KAMEL, Ali - Não somos racistas
Transcript of KAMEL, Ali - Não somos racistas
"Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos brasileiros
que levaram a sério os que propõem a política de cotas raciais e aqueles que
formulam as políticas sociais do governo. Oque aqui se discute não diz res
peito apenas à universidade pública ou aos que recebem os benefícios so
ciais. O que está em pauta é a nossa concepção de nação, o nosso destino
como país e o nosso futuro. Os textos de Ali Kamel têm sido fonte riquíssi
ma de informação e de discussão para pesquisadores pelo país afora. Os
artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas e a de
sarmar as armadilhas do óbvio, de discursos que têm pretendido se impor
como discursos de verdade. Eu, particularmente, me encanto com seu esti
lo direto e elegante de tratar essas questões e, mais ainda, com o encontro
com esse independente, iconoclasta e ousado crítico da política brasileira."
YVONNE MAGGIE
- .• •
-EDITORANOVA
FRONTEIRA
SEMPREUM BOM
LIVRO •- EDITORANOVA
FRONTEIRA
Não somos racistas é um livro nasci
do do espanto. Movido pelo instinto de
repórter, Ali Kamel, diretor de jornalis
mo da Rede Globo, começou a perce
ber que os diversos projetas instituin·
do cotas raciais, em tramitação no
Congresso, dividem o Brasil em duas
cores, eliminando todas as nuances
características da nossa miscigena
ção. Ali Kamel constata que, nesta di
visão entre brancos e não-brancos,
os "não-brancos" são considerados
todos negros: "Certo dia, caiu a ficha:
para as estatísticas, negros eram to
dos aqueles que não eram brancos.
Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo,
escurinho, moreno, marrom-bom
bom? Nada disso, agora ou eram
brancos ou eram negros. [ ... ) Pior:
uma nação de brancos e negros onde
os brancos oprimem os negros. Outro
susto: aqLlele país não era o meu."
A tentativa de entender e reconhecer
este novo país fez com que o jornalis
ta, ex-aluno do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da UFRJ, revisse anti·
gas leituras e pesquisasse documen
tos, livros e teses. Oprimeiro capítulo
de Não somos racistas mostra como a
política de cotas começou a ser cons
truída no governo Fernando Henrique
Cardoso em grande sintonia com o
que pensava, nos anos de 1950, o en
tão jovem sociólogo Fernando Henri·
que Cardoso.
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UMA REAÇÃO AOS QUE QUEREM NOS TRANSFORMAR NUMA NACÃO BICOLORjc
3" impressão
~EDITORANOVA
FRONTEIRA
© by Ali Kamel
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Cip-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Para Patrícia, Alice e Sofia
K23n Kamel, AliNão somos racistas : uma reação aos
que querem nos transformar numa naçãobicolor / Ali Kamel - Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2006
ISBN 85-209-1923-5
1. Brasil - Relações raciais. 2. Discriminação - Brasil. 3. Racismo - Brasil. I.Título.
COD 305.8CDU 316.356.4
Prefácio
Agradecimentos
A gênese contemporânea da nação bicolor
Raças não existem
Sumiram com os pardos
O que os números não dizem
Negros e brancos no mercado de trabalho
Alhos e bugalhos
As cotas no mundo
Estatuto das raças
"Classismo"t o preconceito contra os pobres
Pobres e famintos
O dinheiro que não vai para os pobres
Educação, a única solução
Há solução
SUMÁRIO
9
15
17
43
49
59
73
81
89
97
101
105
115
129
139
PREFÁCIO
Yvonne Maggíe
ERA UM.-\ SEXTA-FEIRA, FI1\Al DE TARDE QUE\TE DE MARÇO DE 2004. ESTAVA
descendo as escadarias do Instituto de Filosofia e Ciências So
ciais (IFCS) da UFRJ, onde sou professora há mais dt.' trinta anos,
quando vi um cartaz anunciando um debate sobre o projeto de
reforma universitária com a presença do reitor Aloísio Teixeira e
de Ali Kamel, entre outros convidados. Resolvi assistir ao evento.
O salão nobre estava lotado de uma platéia colorida com algumas
lideranças de movimentos negros e estudantes de história, filosofia
e ciências sociais. Apesar de anunciarem um debate sobre a refor
ma universitária, os estudantes disseram que iriam discutir as cotas
raciais. Fiquei surpresa. Entre os temas discutidos peios estudantes
universitários o racismo não costumava ser ponto de pauta.
Ali Kamel foi o primeiro a falar, criticando vivamente a política
de cotas. O ;ornalista, que é também cientista social e ex-aluno do
IFCS, expãs o seu ponto de vista de um modo muito singular. Não
negava o racismo que, em suas palavras, é um mal que atinge a
humanidade, mas sustentava que aqui o racismo não é estrutural
e o "classismo" é O mal maior.
O debate no IFeS foi tão emocional como todos os que se se
guiram com diferentes personagens e em diferentes cenários. Sua
estrutura, quase ritual, em forma de drama social, mudou pouco
nesses últimos anos. Posições contra e a favor das cotas na mesa e,
10 NÃO SOMOS RACISTAS PREFÁCIO 11
quem "preto" e "negro" eram, até pouco tempo, sinônimos. En
tre os 56,8 milhões de pobres, as estatísticas div'Ulgadas pelos que
apóiam as cotas raciais falam em 65,8% de negros e não 7,1% de
pretos. Omite-se que os autodeclarados brancos são efetivamente
34,2% entre os pobres, e os autodeclarados pardos, 58,7%. Por
tanto, diz Ali Kamel, "se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa
cor é parda". Esta "descoberta", publicada no Globo pela primeira
vez em 2003, foi a primeira de uma série que permitiu colocar em
xeque um discurso que tentava se impor como verdade para toda
a sociedade, o discurso que visava a construir a nação dividida em
brancos e negros.
No terceiro e quarto capítulos, chama a atenção para as dificul- ~dades de concluir, com os dados apresentados, que é o racismo que ~ Iproduz as desigualdades entre brancos e negros (pretos e pardos nas .4 festatísticas oficiais). Outros pesquisadores já haviam apontado essa ~~inconsistência, mas à boca pequena, intramuros r no ambiente aca- ~ 1"dêmico. Diz mais: mesmo se descrevermos o país, conceitualmente '-.:3 ~dividido entre negros e brancos, esses resultados não nos autorizam ~a afirmar que tais desigualdades se devem ao racismo dos brancos, jf 1-como afirmam os defensores da política de cotas. I
Mas os modelos estatísticos divulgados pela imprensa não são o
único alvo de Ali Kamel que se insurge, no capítulo sete, contra
o Estatuto da Igualdade Racial para mostrar que este documento
é prova irrefutável de que há quem queira ver o país cindido ra
cialmente. O documento, diz ele, é uma prova de que "querem
nos uma nação bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos
oprimindo os negros". A solução dada por estes que vêem assim o
nosso país nesse documento é investir aâ mH/seam em cotas raciais
de todos os tipos. Será esse o Brasil que queremos?, pergunta ele.
Ali Kamel formula então uma outra e muito mais ousada hipó
tese. E se o problema for a pobreza e não o racismo? Os capítulos
oito e nove respondem a esta pergunta afirmando que as desigual
dades no Brasil não podem ser explicadas pelo racismo porque o
na platéia, um grupo ruidoso que clama pelas cotas raciais e acusa
de racistas os que criticam a política.
Acusados de defender os privilégios de uma elite branca que
se beneficiou e se beneficia com o racismo, o que na nossa so
ciedade é crime que envergonha, os críticos da política de cotas
raciais ficam acuados. Se isso ocorre com aqueles que estão no
meio acadêmico ou em ambientes menos formais, mais ainda com
Ali Kamel que, além de cientista social e jornalista, é também um
importante executivo de jornalismo das Organizações Globo. Exe
cutivos de grandes redes, usualmente, não manifestam suas posi
ções pessoais sobre temas nacionais. Por isso, sua participação no
debate público é tão importante para demonstrar que as empresas
da mídia são instituições formadas por alguns indivíduos que têm
opiniões próprias, uma outra batalha que Ali Kamel vem travando
com muitas patrulhas de plantão.
Logo no início deste livro, cuja base são os artigos que Ali Ka
mel vem publicando no jornal O Globo, há um capítulo sobre
"raça". "Raças não existemN, diz o autor. Ressuscitar esse conceito
já negado pela ciência seria uma armadilha para o país. Ali Kamel
enfrenta sem medo os números que, em geral, levaram muitas
pessoas a se envergonhar do "nosso racismo". Pergunta ainda o
propósito de unir "pretos" e "pardosN em uma única categoria,
a categoria "negro", e vê aí o desejo dos movimentos negros que
querem o país dividido em brancos e negros, idéia essa que de
senvolve no segundo capítulo. "Sumiram com os pardos N revela
o "truque" que é usado para descrever o país dividido. Os movi-
\
mentos negros e também os cientistas sociais que se colocaram
a favor da política de cotas chamam de "negros" o conjunto de
"pretos" e "pardos" conforme as estatísticas oficiais. Assim] em vez
de uma população de 5,9% de pretos, as estatísticas divulgadas em
prol da política de cotas falam em 48% de "negrosN
• Os 42% de
autodeclarados pardos não aparecem. Essa démarche metodológica
é explicada em pé de página e confunde a maioria das pessoas para
1]
12 NÃO SOMOS RACISTAS
que coloca pretos, pardos e brancos pobres em desvantagem é a
própria pobreza.
Depois de ter debatido com os movimentos negros e os for
muladores da política de cotas, e acreditando que era preciso in
vestir em programas sociais consistentes, Ali Kamel dirigiu seu
olhar crítico para a questão das políticas de transferência de ren
da. Com a mesma paciência e metódico procedimento socioló
gico com que decifrou os números das desigualdades "raciais",
discutiu as estatísticas divulgadas pelo governo, mostrando que
o combate à pobreza está errando a pontaria e que os mais pobres
não estão realmente sendo atendidos. A argumentação que ele
expôs por meses nos artigos quinzenais do Globo está na segunda
parte do livro e cumpre assim a difícil tarefa de discutir políticas
públicas com instrumental sociológico, usando uma linguagem
que pode ser entendida por pessoas não familiarizadas com o
jargão acadêmico.
O último capítulo, antes da conclusão, é uma resposta à pergun
ta que não quer calar sempre que se criticam as políticas públicas.
O que fázer? Ali Kamel sugere uma saída que mesmo parecendo
simples não está sendo tomada como prioridade: investimento
macico na educacão básica. Os' vultosos recursos utilizados em, ,
programas sociais deveriam ser dirigidos para as escolas. Em boa
hora, cita Sergio Costa Ribeiro, que também criticou vivamente a
política educacional que se estabeleceu como consenso entre edu
cadores e formuladores de política de todas as correntes e partidos,
de todas as ideologias e seitas desde os anos 1930. Costa Ribeiro
conseguiu também desfazer discursos de verdade e fez o Brasil des
cobrir que as crianças e jovens não saíam da escola precocemente
para trabalhar. Saíam da escola depois de muitos anos passados
nela sem serem promovidos e sem direito a diplomas. Fez isso
olhando e decifrando números para descobrir que havia na pri
meira série do ensino fundamental, no início dos anos 1980, qua
tro vezes mais crianças de sete anos do que esta coorte de idade no
PREFÁCIO 13
Brasil. Graças a esta descoberta, as políticas educacionais puderam
ser redefinidas em meados dos anos 1990. Hoje. portanto, há mais
esperança do que naqueles anos 1980.
Sergio Costa Ribeiro demonstrou para os brasileiros que não
se devem temer patrulhas ideológicas quando se trata de ques
tões que afetam o país de forma tão centraL Mas, com a aceitação
das suas hipóteses, que também pareceram ousadas na época em
que foram formuladas, acabou provando que água mole em pedra
dura tanto bate até que fura. Ali Kamel vai pelo mesmo caminho.
Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos
brasileiros que levaram a sério os que propõem a política de cotas
raciais e aqueles que formulam as políticas sociais do governo. O
que aqui se discute não diz respeito apenas à universidade pública
ou aos que recebem os benefícios sociais. O que está em pauta é
a nossa concepção de nação, o nosso destino como pais e o nos
so futuro. Os textos de Ali Kamel têm sido fonte riquíssima de
informação e de discussão para pesquisadores pelo país afora. Os
artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas
e a desarmar as armadilhas do óbvio, de discursos que têm preten
dido se impor como discursos de verdade. Eu, particularmente, me
encanto com seu estilo direto e elegante de tratar essas questões e,
mais ainda, com o encontro com esse independente, iconoclasta e
ousado crítico da política brasileira.
Rio de Janeiro, 16 de abril de 2006
AGRADECIMENTOS
FAZER UM LIVRO COMO ESTE REQUER ii AJUDA DE MUlTAS PESSOAS E, NESSE
momento, quero agradecer a todas. A primeira delas é minha
mulher, Patrícia Kogut, sempre a primeira a ler meus artigos e a
comentá-los, melhorando-os com seus comentários inteligentes e
bem-humorados.
Não posso deixar também de agradecer a um grupo de cientis
tas sociais que, mesmo divergindo de mim em muitos aspectos,
ajudaram-me, lendo os originais e fazendo críticas preciosas.
Ao longo de muitos anos, sempre encontrei em José Roberto
Pinto de Góes a figura de um amigo e de um irmão. Mais recente
mente) tive dele também o olhar do historiador brilhante, que me
pôs no rumo certo sempre que eu me desviava dele. Se não obteve
êxito sempre, a culpa não é dele, mas de minha teimosia.
Yvonne Maggie, uma das antropólogas de maior brilho em nos
so país, brindou-me com a sua amizade e com uma troca de emails que alimentou meu gosto pela discussão: sei que ela guarda
reservas em relação a posições minhas, mas sei ainda com mais
certeza que isso não a afasta um milímetro sequer da disposição
de ouvir e ponderar.
A Peter Fry, eu agradeço pela leitura de seus livros e de seus arti
gos, que me levaram por caminhos que eu gostei de trilhar, apesar
de ele me mostrar, muitas vezes, que o caminho que trilhei era um
atalho que ele não percorreria.
16 NÃO SOMOS RACISTAS
Numa página de agradecimentos, não posso deixar de mencio
nar o IBGE: num país como o nosso, a existência de uma insti
tuição assim, tão permanentemente excelente ao longo dos anos,
é simplesmente um bálsamo. Quando se tem noção dos apertos
financeiros do instituto, a dedicação e a competência de seus pes
quisadores se sobressaem ainda mais. Minhas reflexões sobre o
terna só são possíveis graças ao trabalho deles, graças a publica
ções que se mantêm, como rotina, em tempos bons ou em tempos
maus. Meu acesso a esses trabalhos, e o de toda a imprensa, é sem
pre aberto pela generosidade e paciência de Luiz Mario Gazzaneo,
Silvia Maia e Maria Lea.
Por fim, é importante mencionar que eu não teria tido minha
atenção disciplinadamente voltada para os temas deste livro não
fossem as colunas que passei a escrever no jornal O Globo, quin
zenalmente, a partir de 2003. Da mesma forma, meu trabalho co
tidiano na TV Globo, que me põe minuto a minuto frente ao que
se passa no Brasil e no mundo, dá a mim uma posição confortável
de observador (se faço bom uso disso, o leitor julgará). Assim, não
posso deixar de agradecer, pelo estímulo e pela paciência, a meus
colegas de jornal e de T\~ todos eles, mas especialmente a Aluizio
Maranhão, Carlos Henrique Schroder, Merval Pereira e Rodolfo
Fernandes. Terezoca, que poucos chamam de Maria Theresa Pi
nheiro, tem um papel importante nisso tudo: é o meu "grilo fa
lante" particular, sempre disposta a dizer o que pensa, sem medo
de me contrariar (ao contrário, com certo gosto).
João Roberto Marinho tem sido sempre um incentivador, e sou
grato a ele, de coração, pelas oportunidades que tive. A sorte dos
leitores, e espectadores, é que a crença que ele e seus irmãos Ro
berto Irineu e José Roberto Marinho têm na pluralidade de idéias
faz com que O Globo e a TV Globo abram igualmente espaços para
colegas que pensam o oposto de mim.
Essa é a beleza de uma imprensa livre.
A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR
FOI UM MOVIMENTO LENTO. SURGIU NA ACADEMIA, Ei\TRE ALGUNS SOCIÓLOGOS
na década de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo até se tornar
política oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalístico
diário, quando me dei conta do fenômeno levei um susto. Mais
urna vez tive a prova de que os grandes estragos começam assim:
no início, não se dá atenção, acreditando-se que as convicções em
contrário são tão grandes e arraigadas que o mal não progredirá.
Quando acordamos, leva-se o susto. Eu levei. E, imagino, muitos
brasileiros devem também ter se assustado: quer dizer então que
somos um povo racista?
Minha reação instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, pu
bliquei no Globo um artigo cujo título dizia tudo: "Não somos racis
tas." Depois dele, publiquei outros tantos e, hoje, vendo-os no con
junto, tenho a consciência de que fui me dando conta do estrago
à medida que ia escrevendo. Escrevi sempre na perspectiva de um
jornalista, de alguém especializado em ver o imediato das coisas.
Outros lutaram em seus campos, sempre com muita propriedade.
Gente como os historiadores José Roberto Pinto de Góes, Manolo
Florentino, José Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antropólo
gos Yvonne Maggie, Peter Fry e os sociólogos Marcos Chor Maio, Ri
cardo Ventura e Demétrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre
tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para o perigo
nos jornais, em artigos especializados, em seminários e em livros.
18 NÃO SOMOS RACISTAS
Na perspectiva de jornalista, de alguém mais próximo do ci
dadão comum, espantei-me diante de algumas descobertas. Um
exemplo, o conceito de negro. Para mim, para o senso comum,
para as pessoas que andam pelas ruas, negro era um sinónimo de
preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia contra urna leitura
equivocada das estatísticas oficiais acreditando nisso. Certo dia,
caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles que
não eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escuri
nho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram bran
cos ou eram negros. De repente, nós que éramos orgulhosos da
nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fo
mos reduzidos a uma nação de brancos e negros. Pior: urna nação
de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro
susto: aquele país não era o meu.
O debate em torno de raças no Brasil sempre foi intenso. Dei
xando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, o
século XX foi todo ele permeado por essa discussão. Nas primeiras
décadas do século passado, o pensamento majoritário nas ciências
sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da
miscigenação. O racismo era decorrente justamente dessa consta
tação: para que o país progredisse, diziam os sociólogos, era pre
ciso que se embranquecesse, diminuindo a porção negra de nosso
povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se contrapor
a um pensamento tão abjeto corno este.
Freyre não foi o autor do conceito de "democracia racial", não
foi ele quem cunhou o termo, hoje tão combatido. Aliás, era aves
so a tal conceito, porque o que ele via corno realidade era a mesti
çagem e não o convívio sem conflito entre raças estanques. Usou
em discursos a expressão urna ou duas vezes, a partir da década de
1960, mas sempre como sinónimo de um modelo em que a mis
cigenação prevalece. Jamais edulcorou a escravidão. Casa grande e
senzala, a obra-prima de Freyre, dedica páginas e mais páginas ao
relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Está tudo
A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 19
ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho desu
mano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, vio
ladas na crença de que o estupro curaria a sífilis, as mucamas que
tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por desper
tar os ciúmes das senhoras de engenho. Freyre não omite nada;
expõe. É claro que também reconhece no branco português uma
elasticidade, sem o que não poderia ter havido mistura. Éclaro que
descreve certo congraçamento entre o elemento branco e o negro.
Essas características de Casa grande e senzala, no entanto, foram tão
realçadas com o decorrer do tempo que muitos hoje acreditam,
erradamente, que Freyre escondeu os horrores da escravidão para
fazer do Brasil mais do que urna democracia racial, um paraíso.
O papel de Freyre, porém, foi outro, muito mais marcante. No
debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez
foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa
identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso
jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro,
dando a ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa mis
cigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga,
mas a nossa principal virtude. Hoje, quando vejo o Movimento
Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o corno a um inimi
go, fico tonto. Os ataques só podem ser decorrentes de uma leitura
apressada, se é que decorrem mesmo de uma leitura.
Corno bem tem mostrado a antropóloga Yvonne Maggie, a visão
de Freyre coincidiu com o ideal de nação expresso pelo movimen
to modernista, que via na nossa mestiçagem a nossa virtude. Num
certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural só poderia ser mes
mo uma prática de uma nação que é em si uma mistura de gentes
diversas. Esse ideal de nação saiu-se vitorioso e se consolidou em
nosso imaginário. Gostávamos de nos ver assim, miscigenados.
Gostávamos de não nos reconhecer como racistas. Como diz Peter
Fry, a "democracia racial", longe de ser uma realidade, era um alvo
a ser buscado permanentemente. Um ideal, portanto.
20 NÃO SOMOS RACISTAS
Isso jamais implicou deixar de admitir que aqui no Brasil existia
o racismo. É evidente que ele ex:istia e existe, porque onde há ho
mens reunidos há também todos os sentimentos, os piores inclu
sive. Mas a nação não somente não se queria assim como sempre
condenou o racismo. Aqui, após a Abolição, nunca houve barrei
ras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia. E para com
bater as manifestações concretas do racismo - inevitáveis quando
se fala de seres humanos - criaram-se leis rigorosas para punir os
infratores, sendo a Lei Afonso Arinos apenas a mais famosa delas.
Mas a partir da década de 1950, certa sociologia foi abando
nando esse tipo de raciodnio para começar a dividir o Brasil
entre brancos e não-brancos, um pulo para chegar aos que hoje
dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro
é todo aquele que não é branco. Nos trabalhos de Florestan
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e, mais
adiante, Carlos Hasenbalg, se a idéia era "fazer ciência", o resulta
do sempre foi uma ciência engajada, a favor de negros explorados
contra brancos racistas. A idéia que jazia por trás era que a imagem
que tínhamos de nós mesmos acabava por ser maléfica, perversa
com os negros. Era como se o ideal de nação a que me referi tivesse
como objetivo o seu contrário: idealizar uma nação sem racismo
para melhor exercer o racismo. O papel da ciência, "para o bem
dos negros", seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e
substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocínio levava,
porém, ao paroxismo de permitir a suposição de que um racismo
explícito é melhor do que um racismo envergonhado, esquecen
do-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo,
muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor.
A chave metodológica encontrada por essa certa sociologia foi
importar dos Estados Unidos uma terminologia que não era a nos
sa, revestindo-a de uma nova roupagem. Na construção de Oracy
Nogueira, aqui como lá, seríamos negros e brancos, mas lá o racis
mo seria de origem (demarcado pela ascendência) e aqui, de marca
A GÊNESE CQNTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 21
(determinado pela aparência). Lá, se um cidadão de pele branca e
olhos e cabelos claros tiver um negro como antepassado, distante
que seja, toda a carga de preconceitos e interdiçôes contra os ne
gros em geral recairá sobre ele. Aqui, mais valeria a aparência do
que a origem: um cidadão de pele, olhos e cabelos claros, mesmo
tendo negros na família, será mais bem aceito que os negros em
geral - mas, na visão de Oracy, apenas até que ocorra uma briga]
quando, então, o primeiro xingamento a surgir na cabeça do bran
co será chamar o negro de il seu negro isso; seu negro aquilo".
Oracy relaciona toda uma série de atributos relacionados ao
preconceito de origem e ao de marca. Onde há preconceito de ori
gem, diz ele, o negro é excluído de certos direitos, segregado, nao
pode ter relações de amizade com brancos, e, como conseqüência,
é muito mais consciente do preconceito que recai sobre si e, pOI
isso, mais propenso a lutar corno grupo pelo fim de injustiças.
Onde o preconceito é de marca, explica Oracy; o negro é malS pre
terido do que excluído (mas pode inclusive vir a ser aceito como
um igual, como exceção), é assimilado (e, nesse sentido, tenderia
a desaparecer, pela miscigenação, o que, na visao dos brancos e
sempre segundo Oracy, seria um resultado altamente esperado"
pode cruzar as fronteiras da cor no estabelecimento de relações
de amizade, e, como conseqüência, é menos consciente do pre
conceito que sofre e, por isso, menos disposto a lutar como grupo
pelos seus direitos. Muito inteligente essa distinção entre marca
e origem, mas, na verdade, entendo que, diante de duas realida
des absolutamente distintas - a situação do negro nos EUA e no
Brasil - o que essa construçã.o teórica de Oracy faz é torná-Ias
parecidas, semelhantes.
Em vez de ver as nossas especificidades e, diante delas, opor-nos
frontalmente à situação americana, Oracy acaba por nos igualar,
tornando-nos, como sociedade, tão racistas quanto os americanos.
Ao reconhecer que no Brasil as relações de amizade inter-raciais,
os casamentos mistos, a inexistência de barreiras institucionais
22 NÃO SOMOS RACISTAS
contra os negros, a ausência de conflito e de consciência de raça
são uma realidade entre nós, Oracy poderia simplesmente chegar
à conclusão de que não somos uma sociedade em que o racismo
é o traço dominante. Mas ele prefere se apegar às manifestações
concretas de racismo que aqui existem - xingar o negro disso e
daquilo, preterir o negro em favor do branco etc. - e dizer que
elas são a regra, quando na verdade são, se não a exceção, mani
festações minoritárias em nosso modo de viver.
O racismo, lá e aqui, é sempre de origem. Lá, um sujeito de pele
e olhos claros será considerado negro apenas e se a sua ascendên
cia for conhecida, já que os americanos ainda não têm o dom da
vidência: se esconder a sua origem, passará incólume. Quem du
vidar deve ler o romance A marca humana, de Philip Roth, em que
um homem, filho de negros, nasce com pele e olhos claros, decide
renegar a família e vive em paz como judeu até ser, injustamen
te, acusado de racismo por uma aluna negra. Um homem branco
aqui, mas de família negra, não sofrerá as agruras do racismo ape
nas se as suas origens não forem descobertas por um racista. Se
forem, sofrerá.
