e voltou a fechar rpido ajanela. Em seguida, o porto tambm foi fechado; era de carvalho escuro cuidadosamente entalhado.Um bando de pombas, que at aquele instante havia voado em volta da torre do relgio, baixou entoat a praa diante da casa. Como se sua comida fosse conservada na casa, as pombas se reuniramfrente porta. Uma delas voou at o primeiro andar e bicou o vidro da janela. Eram aves de coresclaras, bem tratadas, vivazes. Da barca, com um grande mpeto, a mulher atirou gros para elas, queos recolheram e depois voaram na sua direo.

    Um homem de cartola e tarja de luto desceu por uma das ruazinhas estreitas, fortemente inclinadas,que davam para o porto. Olhou em torno com ateno; tudo o preocupava; a viso de sujeira numcanto o fez contorcer o rosto. Nos degraus do monumento havia cascas de fruta; ao passar por elasatirou-as para baixo com a bengala. Ao chegar taverna, bateu na porta; ao mesmo tempo tirou a

  • cartola com a mo direita, coberta por uma luva preta. Abriram logo, e pelo menos cinqentameninos formaram alas no longo corredor, inclinando-se em sinal de reverncia.

    O barqueiro desceu a escada, saudou o senhor, levou-o para cima; no primeiro andar deu com eleuma volta no ptio circundado por prticos graciosos, de construo leve, e os dois entraram enquanto os rapazes, em respeitosa distncia, se apinhavam num espao frio, grande, no ladoposterior da casa, diante da qual j no havia construo alguma; apenas uma falsia nua, cinza-escura, podia ser avistada. Os transportadores estavam ocupados em pr em p e acender, nacabeceira do esquife, algumas velas compridas, mas com isso no se fez luz; a nica coisa que seconseguiu foi que as sombras, que antes estavam quietas, ficassem agitadas, bruxuleando sobre asparedes. O pano havia sido retirado da essa. Ali jazia um homem de cabelo e barba selvagementerevoltos, pele bronzeada, semelhante talvez a um caador. Estava imvel, aparentemente semrespirar, de olhos cerrados, embora s o meio ambiente desse a entender que talvez fosse um morto.

    O senhor aproximou-se do palanquim, colocou uma mo sobre a testa daquele que jazia ali,ajoelhou-se e rezou. O barqueiro fez um aceno para os transportadores deixarem o lugar; eles saram,af