O que quero dizer é que racistas são iguais, aqui ou lá fora. Im
põem um sofrimento terrível. É evidente que nos EUA o racismo é
rotineiramente mais duro, mais explícito, mais direto. Mas como
saber se o xingamento aberto dói mais ou menos do que o des
prezo velado? Não tenho dúvidas de que um arranhão dói menos
do que uma amputação, mas quem poderá dizer se o sofrimento
na alma que o racismo impõe é maior ou menor dependendo da
rispidez do ato racista? Não nego que lá o repúdio é total a tudo
o que vem dos negros; aqui, quase todos, mesmo os racistas, en
cantam-se com o que se considera ter vindo da África. Mas a nossa
principal diferença em relação aos americanos não é apenas por
que aqui, quando existe, o racismo se revela de maneira menos
óbvia. A nossa diferença é que aque não há como negar, há um
menor número dessa gente odiosa, os racistas.
A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 23
Não me agrada, portanto, essa diferença entre racismo de origem
e racismo de marca, por mais engenhosa que ela seja. Sei que estou
na contramão das interpretações sobre a obra de Oracy, aplaudi
do por nos reconhecer como diferentes. Mas é o que eu digo: ele
não faz isso com o propósito de nos diferenciar, mas de explicar
que, apesar das diferenças, somos iguais. Apesar de aparentemente
diferentes, brasileiros e americanos são igualmente racistas. Tive
pela primeira vez essa visão da obra de Oracy quando, num de
bate no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, diante de toda a minha argumentação
sobre como éramos uma sociedade essencialmente diferente no
tocante ao racismo - mais tolerante, buscando, ao menos como
propósito, a prevalência da crença de que as cores não tornam
ninguém melhor ou pior - o sociólogo Carlos Alberto Medeiros,
com ar de enfado, aparteou-me dizendo: "Oracy Nogueira já ex
plicou tudo isso. Aqui o preconceito é de marca; lá, é de origem."
E, depois de explicar didaticamente uma coisa e outra, concluiu
dizendo que aqui e lá somos racistas. Foi a primeira vez que, para
mim, ficou claro que a obra de Oracy, inteligente e instigante, na
verdade faz o que eu sublinho: iguala-nos em vez de nos diferen
ciar. E o Movimento Negro deu o salto: "Ora, se lá e cá, apesar das
diferenças, somos igualmente racistas, por que não aplicar aqui o
remédio de lá, como cotas raciais?" E deu-se a importação acrítica
de uma solução americana para um problema americano. Hoje,
nós, brasileiros, estamos tendo que nos haver com ela, apesar de
nossas diferenças abissais.
Não; nossa especificidade não é o racismo. O que nos faz diferen
tes é que aqui, indubitavelmente, há menos racismo e, quando há,
ele é envergonhado, porque tem consciência de que a sociedade
de modo geral condena a prática como odiosa. Isso é um ativo de
que não podemos abrir mão. O que a sociologia que dividiu o Bra
sil entre negros e brancos não percebe é que} ao fazer isso, chan
celou a construção racista americana segundo a qual todo mundo
24 NÃO SOMOS RACISTAS
que não é branco é negro. É usar de uma metodologia racista para
analisar o racismo.
O trágico é que essa sociologia ganhou espaços, cresceu e, como
disse há pouco, foi totalmente acolhida pelo Movimento Negro
já no final dos anos 1970. Hoje em dia, ganhou ares de verdade
oficial. Quando me dei conta, o governo Fernando Henrique, com
as melhores intenções, já tinha avançado em nossa remodelagem
como uma nação bicolor, de negros e brancos, em que os últimos
oprimem os primeiros. É engraçado relembrar um episódio famo
so ocorrido em 1994, no início da campanha eleitoral. Em respos
ta a Orestes Quércia, seu oponente, que o acusara de ter as "mãos
brancas", um eufemismo para acusá-lo de nunca ter pego no tra
balho pesado, o então candidato Fernando Henrique declarou: "O
candidato disse que eu tinha as mãos brancas. Eu, não. Minhas
mãos são mulatinhas. Eu sempre brinquei comigo mesmo, tenho
o pé na cozinha. Eu nunca disse outra coisa, eu não tenho precon
ceito." A ironia é que, com essa declaração, Fernando Henrique,
para si próprio um branco, parecia discordar de Oracy Nogueira e
demonstrar, que, no Brasil, é a origem e não a marca que define
a "raça". Ao contrário de gerar solidariedade de "raça", a declara
ção de Fernando Henrique caiu como uma bomba no Movimento
Negro, que ameaçou processá-lo por considerar os termos em que
se expressouUpejorativos" e "preconceituosos". "Só se ele é filho
de mula. Mulatinho é o cruzamento com mula, não com negro",
chegou a declarar Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra.
Talvez tanto quanto os seus livros específicos sobre cor e raça, os
seus discursos no governo são um bom caminho para que enten
damos o que estava na cabeça do politico que iniciou a moldagem
institucional de um país bicolor. Em 2000, por exemploJ FH vol
taria a falar de sua cor, ressaltando as suas origens. Na recepção ao
presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, ele disse: "Basta olhar
para mim para ver que branco no Brasil é um conceito relativo."
Naquele mesmo discurso, porémJ FH ressaltou que o Brasil tinha
A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 25
uma vantagem em relação a outros países: "Nós, os brasileiros,
gostamos de ser misturados." Apesar desse reconhecimento, e fiel
à tradição sociológica que dá forma à construção teórica da nação
bicolor, da qual é fundador, ele salientou que os estudos no Brasil
mostrariam que as desigualdades sociais não têm uma explicação
apenas na pobreza, mas têm um fundamento racial. Para FH, a
conseqüência, portanto, seria a necessidade de avançar, cada vez
mais, em políticas que garantissem a inclusão da população negra.
Um ano mais tarde, durante uma cerimônia sobre direitos huma
nos, o presidente explicaria ainda melhor o que pensa do tema,
valendo-se para tanto de sua experiência como jovem pesquisador
na década de 1950:
Passei anos de minha vida, como sociólogoJ /lO inicio de minha carrei
ra, estudando os /legros e a discriminação racial no Brasi/nas camadas,
naturalmente, mais pobres do pais, '1[/e são as populações negras. De Süo
Paulo até o Rio Grande do Sul, naqllela época, '105 anos 1950J
acredito
que nüo houve favela que eu nüo tivesse palmilhado e mJO houve possibi
lidade de que eu /1(10 tivesse aproveitado pam nâo apenas estudar, mas,
com Florestalz Fernandes, com Octávio [anni, com Rerwto Jardim e com
tantos outros, para demonstrar a realidade brasileira qlle, na época, anos
50, não era percebida ainda pelas nossas elites como se t()sse aflitiva.
Pelo contrário, se vivia embalado na ilusão que LISO llillli já era uma
democracia racial perfeitaJ quando não era, quando até hoje não é.
Em 2000, Fernando Henrique concordou em reeditar Cor e mo
bilidade social em Florianópolis, que escrevera com Octávio Ianni,
mas este não deu o aval à iniciativa. FH então lançou Negros em
Florial1ópolis: relações sociais e económicas, o mesmo livro, mas sem
a parte segunda, escrita por Ianni. Na ocasiãoJ quando discursava
no lançamento do livro, FH voltou a falar de mestiçagem:
Quando começam a discutir lIluito, mostro li mill/w cor. 7('IIl j'iÍrios
aqui que podem fazer a mesma coisa. Isso [/(ll1i (; f>UlIlCO) L dII\'Íi/05() (1 11('
26 NÃO SOMOS RACISTAS
seja. Agora, que tem a moda de ver pelo DNA, vê-se que a imensa maio
ria dos brasileiros tem sangue indígena. Nós somos nlUito mestiços.
Dessa vez, FH tira o pé da cozinha e o põe na oca, não imagino
por quê. As pesquisas do geneticista Sérgio Pena nos mostram que
87% dos brasileiros têm ao menos 10% de ancestralidade genômi
ca africana. As mesmas pesquisas mostram que apenas 24% dos
brasileiros têm ao menos 10% de ancestralidade genômica ame
ríndia. Somos portanto mais negros do que índios. Não importa.
FH nos reconhece majoritariamente mestiços, o que nos diferen
ciaria do resto do mundo. Mas, na verdade, como Oracy, ele aca
ba por nos tornar semelhantes aos americanos. Acompanhem o
raciocínio que ele desenvolve no mesmo discurso:
Costumo dizer: o importante aqui não é só às vezes dizer que te
mos muitas raças. Temos preconceito sim. Mas há um certo gosto pelo
mestiço também. Em outros países, outras situações, há até países que
avançaram democraticamente muito, mas avançaram cada um do seu
lado. Aqui, houve mistura. Não estou dizendo que seja bom ou mau.
Acho bom. Mas o fato é que isso altera também o tipo de preconceito, o
modo como se faz o preconceito. As vezes, até acentua, porque as pessoas
queTeln fingir que não têm mistura. Mas têm, alguns, nem todos.
É, a meu ver, o mesmo trajeto de Oracy: mostrar-nos diferentes
na aparência para nos revelar iguais, talvez piores, na essência:
disfarcadamente sonsamente, racistas. Ainda no mesmo discurso,> '
ele explica de onde vem essa sua crença, relembrando o tempo de
jovem pesquisador:
Nunca me esquecerei de que, nas muitas favelas pelas quais andei,
as {ammas negras viviam sempre nas áreas mais pobres. O setor mais
miserável da favela era onde estavam as famílias negras. Portanto, dizer
que é só uma questão de classe não é certo.
A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 27
Em essência, como tentarei mostrar aqui, o discurso do presi
dente continuou o mesmo do jovem sociólogo. É verdade que o
presidente põe uma ênfase maior na "mistura", admitindo-a, mas
ao mesmo tempo frisando que, de algum modo. ela pode agravar
o problema do racismo. Em seus trabalhos da juventude, a "mistu
ra", ou melhor, "o gosto pela mistura" não é sequer abordado: nas
sociedades que estudou, só havia espaço para brancos explorando
negros e mestiços, cada qual sempre no seu canto. Mobilidade so
cial em Florianópolis (1960), em parceria com Octávio Ianni, e Ca
pitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962) tornaram-se dois
clássicos da sociologia que repudiou como falsa a auto-imagem de
tolerância que o Brasil tinha de si. Ambos são, em grande medida,
prisioneiros de um arcabouço teórico datado, de um marxismo
que, embora tenha se pretendido livre dos reducionismos meca
nicistas, não conseguiu pleno êxito na empreitada. Pecados da ju
ventude. Apesar disso, lê-los hoje é fundamental para entender
por que foi no governo Fernando Henrique que o projeto daqueles
que nos querem transformar numa nação bicolor alçou um vôo
tão alto. FH presidente foi sempre seguidor do jovem sociólogo
Fernando Henrique.
É importante que o leitor tenha acesso a algumas passagens que
eu classifico como fundamentaiS dos livros. As citações são exten
sas, mas importantes. Em Cor e mobilidade social em Florianópolis,
o jovem FH analisa a Florianópolis da década de 1950 a partir das
condicionantes do passado de Desterro (nome que Florianópolis
teve até o século XIX). Em linhas gerais, ele dirá, bem ao estilo
marxista, que, como o nível de desenvolvimento económico e as
características da economia de Santa Catarina eram mais ou me
nos os mesmos da época da escravidão, pouca coisa tinha mudado
nas relações entre brancos e negros.
Parece-nos que o ritmo de mudança da sociedade global, em Flo
rianópolis, não ofereceu muitas oportunidades de ascensão social aos
28 NÃO SOMOS RACISTAS
elementos egressos da escravidão ou das camadas sociais dependentes.
As mudanças recentes apenas a(etaram as condições nas quais eles pres
tam, regularmente, os seus serviços. Tomando-se trabalhadores livres
e assalariados, nem por isso conseguiram até recentemente, em escala
apreciável, novas oportunidades de especialização e classificação social.
FH chega a dizer que a situação poderia vir a melhorar com a
consolidação da sociedade de classes e com um desenvolvimento
económico maior, mas, por todo o livro, ele insistirá na tese de
que o preconceito racial será uma barreira contra a ascensão dos
negros. E de onde vem esse preconceito? Novamente, a explica
ção se ampara na comparação entre o período pré e pós Abolição.
Numa comunidade em que, sem grandes riquezas, o branco, mes
mo durante a escravidão, teve de se submeter a trabalhos também
executados pelos cativos, o preconceito não poderia vir de uma
superioridade económica explícita do branco, mas de atributos
subjetivos, restos persistentes da ideologia do tempo em que a or
dem escravocrata estava de pé:
Numa comunidade do tipo de Desterro, a discriminação que se exercia
primeira e naturalmente quanto ao escravo trans(eria-se para os negros
em geral e seus descendentes mestiços. Este processo, que existiu em todo
o Brasil, era possível por causa da seleção de certos caracteres (ísicos
como elementos capazes de justificar uma desigualdade social em termos
da existência de wna desigualdade natural. Mas em Desterro, por callsa da
coexistência do trabalho livre com o trabalho escravo e da inexistência
de condições materiais que possibilitassem a emergência de um estilo de
vida senhorial, a IIdesigualdade natural" entre negros e brancos sempre
(ai enfatizada vigorosamente, como uma espécie de elemento cOlllpen
satório da pequena di(erença nas condições sociais de produção entre os
negros e os brancos: ambos produziam de motu proprio os meios neces
sários à solirevillência. Dessa (orma a discriminação que o senhor exercia
sobre o escravo pôde transformar-se na discriminação dos brancos, ainda
que pobres, sobre os negros em geral, ainda que li"res. E a discriminação
A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 29
racial pôde preservar-se mais (aci/mente depois da Abolição, porque esta
não extinguiria obviamente nenhuma /Idesigualdade natural".
Assim, para o jovem FH, em Florianópolis era o fato de que am
bos, negros e brancos, trabalhassem mais ou menos igualmente
que reforçava o preconceito: já que socialmente brancos e negros
não estavam distantes, era o apego a atributos naturais suposta
mente superiores que justificava o preconceito de brancos contra
negros. Por outro lado, FH também diz no livro que, em cidades
mais opulentas, o racismo advinha exatamente da dominação se
nhorial do branco sobre o negro: era a superioridade económica
que determinava a superioridade da raça. Na visão do jovem FH,
portanto, o preconceito era produto da superioridade económica
do branco, quando ela existia, e da ausência dela, como em Floria
nópolis. Ou seja, é como se não houvesse saida, já que situações
opostas provocam um mesmo resultado. Dessa ótica, pode-se con
cluir que, para o jovem FH, o homem branco acabava por ser, em
si, racista.
Em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, um livro poste
rior, o jovem sociólogo segue o mesmo caminho, analisando não
o racismo dos racistas, mas dos brancos em geral, tendo como
pano de fundo o Sul brasileiro:
Com a desagregação da ordem servil, que naturalmente antecede,
como processo, a Abolição, foi-se constituindo, pouco a poucol o '1pro_
blema negro" e, com ele, intensificando-se o preconceito com novo con
teúdo. Nesse processo o preconceito de cor ou raça transparece nitida
mente na qualidade de representação social que toma arbitrariamente a
cor ou outros atributos raciais distinguíveis, reais ou imaginários, como
(onte para a se/eção de qualidades estereotipáveis. De um momento
para ° outro, o negro - que fora sustentáculo exclusivo do trabalho
na escravidão - passa a ser representado como ocioso, por ser negro, e
assim por diante.
30 NÃO SOMOS RACISTAS
E prossegue:
Cabe, entretanto, ponderar que as representações estereotipadas fa
ziam-se com "base na realidade". Seria falso supor que os brancos impu
tassem todos os atributos negativos aos negros como uma simples projeção
ou como simples recurso de autodefesa imaginário. Não se pode dizer que o
negro desordeiro, ocioso, bêbado etc. era uma imagem criada pelo branco.
Ao contrário, e muito pior, o branco não criou apenas essa representação
do /Jegro: fê-lo, de fato, agir dessa fonna. E o fez tanto porque criou as con
dições de vida e de opção para os negros indicadas acima, quanto porque
passou, ao mesmo tempo, a representá-los com essa imagem.
Ou seja, agora, os brancos, e não apenas os racistas, são respon
sáveis por fazer com que os negros sejam bêbados, desordeiros e
ociosos, e estes de fato seriam assim, o que é uma generalização
absurda. É uma visão demoníaca do processo social, porque todo
branco é assim e todo negro é assado. Em Cor e mobilidade, o bran
co atribuía características negativas ao negro para compensar uma
"igualdade" social dada por trabalhos mais ou menos equipará
veis. Agora, o negro já não trabalha, por culpa do branco, que, por
esse motivo, o demoniza. Mas como a "base real" para a demoni
zação do negro é criada pelo branco, este é por sua vez demoniza
do por FH.
Não há meio tom.
Em Capitalismo e escravidão outro fenômeno chama a atenção:
o engajamento. FH analisa com atenção as edições do jornal O
Exemplo, editado por negros. Todo artigo que esteja em linha com
as suas teses é aplaudido; todo artigo que as contraria é dado como
exemplo de subordinação do negro à ideologia do branqueamen
to_ Convencido de que a razão da desigualdade é o racismo dos
brancos, FH desde o início repudia a hipótese de que o preconcei
to seja contra o pobre em geral e não contra o negro. Ele cita, com
o objetivo de refutá-lo, o artigo de Décio Vital, publicado pelo
jornal em 1893, em que o autor dá o seguinte testemunho:
A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 31
Na verdade, o único meio de um pobre-diabo pôr-se a salvo dessa fera,
desse monstro que faz de um pacato burguês um herói (o recrutamento) é
andar enfronhado numa sobrecasaca, seja ela preta ou esverdeada, azul
ou cor de burro quando foge, a questão é ser ou parecer o fato de gala.
{. ..} E não há dúvida que tem produzido efeito o meu estratagema: a
minha pessoinha ainda não foi violada, até pelo contrário tem sido alvo
de interessantes equívocos: as patrulhas me deixam passar livremente e
muitas vezes tenho ouvido um dos soldados dizer para o outro: "Deixa
esse moço passar porque parece ser gente decente, é algum bacharel baia
no ou dentista carioca." E eu acolho essa opinião com soberba, porque,
em Sllma, é uma felicidade ser tratado por moço para quem costumavam
apelidar de briguet, gente ordinária, vagabundos e quejandos pelo fato
de ter a cor bronzeada.
A reação de FH foi passar ao largo da discussão sobre se o pre
conceito racial pode ser mais apropriadamente descrito como o
preconceito contra o pobre. Ele preferiu apontar o autor do artigo
como um exemplo nítido do negro que, explorado, procura absor
ver, acriticamente, o ideal de nação sem preconceitos raciais, "de
fendido pelos brancos". É curioso que FH dê voz a um negro dis
cordante, mas para diminuí-lo, para colocá-lo na posição daquele
que não sabe o que diz. Mais adiante no livro nos deparamos com
outro exemplo desse tipo de postura. Ele cita, novamente para
desmerecer, um artigo de Miguel Cardoso, também publicado em
1893 em O Exemplo, em que o jornalista negro diz:
Em nosso primeiro artigo nos comprometemos a provar o contrário
do que se estabelece ou por outra se tem estabelecido com relação ao que
se chama preconceito de raça; preconceito este que muitos dos nossos
julgam alusivos aos homens de cor em geral. Mas isso tanto assim não
é que muitos de nossos irmãos são chamados a ocupar cargos públicos;
e alguns os ocupam debaixo de alta responsabilidade, bem a contento
daqueles de quem são delegados; mostrando assim serem dignos de figurar no grande círculo da igualdade social. Vê, pois, o leitor que para
32 NÃO SOMOS RACISTAS
esses não existe o preconceito de raça de que se queixarn m1litos. {...}
[ulgo assim provado que a i1l5trução é o único motivo pelo qual eles têm
o mérito que lhes é dispensado e de que se toma merecedor todo homem
que se impõe a co1l5ideraçào pública, pelos seus atas, ilustraçào e isenÇi70
de carâter.
Em outro artigo, o mesmo Miguel Cardoso, ainda citado pelo
jovem FH, escreve:
Quando em primeiro artigo pedimos a nossos irmãos de raça para não
olvidarem-se de mandar educar seus filhos, foi porque razào I10S sobrava
para assim proceder, certos de que cumpriríamos um dever de lealdade para
aqueles que S<10 nossos iguais. Sim! Temos razào para assim proceder, re
petimos, porque muitos pais e màes esquecem o dever que têm de eduCllr
seus filhos, sem pensar que assim concorrem pan1 que a ignorância seia
mantida muito além de nossa expectativa.
o que faz o jovem FH? Diante do sinal inequívoco de que a
educação talvez fosse a porta para pôr fim às desigualdades e, por
tabela, para reduzir o preconceito, ele prefere classificar o depoi-
mento como quimera:
A ilusão fundamental, neSse caso, não estava propriamente na ne
gação da existência de barreiras e preconceitos que condicionavam a in
tegração do negro à sociedade de classes, mas na compreensào errôl1ea
do sentido dessas barreiras e preconceitos: o bmlJco repudiaria o negro
enquanto homem ignorante, não enquanto hornem negro,
Errônea? Então em vez de explorar esse caminho, verificar o
nível educacional dos negros de então, compará-los ao nível edu
cacional dos brancos pobres de então, refletir até que ponto a hi
pótese pode ou não ser válida, o jovem FH apenas a classifica de
errônea? Apesar de reconhecer no livro que a posição defendida
por Miguel Cardoso - o preconceito é contra o pobre - não era
A GÊNESE CONTEMPORANEA DA NAÇÃO BICOLOR 33
solitária, mas esteve sempre acompanhada de muitos outros arti
gos, críticas e editoriais de O Exemplo, o jovem FH ignora a todos e
cita apenas outro articulista do mesmo jornal, Esperidião Calisto,
que escreveu "Pelo dever", para criticar a "ilusão da sociedade sem
preconceitos", Diz Calisto:
Quanto a um ou outro elemento de cor preta ou parda ocupar posição
oficial de origem meramente política, é porque desgraçadamente ainda
existem muitos a quem os bafejos de efémeras regalias obcecam-lhes de
tal maneira os sentimentos nobres, que não sentem ecoar em sua alma
os estalidos das palmatoadas dadas entre muros da cadeia, em homens
justamente conceituados, negociantes estabelecidos, simplesmente por
que trazem o estigma da cor preta ou parda!
Sobre este artigo, o jovem FH não poupa elogios: "É uma das
mais vigorosas e lúcidas páginas já escritas sobre a significação da
ascensão social de alguns negros no período inicial de formação
de sistemas de classe."
Miguel Cardoso é ilusão, submissão à ideologia branca, partidá
rio do branqueamento; Esperidião Calisto é lucidez, vigor, verda
de. Por que um diz a verdade enquanto o outro se ilude? A respos
ta, espirituosa, é urna só: porque o "verdadeiro" pensa como FH.
É curioso que o problema da educação tenha sido apenas su
perficialmente abordado nos dois livros do jovem FH. Em Cor e
mobilidade, há menção a uma pesquisa restrita a um pequeno gru
po de estudantes em que se diz que apenas 5% deles eram negros.
Por que tão poucos; como se dava o acesso de negros às escolas;
haveria a interdição de negros às escolas; que impactos a educação
de negros poderia vir a ter no futuro deles? Não, o jovem FH não
se interessa por esses temas.
Fernando Henrique foi sem dúvida um excelente presidente.
Mudou a face do país em muitos aspectos de maneira extremamen
te positiva: livrou-nos da inflação, tornou uma realidade a noção
34 NÃO SOMOS RACISTAS
de que não existe país sem responsabílidade fiscal, reformou as
instituições, tornando-as mais republicanas e impessoais, deixou
para trás, com as privatizações, o Estado-produtor, colocando o
país na direção do Estado-regulador e fornecedor de serviços, ini
ciou a modernização da administração pública e começou a criar
uma rede de proteção social àqueles que, mesmo diante de todos
os recursos, não se movem sozinhos. Mas mudou também a face
do país em pelo menos um caso de uma maneira cujos efeitos
podem vir a ser extremamente negativos. Quando se analísa o
governo do presidente Fernando Henrique, tendo-se tomado co
nhecimento do que ele pensava quando jovem, entende-se me
lhor o impulso que políticas de preferência racial tornaram em
seus dois mandatos.Neste campo, nunca foi de fato tão mentirosa a frase falsamente
atribuída a ele: "Esqueçam o que eu escrevi." A visão do jovem
sociólogo, em essência, manteve-se na ação do presidente. Se a
desigualdade entre negros e brancos reside em grande medida no
racismo, não adianta apenas o esforço de investir na educação dos
pobres, negros e brancos, com a intenção de tornar o país mais
justo. Começar a investir na educação foi um passo que FH de
fato deu: foi em seu governo que praticamente 100% das crianças
de 7 a 14 anos passaram a freqüentar a escola. Mas, ao mesmo
tempo, FH deu curso à institucionalização da nação bicolor. Se o
racismo na sociedade brasileira é de fato um entrave substantivo à
mobilidade dos negros, educação somente não basta. Já em 1995,
primeiro ano do mandato, FH criou o Grupo de Trabalho Intermi
nisterial para a Valorização da População Negra, com representan
tes da "comunidade afro-brasileira", como foi dito à época. Signi
ficativamente no dia 13 de maio de 1996, FH lançou o Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Entre muitas açôes mais
do que pertinentes para o combate ao racismo, o programa tinha
metas claras no caminho da nação bicolor. Vale a pena destacar
algumas delas:
~l
iA GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 35
"Inclusão do quesito 'cor' em todos e quaisquer sistemas de infor
mação e registro sobre a população e bancos de dados públicos."
"Incentivar e apoiar a criação e instalação, em níveis estadual e
municipal, de Conselhos da Comunidade Negra."
"Apoiar a definição de ações de valorização para a população
negra e com politicas públicas."
"Apoiar as ações da iniciativa privada que realizem a discrimi
nação positiva."
"Desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos
cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia
de ponta."
E, talvez, a mais significativa das propostas:
"Determinar ao IEGE a adoção do critério de se considerar os
mulatos, os pardos e os pretos como integrantes do contingente
da população negra."
Felizmente, a determinação jamais entrou em vigor, e muitas
das outras propostas demoraram a sair do papel (algumas jamais
saíram). Em outubro de 2001, o Brasil foi signatário da III Con
ferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que se
realizou em Durban (África do Sul). E no dia seguinte, como me
disse uma amiga, todos nós acordamos num país diferente, com
prometido oficialmente com a adoção de políticas de preferência
raciaL Foi um processo longamente estruturado, mas à época pou
co acompanhado, pouco conhecido, pouco debatido. A dimensão
do esforço foi dada pelo próprio presidente num discurso sobre
direitos humanos já citado aqui:
Participamos ativamente da reunião havida em Durban. Não foi
uma participação qualquer. Foi uma participação baseada em um pro
cesso longo de preparação, de quase dois anos. Esse processo ofereceu
aos brasileiros uma oportunidade extraordinária de discussão e de re-
36 NÃO SOMOS RACISTAS
flexão para a superação do racismo e das diversas (onnas de discrimina
ção em nossa sociedade.
o projeto era audacioso, como previu o presidente no mesmo
discurso:
o Conselho Nacional de Combate à discriminação deverá estudar a
adoção de políticas afinnativas em favor dos afro-descendentes. Essas
políticas se referem a temas concretos: investimentos preferenciais na
área da educação, saúde, habitação, saneamento, água potável, controle
anzbiental nas regiões ou áreas habitadas majoritariamente por afro
descendentes, quer dizer, as mais pobres do país, em geral; destinação
de recursos públicos, inclusive com a participação da iniâativa privada
nas bolsas de estudo para estudantes negros, projetas de desenvolvimento
sustentável nas comunidades quílombolas, projetas para a (onnação de
lideranças negras, projetas de apoio a enlpreendedores negros, projetas
de intercâmbio com países africanos e troca de experiências com institui
ções de outras regiões.
Em 13 de maio de 2002, FH lançou ° segundo Programa Nacio
nal de Direitos Humanos (PNDH) e, na mesma data, instituiu, por
decreto, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, muito ambi
cioso. Destaco aqui, porém, um único ponto, o inciso primeiro
do artigo segundo, que resume bem o espírito do programa, ao
determinar"a observância, pelos órgãos da Administração Pública
Federal, de requisito que garanta a realização de metas percentuais
de participação de afro-descendentes, mulheres e pessoas portado
ras de deficiências físicas no preenchimento de cargos em comissão
do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS". Em pleno
ano eleitoral, e tendo apenas o segundo semestre para se viabilizar,
o plano não foi adiante. Mas a mudança de mentalidade no país
já havia sido operada. FH estava consciente disso. No discurso de
lançamento do segundo PNDH, o presidente, depois de inventariar
brevemente o que o seu governo tinha feito na área até ali, disse:
A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 37
Quero concluir reafinnando que tão importante quanto medidas con
cretas que têm sido adotadas pelo govemo federal, bem como pelos esta
dos e municípios, é a mudança que está ocorrendo /10 plano das menta
lidades. Alteram-se, a olhos vistos, os padrões de legitimidade. Práticas
que eram toleradas, há alguns anos, não o sâo Imlis, seja no tocante à
comunidade negra, seja na questão do género ou, ainda, no tratamento
das minorias e de outros grupos mais vulneráveis.
o discurso de FH é a demonstração de satisfação por ter con
tribuído, de modo decisivo, para que as mazelas que afligem os
negros não mais fossem atribuídas à pobreza, mas passassem a
ser tratadas também como produto do preconceito e do racismo
da sociedade brasileira. Para quem, desde jovem, se dedicou com
afinco ao tema, era mesmo um momento especial.
De fato, o ambiente no Brasil passou, cada vez mais, a ser extre
mamente propício para que discussões desse tipo aflorassem país
afora. O governo FH jamais propôs formalmente ao Congresso
a adoção de cotas para negros em universidades (o máximo que
fez, como mostrei há pouco, foi apoiar a adoção de políticasafir
mativas nesse campo, sem especificar quais). Mas o país andou
sozinho. Em novembro de 2001 a Universidade do Estado do Rio
de Janeiro tornou-se a primeira universidade a adotar o sistema
de cotas, no que foi seguida por muitas outras, num processo
rápido de disseminação: Universidade de Brasília, Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual da Bahia
e tantas outras.
Quando eu já finalizava os trabalhos com vistas à publicação
deste livro, tive oportunidade de uma rápida conversa sobre o
tema com o ex-presidente. Quando eu lhe disse que a ação dele
no governo, no tocante à questão raciat guardava coerência com
o que ele escrevera quando jovem, ele respondeu: "Eu acho que
tenho sido razoavelmente coerente com o que penso. Claro, evo
luí com o tempo, mas guardei meus valores." Como já apontei
38 NÃO SOMOS RACISTAS
mais acima, à diferença do jovem sociólogo, em nossa conversa o
ex-presidente pôs mais ênfase no gosto do brasileiro pela mistura,
em contraposição às situações vividas por outros países, mas, uma
vez mais, ele se alongou na explicação sobre que perigos esse gosto
pode trazer:
Aqui é e (espero) será sempre outra coisa. Se é assim, por que progra
mas especiais? No fundo, porque eu acho que a vigência do mito da de
mocracia racial não é o coroamento da convivência mais amena e gostosa
que de fato há entre nossos "brancos" e os outros, mas é uma ponta de
negação ideológica da mistura que constitui o cerne da nossa "etnia".
Na conversa, ele se revelou contra cotas nas universidades:
Daí a enrijecer o espírito com cotas vai uma distância grande e nela
mora o perigo. Eu prefiro, por exemplo, a solução dada no Itamaraty
[bolsas para estudantes negros se aperfeiçoarem para o concurso de en
trada} do que a rigidez de somar não sei quantos pontos às notas de
quem for "negro" ou "índio".
E concluiu, fazendo uma espécie de ponte entre o que pensa
va quando jovem e o que pensa agora, na maturidade, revelando
mais coerência do que contradição:
A dificuldade para lidar com essas questões no Brasil é que não dá
para"americanizar" e, eventualmente, criar racismo, nem para descui
dar e deixar, em nome de nosso igualitarismo racial teórico, que os ne
gros e que tais continuem à margem das oportunidades.
Um leitor mais apressado, tendo em mente a força que a adoção
de cotas raciais tornou no país, poderia concluir que estamos dian
te de um caso clássico do cientista que. em relação à sua criatura,
lamenta: "Criei um monstro." Não creio que se trate disso. Não
há contradição entre o fato de FH ser contra as cotas e, ao mesmo
A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 39
tempo, seu governo ter contribuído para que elas tenham se tor
nado urna realidade. No comando da nação, inequivocamente, FH
adotou políticas que tinham como pressuposto a existência, entre
nós, de entraves motivados pelo racismo para o progresso social
dos negros. Uma vez iniciado o processo, ele ganhou força pró
pria e adquiriu contornos que ninguém molda a priori. O Estado
nunca foi FH, e, justiça seja feita, ele nunca agiu para que fosse.
Não importa que pessoalmente ele rejeitasse, e ainda rejeite, as
cotas - a adoção delas só se tornou possível porque, no governo,
ele agiu de forma decisiva para que o ideal de nação miscigenada
e tolerante fosse substituído pela nação bicolor em que brancosoprimem negros.
É FH quem opera e institucionaliza essa mudança. O que o
presidente Lula fez depois foi dar seqüência, foi seguir adiante,
e, também aqui, corno em tudo mais, sem sutilezas e de manei
ra canhestra. Criou uma Secretaria da Igualdade Racial, patroci
nou o projeto que torna obrigatória a política de cotas nas uni
versidades federais e apoiou o Estatuto da Igualdade Racial, que
racializa todas as relações entre os cidadãos do Estado brasileiro.
Lançou ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana, em que se diz textualmente que os ne
gros foram submetidos a uma política de eliminação física depois
da Abolição, uma falsidade histórica, como denunciou o histo
riador José Roberto Pinto de Cóes. Nisso foi ajudado por ONCs,
institutos de pesquisas, nacionais e estrangeiros, que, ao apontar
corretamente a desigualdade entre brancos e negros, deram como
justificativa o racismo, sem que os números lhes dessem base paratanto.
E se os três, o jovem FH, o presidente FH e o presidente Lula,
estiverem errados? Num país em que no pós-Abolição jamais exis
tiram barreiras institucionais contra a ascensão social do negro,
num país em que os acessos a empregos públicos e a vagas em
40 NÂO SOMOS RACISTAS
instituições de ensino público são assegurados apenas pelo mérito,
num país em que 19 milhões de brancos são pobres e enfrentam as
mesmas agruras dos negros pobres, instituir políticas de preferên
cia racial, em vez de garantir educação de qualidade para todos os
pobres e dar a eles a oportunidade para que superem a pobreza de
acordo com os seus méritos, é se arriscar a pôr o Brasil na rota
de um pesadelo: a eclosão entre nós do ódio racial, coisa que, até
aqui, não conhecíamos. Quando pobres brancos, que sempre vi
veram ao lado de negros pobres, experimentando os mesmos dis
sabores, virem-se preteridos apenas porque não têm a pele escura,
estará dada a cisão racial da pobreza, com conseqüências que a
experiência internacional dá conta de serem terríveis.
A nação que sempre se orgulhou de sua miscigenação não me
rece isto.
Ao longo dos últimos anos, tenho me dedicado a debater todas
essas questoes. A minha ênfase tem sido refutar leituras apressa
das de estatísticas oficiais, que distorcem a realidade em favor de
um Brasil bicolor. Tenho procurado mostrar que, mais que ao ra
cismo, a má situação do negro no Brasil se deve à pobreza e que
não existem atalhos fáceis para superá-la, como cotas ou políticas
assistencialistas. O único caminho seguro para que o país se torne
mais justo é a educação.
Eu acredito que majoritariamente ainda somos uma nação que
acredita nas virtudes da nossa miscigenação, da convivência har
moniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens,
de sermos um país em que os racistas, quando existem, envergo
nham-se do próprio racismo. Os leitores que pensam como eu te
rão neste livro um guia que desmistifica o discurso oficial, procura
dar uma leitura correta das estatísticas e tenta mostrar por que os
gastos com políticas assistencialistas, paradoxalmente, perenizam
a pobreza em vez de superá-la. Este livro é uma seqüência dos
artigos que publiquei no Globo sobre o tema, reescritos, atuaLiza-
1 A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 41
dos, ampliados. Os leitores que pensam diferente terão mais uma
oportunidade de se dar conta de que aqueles que, como eu, são
contra a transformação do Brasil numa nação bicolor e condenam
a adoção de medidas racistas para combater o racismo não estãodo outro lado.
Estamos todos do mesmo lado. Mas temos soluçoes diferentes
para o problema que aflige a todos.
RAÇAS NÃO EXISTEM
NAO FAZ MUITO TEMPO, UM COMENTARISTA DE TV A CABO DrSSE, CONFIANTE,
que certas doenças e certas qualidades são geneticamente deter
minadas pela raça. Ouvi também um jornalista de rádio dizer, em
relação a um jogador humilhado em campo porque é negro, que
nada se pode fazer quando se quer mencionar o nome de uma
raça: "O nome da raça é negra", ele disse. E, claro} impossível es
quecer o então candidato Lula, em 2002, afirmando, num deba
te, que certamente haveria uma maneira científica de determinar
se alguém é da raça negra. O curioso é que as três manifestações se
deram num contexto de repúdio ao racismo. O que eles desconhe
cem é que acreditar que raças existem é a base de todo racismo.
Raças não existem.
Nos últimos trinta anos, este é o consenso entre os geneticistas: os
homens são todos iguais ou, como diz o geneticista Sérgio Pena,
os homens são igualmente diferentes.
O mesmo não se dá com os animais. Tomemos o exemplo dos
cães. Todos sabemos que há várias raças da espécie canina. Elas são
bem diferentes entre se tanto na aparência quanto no comporta
mento: há raças maiores e menores, compridas e curtas, inteligen
tes e obtusas, dóceis e agitadas. Qualquer um saberá dizer, de longe,
qual é o bassê e qual é o dogue alemão. Pois bem, o que faz o bassê
e o dogue alemão serem de raças diferentes é que bassês se pare-
44 NÃO SOMOS RACISTAS
cem mais com bassês, do ponto de vista da genética, do que com
dogues alemães. Reúna um grupo de bassês: haverá animais mais
compridos que outros, mais altos que outros, com focinhos
mais pontudos que outros. Mas a variabilidade entre bassês será
sempre menor do que entre bassês e dogues alemães.
Com homens, isso não acontece, e é isso a nossa beleza, a nossa
riqueza, a nossa sorte. Fico totalmente perturbado de comparar
homens e cães, mas é a falta de informação de muitos que me leva
a usar expediente tão constrangedor.
Consideremos dois grupos. O primeiro com aqueles que o senso
comum diz ser da "raça" negra: homens de cor preta, nariz acha
tado e cabelo pixaim. O segundo com aqueles que o mesmo senso
comum diz ser da "raça" branca: homens de cor branca, nariz afi
lado e cabelos lisos.
Desde 1972, a partirdosestudosdeRichardLewontin, geneticista de
Harvard, o que a ciência diz é que as diferenças entre indivíduos
de um mesmo grupo serão sempre maiores do que as diferenças
entre os dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de
negros haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inte
ligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas,
com proteção genética contra o câncer, com propensão genética
ao câncer etc. Nó grupo de brancos, igualmente, haverá indivíduos
altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos,
com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra
o câncer, com propensão genética ao câncer etc. Ou seja, no inte
rior de cada grupo, a diversidade de indivíduos é grande, mas ela se
repete nos dois conjuntos. A única coisa que vai variar entre os dois
grupos é a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, e,
mesmo assim, apenas porque os dois grupos já foram selecionados
a partir dessas diferenças. Em tudo o mais, os dois grupos são iguais.
Na comparação odiosa, dois bassês são geneticamente mais homo
géneos do que um bassê e um dogue alemão e, por isso, formam
duas raças distintas. Com os homens, isso não acontece.
RAÇA5 NÃO EXISTEM 45
O genoma humano é composto de 2S mil genes. As diferenças
mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz)
são determinadas por um conjunto de genes insignificantemente
pequeno se comparado a todos os genes humanos. Para ser exa
to, as diferenças entre um branco nórdico e um negro africano
compreendem apenas uma fração de 0,005 do genoma humano.
Por essa razão, a imensa maioria dos geneticistas é peremptória:
no que diz respeito aos homens, a genética não autoriza falar em
raças. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever
a seqüência do genoma humano, "raça é um conceito social, não
um conceito científico".
Uma fonte de confusão são estudos freqüentemente divulgados
em que se diz que uma doença é mais comum entre negros ou en
tre brancos, ou entre amarelos. Isso nada tem a ver com raca mas, ,
com grupos populacionais, que se casam mais freqüentemente
entre si. Seria preciso que os genes que determinam a cor da pele
também determinassem essa ou aquela doença para se relacionar
a "raça" e a doença, e isso não existe. A ciência já mostrou que a
associação entre raça e doença não passa de um mito, como me
disse o geneticista Antônio Solé-Cava, da UFR].
Por exemplo, o caso da anemia falciforme entre negros. Sabe-se
hoje que quem tem essa doença é também mais resistente à ma
lária. Não à toa, o gene da anemia falciforme é mais freqCiente Em
algumas áreas da África onde a presença do mosquito transmissor
da malária é maior, fato determinado pela seleção natural. Nas ou
tras regiões da África, o gene da anemia falciforme é raro. A~sim,
não se pode dizer que todo negro tem uma maior probabilidace
de ter este gene: apenas aqueles, mesmo assim nem todos, com
antepassados vindos de certas regiões onde o mosquito transmis
sor era numeroso.
Além disso, se os negros oriundos daquelas regiões têm :11aLS
freqüentemente o gene da anemia falciforme, isso não tDrna o
gene exclusivo desse grupo. Isso vale para qualquer doença, Pald
46 NÃO SOMOS RACISTAS
qualquer grupo. Tão logo o indivíduo portador de certo gene se
case com outro que não tenha o gene, o filho dessa união poderá
vir a herdá-lo. No caso de um negro e uma branca: se o filho her
dar uma pele mais clara e se casar com uma branca, o filho dessa
nova união poderá ser branco e, mesmo assim, herdar o gene. De
finitivamente, não existem genes exclusivos de uma determina
da cor. Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja
mais comum que grupos populacionais tenham uma carga gené
tica mais parecida. Em lugares em que a miscigenação predomina,
como aqui, isso é muito mais improvável.
A COI da pele não determina sequer a ancestralidade. Nada ga
rante que um indivíduo negro tenha a maior parte de seus ances
trais vindos da África. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil,
devido ao alto grau de miscigenação. O geneticista Sérgio Pena já
mostrou isso num estudo brilhante. Usando os marcadores mole
culares de origem geográfica, ele analisou o patrimônio genético
de cidadãos negros da cidade mineira de Queixadinha e descobriu
que 27% deles tinham uma ancestralidade predominantemente
não-africana, isso é, maior do que 50%. Considerando-se os bran
cos de todo o Brasil. descobriu-se que 87% deles têm ao menos
10% de ancestralidade africana. Nos EUA, esse número cai para
apenas 11%. Ou seja, no Brasil, há brancos com ancestralidade
preponderante africana e negros com ancestralidade preponde
rante européia. Somos, graças a Deus, uma mistura total.
A crença em raças, porém, não é apenas fruto da ignorância.
Volta e meia surge dentro da própria ciência alguém disposto a
desafiar o consenso reinante: o destino de todos eles é o esqueci
mento, mas, quando surgem, fazem muito barulho. É o caso do
biólogo britânico Armand Marie Lerai. Em 2005, ele escreveu um
explosivo artigo para o New l'ork Times, asseverando que raças não
somente existem como seu conceito é bem-vindo, já que ajuda
ria no diagnóstico e tratamento de certas doenças, mito, como
vimos, já desfeito. Os argumentos de Leroi são na verdade uma
RAÇAS NÃO EXISTEM 47
revalidação das antigas crenças dos antropólogos do século XVIII
que criaram a noção de raça. Em resposta, dezenas de cientistas
escreveram artigos reafirmando as descobertas da genética. Não
disseram, mas eu repito o que sempre digo: o racismo está em todo
lugar. Entre cientistas, inclusive.
Raça, até aqui, foi sempre uma construção cultural e ideológica
para que uns dominem outros. A experiência histórica demonstra
isso. No Brasil dos últimos anos, o Movimento Negro parece ter se
esquecido disso e tem revivido esse conceito com o propósito de
melhorar as condições de vida de grupos populacionais. A estraté
gia está fadada a nos levar a uma situação que nunca vivemos: o
ódio racial. Onde quer que o conceito de raça tenha prevalecido,
antagonismos insuperáveis surgiram entre os grupos, e deram ori
gem muitas vezes a tragédias. Por que aqui seria diferente?
Alguns sociólogos defendem a manutenção do conceito de
raça, mesmo admitindo que, do ponto de vista científico, raças
não existem. Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, por exemplo} diz
em seu livro Classes, raças e democracia que raça seria a única cate
goria analítica" que revela que as discriminações e desigualdades
que a noção brasileira de 'cor' enseja são efetivamente raciais e
não apenas de 'classe"'. Não entendo a explicação. Se alguém dis
crimina alguém por acreditar que existem elementos inatos em
seu grupo que o tornam superior a outros grupos, e se essa crença é
falsa, continuar usando a noção de raça terá como efeito inequívo
co o reforço da noção de raça, e não o contrário. As discriminações
não serão nunca "efetivamente" raciais, porque raças n;jo existem:
as discriminações serão sempre efetivamente "odiosas", "hracio
nais", "delirantes", "criminosas". Elas só seriam "efetivamente"
raciais se a motivação da discriminação estivesse calcada em uma
realidade - a existência de raças humanas -, e não numa crença
irracional.
Guimarães também alude, sem dar nomes, a uma outra V"erten
te das ciências sociais, que ele chama de pragmática. Nas palavras
48 NÃO SOMOS RACISTAS
dele: "Assim como aceitamos, há séculos. a teoria copernicana
sem que deixemos de organizar as nossas experiências diárias em
torno da crença de que o sol se põe e se levanta, assim também
acontece com a crença em 'raças'. Continuamos a nos classificar
em raças, independente do que nos diga a genética." Não sei de
onde essa tal corrente tirou comparação tão descabida. Copérnico
jamais revogou o dia e a noite, nem o fato de que "efetivamente"
o Sol nasce e se põe diariamente. O que ele fez foi demonstrar que
não é o Sol que gira em torno da Terra, mas a Terra que gira em
torno do Sol, o que, se tem influência nula no raiar do dia e no
entardecer, modificou totalmente a vida do homem no planeta,
tornando possível um entendimento melhor do universo e coisas
mais práticas, como ir à Lua e pôr um satélite em órbita, o que pos
sibilita coisas tão comezinhas como falar ao telefone ou transmitir
imagens e dados vencendo distâncias continentais. Assim como
Copérnico deixou para trás "certezas" baseadas não em fatos, mas
na fé, a genética permitiu enterrar de vez a crença odiosa de que
existem grupos de homens com características tais que os diferem
fundamentalmente de outros, tornando-os uns superiores aos ou
tros. Ignorar isso é abraçar o irracionalismo.
Raças não existem. No Brasil, país miscigenado, isso é ainda
mais evidente. Nos próximos capítulos vou mostrar, porém, como
se tem feito um esforço enorme para pôr fim a essa verdade.
SUMIRAM COM OS PARDOS
O LEITOR CERTAMENTE JA OUVIU OU LEU ESTA FRASE: A. POBREZA NO BRASIL
tem cor, e ela é negra. É uma frase sempre presente nos trabalhos
de pesquisadores que culpam o racismo brasileiro pela situação de
penúria em que vive a maior parte dos negros. Os números que
eles divulgam são de fato eloqüentes. Eles sempre dizem que os
brancos no Brasil são 51,4°/h da população; e os negros, 480/<>. E se
perguntam: "Será que a pobreza acompanha esses mesmos crité
rios demográficos?" E respondem que não: dos 56,8 milhões de
brasileiros pobres, os brancos são apenas 34,2<)'ú, e os negros repre
sentam 65,8% do total. E concluem: os negros são pobres porqueno Brasil há racismo.
Os números são eloqüentes, mas inexatos. Segundo o IBGE,
os negros são 5,9% e não 48%. Os brancos são, de fato, 51,4%
da população. A grande omissão diz respeito aos pardos: eles são
42% dos brasileiros. Entre os 56,8 milhões de pobres, os negros
são 7,1%, e não 65,8°;b. Os brancos, 34,2%, e os pardos, 58,7%.
Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda. O
que fazem os defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem
os negros é juntar o número de pardos ao número de negros, para
que a realidade lhes seja mais favorável: é apenas somando-se ne
gros e pardos que o número de pobres chega a 65,8%. Isso fica
evidente na seguinte tabela:
50 NÃO SOMOS RACISTAS
TOTAL DE BRASILEIROS E BRASILEIROS POBRES, SEGUNDO A COR.
BRASIL - PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMicíLIOS
(PNAD) 2004
Total 182 57 31,2%
93 19 34,2%
11 4 7,1%
76 34 58,7%ardas 87 38 65,8%
Os artigos desses pesquisadores, seguindo as categorias usadas
pelo IBGE, primeiro estratificam a população entre brancos, pretos
(que eu chamo aqui negros), pardos, amarelos e indígenas para,
logo depois, agrupar negros e pardos e chamá-los a todos de negros
(desse ponto em diante, em todas as estatísticas, há apenas menção
a negros, mas, na verdade, os números se referem sempre à soma
de pardos e negros). Geralmente os pesquisadores fazem a seguinte
observação, em letras pequenas, ao pé da página: 1/ A população ne
gra ou afro·descendente corresponde ao conjunto das pessoas que
se declaram pretas ou pardas nas pesquisas do IBGE." É somente
assim que a já batida afirmação de que o Brasil tem a maior popula
ção negra depois da Nigéria se sustenta: juntando-se os negros aos
pardos de todos os matizes, do quase branco ao quase negro.
Como apontei na introdução, trata-se de uma metodologia nas
cida na sociologia da década de 1950 e hoje vitoriosa: negros são
todos aqueles que não são brancos. Nas universidades, tal con
ceituação hoje é tão corrente que, diante de uma argumentação
como a minha, os especialistas, constrangidamente, costumam
me desqualificar dizendo que eu não sou"do campo". De fato não
sou. Embora tenha me formado em ciências sociais em 1983, toda
a minha vida profissional foi dedicada ao jornalismo. Não consi
dero isso um problema, porém. Isso me alinha à imensa maioria
SUMIRAM COM OS PARDOS 51
dos brasileiros que diante de nossa gente enxerga todo um arco
íris de cores, do mulato clarinho ao mulato escuro, do cafozo ao
mameluco, do moreno ao escurinho, do pretinho ao marrom
bombom. É preciso então que os leitores tenham em mente que,
toda vez que estiverem diante de uma estatística que envolva a cor
dos indivíduos, os números relativos aos negros englobam sempre
os números relacionados aos pardos. Na caminhada que esse livro
propõe, esse esclarecimento é fundamental. Eu sempre chamarei
os pretos de negros.
O problema é definir o que é pardo. Para mim, é constrangedor
ter de discutir nesses termos, eu que não tenho a cor de ninguém
como critério de nada. Mas, infelizmente, é a lógica que reina no
debate, e eu tenho de me curvar a ela. A funcionária do lBGE que
me ajuda com os números se disse parda ao censo, "parda como a
Glória Pires". Mas, para muitos, a Glória Pires é branca. Digo isso
com real preocupação: quem é pardo? O pardo é um branco meio
negro ou um negro meio branco? Chamar um pardo de afro-des
cendente é mais do que inapropriado, é errado.
Tenho uma amiga cujo pai é negro assim como todos os ascen
dentes dele. A mãe é italiana, assim como todos os ascendentes
dela. Como chamá-la apenas de afro-descendente? Por que lógi
ca? Se alguma lógica existe, o correto seria chamá-la de ítalo-afro
descendente ou afro-ítalo-descendente, como preferirem. E como
todos os pardos são, na origem, fruto do casamento entre brancos
(europeus) e negros (africanos), os pardos deveriam ser generica
mente chamados de euro-afro-descendentes. Teriam, ainda assim,
direito a cotas ou a outras políticas de preferência racial ou o pre
fixo "euro" os condena irremediavelmente? Falando assim, tão
cruamente, pretendo deixar claro como todas essas d€ft:hições são
em si racistas. Porque não devemos falar em negros, pardos ou
brancos, mas apenas em brasileiros.
Somar pardos e negros, portanto, seria apenas um erro meto
dológico se não estivesse na base de uma injustiça sem tamanho.
52 NÃO SOMOS RACISTAS
Porque todas as políticas de cotas e ações afirmativas se baseiam na
certeza estatística de que os negros são 65,8% dos pobres, quando,
na verdade, eles são apenas 7,1%. Na hora de entrar na universidade
ou no serviço público, os negros terão vantagens. Os pardos, não.
Do ponto de vista republicano, isso é grave. Na hora de justificar as
cotas, os pardos são usados para engrossar (e como!) os números.
Na hora de participar do benefício, são barrados. Literalmente.
Em 2003, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul insti
tuiu cotas para negros em seu vestibular: 20% das vagas, 328 luga
res. Para a seleção, 530 estudantes se disseram negros e tiveram de
apresentar foto colorida de tamanho cinco por sete. Uma comis
são de cinco pessoas foi constituída para analisar as fotos segundo
alguns critérios. Só passariam os candidátos com o seguinte fenó
tipo: "Lábios grossos, nariz chato e cabelos pixaim", na definição
dos avaliadores. Setenta e seis foram rejeitados por não terem tais
características. Provavelmente, eram pardos.
Que o Brasil é injusto, não há dúvida, mas criar mais uma in
justiça é algo que não se entende. Por que os pardos, usados para
justificar as cotas, terão de ficar fora delas, mesmo sendo tão po
bres quanto os negros? Porque alguns têm nariz afilado ou cabelos
ondulados? E por que os brancos, mesmo pobres, serão conde
nados a ficar fora da universidade? Os defensores de cotas raciais
dizem que os brancos são "apenas" 34,2% dos pobres. Apenas?
Estes 34,2% significam 19 milhões de brasileiros, um enorme con
tingente que será abandonado à própria sorte. A simples existên
cia de tantos brancos pobres desmentiria por si só a tese de que a
pobreza discrimina entre brancos e negros: em países verdadeira
mente racistas, o número de pobres brancos jamais chega próxi
mo disso. Da mesma forma, o enorme número de brasileiros que
se declaram pardos, 76 milhões numa população de 182 milhões,
já mostra que somos uma nação amplamente miscigenada. Como
o pardo tem de ser, necessariamente, o resultado do casamento
entre brancos e negros, o número de brasileiros com algum negro
SUMIRAM COM OS PARDOS 53
na família é necessariamente alto. Isso seria a prova de que somos
urna nação majoritariamente livre de ódio racial (repito que, sim,
sei que o racismo existe aqui e onde mais houver seres humanos
reunidos, mas, certamente, ele não é um traço marcante de nossa
identidade nacional).
Todos esses números só reforçam a minha crença de que políti
cas de cotas raciais são extremamente prejudiciais e injustas. Em
todas as universidades que instituíram políticas assim, há discus
sões antes não conhecidas entre nós: negros acusando nem tão
negros assim de se beneficiarem indevidamente de cotas; pardos
tentando provar que o cabelo pode não ser pixaim, mas a pele é
escura; e brancos se sentindo excluídos mesmo sendo tao pobres
quanto os candidatos negros beneficiados pelas cotas. Dizendo
claramente: corremos o sério risco de, em breve, ver no BrasH o
que nunca houve, o ódio racial.
Os defensores de cotas raciais se justificam, alegando que cha
mam a pardos e negros indistintamente de negros porque os dois
grupos têm desempenhos em tudo semelhantes em diversos indi
cadores sociais. Como eu disse, seria rotina acadêmica juntá-los e
chamá-los de negros. E tentam afastar o perigo que venho apon
tando, dizendo que ninguém discute que as cotas beneficiarão tan
to negros como pardos, justamente porque pertencem a urna mes
ma categoria social. Isso seria um pouco mais tranqüilizador, mas
creio, no entanto, que esteja apenas no campo das boas intenções.
Do contrário, como explicar o que aconteceu em Mato Grosso do
Sul, onde negros entraram e pardos foram barrados? E há outros
casos que comprovam que os meus temores são concretos.
Em 9 de novembro de 2001, o então governador do Rio, Anthony
Garotinho, sancionou a lei 3.708, instituindo as cotas na Uerj den
tro de um espírito mais largo. Eis o que diz o artigo prim€iro:
Fica estabelecida a cota mínima de até 40% para as popu[aç,5es 1legra
e parda no preenchimento das vagas relativas aos ClIrsos de graduação
54 'IÃO 50MOS RACISTAS
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ([lerj) e da Universidade
Estadual do Norte Fluminense ([lent).
Notem que a lei fala em negros e pardos. A ser verdadeira a tese
de que chamar pretos e pardos de negros é rotina, o Movimento
Negro e os defensores de cotas raciais teriam cometido uma redun
dância na elaboração da lei.
Mas não se tratou de redundância. Para a lei, que naquele mo
mento refletia o pensamento do cidadão médio, negro era sinôni
mo de preto e pardo era pardo mesmo, como sabem todos aqueles
que, como eu, vivem a vida real. Mas não passou muito tempo
para que os defensores das cotas raciais estreitassem a lei. Afinal,
no primeiro vestibular, entraram muitos pardos com nariz afilado,
cabelos lisos e pele em tom claro. Aproveitando a necessidade,
constatada pelo governo do estado, de harmonizar a lei das cotas
raciais com uma outra lei que instituía também cotas para alunos
da rede pública, unificando-as numa só lei, os defensores das cotas
se mobilizaram de tal modo que os pardos foram excluídos da le
gislação. A lei 4.151, sancionada em 4 de setembro de 2003, vetou
as cotas aos pardos, com a seguinte redação do artigo primeiro:
Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e económicas,
deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para in
gresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:
[ - oriundos da rede pública de ensino;
[[ - negros;
[fI - pessoas com deficiência, nos tennos da legislação em vigor, e
integrantes de minorias étnicas.
Os pardos sumiram. A nova lei revogou as anteriores.
Eo sumiço dos pardos não foi obra de nenhum conceito abran
gente de alguns pesquisadores que consideram que pardos são
negros. Foi ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois parágra-
, SUMIRAM COM OS PARDOS 55
fos para definir coisas simples, um para definir o que entende
por "estudante carente" e, outro, para definir o que entende por
"aluno oriundo da rede pública". Mas não há nenhum parágrafo
para definir o que entende por negro (poderiam, se quisessem
incluir os pardos, explicitar que, para o legislador, "negros são a
soma de negros e pardos", mas não o fizeram). E, pior, acrescen
taram um parágrafo, aceitando a autodeclaração como forma de
os negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade
crie mecanismos para combater fraudes. Felizmente, até aqui,
não seguiram o exemplo de Mato Grosso do Sul e exigiram fo
tos. Mas outras universidades enveredaram por caminhos aindamais estranhos.
No edital em que explicita as regras do vestibular, a Universida
de de Brasília adotou em 2003 o sistema de cotas para negros, mas
com uma novidade: o estudante pardo também poderá se bene
ficiar das cotas. Parecia que, finalmente, uma injustiça começava
a ser reparada. Mas a novidade era apenas aparente e se destinava a
fugir do problema exposto acima. O que a UnB propôs foi um ab
surdo, do ponto de vista da lógica, da ética e das leis de igualdade
racial que, até aqui, regiam a nossa República.
Porque o edital dizia o seguinte, no seu item 3.1: "Para concor
rer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros,
o candidato deverá: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a)
e optar pelo sistema de cotas para negros."
Ou seja, o aluno pardo terá de se olhar no espelho, constatar,
mais uma vez desde que nasceu, que a cor da sua pele não é negra
(ou preta) nem branca, é parda. Feito isso, ao preencher a ficha de
inscrição, ele terá de assinalar a opção que mais bem caracteriza a
cor de sua pele: pardo. E, em seguida, será instado a mentir, decla
rando-se negro. Esse procedimento não resiste à lógica, porque, se
o aluno é pardo, ele não pode ser negro. Não resiste à ética! porque
obriga o aluno a mentir, declarando-se negro, quando na verdade
ele é pardo. E não resiste às leis de igualdade racial de nosso país,
56 NÃO SOMOS RACISTAS
porque ninguém pode ser discriminado pela cor da pele. Isso é
racismo.
Mas o edital foi além. Ele também feriu as leis que impedem
toda possibilidade de submeter cidadãos a constrangimentos mo
rais. E não é outra coisa que acontecerá a milhares de alunos par
dos que venham a ser barrados no sistema de cotas. Porque ele
será chamado de mentiroso. O edital estabeleceu o seguinte, no
item 3.2: "No momento da inscrição, o candidato será fotografado
e deverá assinar declaração específica relativa aos requisitos exigi
dos para concorrer pelo sistema de cotas para negros."
E o item 3.3 concluiu: "O pedido de inscrição e a foto que será
tirada no momento da inscrição serão analisados por uma Comis
são que decidirá pela homologação ou não da inscrição do candi
dato pelo sistema de cotas para negros."
Portanto, o candidato pardo terá de se dizer obrigatoriamente
negro, e, depois, sua foto será analisada por uma comissão que ve
rificará que ele, não sendo negro, mentiu, e, logo, não tem direito
a participar das cotas. A inclusão de pardos é apenas uma ilusão,
uma maneira encontrada para fugir das críticas. Porque está clara
a intenção da UnB: só se beneficiarão das cotas os negros pretos
(um pleonasmo) ou os pardos negros (uma impossibilidade ótica).
E quem terá o poder para decidir quem é uma coisa ou outra, num
país de miscigenados como o nosso, é uma comissão de umas pou
cas pessoas, únicas capazes de fazer tal distinção.
Pode fazer sentido acadêmico juntar negros e pardos numa ca
tegoria "negros", com a justificativa de que os dois grupos com
partilham de um mesmo perfil socioeconômico. Mas esses poucos
exemplos que relatei aqui mostram a distância entre os conceitos
formulados em gabinetes universitários e a prática do dia-a-dia.
Não vou nem dizer que, sendo os pardos mais numerosos que os
negros (42%) e os pretos (5,9%), talvez fizesse mais sentido ape
lidar o grupo resultante dessa soma de "pardos" e não de "ne
gros". Mas, para que não pairasse qualquer dúvida, melhor teria
I SUMIRAM COM OS PARDOS 57
sido chamar o grupo pelo nome correto: "os negros e os pardos."
Isso evitaria toda sorte de mal-entendidos. Ou de ilusões. Porque
é estatisticamente impossível dizer quem, entre os 42% de pardos
no Brasil, é mais escuro, mais claro, menos branco, menos escuro.
Será a maioria ou a minoria ou o quê? Ninguém sabe.
Apesar de tudo isso, todas as estatísticas sobre o assunto se re
ferem a negros, pondo sob o mesmo rótulo também os pardos.
Esclarecido o truque, os próximos capítulos vão demonstrar como
se lêem tortamente as estatísticas envolvendo os negros no Brasil.
o QUE OS NÚMEROS NÃO DIZEM
QUER CHEGAR A CONCLUSÕES PRÕXIMAS DA VERDADE? ENTAo vA AOS
números, mas a todos e não apenas àqueles que são favoráveis à
sua tese. Nos últimos anos, os brasileiros foram invadidos por uma
tonelada de números mostrando as péssimas condições em que vi
vem os negros (negros e pardos). Sempre citando tabelas do IBGE,
pesquisadores têm se agarrado principalmente a um dado especí
fico para demonstrar que no Brasil os brancos oprimem os negros:
o salário dos negros e pardos é a metade do salário dos brancos,
mesmo quando o nível educacional é o mesmo. É verdade? É, mas
os dados não demonstram o racismo.
Porque os números estão sempre incompletos. Geralmente, a
fonte de tudo é a Síntese de Indicadores Sociais, feita com base
nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
e divulgada anualmente. Como o interesse maior é por brancos,
negros e pardos, na brochura, tudo está restrito a esses segmentos.
Os números relativos àqueles que se denominam amarelos jamais
são citados. Mas eles estão disponíveis a qualquer pesquisador na
base de dados do IBGE. E são reveladores.
No Brasil, os amarelos ganham o dobro do que ganham os tam
bém autodenominados brancos: 7,4 salários mínimos contra 3,8
dos brancos (os autodenominados negros e pardos ganham dois).
Ora, se é verdadeira a tese de que é por racismo que os negros e
60 NÃO SOMOS RACISTAS
VALOR MÉDIO DO RENDIMENTO E NÚMERO MÉDIO DE ANOS DE
ESTUDO, POR COR DAS PESSOAS. BRASIL - PNAD 2004
F t · IBGE Pesquisa Nacional por Amostra de Domicmos. Microdados, CD-ROM.on e. , , d na de
Notas: Renda de todas as fontes das pessoas de dez anos e mals~ ocupa as na semareferência. Exclusive sem rendimento, sem declaração de rendimento e anos de estudonão determinados.
o QUE os NÚMEROS NÃO DIZEM 61
pode ser dito com mais propriedade em relação aos pobres, sejam
brancos, negros, pardos ou amarelos. São os pobres que têm as pio
res escolas, os piores salários, os piores serviços. Negros e pardos
são maioria entre os pobres porque o nosso modelo económico foi
sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por
definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre.
Mas o leitor deve estar se perguntando: como pode um negro
e um pardo com o mesmo nível educacional ganhar menos do
que um branco? Não pode. Nem as estatísticas dizem isso. O que
elas mostram é que negros e pardos, com o mesmo número de
anos na escola que brancos, ganham menos. Isso não quer di
zer que tenham recebido a mesma educação. Basta acompanhar
este exemplo hipotético: um negro, por ser pobre, estudou 12
anos, provavelmente em escolas públicas de baixa qualidade e,
se entrar na universidade, não terá outra opção senão estudar em
faculdade privada caça-níqueis (o Programa Universidade Para
Todos, ProUni, do governo federal, destinado a dar bolsas a es
tudantes carentes, não resolve o problema, mas o perpetua); o
branco, por ter melhores condições financeiras, estudou também
12 anos, mas fazendo o percurso inverso, estudou em boas escolas
privadas e cursará a universidade numa excelente escola públi
ca. A diferença salarial decorre disto e não do racismo: "Você é
negro, pago um salário menor." Infelizmente, não há estatística
que meça quanto ganham cidadãos de cores diferentes com igual
qualificação educacional. Da mesma forma, não é correta a afir
mação de que brancos e negros, em funções iguais, ganhem salá
rios desiguais. O IBGE não mede isso. Não há tabela mostrando
que marceneiros brancos ganhem mais que marceneiros negros.
O que ele faz é estratificar os segmentos em categorias: com car
teira, sem carteira, domésticos, militares, funcionários públicos
estatutários, por conta própria e empresários. Ou por setores: in
dústria, comércio, agricultura etc. Mas nunca por função ou ofício ou nível hierárquico.
I
2,0
6,26,4
2,13,8
8,4
7,4
10,7Número médio de
anos de estudo
Valor médio do
rendimento, em
salários mínimos
pardos ganham menos, haverá de ser, em igual medida, também
por racismo que os amarelos ganham o dobro do que os brancos.
Se o racismo explica uma coisa, terá de explicar a outra, elementar
princípio de lógica. E, então, chegaríamos à ridícula conclusão de
que, no Brasil! os amarelos oprimem os brancos.
Não, o racismo não explica nem uma coisa nem outra. Por
que não somos racistas, repito. A explicação se encontra no nível
cultural e na condição económica dos diversos segmentos da po
pulação. Vejamos: os amarelos estudam, em média, 10,7 anos; os
brancos estudam menos, 8,4 anos; e os negros, menos ainda, 6,4
anos. Os amarelos estudam mais e, por isso, ganham mais. Nada
a ver com a cor. Ao visualizar a seguinte tabela, o leitor terá mais
clara a relação entre renda e anos de estudo:
Diante desses números, mais lógico seria supor que é preciso ge
rar renda e distribuí-la de maneira mais justa, para que os mais po
bres possam melhorar de vida. E investir em educação tendo como
alvo os pobres em geral, e não apenas os negros, para que todos te
nham a chance de ter uma vida mais digna. Melhor ensino, melhor
salário. Porque tudo o que se diz em relação aos negros e pardos
62 NÃO SOMOS RACISTAS O QUE OS NÚMEROS NÃO DIZEM 63
Portanto, onde o racismo poderia estar mais presente, na casa
das pessoas, ele não está: a diferença salarial entre trabalhadores
RENDIMENTO MÉDIO MENSAL REAL DOS TRABALHADORES DO~1ÉSTICOS
NO TRABALHO PRINCIPAL, DA SEMANA DE REFERÊNCIA, DE DEZ ANOS
OU MAIS DE IDADE, POR GRANDES REGiÕES. BRASIL - 2003/2004
que esteja, é possível que um negro classificado como analfabeto
funcional receba menos do que um branco, bastando para isso que
esteja no nível 1 e o branco no nível 2. Se é verdade que os negros
e pardos são a maior parte dos pobres, numericamente ao menos
é muito provável que haja mais negros e pardos no nível 1 do que
brancos, o que poderia explicar as diferenças salariais.
A prova dos nove seria saber se analfabetos funcionais, de mesmo
nível, trabalham em funções iguais com salários diferentes. O IBGE
não mede isso. A única ocupação cujo rendimento o IBGE mede é a
dos domésticos. Entre eles, porém, apenas 27% ou não têm instru
ção alguma ou são analfabetos funcionais. Mas é o grupo que pode
ser analisado. Na média nacional, um doméstico branco ganha
R$269, e um negro, R$261. No Sudeste, os brancos ganham R$303, e
os negros, R$29 7; no Centro-Oeste, brancos ganham R$ 251, e negros,
R$248; no Norte, os brancos recebem R$220, e os negros, R$192;
em duas regiões, negros ganham mais do que brancos no Sul,
brancos ganham R$263, e negros, R$276; e, no Nordeste) brancos
ganham R$162, e negros, R$176. Veja a tabela:
261
192176
276297
248
220
303263
162
269
251
Nordeste
Norte
SulSudeste
Centro-Oeste
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilias.
Vejamos o que acontece com militares e estatutários: de fato,
negros ganham R$1.170,90 e brancos, R$1.477,51. Mas, novamen
te, é a qualificação educacional que conta para a diferença, não a
cor. Ou alguém imagina que no século XXI, num país republicano
como o Brasil, que se orgulha da sua "Constituição Cidadã", um
servidor público, civil ou militar possa ganhar mais por causa da
cor? Impossível, as carreiras são tabeladas. Ocorre é que quem não
tem dinheiro não se gradua em general, por exemplo, seja branco
ou negro, porque não tem recursos para cursar as escolas prepara
tórias. Há, provavelmente, mais cabos de origem humilde (portan
to, mais negros) do que generais de origem humilde.
Mas a tabela mais citada mostra que analfabetos funcionais negros,
em qualquer função, ganham 31,6% menos que os brancos. Nesse
caso, não haveria desnível educacional que explicasse a diferença sa
larial. Será? O Instituto Paulo Montenegro faz pesquisas para estabe
lecer o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), através
de testes de leitura. No último estudo, os pesquisadores lembram que
o IBGE seguiu sugestão da Unesco ao considerar analfabeto funcio
nal aquele com menos de quatro anos de estudo, mas se perguntam:
"Será que quatro anos garantem o alfabetismo funciona!?"
O instituto quer provar que o analfabetismo funcional pode atin
gir séries mais avançadas. Mas, para nossos propósitos, é valiosa
a análise sobre as diferenças entre os que têm até quatro anos de
estudo. Entre aqueles que jamais foram à escola, ainda assim 20%
se encontram no primeiro de três níveis: têm habilidade baixa, só
localizam informações simples em enunciados de uma única frase.
Entre aqueles que têm de um a três anos de estudo, 32% são anal
fabetos absolutos, 51% estão no nível 1 e 18% estão no nível 2: têm
uma habilidade básica, são capazes de localizar informações em car
tas e notícias. Assim, é impossível pegar números frios do IBGE e ga
rantir que todos os que têm até quatro anos de estudo formam uma
base homogênea. Seria necessário saber quantos brancos e quantos
negros estão nos níveis 1 e 2. Portanto, dependendo do nível em
64 NÃO SOMOS RACISTAS
domésticos negros e brancos não é tão acentuada. E aqui vai uma
curiosidade. Domésticos pardos têm salários menores do que do
mésticos negros: na média nacional, R$221; no Norte, R$207; no
Nordeste, R$159; no Sudeste) R$264; no Sul, R$233; e no Cen
tro-Oeste, R$238. Ora, como explicar isso à luz da tese corrente
(de Oracy Nogueira e tantos outros) de que o preconceito racial
é maior quanto mais escura for a cor da pele? A ser verdade, do
mésticos negros deveriam receber menos do que pardos, que são
mais claros. Isso é mais um indicador de que o racismo não serve
para justificar diferenças salariais. Hoje, muitos querem encontrar
soluções rápidas para pôr fim a desigualdades produzidas ao longo
de séculos, não pelo racismo, mas pela pobreza. O único caminho,
porém, é investir na educação.
O olhar torto para as estatísticas, no entanto, parece não dar
trégua. A Síntese de Indicadores Sociais registra que praticamente
100% das crianças de 7 a 14 anos, de todas as cores, estavam na
escola. Mas constata também que, entre os jovens de 15 a 24 anos,
48% dos brancos cursavam o ensino médio, enquanto 41% dos
negros ainda cursavam o ensino fundamental. E, na mesma faixa
etária, 31% de brancos estavam no ensino superior, contra apenas
14% de negros.
Concluir, porém, a partir desses números, que somos racistas é
indevido. Porque seríamos esquizofrênicos: com crianças de até 14
anos, os brancos seriam tolerantes, permitindo o livre acesso de
negros à escola. Mas, assim que completassem 15 anos, os brancos
se transformariam em racistas nojentos.
Isso faz algum sentido?
Em 1991, 86,5% das crianças brancas de 7 a 14 anos estavam
na escola contra apenas 71 % das negras. Na época, muitos disse
ram que a razão era o racismo. E a história provou que não: o que
afastava as crianças da escola era a pobreza e a falta de investimen
tos em educação. Uma medida do governo FH ajudou a pôr um
fim nisso: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
o QUE OS NÚMEROS NÃO DIZEM 65
Fundamental (Fundef), que repassou dinheiro às prefeituras de
acordo com o número de matrículas. É razoável supor que o mes
mo acontecerá nas faixas etárias mais elevadas, se o governo Lula
e os seguintes radicalizarem na decisão de investir em educação,
ampliando as verbas pesadamente para o ensino médio.
Mas não tem jeito. Toda vez que sai a Síntese de Indicadores
Sociais é a mesma coisa: as páginas de todos os jornais se inun
dam de matérias mostrando que o racismo no Brasil é grande.
Os números do IBGE não mostram isso. Nem as análises técnicas
que precedem as tabelas. Mas não adianta. Só há olhos para ver
racismo.
O IBGE sabe que não pode escrever aquilo que os números não
mostram. Mas, nas entrevistas à imprensa, os técnicos avançam o
sinal e levam os jornalistas a uma conclusão que o próprio insti
tuto se recusa a tornar oficial. Vejam o que declarou o pesquisador
José Luiz Petrucelli, na divulgação da pesquisa de 2004: "Não se
trata do racismo de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da
sociedade, que resiste a integrar os pretos e pardos. Apesar de o
sistema de cotas ser emergencial e provisório, grandes instituições
como a Universidade de São Paulo resistem a adotá-Ias."
A frase contém uma ofensa, uma inverdade e um absurdo.
A ofensa é chamar de racistas os membros do Conselho Uni
versitário da USP. O que a universidade faz é preservar o siste
ma de mérito: entram os melhores, independentemente da cor.
Não há racismo, é justamente o contrário: ali não há filtro racial.
Em vez de cotas, a USP preferiu adotar mecanismos para tornar
possível a entrada de pobres em geral, e não somente de negros
e pardos. E sem ferir a meritocracia. É assim que patrocina um
excelente curso pré-vestibular, que já atendeu a cinco mil alunos,
voltado a estudantes de baixa renda. E inaugurou em 2005 um
campus com cursos noturnos, na zona leste de São Paulo, onde
a população é majoritariamente pobre. As duas medidas têm se
mostrado efetivas.
66 NÃO SOMOS RACISTAS
A inverdade e o absurdo é dizer que não se trata de um racismo
de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da sociedade. Como as
sim? Então os brasileiros não são racistas, mas as suas instituições
são? Por quê? Porque foram racistas no passado e deixaram de ser,
esquecendo-se de reformar as instituições? Ou as instituições são
produto de poucas mentes abjetas, com poder ditatorial, que tira
nizam os brasileiros com seus mecanismos racistas?
Nada disso faz sentido. O racismo sempre é de pessoas sobre
pessoas, e ele existe aqui como em todas as partes do mundo. Mas
não é um traço dominante de nossa cultura. Por outro lado, nos
sas instituições são completamente abertas a pessoas de todas as
cores, nosso arcabouço jurídico-institucional é todo ele "a-racial".
Toda forma de discriminação racial é combatida em lei.
Os mecanismos sociais de exclusão têm como vítimas os po
bres, sejam brancos, negros, pardos, amarelos ou índios. E o prin
cipal mecanismo de reprodução da pobreza é a educação pública
de baixa qualidade. E é isso o que mostram os números do IBGE.
Urna leitura apressada, porém, leva sempre aos mesmos erros.
Que não são exclusividade nossa. As instituições internacionais,
ligadas à ONU, engajaram-se fortemente na campanha que deseja
provar que somos estruturalmente racistas. Um exemplo de desta
que é o Relatório de Desenvolvimento Humarw (RDH), divulgado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em
2005. O relatório não traz produção própria: é um "cozido" dos mui
tos estudos que nos últimos tempos tentam provar que, no Brasil,
brancos dominam negros (o Pnud chama negros o conjunto de ne
gros e pardos). Mas o que se comete ali é o que eu chamo de sensa
cionalismo acadêmico. No capítulo "As desigualdades sócio-raciais",
há uma atrocidade. Primeiro, eles dizem que, em 1982, 58% dos ne
gros e 21% dos brancos estavam abaixo da linha da pobreza, contra
47% dos negros e 22% dos brancos em 2001. Mas, em vez de trocar
isso em miúdos, preferiram dar destaque a outro recorte. Declararam
que, entre 1992 e 2001, o número absoluto de brasileiros abaixo
O QUE OS NÚM EROS NÃO DIZEM 67
da linha da pobreza caiu cinco milhões, mas todos brancos ou de
outras "categorias raciais": o número de negros pobres teria crescido
quinhentos mil. É como se só brancos melhorassem de 'Vida. No site
do Pnud, essas informações estavam em grande destaque.
Fiz as contas, e espero que o leitor me acompanhe, apesar da
aridez do terreno. Repetindo: com base nos números do próprio
Pnud, no período entre 1982 e 2001, o percentual de negros e par
dos pobres caiu de 58% para 47% e o de brancos pobres se man
teve praticamente estável, de 21 % para 22%. Em números absolu
tos, em 1982 havia 15 milhões de brancos pobres e 31,6 milhões
de negros e pardos pobres e, em 2001, 20,1 milhões de brancos
pobres e 36,9 milhões de negros e pardos pobres. Portanto, em 19
anos, em função do aumento populacional, o número de negros
e pardos pobres cresceu 5,3 milhões, apesar da queda percentual, e
o número de brancos pobres cresceu 5,1 milhões, apesar da estabi
lidade em termos percentuais. Apopulação total de negros e pardos
no período cresceu 44,2%, enquanto a população total branca cres
ceu 27,6%. Portanto, a diferença maior de negros e pardos pobres
no período - trezentos mil - mais do que se justifica pelo maior
crescimento populacional do grupo em relação aos brancos. Se
levarmos isso em conta, verificaremos que 25,6% dos brancos
que se somaram à população brasileira no período eram pobres
e que essa proporção foi menor entre os negros e pardos: 22,1%. E
mais: se percentualmente a pobreza entre negros e pardos tivesse
se mantido estável (58%), como ocorreu com os brancos, o núme
ro de pobres negros e pardos em 2001 deveria ser de 45,6 milhões
e não de 36,9 milhões. Logo, 8,7 milhões de negros e pardos es
caparam da pobreza. A melhora na situação do negro e do pardo
foi expressiva: a pobreza caiu muito mais acentuadamente entre
os negros e pardos do que entre os brancos. Naturalmente, o Pnud
não fez essas contas, preferindo aquele outro recorte "sensaciona
lista". Eu chamo isso de manipulação. Visualmente, uma tabela
sobre todas essas contas poderia ficar assim:
68 NÃO SOMOS RACISTAS
ALGUNS INDICADORES SOBRE POBREZA, POR COR DAS PESSOAS
População71,5 91,2 27,6% 54,5 78,6 44,2%(milhões) (1)
Total de pessoas
abaixo da linha da15,1 20,1 5,1 31,6 36,9 5,3
pobreza (milhões)
(3)
Proporção de
pessoas abaixo da 21% 22% 1% 58% 47% -11%
linha da pobreza
Simulação para
o total de pessoas
abaixo da linha
da pobreza se
a proporção 15,0 19,2 4,1 31,6 45,6 14,0
em 1982 se
mantivesse
constante em
2001 (milhões)
Simulação para
o total de pessoas
que escaparamO 8,7
da pobreza
entre 1982 e 2001
(milhões)
Fonte: (1) IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.(2) IBGE, População projetada para 1982.
(3) Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).Relatório de Desenvolvimento Humano, 2005.
o QUE os NÚMEROS NÃO DIZEM 69
A coisa é freqüente. Também em 2005, saiu um estudo compa
rando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de brancos e
negros (incluindo os pardos) em municípios brasileiros. O estudo
em si era uma bobagem: se 66% dos pobres são negros e pardos,
não é surpreendente que o IDH da maior parte dos negros e par
dos, em qualquer município, não seja alto. Pois bem: o estudo
destacou com estardalhaço que em apenas sete municípios o IDH
dos negros e pardos era alto, situação em que os brancos se encon
tram em 1.591 municípios. É uma escolha estatística pela pior no
tícia. Eu poderia ter feito outra opção. Por exemplo: em 88% dos
municípios pesquisados, os negros e pardos têm IDH médio-alto e
médio; o mesmo acontece com os brancos em 69% das cidades. Areportagem não fez essa conta, claro.
Um outro estudo mostrou que seria preciso aplicar R$67 bilhões
em ações voltadas para negros (incluindo os pardos) em sanea
mento básico, educação e habitação para que brancos e negros e
pardos tivessem um mesmo padrão social. Não consigo entender
como alguém pode fazer uma conta como essa. Qual seria o re
sultado se o governo enveredasse por esse caminho? Um país em
que os negros e pardos estariam em ótimas condições, mas os 19
milhões de brancos pobres continuariam com índices humilhan
tes. Isso não faz o menor sentido. A conta não deve ser quanto é
preciso para tirar os negros (incluindo os pardos) da pobreza, mas
quanto é necessário para tirar os pobres da pobreza, negros, pardose brancos.
Com freqüência, porém, dizem que minhas afirmações são fruto
do que chamam de pensamento convencional. E eu concordo: de
fato, chego a essas conclusões usando apenas o raciocínio lógico. É
justamente a falta do pensamento convencional que embaça o de
bate. Certa vez, vi na TVE do Rio de]aneiro alguém defendendo a
ação do Ministério Público do Trabalho: "Esse programa é uma re
volução silenciosa porque está fazendo as empresas olharem para
dentro de si e verem que não têm trabalhadores negros. O progra-
70 NÃO SOMOS RACI STAS
ma está combatendo os clichés de que o racísmo é um problema
económico, social e educacionaL. Porque, na verdade, está sendo
demonstrado que há vários negros capazes em número suficien
te, e eles não estão sendo absorvidos pelo mercado de trabalho."
Taí um pensamento não convencional. Ou bem é verdade que
o racismo barra os negros nas universidades ou bem é verdade
que as universidades despejam no mercado todos os anos muitos
profissionais de qualidade que não são absorvidos pelas empresas
por racismo. Os dois fenómenos não podem coexistir na mesma
medida. Apesar disso, as cotas são vistas como remédio para am
bos os fenómenos.
Outro argumento freqüente dado como prova de racismo é a
distribuição geográfica de brancos e negros (incluindo os pardos)
nos bairros das cidades. Naquele mesmo programa da TVE, um
professor repetiu o que muitos dizem: nas favelas cariocas, 90%
dos habitantes são negros. Não é verdade. Nas favelas da cida
de do Rio, segundo o IBGE, 58,6% se declaram negros e pardos,
contra 41,4% que se dizem brancos, um contingente altamente
expressivo. Onde está o racismo? Considerando todas as favelas
pesquisadas, 22°/ó delas, ou 114 comunidades, têm mais brancos
do que negros e pardos, entre elas a Rocinha, onde os brancos são
54%, Rio das Pedras, com 58% de brancos e o morro do Timbau,
com 61% de brancos. No Brasil) 59,7% dos favelados são negros,
e 40,3%, brancos.
PROPORÇÃO DE PESSOAS RESIDENTES EM FAVELAS NO BRASIL E NA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO, POR COR DAS PESSOAS. BRASIL - 2000
O QUE OS NÚI.lEROS NÃO DIZEM 71
Espero sinceramente que este capítulo, coalhado de números,
tenha ficado suficientemente claro para mostrar como as estatís
ticas têm sido usadas de maneira enviesada, turvando um debate
que devia ser cristalino: o nosso problema é a pobreza e não umasuposta desigualdade racial.
No próximo capítulo, vou tentar desmontar a tese de que há
racismo no mercado de trabalho brasileiro.
Brasil
Cidade do Rio de Janeiro
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2000.
40,3%
41,4%
59,7%
58,6%
NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO
NÃo PASSA MUITO TEMPO SEM QUE A IMPRENSA DIVULGUE ALGUMA PESQUISA
"demonstrando" que os negros são discriminados no mercado de
trabalho. É como se não somente OS departamentos de recursos
humanos mas todos os departamentos de nossas empresas fossem
dirigidos por racistas inveterados. Do tipo que olha para um can
didato a algum posto de trabalho e pensa: "É negro, pago menos."
Não há mal-intencionados entre esses pesquisadores, mas a visão
é torta.
Vejamos o caso do Instituto Ethos, que luta com muito esfor
ço para promover o conceito de responsabilidade social nas em
presas. A cada dois anos, este instituto, em parceria com outras
entidades, divulga um estudo sobre a participação do negro nas
quinhentas maiores empresas do país. E sempre lamenta, em coro
com os jornais, o mau posicionamento do negro no mercado de
trabalho. A grande grita sempre gira em torno do fato de que uma
parte expressiva das empresas não sabe responder quantos negros
há em cada nível funcional. Em 2003, o número era de 27%; em
2006, caiu levemente para 24%. Esses dados sempre são divulgados
como indício de que, no Brasil, existe racismo. Um paradoxo.
Quase um terço das empresas demonstra a entidades seriíssimas
que "cor" ou "raça" não são filtros em seus departamentos de RH
e, exatamente por essa razão, as empresas passam a ser suspeitas
Ano
NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 75
1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004
PROPORÇÃO PERCENTUAL DE CRIANÇAS NEGRAS (INCLUINDO AS
PARDAS) DE 10 A 14 ANOS ANALFABETAS. BRAS IL
A pesquisa do Ethos mostra isso, mas o instituto e os jornais
preferem destacar os dados ainda negativos. Manchetes vão para o
fato de que, embora os negros (incluindo os pardos) sejam 48% da
população, apenas 26,4% dos empregados das quinhentas maio
res empresas são negros e pardos (o número era de 46% e 23,4%,
respectivamente em 2003). Isso é mostrado como prova de que
no Brasil existe racismo, mas a própria pesquisa mostra que talvez
isso se deva principalmente à condição educacional dos pobres.
Em 1992, o analfabetismo atingia 19,2% das crianças negras entre
10 e 14 anos; em 2004, esse número caiu para 5,5%.
30%
25%
20%
15%
10%
5%,
0%1992
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicnios. Microdados, CD-ROM.
Na reportagem do Globo que divulgava o estudo do Ethos, dizia
se que, em 1992, 51,2% das crianças negras (incluindo as pardas)
estavam atrasadas no ensino escolar e que, em 2002, esse núme
ro desabou para 22,3%, uma queda de trinta pontos percentuais.
Nas tabelas que fiz, não encontrei esses dados, mas, de qualquer
formaj a redução foi drástica. Em 1992, 52,4% das crianças negras
(incluindo as pardas) estavam atrasadas na escola; esse número de
sabou em 2002 para 28,3% e, em 2004, caíra ainda mais: 24,6%.
de racismo. Elas são acusadas por aquilo que as absolve. Tempos
perigosos, em que pessoas com ótimas intenções não percebem
que talvez estejam jogando no lixo o nosso maior património: a
ausência de ódio racial.
Há toda uma gama de historiadores sérios j dedicados e igual
mente bem-intencionados, que estudam a escravidão e se depa
ram com esta mesma constatação: nossa riqueza é esta, a tolerân
cia. Nada escamoteiam: bem documentados, mostram os horrores
da escravidão, mas atestam que, não a cor, mas a falta de educação
é que explica a manutenção de um indivíduo na pobreza. Não
negam o racismo, porque ele sempre existirá em alguma medida,
mas, com números, argumentam que a inexistência da intolerân
cia racial tem raízes na nossa história. A verdade é que a escravidão
não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande
a mobilidade social dos escravos. Tão grande que, na região de
Campos, na virada para o século XIX, um terço da classe senho
rial era de "pessoas de cor", segundo censos da época. Números
como esses têm sido revelados por estudos mais recentes de de
mografia histórica. Era assim em Minas e na Bahia. Ou seja, uma
vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros
fossem aceitos como iguais pelos brancos e pudessem comparecer
ao mercado de escravos, na condição de compradores, segundo
o relato de muitos viajantes da época, como Henry Foster, que
acabou se estabelecendo como fazendeiro em Pernambuco: bas
tava ter dinheiro. Hoje, se a maior parte dos pobres é de negros e
pardos, isso não se deve à cor da pele. Não existe isso, no Brasil:
"É negro, deixa na pobreza." Nos últimos cem anos, nosso modelo
foi concentrador de renda: quem era pobre boas chances teve de
continuar pobre. Há pelo menos uma década, o país tem tentado
enfrentar esse desafio, ainda que timidamente. Com crescimento
económico e uma melhor distribuição de renda, a condição do ne
gro vai melhorar acentuadamente. Porque, aqui, a discriminação
pela cor não é estrutural.
74 NÃO SOMOS RACISTAS
76 NÃO SOMOS RACISTAS
Ora, em vez de se concluir que, com essa tendência, tudo indica
que nos próximos anos a participação dos negros e pardos nas em
presas será muito maior, preferiu-se destacar o retrato congelado da
situação de hoje e decretar: os negros e pardos não são tão numerosos
como deveriam ser naquelas empresas, não por questões educacio
nais comuns a toda a população pobre, mas porque as empresas são
racistas. A pesquisa costuma destacar que negros e pardos ganham
metade do que ganham os brancos, mas não pondera que os pri
meiros, por serem pobres, tiveram uma educação pior e, por isso, no
agregado, estão menos preparados que os brancos e, em conseqüên
cia, têm salários menores. Já discutimos isso no capítulo anterior.
É uma maneira embaçada de ver as coisas. Há muitos indícios
de que a discriminação por cor não atue acentuadamente no mer
cado de trabalho. Numa das reportagens sobre a pesquisa do Ethos
publicada no jornal O Globo, um funcionário de uma das empresas
foi entrevistado. Ele deu um testemunho eloqüente de que nunca
enfrentou racismo no emprego. Textualmente, eis o que ele disse:
"Sempre que disputei uma vaga, fiquei com o emprego. Sou um
bom profissional e, sem dúvida, um profissional de sorte."
Ou seja, ele atestou que nunca a sua cor fora impedimento para
conseguir uma vaga, o determinante era o seu talento. Mas o dis
curso bem-intencionado que vê racismo em tudo está começando
a ficar tão disseminado que se preferiu publicar o seguinte subtítu
lo: "O técnico Leílson Gomes credita parte de sua ascensão profis
sional à sorte." Este é o perigo: o que é um património passa a ser
encarado como obra do acaso. Não, Leílson ganhou todas as vagas
que disputou porque nós, brasileiros, conseguimos construir um
país que, apesar de muitos defeitos, tem uma grande qualidade:
a inexistência de ódio racial. Isso não é sorte. É o fruto da cons
trução de gerações que experimentaram sempre a tolerância. Se
perdermos isso agora, não será azar. Será o resultado de boas inten
ções que não conseguem ver a riqueza que temos. Trata-se de uma
campanha que não dá tréguas, e vem agora de todos os lados.
NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 77
O IBGE, por exemplo. Pressionado pelo Movimento Negro,
realizou em 2004 uma pesquisa sobre emprego e raç;c, e, com
base nela, os jornais concluíram que os dados "compr:JVavam"
que os negros (incluindo os pardos) são discriminados no mer
cado de trabalho. Foi um erro, um passo além do qu<' os nú
meros permitiam dizer. A pesquisa revelou que os negros - a
soma de pretos e pardos - eram a maioria dos desempregados,
tinham as piores ocupações e ganhavam a metade do :5alário elos
brancos (essa ficção, quem é branco no Brasil?). Mas nada nos
estudos permitia dizer que os negros e pardos estão nessa con
dição porque o Brasil é racista ou porque os brancos são racistas
ou porque os empregadores discriminam os negros e pardos. A
pesquisa não mostrava, porque isso seria impossível, que um
engenheiro negro ganhava metade do que ganhava um enge
nheiro branco. Ou que um porteiro branco recebia o dobro do
que recebia um porteiro negro. Como já mostrei no capítulo
anterior, os negros vivem essa situação porque são, na :naioria,
pobres e, como todos os pobres, tiveram acesso a escola;; piores,
a um ensino deficiente. Sem estudo, não há trabalho, não há
emprego, não há bons salários.
O governo, no entanto, em vez de concentrar esforço> para ele
var a qualidade de ensino no Brasil e para dar escola de bo m nível
a todos os pobres, sejam brancos, negros ou pardos, parece pu:
ferir colocar a culpa nos brasileiros brancos. É, sem dú"tda, urna
solução simples: tira a responsabilidade de si próprio, fal crescer
um sentimento de culpa nos brancos, leva os negros a culpar os
brancos pelas condições em que vivem e a agradecer ac governo
o favor de denunciar a situação. Mas não resolve o pme lema, e
pode criar outros, tão ou mais sérios: repito, o ódio r;ceal, senti
mento que até aqui desconhecíamos, e demandas impossíveis ele
atender. Daqui a pouco, anotem, haverá quem proponha uma lei
estabelecendo aumento salarial de não sei quantos por cento aos
negros para que a distorção salarial seja sanada. Para jXUtD:r ~en-
78 NÃO SOMOS RACISTAS
sata, a proposta será de pequenos aumentos anuais por um prazo
de x anos, até que negros e brancos ganhem salários iguais. Se os
negros no Brasil ganham menos porque são discriminados, nada
mais correto do que corrigir a situação por decreto.
Não, nada é simples. O mal deste país não é o racismo. Ele existe
aqui, como em todo lugar, mas, entre nós, nem de longe se trans
formou na marca de nossa identidade. Sempre nos orgulhamos do
nosso ideal de nação, um país de miscigenados, em que o próprio
conceito de raça faz pouco sentido. Há pouco tempo, a Grã-Bre
tanha esteve em meio a uma campanha para que os britânicos se
aceitassem como uma nação multiétnica: no metrô de Londres,
havia cartazes em que se viam uma jovem muçulmana envolta
num véu feito da bandeira nacional, um negro com um boné de
rapper também nas cores da bandeira, um asiático com um apli
que na roupa nas mesmas cores e um branco com uma bandeira
simulando uma mochila. Todos britânicos, mas sem mistura. Uma
nação multiétnica, portanto.
Até há pouco, os brasileiros riríamos dessa iniciativa. Querendo
deixar o racismo para trás, os brancos britânicos se esforçam ao
menos para acolher como concidadãos pessoas de cores diversas,
desde que não se misturem. Os que vêem o Brasil como racista
querem dar dois passos atrás. Não nos reconhecem nem como
a nação miscigenada que sempre quisemos ser, nem como uma
nação multiétnica, com uma infinidade de cores, cafuzos, mame
lucos, mulatos, brancos, pardos, pretos. Querem-nos uma nação
bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os
negros. É triste.
O nosso problema não é o racismo, mas a pobreza e o modelo
econômico que, ao longo dos anos, só fez concentrar a renda: os
que eram pobres permaneceram pobres ou ficaram mais pobres;
e os que eram ricos, ricos ficaram ou enriqueceram ainda mais.
O Brasil deveria estar unido para resolver esse problema, distri
buindo renda e investindo maciçamente em educação. Quando os
NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 79
pobres deste país tiverem uma educação de qualidade, todos terão
a mesma chance no mercado de trabalho. E as distorções entre
brancos e negros terão um fim.
No próximo capítulo, vou mostrar como negros e brancos po
bres se parecem.
IiI
ALHOS E BUGALHOS
ATÉ AQUI, TENHO TENTADO DEMONSTRAR QUE OS NÚMEROS NÃO MENTEM,
mas enganam quem não OS quer ler sem preconceitos. O que os
defensores da tese de que aqui os brancos oprimem os negros têm
feito é comparar alhos com bugalhos. Mas, para que os números
digam a verdade, é preciso comparar alhos com alhos e bugalhos
com bugalhos. É o que pretendo fazer neste capítulo.
Se alguém pegar a massa de números relativos a todos os bran
cos do país e comparar com a massa de números relativos a todos
os negros (incluindo os pardos) do país, como fazem os cotistas,
não estará chegando a lugar algum. Porque a média de todos os
brancos somados - os paupérrimos, os pobres, os de classe média,
os ricos, os milionários - é uma ficção, o branco médjo só existe
nas estatísticas. Assim como o negro médio também não existe na
vida real. De pouco nos serve, portanto, saber que um branco em
relação a um negro ou a um pardo, em média, é tantas vezes me
nos analfabeto, tem tantos anos a mais de escolaridade ou rece
be um salário tantas vezes maior. É preciso comparar brancos e
negros de mesma característica. Se houver diferenças, aí, então,
talvez, se possa buscar, entre as razões, o racismo.
O máximo que os pesquisadores fazem é pegar grandes gmpos e
compará-los. Por exemplo: os 25% mais pobres entre os r.egros (sem
pre incluindo os pardos) e os 25% mais pobres entre os brancos. Mas
82 NÃO SOMOS RACISTAS
estes dois grupos não são iguais: neles estão negros e brancos resi
dentes em áreas urbanas e rurais, com nenhum, um, dois, três ou
quatro filhos, com rendas que variam de zero até o limite máximo
escolhido. Com tantas variáveis, os dois grupos não são comparáveis.
E as diferenças encontradas entre eles podem ter muitos motivos: ra
cismo, número de filhos, área de domicílio (rural ou urbana), renda.
Nem mesmo o critério de renda, isoladamente, resolve o pro
blema. Suponhamos que se comparem brancos e negros que te
nham R$100 de renda per capita. Mesmo assim, os dois grupos
não são iguais. Um casal negro com quatro filhos, morador da
zona rural, mesmo tendo uma renda per capita de R$100, tem uma
vida completamente diferente de um casal branco, morador de
zona urbana, com renda per capita de R$lOO, mas sem filhos. O
primeiro, apesar de ter renda familiar total de R$600 (o casal, mais
quatro filhos) talvez viva pior do que o segundo, com renda total
de R$200. Porque criar, em sentido amplo (educar, divertir, vestir,
tratar da saúde), quatro crianças é extremamente dispendioso.
A meu pedido, o estatístico Elmo lório pegou os dados brutos
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE de 2004,
acessíveis num CD-ROM a todos os brasileiros, e fez as tabulações
relativas a brancos, negros e pardos, residentes em áreas urbanas,
com um filho e rendimento familiar total de até dois salários (po
bres, portanto). São grupos comparáveis, porque, ao menos em
tese, têm as mesmas condições de vida, as mesmas possibilida
des, as mesmas dificuldades. É comparar alhos com alhos. Pobres
com pobres. Eu poderia ter escolhido brancos, negros e pardos da
área rural, com dois filhos e renda de dois salários mínimos, ou
brancos, negros e pardos com quaisquer outras características, não
importa, desde que pobres: o importante é que os grupos fossem
comparáveis. Se um grupo tiver melhores indicadores sociais do
que o outro, a razão pode ser de fato o racismo.
Feita a comparação entre os três grupos que escolhi, o resulta
do foi o que eu esperava: brancos, negros e pardos pobres têm as
ALHOS E BUGALHOS 83
mesmas dificuldades, o mesmo perfil. Onde está o racismo? Nas
contas de quem confunde alhos com bugalhos.
A pesquisa mostra que a semelhança entre os três grupos é cons
tante e que as diferenças numéricas são estatisticamente desprezí
veis - 73% dos brancos, 72% dos negros e 69% dos pardos sabem
ler e escrever. A média de anos de estudo para os brancos, negros
e pardos é de cinco anos. Trinta e seis por cento dos brancos, 35%
dos negros e 36% dos pardos têm entre quatro e sete anos de estu
do. Doze por cento dos brancos, 11% dos negros e 10o;ó dos pardos
estudaram entre 11 a 14 anos. Praticamente nenhum branco, ne
gro ou pardo estudou mais de 15. O ensino fundamental foi o cur
so mais elevado que 54% dos brancos, 57% dos negros e 61% dos
pardos freqüentaram. Já para 24% dos brancos, 22% dos negros e
21 % dos pardos, o curso mais elevado que já freqüentaram foi o en
sino médio. O número de brancos, negros e pardos que concluíram
o ensino superior é desprezível, embora a vantagem seja dos bran
cos. A paridade entre os três grupos pode ser vista nesta tabela:
Proporção de pessoas que73% 72%
sabem ler e escrever69%
Número médio de anos de estudo 5 5 5
Proporção de pessoas com 4 a 736%
anos de estudo35% 36%
Proporção de pessoas com 11 a 1412%
anos de estudo11% 10%
Proporção de pessoas que têm o ensino
fundamental como curso mais elevado54% 57% 61 %
Proporção de pessoas que têm o ensino24%
médio como curso mais elevado22% 21 %
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicoios. Microdados, CD-ROM.
84 NÃO SOMOS RACISTAS
A vida é difícil para brancos, negros e pardos: 45% dos brancos,
45% dos negros e 47% dos pardos começaram a trabalhar entre os
10 e os 14 anos de idade; 25% dos brancos, 25°;{) dos negros e 23%
dos pardos começaram a trabalhar um pouco mais tarde, entre
os 15 e os 17 anos de idade. A maior parte dos brancos, negros e
pardos ou não tem carteira assinada ou trabalha por conta pró
pria: 36% dos brancos, 39% dos negros e 40% dos pardos não têm
carteira assinada; e 24% dos brancos, 23% dos negros e 27% dos
pardos trabalham por conta própria.
Proporção de pessoas que começam a45% 45% 47%
trabalhar entre 10 e 14 anos de idade
Proporção de pessoas que começam <l25% 25% 23%
trabalhar entre 15 e 17 anos de idade
Proporção de pessoas ocupadas sem36% 39% 40%
carteira de trabalho assinada
Proporção de pessoas ocupadas por24% 23% 27%
conta própria
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Microdados, CD-ROM.
Há muitos outros dados, mas estes são os essenciais.
Esta pesquisa não deixa dúvidas de que não é a cor da pele que
impede as pessoas de chegar à universidade, mas a péssima quali
dade das escolas que os pobres brasileiros, sejam brancos, negros
ou pardos, podem freqüentar. Se o impedimento não é a cor da
pele, cotas raciais não fazem sentido. Mas tampouco fazem senti
do cotas sociais, porque não é a condição de pobre que impede os
cidadãos de entrar na universidade, mas o péssimo ensino público
ALHOS E BUGALHOS &S
brasileiro. A única solução é o investimento maciço em educação,
e jamais soluções mágicas como cotas.
Onde quer que tenham sido adotadas, as cotas não beneficiam
os mais necessitados, mas apenas os mais afortunados entre os ne
cessitados. Elas agravam os conflitos onde eles existem, em vez de
atenuá-los, e fazem surgir disputas mortais entre os potencialmen
te favorecidos e os não-favorecidos, grupos que antes conviviam
harmoniosamente.
Evidentemente, o exercício que fiz aqui é bastante restrito, por
que o grupo estudado é pequeno, comparativamente ao conjunto
da população. Mas quando se quer comparar alho com alho e bu
galho com bugalho, não há alternativa. Infelizmente, o IBGE, até
aqui, não tem feito pesquisas mais amplas que atendam aos requi
sitos que acredito imprescindíveis para se averiguar se o racismo
no Brasil é não somente estrutural, mas se constitui uma barreira
que impeça a mobilidade de negros.
De todos os dados de que disponho, nenhum aponta nessa di
reção. Nosso arcabouço jurídico-institucional, definitivamente,
garante igualdade de direito a todos os cidadãos, independente·
mente de cor, religião ou crença política. Nossas leis combatem,
explicitamente, atas de racismo, punindo-os com severidade. E,
mais importante, quando se analisam os dados disponíveis 50bre a
participação dos negros na vida universitária do país, nota-5e com
c1arezaqueelesestãolonge,muitolonge,dedemonstrarumapnrtlzeiaentre brancos e negros. Da maneira como a coisa é dita pelos
defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem negros, tem-se
a impressão de que não há negros em nosso sistema de ensino
superior. Mas será que as portas do ensino superior estão mesmo
fechadas para negros?
Uma pesquisa feita pelo Ministério da Educação em 2003 entre
os estudantes de nível superior que se submeteram ao chamado
"provão" mostra resultados surpreendentes: 4,4% dos alLlnos de
universidades federais se declararam negros, sendo que él popula-
86 NÃO SOMOS RACISTAS
ção de negros no pais era} naquele ano. de 5}9%. Nas universida
des estaduais} o número era mais expressivo: os que se declararam
negros foram 5,5%. Os pardos eram} nas federais, 30}3% e} nas
estaduais, 30J 5%. A população brasileira que se declarava parda na
época era de 41,4%.
Existe, claro, uma defasagem, mas dada a péssima qualidade de
ensino a que os negros e pardos têm acesso J por serem pobres, a
participação deles no ensino superior surpreende positivamente.
Onde está a gritante defasagem?
A pesquisa ganha ainda mais importância quando se atenta
para um detalhe: ela foi feita entre os 390 mil alunos} de 26 áreas,
que estavam cursando o último ano de estudos, quando estão
prestes a se formar. Portanto, ela é o retrato da situação de negros
e pardos depois de todos os gargalos.
Logo que assumiu o governo, Lula mudou o "provão". Com o
nome de Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes),
ele deixou de ser feito por todos os estudantes do último ano dos
cursos analisados e passou a ser feito} também obrigatoriamente,
apenas por uma amostra deles (os alunos ingressantes no ensino
superior também passaram a ter de se submeter ao teste). Com
isso} perdeu a característica de ser "censitário". Mesmo assim, os
resultados divulgados com base na prova de 2004 continuam a
surpreender positivamente. Dos formandos em universidades fe
derais chamados a fazer o Enade} os negros eram 2}8%, e os par
dos} 25,6%. Entre os iniciantesJ os negros eram 3,3%} e os pardos}
26}6%. Nas estaduais, os negros formandos que fizeram o Enade
eram 2,9910} e os pardos, 24,3%. Já os negros iniciantes eram 3,5%,
e os pardos, 23,7%. A presença de negros e pardos tanto no pri
meiro ano de estudo como no último está longe de ser a nulidade
que muitos pregam.
Isso só me leva a uma conclusão: se os governos municipais,
estaduais e federal decidirem elevar a educação à condição de
prioridade, investindo na qualidade de nosso ensino básico} nos-
ALHOS E BUGALHOS 87
sas universidades estarão coalhadas de estudantes de todas as to
nalidades.
Sem a necessidade de cotas raciais que} como mostrarei no capL
tulo seguinte, jamais apresentaram bom resultado nos paises que
decidiram adotá-las como atalho.
AS COTAS NO MUNDO
SE A SITUAÇÃO DO NEGRO É TAL COMO A QUE DESCREVO ATÉ AQUI, CHEGOU
a hora de perguntar: a adoção de cotas raciais para o ingresso de
estudantes negros e pardos nas universidades é um remédio que
se justifica de fato? Quais foram os efeitos que cotas raciais tive
ram nos países que as adotaram? Entender o que acontece lá fora
é fundamental para que tentemos antever o que pode se dar com
o nosso país. Nesse sentido, um livro é leitura obrigatória: Açao
afinnativa ao redor do mundo, um estudo empírico, de Thomas
Sowell, um dos mais renomados intelectuais americanos, profes
sor de Stanford, que se dedicou a estudar o assunto por sete anos
consecutivos. O livro é uma pesquisa sobre o efeito das ações afir
mativas e da adoção de cotas na Índia, na Malásia, no Sri Lanka,
na Nigéria, nos Estados Unidos e em outros países. As conclusões,
calcadas em fatos e números, são demolidoras.
Quando as cotas surgiram na Índia, seus defensores diziam que
elas durariam dez anos. Isso foi em 1949, e até hoje elas estão em
vigor, ampliadas. O mesmo aconteceu em toda parte, em todos
os países do mundo que adotaram a experiência. O motivo é sim
ples: depois de conceder um benefício assim, que político se dis
põe a retirá-lo, correndo riscos eleitorais imensos? O Brasil não é
exceção: dez entre dez projetos prevendo a adoção de cotas raciais
dizem que elas serão temporárias. O Brasil também não será uma
90 NÃO SOMOS RACISTAS
exceção no futuro: livrar-se das cotas será uma tarefa praticamente
impossível numa democracia de massas como a nossa, em que a
pressão de grupos organizados é decisiva na eleição de um parla
mentar ou mesmo de um presidente.
O mesmo motivo explica uma segunda característica. Uma vez
adotadas políticas de preferência para um grupo, logo surgem
políticos propondo a adoção de ações similares para outros gru
pos, sempre em busca de votos. As cotas na Índia, para citar ape
nas um exemplo, destinavam-se a beneficiar os então chamados
intocáveis, que representavam 16% da população, e membros de
outras poucas tribos fora do sistema de castas (8%). A lei abria,
porém, uma brecha, dizendo que as cotas poderiam também be
neficiar "outras classes atrasadas". Foi o bastante para que, hoje,
o maior número de cotas beneficie essas "outras classes", que
representam 52% da população, e não apenas os intocáveis. Nor
malmente, as cotas surgem para reparar, junto aos descendentes,
discriminações odiosas que tolheram o desenvolvimento social
e económico das gerações passadas de certos grupos sociais. Isso,
no entanto, não impediu que, há poucos anos, a Índia entrasse
num acirrado debate sobre a adoção de cotas especiais para eu
nucos, mesmo sabendo que, por definição, eunucos não geram
descendência.
Esse tipo de irracionalismo é comum quando as cotas são
adotadas: logo, grupos e mais grupos de pressão reivindicam be
nefícios para si, numa espiral sem fim. Hoje, nos Estados Unidos,
por exemplo, o maior conjunto de cotas se destina às mulhe
res, que, em nenhuma hipótese, podem ser classificadas como
minoritárias.
Uma vez adotadas, os grupos que ficam de fora das cotas
usam toda sorte de "desonestidade" para que possam se bene
ficiar delas. É da natureza humana. Quando, nos EUA, cotas
foram adotadas para beneficiar descendentes de índios, houve
um aumento exponencial de indivíduos, muitos deles louros de
AS COTAS NO MUN[)O 91
olhos azuis, dizendo-se membros daquela minoria. O censo de
1960 mostrava que havia cinqüenta mil descendentes de ín
dios com idade ente 15 e 19 anos. Vinte anos depois, o número
de descendentes de índios com idade entre 35 e 39 anDS era de
mais de oitenta mil, uma impossibilidade biológica: ilQ mínimo
trinta mil cidadãos (se nenhum dos originais tivess€ morrído],
visando um benefício a que não tinham direito, passaram a se
identificar como índios, talvez usando para isso um Jongínguo
e esquecido antepassado. Na China, nos anos 1990, de2 milhões
se redesignaram como membros de minorias, para se beneficiar
dos acessos facilitados a universidades e para burlaI a pwibi
ção de ter mais de um filho, imposta à etnia majoritária Han.
No Brasil, antes mesmo de cotas serem uma imposiçãG legal em
todo o país, casos semelhantes já tinham ocorrido desde que as
primeiras universidades adotaram políticas de preferência racial.
Logo no primeiro vestibular da Derj, discussões abjetas sobre se
tal candidato era ou não negro passaram a ocorrer, despdtando
os piores sentimentos do ser humano.
Um dos pontos altos do livro de Sowell é que ele pro\i<l, inegUL
vocamente, que tais políticas não beneficiam seus desiinatários
iniciais, mas apenas os mais afortunados do grupo. Na jndia, 630;ú
dos intocáveis continuam analfabetos. Na Malásia} oo.de cotas
privilegiam os malaios contra seus concidadãOS chinese:s} os e~
tudantes das famílias malaias que constituem os 17()Jo mais ricos
recebem metade de todas as bolsas. O livro está repleto de exem
plos, inclusive dos EUA. Em nenhum caso, trata-se de corrupção:
cotas são apenas um dos fatores para se entrar na uni'"ersidade.
Igualmente essenciais são o preparo intelectual e o nÍ'I'"E'l econó
mico. Quem sabe mais e tem levemente mais dinheirCt e recur
sos, mesmo pertencendo a uma minoria discriminada, teJá mals
chances do que aqueles que são menos preparados e m~ü pobres.
Entre os mais miseráveis, serão sempre os menos mise~ávE'is que
se beneficiarão das cotas, porque os que vivem na basoe da piJi-
92 NÃO SOMOS RACISTAS
mide social mal têm condições de saber que um certo direito lhes
dá benefícios.
A grande tragédia que as políticas de preferências e de cotas
acarretam é a disseminação de conflitos e, no limite, o ódio. O
sentimento de que o mérito não importa esgarça o tecido social.
Na Índia, os registros de atrocidades contra os intocáveis eram de
13 mil nos anos 1980; pularam para mais de vinte mil nos anos
1990 (o número de mortos era quatro vezes maior nos 1990 do
que nos 1980). Na Nigéria, a adoção de políticas de preferência
racial levou a uma guerra civil, provocando o cisma que criou Bia
fra (mais tarde reincorporada), sinónimo de fome e miséria. Sri
Lanka, quando da independência, era uma nação em que duas
etnias, com língua e religião diferentes, conviviam harmoniosa
mente. Com a adoção de políticas de preferência étnica, o que se
viu foi uma das mais sangrentas guerras civis. Nos EUA, o número
de conflitos raciais foi crescente a partir da década de 1970, ano de
adoção das cotas.
O pior de tudo é que as cotas não são necessárias. Nos EUA,
os chineses e os japoneses que lá chegaram no início do século
passado eram miseráveis. Por esforço próprio e sem cotas, esses
dois grupos se desenvolveram, educaram-se e, ao longo dos anos,
proporcionalmente, tomaram mais lugares dos brancos america
nos em universidades de prestígio e em bons postos de trabalho
do que os negros com cotas. Apesar disso, contra eles não há o
ressentimento que há contra os negros, porque a percepção é que
os asiáticos alcançaram isso por mérito, e os negros, não. A per
cepção, no entanto, é falsa e injusta. Porque os negros americanos
avançaram mais, muito mais, antes da adoção das cotas, do que
depois dela.
Em 1940, os jovens negros americanos entre 2S e 29 anos
tinham, em média, quatro anos de estudo a menos do que os jo
vens brancos. Em vinte anos, a diferença caiu para dois anos. E,
em 1970, a diferença era de menos de um ano, 12,1 contra 12,7.
AS COTAS NO MUNDO 93
Em 1940, 87% dos negros estavam abaixo da linha da pobreza. Em
1960, este número caiu dramaticamente para 47%, uma que
da de quarenta pontos. Todos esses avanços foram conseguidos
sem a ajuda de ninguém. A Lei dos Direitos Civis, que garantiu
a igualdade das raças, é de 1964, e as cotas só surgiram depois
de 1970. Nos anos 1960, o número de negros abaixo da linha da
pobreza caiu mais 17 pontos, ficando em 30%. Depois da adoção
das cotas, porém, em toda a década de 1970, esse número caiu
apenas um ponto, ficando em 29%. Negros que conseguiram
sozinhos este estrondoso êxito são vistos hoje pela maior parte
dos brancos como em débito porque teriam alcançado tal feito,
não por mérito, mas devido a cotas. (Aqui, é inevitável que eu
faça um paralelo com o Brasil. Em 1991, 74°;b das crianças negras
estavam nas escolas, contra 869''Ó das brancas; hoje, 100% delas
estão na escola, passo fundamental para que tenham chance de
entrar na universidade. Em vez de radicalizar esse processo, au
mentando a qualidade do ensino básico, e assim dar chances
iguais para que negros e brancos entrem na universidade, o Bra
sil entupiu o Congresso de projetas propondo a adoção de cotas
que apenas acrescentarão mais um estigma ao negro brasileiro
como aconteceu nos EUA: o de ingressar na universidade sem
mérito.)
Se as cotas pouco impacto tiveram na ascensão económica dos
negros americanos, quem, então, se beneficiou delas? Os negros
que já tinham conseguido, por esforço próprio, sair da condição
de pobreza. De 1967 a 1992, os 20% mais ricos entre os negros ti
veram sua renda crescendo a uma taxa igual à dos 20% mais ricos
entre os brancos; mas os 20% mais pobres entre os negros tiveram
uma queda duas vezes maior nos rendimentos do que os 20% mais
pobres entre os brancos.
Na verdade, as cotas foram contraproducentes. Uma lei no Te
xas permitiu a entrada na universidade de todos os alunos que
estivessem entre os 10% mais aptos de suas escolas. Um estudante
94 NÃO SOMOS RACISTAS
da escola"A", mais fraca, poderia estar entre os 10% mais aptos
apenas com uma nota 5, e teria, assim, o ingresso garantido na
universidade. E um aluno da escola "B", muito mais forte, com
nota 8, poderia ficar de fora se os 10% mais aptos da escola tives
sem notas maiores. O resultado é que passou a ser tentador para
bons alunos se matricular em escolas de ensino ruim, para que o
acesso à universidade estivesse garantido. Isso dá bem a medida
do que pode acontecer aqui com as cotas para alunos da rede pú
blica. Como alguns estudantes já disseram, vai ser maciça a trans
ferência de alunos de boas escolas particulares para a rede pública
ou, pelo menos, a dupla matrícula crescerá muito. E quem sairá
perdendo serão os alunos pobres, que terão escolas superlotadas e
com qualidade decrescente.
Há outros aspectos bizarros nos EUA. Estudo de 1988 mostrou
que as notas no SAT (Scholastic Assessment Test, uma espécie de
Enem) de estudantes cotistas em Berkeley, universidade de elite,
eram de 952 pontos, acima da média nacional de 900, mas muito
abaixo das notas dos demais alunos de Berkeley: brancos, com
1.232, e asiáticos, 2.254. Eram alunos negros maravilhosos, que
teriam um futuro brilhante em muitas outras universidades. Mas,
em Berkeley, 70% deles não se formaram. O fracasso não acon
teceu somente nas escolas de elite. Na Universidade de San José,
menos disputada, também 70% dos cotistas não se formaram. O
trágico é que é altamente provável que os 70% de cotistas reprova
dos em Berkeley tivessem obtido êxito em San José, onde teriam
entrado sem a necessidade de cotas.
Essa experiência internacional esteve sempre ao alcance de to
dos. Apesar disso, os defensores de cotas raciais fecharam os olhos
e preferiram ignorar o que a realidade tinha a ensinar. Errar, ig
norando toda a experiência internacional sobre o assunto, é ca
minhar conscientemente para o desastre. No futuro, se se repetir
aqui o que aconteceu lá fora, não haverá desculpas.
AS COTAS NO MU"IOO ~5
Os negros brasileiros não precisam de favor. Precisam apenas
de ter acesso a um ensino básico de qualidade, que lhes pennita
disputar de igual para igual com gente de toda cor. Infelizm€nte, o
que vou mostrar no capítulo seguinte é que nossos parlamenta.res
pensam diferente. Muito diferente.
ESTATUTO DAS RAÇAS
HA VEZES EM QUE É IMPOssíVEL FUG1R DE UM CLICHÉ: A ENSENSATLZ HUMANA
não tem limites. Nos últimos anos a campanha para desfazer o
nosso ideal de nação miscigenada foi tão grande que deu origem
a iniciativas que dão medo. Uma visita à relação de pIOjetos de
lei em tramitação no Congresso Nacional dá conta de que as ini
ciativas para racializar as relações sociais brasileiras são inúmeras.
Talvez o símbolo maior dessa insensatez seja o projeto que institui
o Estatuto da Igualdade RaciaL
Quando terminei de ler todo o projeto, a minha sensaçjo era
de que, se aprovado, o estatuto deixará para trás, de uma vez por
todas, o Brasil que conhecemos e criará um outro pab, cindido
racialmente, em que a noção de raça, base de todo racismo, estará
no centro de tudo, quando deveria estar definitivamente enter
rada. O projeto, cujo embrião pode ser encontrado lá atrJs, no
primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, no gov'erno
FH, teve longa tramitação no Senado, onde foi aprovado, €. ago
ra, está na Câmara, onde se prevê que a tramitação também seja
longa. Ainda bem. Se eu disser a alguém que se trata de uma lei
sul-africana do tempo do apart/1eíd, e pedir que leia algu:ls de seus
artigos, certamente não haverá nenhum estranhamento.
"O quesito raça/cOI, de acordo com a autoclassificaçãú, e o que
sito gênero serão obrigatoriamente introduzidos e coletados em
todos os documentos em uso no Sistema Único de Saúd€"J diz o
98 NÃO SOMOS RACISTAS
artigo 12, arrolando os documentos: cartões de identificação do
SUS, prontuários médicos, formulários de resultado de exames
laboratoriais, inquéritos epidemiológicos, pesquisas básicas, apli
cadas e operacionais etc. O artigo 17 determina o mesmo para os
documentos da Seguridade Social, e o 18 estabelece que as cer
tidões de nascimento contenham também a cor do bebê, o que
não acontece hoje. Da mesma forma, os empregadores públicos
e privados terão de incluir o quesito cor em todos os registras de
seus funcionários, tais como formulários de admissão e demissão
no emprego e acidentes de trabalho.Como conciliar a autodeclaração com as regras acima? O pa
ciente chega inconsciente ao hospital e morre: quem dirá se ele é
branco, negro ou pardo? O filho nasce e o pai diz que ele é branco:
e se, quando crescer, o filho se olhar no espelho e chegar à conclu
são de que é negra?Como se vê, definitivamente, os brasileiros seremos definidos
pela "raça", um conceito que a ciência repudia. Será o fim do país
que se orgulhava de sua miscigenação, que sabia que ninguém é
inteiramente branco ou inteiramente negro, que tinha orgulho
de seu largo gradiente de cores. Seremos transformados num país
bicolor, num país não de brasileiros simplesmente, mas de bra
sileiros negros, de um lado, e brasileiros brancos, do outra. E a
suposição será a de que os dois lados não se entendem.
Os disparates do estatuto são muitos. Contra toda evidência
científica, o projeto parte do pressuposto de que existem doenças
raciais. Assim, dispõe o artigo 14: "O Poder Executivo incentivará
a pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira,
bem como desenvolverá programas de educação e saúde e campa
nhas públicas que promovam a sua prevenção e adequado trata
mento." Ou seja, o estatuto acredita que haja "doenças de negra"
(embora, a despeito de ser um "estatuto da igualdade racial", não
faça menção a "doenças de branco"). Isso é um absurdo, do ponto
de vista da ciência. De fato, há doenças cuja origem é genética,
ESTATUTO DAS RAÇAS 99
mas elas não estão relacionadas à cor do indivíduo, como já mos
trei no capítulo primeiro. Em sociedades segregadas, como a ame
ricana ou a sul-africana, em que os grupos populacionais não se
misturam, é provável que haja prevalência de certas doenças em
determinados segmentos. Mas isso nada tem a ver com a cor.
Há de tudo no estatuto: a permissão para que tradicionais
mestres em capoeira dêem aulas em escolas públicas e privadas;
a obrigatoriedade do ensino da história geral da África e do ne
gro no Brasil para alunos das redes oficial e privada; e a permis
são para que praticantes das religiões"africanas e afro-indígenas"
ausentem-se do trabalho para realização de obrigações litúrgicas
próprias de suas religiões, "podendo" tais ausências serem com
pensadas posteriormente. Não fica claro se brancos terão também
direito a dar aulas de capoeira ou a fazer suas obrigações da um
banda e do candomblé durante o expediente (já que, no Brasil,
são também assíduos freqüentadores de terreiros). Mas o que mais
preocupa no estatuto é a cizânia que pode causar no mercado de
trabalho. Diz o artigo 62: "Os governos federal, estaduais e muni
cipais ficam autorizados [...] a realizar contratação preferencial de
afro-brasileiros no setor público e a estimular a adoção de medidas
similares pelas empresas privadas." Uma das medidas previstas é a
adoção de uma cota inicial de 20% para o preenchimento de todos
os cargos DAS (vagas que não exigem concurso público); esta cota
será ampliada até que se atinja a correspondência com a "estrutura
da distribuição racial nacional". E de que modo as empresas priva
das serão estimuladas a contratar preferencialmente negros? En
tre outras coisas, pela exigência de que empresas fornecedoras de
bens e serviços ao setor público adotem programas de igualdade
racial. Em outras palavras: que contratem preferencialmente ne
gros. Num país em que ninguém sabe ao certo quem é branco e
quem é negro, a medida é de difícil aplicação. Mas o pior é que ela
poderá ser um estímulo para o surgimento de rancores em grupos
e pessoas que se sintam preteridas, algo que desconhecemos até
100 NÃO SO MOS RACISTAS
aqui. Mas que a experiência internacional diz ser a regra, como
demonstra o livro de Thomas Sowell citado no capítulo anterior.
Sim, claro, o estatuto estabelece também a obrigatoriedade de co
tas raciais para o ingresso de estudantes no ensino superior. E acres
centa cotas para programas de TV, filmes e anúncios publicitários.
É um outro Brasil que este estatuto quer fundar. O que os brasi
leiros precisam decidir é se desejam este novo Brasil. Meu palpite
é que, se o tema fosse posto em referendo, com campanhas es
clarecedoras de ambas as partes, o resultado mostraria que ainda
sonhamos com o ideal de uma nação orgulhosa de sua miscigena
ção, em que raça e cor não importam.
O que eu tenho cada vez mais claro é que, no Brasil, o maior
preconceito é contra os pobres em geral, não contra indivíduos
dessa ou daquela cor. E é isso o que pretendo discutir a seguir.
II /1
ClASSISMO I O PRECONCEITO CONTRA OS POBRES
A FACE MAIS FEIA DA SOcrEDADE BRASILEIRA, MAS QUE FREQÜE'JTEMENTE SE
manifesta de maneira inconsciente, é o que chamo de "classis
mo": o preconceito contra os pobres. Estou cada vez mais seguro
de que o racismo decorre essencialmente do "classismo". O negro
que dirige um carro de luxo e é confundido com um motorista,
e, por isso, maltratado, é mais vítima de "classismo" do que de
racismo. Uma vez desfeito o mal-entendido, um tapete vermelho
se estende para a vítima. Em outros países, o negro, mesmo rico,
continuaria a ser discriminado, dirigindo um fusca ou um Merce
des. Isso não torna o "classismo" menos odioso que o racismo. São
sentimentos igualmente repulsivos, como toda forma de precon
ceito. É impressionante que o relato que farei a seguir seja muito
parecido com o que mencionei na introdução deste livro, citando
Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, de Fernando Henri
que Cardoso. O jornalista negro Décio Vital, segundo o relato de
FH, contava em artigo para o jornal O Exemplo que decidira usar
sempre uma sobrecasaca para não parecer pobre, evitando, assim,
com sucesso, o preconceito. O artigo de Vital foi publicado em
1893. O relato a seguir é de 2005. Ele era negro; a senhora do meu
relato se diz branca. Ambos têm um traço em comum: a pobreza.
B. é empregada doméstica. Branca, segundo ela própria e o
consenso brasileiro. O patrão dela, como parte da remuneração,
paga-lhe um excelente plano de saúde. B. é visivelmente pobre:
102 NÃO SOMOS RACISTAS
na maneira de vestir, digna e decente, mas com roupas baratas; na
maneira de falar, com um vocabulário restrito e sem seguir a nor
ma culta; na maneira de agir, sempre muito tímida em ambientes
formais.
Certa vez, B. passou mal e procurou uma clínica de "fundo de
quintal", na definição dela. Quando soube, o patrão estranhou:
"Por que você não procurou os melhores hospitais? Seu plano
cobre." Numa segunda ocasião, B. foi direto ao melhor hospital.
Dirigiu-se ao balcão e disse que não estava se sentindo bem. Com
cara de desprezo, a recepcionista disse que aquele era um hospi
tal particular. B. respondeu que sabia e mostrou-lhe a carteira do
plano de saúde. A recepcionista, que provavelmente ganhava um
salário menor do que o de B. e morava num bairro semelhante ao
dela, perguntou, sem atinar para a ofensa contida na pergunta:
"Essa carteirinha é sua mesmo?" Depois, mandou que B. esperasse.
E, como estava acostumada nos hospitais públicos, B. ficou espe
rando por um bom tempo, até se dar conta de que estava sendo
mal atendida. Saiu sem se queixar, e se dirigiu a outro hospital par
ticular. Com uma ou outra diferença, a cena do primeiro hospital
se repetiu. Cansada de esperar, B. procurou a clínica de "fundo de
quintal" e foi atendida.
O curioso é que B., poucos dias depois, estava furiosa com um
entregador de restaurante que "subiu pela frente" para entregar a
comida. "Hoje em dia, só tem folgado", disse B. Tudo isso me foi
relatado pelo patrão de B. na mesa de um restaurante. E eu mes
mo o vi destratando um garçom que não entendia bem o que ele
estava pedindo.
É certo que o desprezo contra os pobres é universal, existe em
todas as partes do mundo, e eterno, sempre existiu e, infelizmen
te, jamais deixará de existir. Mas, entre nós, ele se reveste de carac
terísticas que são, acentuadamente, mais nossas.
Aqui a pobreza vem acompanhada de baixíssimo nível de edu
cação formal e informação, o que torna o nosso pobre, em geral,
"CLASSISMO", o PRECONCEITO CONTRA OS POBRES 103
mais submisso, menos consciente de seus direitos. Em vez de B.
"rodar a baiana" nos dois hospitais, ela preferiu se retirar. Em paí
ses desenvolvidos, embora o "classismo" exista como aqui, os seus
efeitos são menos ostensivos, porque o pobre de lá, com maior
nível de instrução e sabedor dos seus direitos, dificilmente sofre
calado o preconceito. A exceção aqui é o banditismo em larga es
cala. Ou oito ou oitenta. Por outro lado, o nosso gigantismo po
pulacional e a nossa enorme desigualdade social provocam dois
fenômenos: a distância entre os que têm algum dinheiro e os po
bres é enorme, mas os dois contingentes são grandes. Nossa "elite"
é do tamanho de alguns países europeus e sul-americanos, o que
faz com que exista sempre à vista um remediado para destratarum pobre.
Ao lado disso, a nossa miscigenação é uma realidade e derru
ba por terra o argumento de que somos estruturalmente racistas.
Não podemos ser. Um dado, a miscigenação, desmente o outro,
o racismo. Evidentemente, como sempre me preocupo em dizer, o
racismo existe aqui como em todo lugar, mas não é, nem de longe,
uma marca de nossa identidade nacional. Analisando bem de perto,
é o "classismo" a razão oculta por trás da maior parte de manifes
tações aparentemente racistas. Como os negros são a maioria entre
os pobres, uma relação automática e inconsciente entre pobreza e
negritude se estabelece, e o preconceituoso destrata o negro.
Prova disso é que grande parte das ocorrências de racismo se
dão com negros que não são pobres. São barrados em hotéis de
luxo, confundidos com motoristas, seguranças, quase sempre na
suposição de que são pobres. Ou alguém imagina que a um bran
co, visivelmente pobre, seria permitido entrar nos salões sem
problemas? O caso de Flávio Ferreira Santana, o dentista paulista
negro assassinado por cinco policiais em 2004, exemplifica o que
quero dizer.
Se os cinco policiais que o mataram eram também negros, in
formação que não vi em nenhuma das reportagens sobre o caso,
104 NÃO SOMOS RACISTAS
como falar de racismo? O dentista morreu porque foi confundido
com um pobre. E um pobre, saindo de um carro novo, só sendo
bandido, concluíram de forma odiosa os policiais. Mas, e os poli
ciais, não são eles mesmos pobres? Se o fato de serem negros me
faz dizer que não pode ali ter havido racismo, por que o fato de
serem pobres não me impede de apontar para o "classismo" como
o motivo do crime?
A razão é uma só. O preconceito contra os pobres é tal que um
pobre sempre encontra um mais pobre para descontar o precon
ceito que ele próprio sofre na pele.
É por tudo isso que tenho uma preocupação e uma esperança.
A preocupação é que as políticas de cotas raciais jamais elimi
narão as bases de um preconceito que não é racial, mas social. Ao
contrário, as cotas poderão criar no Brasil um racismo que até aqui
não conhecíamos. Entre os pobres, cor não é nem privilégio nem
demérito de ninguém. As cotas farão com que passe a ser, estimu
lando no Brasil a cisão racial da pobreza. É um risco enorme.
A esperança é que uma política educacional, justa e eficaz, e
uma geração de renda consistente, mais bem distribuída, ao dimi
nuírem a pobreza, diminuam também o "classismo". Talvez, não
eliminaremos de nossa alma esse sentimento mesquinho. Mas ha
verá menos gente para sofrê-lo.
O que pretendo analisar a seguir são as estratégias - a meu ver
erradas - que os governos vêm adotando no Brasil para combater
a pobreza.
POBRES E FAMINTOS
SE o PROBLEMA BRASILEIRO É A POBREZA, E NÃO o RACISMO, DIMENSIONÃ-LA
é um pré-requisito básico a qualquer política pública que vise a
erradicá-la, ou, sendo mais realista, amenizá-la. Desgraçadamen
te, até hoje persiste no Brasil uma confusão conceituai que tem
provocado um mal enorme ao país: confundir fome e pobreza,
dois fenômenos que nem sempre andam juntos (no caso do Bra
sil, quase nunca). Como nenhum homem de bem pode admitir
que outro passe fome, se um governante confunde o número de
pobres com o número de famintos, fatalmente dedicará esforços
gigantescos para matar a fome de quem não passa fome. Como
o dinheiro no Brasil é escasso, o dinheiro usado com o propósito
errado faltará, como está faltando, na única área que pode tirar
um pobre da pobreza: a educação. Esse é o nó em que nos encon
tramos. O trágico é que a confusão pode não ser um erro, fruto do
desconhecimento. Mas uma estratégia eleitoral.
Entreatos, filme de João Moreira SaBes sobre os bastidores da
campanha de Lula em 2002, pode dar ao espectador a impressão
de que capta os flagrantes de Lula como se a câmera fosse invisí
vel. O cineasta já disse que não é isso: como a câmera é ostensiva,
o então candidato mede o que fala, por mais improvisado que
pareça o discurso. É, assim, ainda mais revelador um dos trechos
do filme. Lula conversa sobre o absurdo das estatísticas no Brasil
com Gilberto Carvalho, seu assessor de campanha e, mais tar-
106 NÃO SOMOS RACISTAS
de, secretário particular no governo. Lula diz: "Eu lembro que
fui a Paris e falei: 'O Brasil tem 2S milhões de crianças de rua. JI'
Voltando-se para Gilberto, demonstra incredulidade: "Isso é uma
Argentina! Não existe isso!" Ele continua: "Frei Betto um dia foi
na igreja e disse que cinco milhões de pessoas morrem de aborto
por ano. Não é possível, rapaz!" E pergunta: "Quantas pessoas
passam fome nesse país, Gilberto? Eu acho o número de 53 mi
lhões tão absurdo!" Lula conclui, conformado: "Mas os números
são do IBGE. II
Taí o problema! Os números não são do lBGE: censo e Pnad
não dizem quem passa fome. O que o IBGE registra é a renda
dos brasileiros. Com base nela, pesquisadores tentam inferir quan
tos brasileiros são famintos. O resultado dependerá do método
utilizado, e há muitos, um para cada gosto. Há quem se fixe ape
nas num corte de renda, estabelecendo meio salário mínimo de
renda per capita como limite da pobreza, por exemplo. Há pes
quisadores que se baseiam no número de calorias que consideram
necessárias para manter um indivíduo vivo e o preço da cesta de
alimentos capaz de gerar essas calorias. A necessidade calórica pode
ser de 2.100, segundo a FAO (Food and Agriculture Organization),
2.288, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), ou 1.800,
segundo muitos especialistas. A determinação da cesta não é sim
ples: ela pode ser regional ou nacional, pode conter os alimentos
mais baratos ou aqueles que a cultura local gosta de consumir.
Isso explica a infinidade de números. Os indigentes seriam 47
milhões, para um pesquisador da FGV (Fundação Getúlio Vargas);
25 milhões, para um pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada); ou 17 milhões, para o Banco Mundial. Os
pobres seriam 58 milhões, segundo o pesquisador do IPEA; 61 mi
lhões, segundo outra pesquisadora da FGV; ou 34 milhões, segun
do o Banco Mundial. Com tantas disparidades, de que lado estará a
razão? O governo adotou o critério de renda, R$100, o equivalente
a meio salário mínimo até abril de 2003, os S3 milhões (11,2% das
POBRES E FAMINTOS 107
famílias) a que se referia Lula, número já defasado. Esta passou a
ser a meta ambiciosa do programa para pôr fim à fome.
Como as outras linhas de pobreza, a que o governo escolheu
para trabalhar - R$lOO de renda per capita - é um dado estatísti
co relevante, que serve para o país ter uma idéia de si e para o go
verno levar em conta no planejamento de políticas públicas. Mas,
de posse dessa informação, o governo não pode sair por aí atrás de
11,2 milhões de famílias, acreditando que elas sejam exatamente
as únicas famílias pobres no país e, pior, que todas passem fome. É
tomar ao pé da letra o que é apenas uma convenção estatística.
Isso leva a situações absurdas. Por exemplo: na hipótese de que
o país não cresça, mas o salário mínimo seja aumentado, cada vez
que isso acontecer, automaticamente, o número de pobres e de fa
mintos seria também aumentado. O simples aumento do mínimo
não faz a renda das pessoas aumentar, especialmente entre os mais
pobres. Porque não se aumenta renda por decreto. Se o salário
sobe de R$260 para, por exemplo, R$300, o número de pessoas
que dispõem de menos de meio salário mínimo sobe imediata
mente. Antes, quem tinha renda per capita entre R$130 e R$150,
para o governo, não era nem pobre, nem faminto. Com o aumen
to, passa a ser. Mas isso não é fome, é efeito estatístico.
Veja o que acontece exatamente hoje. Num casebre, mora uma
família com renda per capita de R$lOO, apta, portanto, a ser bene
ficiada pelo Bolsa Família. No casebre ao lado, a renda per capita é
de R$1l0. Ou R$140. Ou até R$150, não importa. Apesar de mo
rarem no mesmo bairro e terem as mesmas dificuldades, por dife
renças irrisórias na renda, esses vizinhos ficarão de fora do Bolsa
Família. Para se ter uma idéia, se cerca de um terço dos brasileiros
estão abaixo da linha da pobreza por ter renda per capita inferior
a meio salário mínimo, dois terços têm renda per capita de apenas
um mínimo: entre um extremo e outro, uma multidão com renda
variando de R$130 a R$260. Se o governo atingisse amanhã a meta
de beneficiar 11,2 milhões de famílias que ganham até meiD salá-
108 NÃO SOMOS RACISTAS
rio mínimo de renda per capita, estaria deixando de fora milhões
que ganham apenas poucos reais a mais. Diria de boca cheia que
matou a fome de todos os que passavam fome. E estaria mentindo
duplamente: não matou a fome porque fome não existia naquelas
proporções; e deixou de fora uma multidão com perfil socioeconô
mico muito parecido com o dos beneficiados, mas que ganhavam
apenas alguns pouquíssimos reais acima da linha da pobreza.
Usar a linha da pobreza como norte para achar famintos é um
erro. Pelos motivos apontados acima e por mais este: o pobre pode
ter uma renda monetária que o coloca abaixo da linha da pobreza,
mas, ao mesmo tempo, ter um roçado, umas galinhas, um por
co, uma horta que lhe fornecem alimentos necessários para não
passar fome. O IBGE, essa instituição de altíssima qualidade que
presta inestimáveis serviços ao país, concluiu em 2004 a Pesquisa
de Orçamentos Familiares (POF). Trata-se de um trabalho maravi
lhoso. Os pesquisadores ficaram em média nove dias na casa das
famílias, anotando tudo o que entrava como renda e tudo o que
era consumido. Renda e despesa, monetárias ou não: a mandio
ca plantada no quintal era computada antes de ser comida como
renda não-monetária e, depois, como despesa não-monetária. Os
resultados encontrados foram muito positivos. Como o que mos
tra o consumo per capita de alimentos entre as famílias com renda
total de até R$400, aquelas que seriam o público-alvo do Bolsa Fa
mília, considerando que a família média seja composta de quatro
indivíduos. Estão relacionados apenas 65% dos alimentos consu
midos. Fazendo-se a conversão calórica deles, fica-se sabendo que
eles proporcionam às famílias 1.200 calorias/dia. Considerando
que ficaram de fora os outros 35% dos alimentos e que as famí
lias gastam mais 12% do seu orçamento se alimentando fora ào
domicílio, não é um disparate supor que tais famílias tenham um
consumo diário de calorias próximo de 2.100, o ideal recomenda
do pela FAO (especialistas dizem que o mínimo necessário para se
manter vivo são 1.500 calorias).
POBRES E FAMINTOS 109
Tais suposições foram confirmadas pela segunda parte da POF,
divulgada no fim de 2004. Foi a primeira pesquisa que mediu
realmente quantos famintos o país tem. Financiado pelo governo
Lula, o IBGE mediu peso e altura de uma parcela estatisticamente
representativa de todos os brasileiros, mostrando a quantidade de
pessoas emagrecidas, a única medida que mostra se um indivíduo
sofre ou não de fome crónica. A OMS considera que uma popu
lação que tenha entre 3% e S% de indivíduos emagrecidos não
sofre o fenômeno da fome (essa seria a porcentagem de indivíduosgeneticamente magros).
Os resultados não poderiam ter sido mais animadores: o índice
de pessoas abaixo do peso é de 4%, número menor que os S%, con
siderados normais pela OMS. No início dos anos 1970, homens e
mulheres com déficit de peso eram o dobro do que são hoje. Hoje,
nosso índice é muito melhor do que o do México, onde há 9% de
indivíduos emagrecidos. E muito abaixo dos índices encontrados
em países onde há comprovadamente fome endêmica, como Haiti
(20%), Etiópia (40%) e Índia (50%). A pesquisa mostrou que, ao
contrário do que se supunha, a obesidade, em todas as faixas de
renda, é um problema mais grave do que o da fome. Esta hoje pode
ser encontrada apenas em regiões da zona rural do Nordeste e em
áreas isoladas, como o Vale do ]equitinhonha. Atinge a milhares
de pessoas, mas nunca a milhões. Matar a fome dessas pessoas é
uma tarefa que o país pode enfrentar com método, sem despender
a fortuna que despende hoje em programas assistencialistas.
A reação do governo, porém, foi a mais negativa possível. Em
vez de comemorar, criticou o quanto pôde a pesquisa do IBGE e
proclamou que manteria sem alterações as metas ambiciosas do
seu programa Bolsa Família. Chegaram a criar um esdrúxulo e
inexistente conceito de ({fome gorda", segundo o qual os pobres
estariam acima do peso por consumirem muito açúcar, gordura e
farinha. Ou não leram a pesquisa ou mentiram deliberadamente.Vejam:
110 NÃO SOMOS RACISTAS
1) Os de menor renda per capita (1/4 do salário mínimo) têm
uma dieta equilibrada. Têm à disposição as proporções certas de
carboidratos, proteínas e gorduras. A proporção de proteínas
12% - é considerada ótima, com a vantagem de que 45% delas
vêm de origem animal.
2) Em todas as tabelas, fica provado que a participação de fa
rinhas na dieta dos mais pobres é normalíssima, cerca de 7% de
todos os quilos de alimentos adquiridos. A farinha de trigo re
presenta apenas 1% de todas as calorias disponíveis. Mesmo que
os pobres se entupissem de farinha, não engordariam. Porque as
farinhas que comem têm baixo valor energético, ao contrário do
que imaginam os leigos.
3) A participação do açúcar é alta, como em todas as faixas
de renda, mas é melhor entre os mais pobres do que entre os de
maior renda per capita. Os mais pobres tem 69% da dieta vindos
de carboidratos (o normal é um mínimo de 55% e um máximo de
75% segundo a OMS). Treze por cento desses carboidratos vêm
do açúcar. Os de renda mais alta têm apenas 52% da dieta vindos
de carboidratos (abaixo do mínimo de 55% recomendados). 11%
deles vêm do açúcar. Portanto, o açúcar, entre os mais pobres, re
presenta 13 pontos percentuais em 69 (56% dos carboidratos, por
tanto, não são açúcar). E, entre os de maior renda, representa 11
pontos percentuais de 52 (41% não são açúcar). Os de renda mais
alta, portanto, proporcionalmente, têm mais açúcar na dieta.
4) A dieta dos pobres tem um nível adequado de gorduras, 19%
(o mínimo recomendado é 15%). Entre os de maior renda, a gor
dura representa 34%, quatro pontos acima do recomendado.
5) Insistiram muito no dado de que, segundo a mesma pesqui
sa, 44% da população, cerca de 77 milhões de brasileiros, "consu
miriam" menos de 1.900 calorias, o que é menos do que a FAO
recomenda. Pura mentira. O lBGE diz expressamente que não
mediu as calorias "consumidas", mas apenas as calorias "dispo
níveis" em cada domicílio. Simplesmente porque boa parcela do
POBRES E FAMINTOS 111
orçamento do brasileiro é gasto COm alimentação fora de casa:
24%, em média, 12% entre os mais pobres e 37% na faixa de
maior rendimento. Essas calorias não foram medidas. Como tam
bém não foram medidas as calorias provenientes de alimentação
"não adquirida", Como merenda escolar e alimentação fornecida
no local de trabalho. Se, numa casa, duas crianças estão na escola
e lá almoçam, a família adquirirá uma quantidade menor de ali
mentos. A disponibilidade calórica no domicílio será, portanto,
menor do que o recomendado, sem que isso signifique que as
calorias ingeridas estejam abaixo do patamar recomendado. Se es
tivessem, a pessoa emagreceria, e isso não acontece para a imensatotalidade dos brasileiros.
Não há dúvidas de que o problema da fome não é mais o que
era. Isso não quer dizer que os gastos com o social tenham de di
minuir, mas eles devem ser realocados. Insistir em gastar mais R$9
bilhões ao ano, todos os anos, Com o Bolsa Família, é mais do que
apenas um desperdício, é um erro. Gaste-se o necessário, e o res
tante poderia ser gasto com educação, investimento que ajudaria a
tirar milhões da pobreza, esta sim a grande chaga nacional.
O governo, no entanto, insiste no erro. E cria, dia após dia,
justificativas para persistir no erro. Tão logo tomou conhecimento
dos primeiros resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar tra
tou de encomendar ao lBGE uma outra pesquisa para demo~strarque, se há poucos magros, há muitos famintos em potencial. O
problema é que as perguntas da pesquisa foram feitas de tal modoque os resultados eram mais do que previsíveis.
"Nos últimos três meses, os moradores deste domicíllo come
ram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiroacabou?"
Certamente, o leitor terá tido dificuldade para entender per
gunta tão mal formulada. Qualquer um teria. Mas ela fez parte do
suplemento sobre segurança alimentar da Pnad-2004, do lBGE.
A pesquisa pretendeu avaliar "o acesso à alimentação de qualida-
112 NÃO SOMOS RACISTAS
de, em quantidade e regularidade adequadas a um padrão de vida
satisfatório". Os pesquisadores foram a campo entre setembro e
dezembro, e o custo do suplemento, R$2 milhões, foi pago pelo
Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Os resultados, com
pletamente previsíveis, apresentaram sempre um falso positivo.
Para provar isso, vou reproduzir aqui algumas perguntas da pes
quisa e imaginar possíveis respostas:
"Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram
a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem
comprar ou receber mais comida?" "Sim", diria o hipotético en
trevistado, pensando nas duas caixas de biscoitos finos que a filha
come toda semana e que ele teme não ter mais dinheiro para com
prar na mesma quantidade."Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio fica-
d / I . d )"ram sem dinheiro para ter uma alimentação sau ave e vana a.
"Sim", diria o entrevistado, acreditando que a dieta alternada de
carne ou ave ou peixe, com feijão, arroz e salada, que a sua família
come todos os dias, por ser repetitiva, é pouco saudável, quando,
na verdade, é a recomendada pelos nutricionistas.
"Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de
idade diminuiu, alguma vez, a quantidade de alimentos nas refei
ções porque não havia dinheiro para comprar comida?" "Sim", di
ria o nosso personagem, que, antes, comia uma verdadeira "mon
tanha" e ainda repetia, e, em função de restrições orçamentárias,
passou a comer apenas a "montanha", sem repeti-la. .
"Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou maIS
de idade, alguma vez, sentiu fome mas não comeu porque não
havia dinheiro para comprar comida?" "Sim" seria a resposta de
alguém que, no fim da tarde, deixasse de comer um sanduíche no
McDonald's, porque o dinheiro está curto, sendo obrigado a matar
a fome no jantar, em casa.Das 36 perguntas, apenas três são formuladas de maneira clara.
Em apenas uma dessas três, o manual técnico do entrevistador
POBRES E FAMINTOS 113
afirma que não se deve levar em conta óleo, manteiga, sal, açúcar
etc. Em todas as outras, nada instrui o entrevistador sobre como
esclarecer previamente o entrevistado para evitar as distorçõesapontadas acima.
O IBGE, cuja excelência é inquestionável, e os técnicos do MDS
fizeram, no entanto, todo o dever de casa. Antes de aplicar a pes
quisa, avaliaram o questionário com especialistas e fizeram grupos
de discussão compostos pelo público-alvo para testar o entendi
mento de algumas palavras e conceitos ("alimentação saudável",
"alimento nutritivo", "dinheiro suficiente", "fome"). Fizeram
as modificações necessárias e, depois, aplicaram o questionário,
como teste, em quatro cidades. O resultado, segundo o IEGE, foi
positivo: a insegurança alimentar mais severa foi constatada entre
os de mais baixa renda. O questionário foi, assim, "validado" para
aplicação nacional. Como de todo esse trabalho técnico resulta
ram perguntas tão mal formuladas é algo que me intriga.
Contudo, mesmo se a redação fosse perfeita, a pesquisa conti
nuaria a ter pouco valor. O problema é da própria metodologia,
adotada em muitos países. O questionário brasileiro, por exemplo,
foi inspirado no americano, que vem sendo aplicado desde 1995.
Embora nem de longe apresente os vícios de redação do seu con
gênere brasileiro, o americano gera o mesmo equívoco. Embora o
órgão pesquisador advirta que nos EUA não há a mesma fome do
"Terceiro Mundo", sua crença é a de que o país sofra insegurança
alimentar. Difícil conciliar essa crença com a constatação de que
mesmo nas regiões mais pobres das mais pobres cidades america
nas é impossível deixar de achar pessoas gordas.
O maior programa americano de combate à fome é o Cartão
Alimentação (Food Stamp Program), criado em 1939 e que passou
por muitas evoluções até se tornar permanente em 1964. Quem
imagina que o Fome Zero ou o Bolsa Família sejam inéditos está,
portanto, enganado. O programa distribui cartões magnéticos (an
tes eram cupons), utilizados para adquirir comida em lojas cre-
114 NÃO SOMOS RACISTAS
denciadas. Todos abaixo da linha da pobreza têm direito a receber
o benefício. São 21,3 milhões de beneficiários, que recebem, em
média, US$80 per capita (o beneficio máximo para famílias de três
pessoas é de US$393). O cartão alimentação é igual ao Bolsa Famí
lia, com duas diferenças: aqui, o beneficiário não precisa provar
nada e, com o dinheiro, pode comprar o que quiser. O Cartão Ali
mentação americano é apenas um dos 15 programas de distribui
ção de alimentos nos EUA, ao custo de US$41,6 bilhões ao ano.
Apesar disso, a última pesquisa feita lá indica que 36,3 milhões
de americanos, incluindo 13,3 milhões de crianças, vivem em la
res com insegurança alimentar. Destes, 6,6 milhões de adultos e
três milhões de crianças vivem em lares onde pelo menos uma
pessoa passou fome propriamente dita.
Se nem na nação mais próspera do planeta, com os seus pro
gramas assistenciais multimilionários, a insegurança alimentar foi
resolvida, o problema não é do país, mas do conceito de insegu
rança alimentar. Que os Estados Unidos queiram gastar bilhões de
dólares com programas assim é um problema deles. Eles podem.
Mas construir aqui um megaprograma social para matar a fome
de quem não tem fome é um erro que não devíamos cometer.
Ainda mais porque do jeito que os programas assistencialistas es
tão desenhados em nosso país] sem mecanismos de controle, o
dinheiro sequer tem ido para os mais pobres entre os pobres. É isso
o que vou mostrar no capítulo a seguir.
o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARAOS POBRES
NUM'" CONVERS" DE P. OUCOS MINUTOS NO FINAL DE 200
me disse que <Tostaria d 5, o PRLSIDENTE LULAb e contrapor argum t .
cas ao Bolsa Família "T t en os as minhas críti-_ . ra a-se de um pro
nao foi desenhado para d grama emergenciat eleurar para sempre" I'
acrescentando que ta b' ' exp lCOU o presidentem em ele queria d' '
beneficiários mas ape' ver re uZldo o número de, nas a medida que I
condições precárias "'f '" nenos gen te esteja em• IV as e megavel q .
mental para melh ' ue aquele dInheiro é funda-orar a VIda daquelas pess "
como exemplo a sua pró' ". oas, emendou, dandopna expenenCla d '
destino em São Paul e menmo reLrante nor-a, quando uma moed d " .
fundamental para a sob ". a e CInCO tostões]' erareVlvenCla da famíll'a
Eu lh .e respondi que nada t' hm a contra o pcontra a abrangência di' _. rograma em si, mas
e e. nao eXIstem 11 2 .passando fome no país A ' mIlhões d€ famílias
. resposta do pr'd 'tindo mais ou menos o qu " d' eSI ente fOI objebva, repe-
e Ja lssera no film d J -que citei no capítulo ante' . /( _ e e oao MoreiraSaIles,
nor. Nao posso d' ,IBGE. Se os necessitados fore lscutu os números do
F' . m menos, tanto melhor"01 aSSIm que, em 2003 I ., no ançamento d B 1
anunciou como meta at d ' o o sa Família, Lulaen er as famílias que
2001 (única então d' . ' segundo a Pnad de. ISpOlllvel), tinham rend f '.Igualou inferior a R$IOO At' d a amIllar per capita
. e ezembro de 2004tribuiu o Bolsa FamT ' o governo dis-
. I la para 6,5 milhões d f "aSSIm, ainda havia, em 2004 10 . _ e amlhas, E, mesmo
, ,5 mIlhoes de famílias com renda
116 NÃO SOMOS RACISTAS
familiar per capita igualou inferior a R$lOO, considerando os ren
dimentos após a concessão do benefício. Ou seja, mesmo tendo
distribuído esse caminhão de dinheiro, o estoque de pobres só foi
reduzido em setecentas mil famílias. Por si só, isso é um indício
forte de falta de foco: o dinheiro pode estar indo para quem tem
renda per capita superior a R$100. Ou seja, além de ir para quem
não tem fome, o dinheiro está beneficiando quem, na definição
do próprio governo, não é sequer pobre.
Falo em indício porque hoje é impossível saber com exatidão
para quem está indo o dinheiro do Bolsa Família. Para que uma fa
mília se candidate ao benefício, é preciso que ela conste do Cadas
tro Único, criado em 2001 com o objetivo de identificar todas as
famílias brasileiras abaixo da linha de pobreza. Mas quem faz esse
cadastro? As prefeituras. De que modo? Como bem entendem. As
pessoas preenchem um formulário e declaram a renda da família,
sem que precisem apresentar comprovação (isso está previsto em
lei). Se a família tem renda per capita igualou inferior a R$100, ela
está apta a receber o benefício. O governo vem trabalhando jun
to às prefeituras para melhorar a qualidade do cadastro, mas, até
aqui, tudo continua como antes. Hoje, nada pode assegurar que as
famílias beneficiárias são de fato as mais pobres.
Para agravar tudo isso, não há qualquer instrumento estatís
tico oficial que possa mostrar ao governo se o Bolsa Família está
atingindo o alvo certo. O capítulo sobre programas de transfe
rência de renda da Pnad 2004, divulgado em 2006, tem muitas
limitações, pois nada foi dito sobre nenhum programa isolada
mente, tampoucO sobre quanto da renda de cada domicílio vem
de que programas governamentais. O IBGE alega, com razão, que
quis apenas fazer um panorama geral, traçando o perfil daqueles
que recebem algum tipo de transferência de renda e daqueles que
nada recebem. Alega também que é apenas um coletar de infor
mações e que não pode se transformar num fiscal do governo, sob
pena de perder a confiança dos entrevistados e, com isso, a qua-
o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 117
lidade da informação: se o entrevistado antevir que o que disser
sobre os bens que possui e sobre a composição de sua renda pode
se voltar contra ele na forma de suspensão de benefícios, sua ten
dência será sonegar informações ou até mesmo mentir. A tarefa
de fiscalizar caberia mesmo ao governo, que deveria sair a campo
verificando se os beneficiários fazem mesmo parte ou não do pú
blico-alvo. Infelizmente, o governo não faz isso.
Tenho lá minhas dúvidas sobre se o temor do IBGE já não é
uma realidade em larga medida. Duvido que uma família que
se beneficia irregularmente de algum programa dê informações
100% confiáveis, mesmo a um órgão como o IBGE. De qual
quer modo, como não poderia deixar de ser, a pesquisa trouxe
alguma luz ao debate sobre focalização. Só com o Bolsa Família
e com a aposentadoria especial a idosos e deficientes pobres, o
governo planeja gastar esse ano R$19 bilhões, mas, apesar desse
caminhão de dinheiro, apenas 50,3% dos domicílios com renda
per capita de até um quarto do salário mínimo, os mais miserá·
veis do país portanto, beneficiam-se de algum tipo de programa
de transferência de renda. Todo o resto está a ver navios. A boa
notícia é que 91% dos beneficiários moram em domicílios com
renda per capita de até um salário mínimo, o que faz deles cer·
tamente pobres. Mas a pergunta que cabe é esta: é eficaz um
programa que, antes de atender a todos os miseráveis, beneficie
famílias pobres, mas não as mais pobres? Isso denota falta de
foco e de controle.
O IBGE não se referiu na brochura que divulgou a nenhum pro
grama específico, mas tornou públicos os dados sobre cada um de
les. O problema é que o instituto não aconselha que cada progra
ma seja tratado isoladamente: como o Bolsa Família é a junção de
outros quatro programas (Bolsa Escola, Cartão Alimentação, Vale
Gás e Bolsa Alimentação), e como, até o momento da divulgação
da pesquisa, eles ainda não tinham sido unificados, os entrevista
dos podem ter se confundido na hora em que prestaram as infor-
118 NÃO SOMOS RACISTAS
mações: havia usuários recebendo o novo Bolsa Família e usuários
recebendo cada um daqueles quatro programas. Uma pena.
Há atalhos, porém, para se verificar a falta de foco no Bolsa Famí
lia. O pesquisador da Pnad, ao registrar a renda do domicílio, estava
orientado a incluir o dinheiro do assistencialismo governamental
numa rubrica chamada "outros rendimentos", que inclui também
dinheiro vindo de aluguel, recebimento de juros e dividendos. Uma
pequena salada. Como, porém, pobre, por definição, não recebe di
nheiro de aluguel, nem de juros, nem de dividendos, alguns pes
quisadores têm dito que é fácil ver nesta rubrica a presença do Bolsa
Família: se ela cresceu entre os mais pobres, o dinheiro só pode ter
vindo de programas de transferência de renda. E, de fato, a Pnad
mostra que, para as faixas de rendimento mais baixas, houve um
acentuado crescimento na participação da rubrica "outros rendi
mentos" na renda total da família: para quem tem renda per capita
igualou inferior a R$lOO, em 2002, essa participação era de 3,7%;
em 2003, subiu para S%; e, em 2004, pulou para 10,2%. Como a
verba aplicada no Bolsa Família cresceu de R$3,6 bilhões, em 2003,
para R$6,S bilhões, em 2004, este aumento na participação de "ou
tros rendimentos" na renda total das famílias é um indício de que o
programa estaria atingindo o público certo.
Uma análise mais atenta dos números mostra, porém, que essa
não é a única realidade: o vazamento de recursos é grande.
Como todo dinheiro oriundo de programa social deve ser regis
trado na Pnad na rubrica "outros rendimentos", uma maneira de
se verificar a falta de foco no Bolsa Família pode ser obtida apli
cando-se o seguinte método:
1) Primeiro, deve-se desconsiderar o valor registrado nessa ru
brica em todas as planilhas de beneficiários de programas sociais;
assim, obtém-se a renda do beneficiário antes do recebimento do
benefício;
2) Sem o dinheiro do benefício, dividem-se os declarantes to
mando como ponto de corte uma renda per capita de até R$lOO,
o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 11~
que é a renda que o público-alvo deve ter, segundo a lei; assim, sa
beremos quantos beneficiários do Bolsa Família (e programas que
o compõem) estão na faixa de renda adequada.
O resultado é desanimador. Considerando todos os domicílios
com renda per capita de até R$lOO, 48,7% recebem o Bolsa Família
e S1,3% nada recebem. Este último número é o tamanho da exclu
são: pessoas a quem o programa deveria estar beneficiando e não
está. Outra maneira de ver as coisas: considerando-se os domicí
lios que declararam rendimentos, dos que recebem o Bolsa Famí
lia, 62,4% estão na faixa de rendimento correta e 37,6% têm renda
per capita superior aos R$lOO. Este último número revela a falta de
foco: pessoas que recebem o benefício sem ter o direito para tal.
Há quem diga que não há um problema. O Brasil é tão pobre
que se alguém jogar dinheiro para o alto quem o pegará no chão
pode não ser o mais pobre, mas certamente será um pobre. Eu
não penso assim. O Brasil tem leis e elas devem ser respeita
das. Não é justo que os mais pobres fiquem sem os recursos e
que os menos pobres sejam beneficiados. Há que se ter eficiên
cia. Do contrário, grandes somas de recursos estarão indo para
quem não precisa, enquanto falta dinheiro para educação, que
emancipa os pobres, e para investimentos em infra-estrutura,
que prepara o país para o crescimento económico e a geração
de empregos.
O Bolsa Família não é o único caso, nem o governo Lula é o
único a errar.
Em 1993, o Congresso aprovou a regulamentação da Lei Or
gânica de Assistência Social (Loas), criada pela Constituição de
1988. Por ela, idosos de 67 anos ou mais e deficientes físicos
incapacitados para a vida independente e para o trabalho têm
direito a uma aposentadoria de um salário mínimo, desde que
tenham renda familiar per capita inferior a um quarto de salário
mínimo. A partir de outubro de 2003, a idade mínima caiu para
6S anos. Ao idoso e ao deficiente, basta declarar o rendimento,
120 NÃO SOMOS RACISTAS
não precisando comprová-lo, um direito que a lei lhes reconhe
ce. De 1996, quando o benefício começou a ser pago, até 2004,
933 mil benefícios foram concedidos a idosos e pouco mais de
um milhão a deficientes.
Apesar das recomendações em contrário do IBGE, creio que a
pesquisa se presta como uma luva ao se analisar este programa.
A Loas está consolidada e implantada desde 1996, não se encon
trando numa etapa de transição. como o Bolsa Família. Para se
verificar se os beneficiários estão dentro do público-alvo, pode
se utilizar o mesmo método explicado anteriormente, apenas to
mando como ponto de corte a faixa de renda prevista em lei para
os beneficiários: um quarto do salário mínimo. Foi o exercício que
fiz, e o resultado que mostrarei a seguir novamente é muito ruim:
a falta de foco é enorme.
A primeira coisa que se nota é uma grande subnotificação. En
quanto nos registros do governo cerca de dois milhões de brasi
leiros recebiam o benefício em 2004, o IBGE revelou 858.508 be
neficiários em 726.333 domicílios (ou seja, em alguns casos, há
mais de um beneficiário por domicílio, o que a lei permite). Há
duas hipóteses: muitos podem ter omitido o benefício por sabe
rem que o recebem irregularmente e muitos podem apenas tê-lo
confundido com uma aposentadoria comum do INSS. De qual
quer forma, o volume dos que declaram o benefício já permite
uma boa análise. Destes, apenas 39,6% moram em domicílios
que, sem o benefício, têm uma renda per capita de até um quarto
do salário mínimo; 60,4% dos beneficiários têm renda superior a
esse limite. Considerando-se que o governo prevê gastar em 2006
R$ll bilhões com esse programa, trata-se de um desvio e tanto.
Isso pode ser confirmado pela análise do perfil socioeconômico
dos beneficiários e dos que nada recebem mesmo estando na faixa
de renda prevista (um quarto do salário mínimo). As discrepâncias
são enormes. O perfil dos que têm renda domiciliar per capita de
até um quarto do salário mínimo e não recebem nenhum benefí-
O DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 121
cio é o seguinte: 58,6% têm geladeira; 5%, freezer; 5,9%, máquina
de lavar; 70,9%, rádio; 70,6%, TV; 0,9%, microcomputador; 62,7%
têm acesso à água tratada; 37,2%, esgoto sanitário; 62,3% dispõem
de coleta de lixo; 81, 1% têm luz elétrica; e 25,1% têm telefone. Jáo perfil dos que recebem o Loas é melhor em todos os itens: 78%
têm geladeira; 8%, freezer; 11%, máquina de lavar; 81%, rádio;
83%, TV; 3%, microcomputador; 76% têm acesso à água tratada;
51%, esgoto sanitário; 76% dispõem de coleta de lixo; 95% têm
luz elétrica; e 51%, telefone. Vejam a tabela a seguir:
PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS DOMiCíLIOS QUE RECEBEM O LOAS E
DAQUELES QUE, FAZENDO PARTE DO PÚBLICO-ALVO, NADA RECEBEM.
BRASIL - 2004
Geladeira 58,6% 78,0%
Freezer 5,0% 8,0%
Máquina de lavar 5,9% 11,0%
Rádio 70,9% 81,0%
Televisão 70,6% 83,0%
Microcomputador 0,9% 3,0%
Água de rede geral 62,7% 76,0%
Esgoto sanitário 37,2% 51,0%
Coleta de lixo 62,3% 76,0%
Iluminação elétrica 81,1% 95,0%
Telefone 25,1% 51 ,O%;
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicnios, 2004. Microdados, CD-ROM.
122 NÃO SOMOS RACISTAS
Se, de fato, apenas domicílios com renda per capita de até um
quarto do salário mínimo recebessem o benefício, esses resultados
poderiam indicar apenas que o impacto do programa é grande na
melhoria da vida das pessoas: um salário mínimo a mais ajudaria
o grupo que recebe a ter mais bens e serviços do que o que não
recebe. Mas, como mostrei acima, não é isso o que acontece, já
que 60,4% dos beneficiários têm renda superior à exigida. A maior
parte dos que recebem tem um perfil melhor porque já tinha ren
da maior, mesmo antes de receber o benefício do governo.
Há também outros caminhos que tomam possível aferir a falta
de foco. Nos últimos dez anos, a população de idosos na faixa de
renda prevista pela lei tem sofrido apenas pequenas alterações,
apesar da concessão dos benefícios, um indicativo de que o di
nheiro pode estar indo para idosos de outras faixas de renda. De
2001 para 2002, foram concedidas 115.550 aposentadorias pela
Loas, mas o número de idosos com 67 anos ou mais com renda
per capita de até um quarto do salário mínimo sofreu uma redução
de apenas 22.078; entre 2002 e 2003, mais 80.278 aposentadorias
foram concedidas, mas o número de idosos pobres aumentou em
11.831; e de 2003 para 2004, embora o governo tenha concedido
mais 268.289 aposentadorias, o número de idosos pobres se re
duziu em apenas 31.585. De 2004 para 2005, foram concedidas
mais 143.252 aposentadorias, mas o efeito delas no público-alvo
só poderá ser medido quando sair a próxima Pnad.
Mesmo considerando que todo ano mais pessoas chegam aos
67 anos, a Pnad revela que o número dos que chegam à idade limi
te não é nem de longe suficiente para explicar as discrepâncias. O
mesmo acontece com o número daqueles idosos que, mesmo re
cebendo a aposentadoria, continuam com renda per capita baixa.
Ou seja, não é que o número de idosos na faixa de renda de até um
quarto do salário mínimo se mantenha estável porque eles são tão
miseráveis que mesmo recebendo a aposentadoria não conseguem
mudar de faixa: a quantidade dos que estão nessa situação é mui-
O DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 123
to pequena. Os indícios apontam, portanto, para um vazamento
grande. Embora a Pnad não permita o mesmo exercício com os
deficientes físicos, o quadro deve ser parecido. O governo diz que,
de dois em dois anos, as famílias beneficiadas são visitadas em,convênio com as prefeituras, para que se confirme se estão dentro
do público-alvo (algo entre duzentas mil e trezentas mil famílias
todos os anos). Até aqui, um milhão de beneficiários foram visita
dos. Entre 5% e 7% dos benefícios foram cancelados, um número
muito pequeno, diante do que acabo de demonstrar.
Há outro problema grave. Segundo a Pnad, havia, em 2004, 3,7
milhões de famílias urbanas em que um idoso de 65 anos ou mais
recebia uma aposentadoria de um salário mínimo (excluí as áreas
rurais para não considerar aqueles que recebem a aposentadoria
rural, um benefício diferente daquele que estamos analisando).
Todos recebem o benefício porque contribuíram ao longo da vida
ao INSS ou porque trabalharam como funcionários públicos. A
renda obtida pela aposentadoria se mostra importante: sem ela,
1,4 milhão de famílias, 38,4% do total, passaria a ter uma renda
per capita de meio salário mínimo, o que as deixaria abaixo da
linha de pobreza adotada por muitos pesquisadores. Esses mes
mos números nos colocam diante da sinuca: do jeito que estão
desenhados, os benefícios concedidos pela Loas trazem embutidos
em si uma lógica que os perpetua. Hoje, 933 mil idosos consegui
ram uma aposentadoria sem contribuir e 3,7 milhões porque ou
contribuíram ou trabalharam tempo suficiente no serviço público.
A pergunta que se faz é: que incentivo para pagar o INSS tem o
cidadão que hoje recebe um ou dois salários mínimos se ele sabe
que, na velhice, quando as despesas são menores, terá assegura
do, desde já, um benefício de um salário mínimo? Nenhum. O
que deve pensar o sujeito que contribuiu durante anos, conseguiu
sua aposentadoria de um salário mínimo, fundamental para a sua
subsistência e, hoje, percebe que um amigo ao lado, que nunca
contribuiu, conseguiu aposentadoria igual? Isso acabará por levar
124 NÃO SOMOS RACISTAS
aqueles que hoje trabalham na informalidade a não ter motivos
racionais para contribuir, o que levará multidões a chegar à velhi
ce, quando já não podem mais trabalhar, sem renda e sem apoio,
tornando a aposentadoria especial da Loas um imperativo.
Mais uma vez, não discuto o mérito da Loas, mas a sua enorme
dimensão, provocada por falta de foco. Em 2004, a Loas consumiu
R$7,6 bilhões contra R$S,8 bilhões do Bolsa Família, um total de
R$13,4 bilhões. Em 2005, o governo gastou R$6,S bilhões com
o Bolsa Família e R$9,3 bilhões com a Loas, um total de R$IS,8
bilhões. Em 2006, prevê gastar R$19 bilhões com os dois progra
mas. Enquanto isso, a educação teve no ano passado apenas R$ 7
bilhões para investimentos e, para 2006, a previsão é de R$8,S bi
lhões. Um programa assistencial bem gerenciado poderia atender
aos realmente necessitados, gastando uma pequena proporção do
que se gasta atualmente e liberando uma enorme soma de dinhei
ro para educar os nossos jovens.
Por que há falta de foco? De um lado, é impossível negar que o
governo tem sido incompetente no gerenciamento dos programas.
Mas programas assim acabam sempre beneficiando os mais afortu
nados entre os menos afortunados. O que Thomas Sowell disse sobre
políticas afirmativas (e está retratado no capítulo sétimo deste livro)
vale também para programas assistenciais. Porque é sempre aquele
mais bem equipado entre os menos equipados que chega primeiro:
embora seja também pobre, ele tem mais acessos do que os mais po
bres, tem mais condições de tomar conhecimento da existência do
programa, consegue entendê-lo mais rapidamente, consegue reunir
antes toda a papelada exigida. E, assim, o dinheiro que visava ao
menos pobre, ao miserável, chega sempre antes nas mãos daqueles
pobres, mas que estão muito longe da situação de miséria a que o
programa se destina. Trata-se de uma inevitabilidade.
Num país em que falta dinheiro para a educação, o governo
precisa corrigir o rumo urgentemente. E, diante da inevitabilidade
apontada acima, repensar a magnitude de seus programas sociais.
O DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRE S 12S
Enquanto não mudarmos esse quadro, nosso futuro não será mULto diferente do nosso presente.
É por todas essas razões que eu faço agora essa pergunta: se
alguém rompe a linha da pobreza porque recebe uma ajuda em
dinheiro do governo, é correto que as estatísticas deixem de considerar essa pessoa como sendo pobre?
O bom senso diz que não: tire a ajuda e o pobre voltará a ser
pobre, como demonstrei aqui com os exercícios feitos para se verificar falta de foco e exclusão.
Em todas as linhas da pobreza divulgadas em 200S, houve que
da acentuada no número de pobres. Entre as explicações mais
convincentes, estão o crescimento económico de 2004, a baixa
inflação e o aumento do salário mínimo, com grande impacto nas
aposentadorias e pensões de todo tipo. Para o governo e alguns
pesquisadores, no entanto, o Bolsa Família teria tido um impactodecisivo.
Não acredito nisso: afinal, se a soma de todos os benefícios
atinge alguns bilhões de reais, considerando o benefício médio
mensal, da ordem de R$6S em 2005, cada membro de família beneficiada recebe apenas R$O,SO por dia.
Mas muitos pesquisadores não pensam assim. E estão errados.
Em um artigo, Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho e Samuel
Franco exaltam a importância de programas de transferência de
renda com condicionalidades na redução da desigualdade registra
da no Brasil: entre 2001 e 2004, o coeficiente de Gini caiu 0,024.
Os pesquisadores fizeram então o seguinte exercício: caso a renda
declarada em "outros rendimentos" (onde se registra o dinhei
ro do Bolsa Família) fosse zero, o coeficiente de Gini teria caído
0,018. Portanto, 24% (0,06 em 0,024) da queda no coeficiente
de Gini se devem ao dinheiro de programas de transferência de
renda com condicionalidades. Outros fatores explicariam a queda
na desigualdade, segundo eles: 12% da redução seriam devidos a
mudanças nas diferenças de escolaridade entre os trabalhadores,
126 NÃO SOMOS RACISTAS
2% viriam da queda do desemprego e 8% viriam do aumento do
salário mínimo. No artigo, os autores concluem, portanto, que é
grande a importância de uma rede de proteção social "centrada
no programa Bolsa Família": "Sua contribuição para a queda na
desigualdade foi 2,5 vezes maior que a do aumento do salário mí
nimo", dizem.Ocorre que o dinheiro das aposentadorias de idosos e deficientes
físicos pobres, um programa sem condicionalidades e com grande
desvio de foco, como já demonstrei aqui, também é declarado em
"outros rendimentos", e é um montante expressivo de recursos:
se o governo gastou em 2004 R$5,7 bilhões com o Bolsa Família,
gastou mais com as aposentadorias especiais, R$5,8 bilhões. En
quanto o benefício médio do Bolsa Família em 2004 foi de R$68,
o valor das aposentadorias nunca é menor do que o salário míni
mo, R$260 naquele ano. Assim, pode-se chegar a duas conclusões:
o papel na redução da desigualdade está bastante exagerado, no
caso do Bolsa Família, e subestimado, no caso do salário mínimo,
embora parte da importância do mínimo venha de um programa
mal focado e que não pede nada em troca aos beneficiários.
Mas imaginemos que o governo e os pesquisadores estejam cer
tos e que o impacto do Bolsa Família na diminuição da pobreza te
nha sido de fato grande. Nessa hipótese, seríamos então obrigados
a dizer que o retrato obtido nas linhas de pobreza não teria sido o
de uma pobreza menor, mas de uma pobreza "maquiada". Os ín
dices estariam anabolizados. Se de fato o pobre rompeu a linha da
pobreza por causa do Bolsa Família, quando essa ajuda for tirada,
o pobre voltará a ser pobre. Porque o Bolsa Família não acaba com
a pobreza, mas apenas atenua os seus efeitos. O que tira um pobre
da pobreza é o emprego. E só consegue emprego quando há um
quadro de crescimento econômico. E só consegue bons empregos
aquele que tem qualificação. Crescimento econômico e educação
de qualidade são a fórmula segura para a um só tempo diminuir a
pobreza e encurtar a desigualdade.
o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 127
A outra pergunta que faço então é simples: num país como o
Brasil, em que ainda não é universal o acesso a coisas básicas como
educação de qualidade, é justo que o governo gaste um caminhão
de dinheiro em programas como o Bolsa Família? Como já mos
trei aqui, a questão do Brasil não é a fome: no Brasil o percentual
de pessoas emagrecidas, único indicador que realmente mede a
quantidade de famintos, é inferior ao limite máximo considerado
normal. Se é assim, eu acredito que o Brasil tem necessidades mais
urgentes. Investir em educação é uma delas, porque somente ela é
capaz de emancipar uma pessoa. A outra é ínvestir na infra-estru
tura do país de modo a superar os gargalos que impedem o nosso
desenvolvimento.
E, no entanto, isso não acontece.
Assim, mesmo se o Bolsa Família fosse realmente eficaz no
"combate à pobreza", o dinheiro gasto com ele até poderia ter
um impacto imediato nos índices de pobreza, mas este seria um
impacto virtual, artificial, aparente. Em qualquer hipótese, no mé
dio e no longo prazos, o Bolsa Família estará contribuindo, pa
radoxalmente, para a manutenção de milhões de brasileiros na
pobreza, uma vez que drenará os recursos que deveriam estar indo
para educação e para a infra-estrutura essencial ao crescimento.
Esem educação e sem empregos, ninguém sai, de fato, da pobreza.
Terá de viver, eternamente, de esmola.
É um tiro no pé. Mas que rende votos. Eis, talvez, a origem da
insensatez.
O governo Lula parece ter metido o Brasil num beco sem saída:
quem será o político que terá coragem de explicar o paradoxo e
mexer num programa que atinge uma multidão de eleitores?
Os países que enfrentaram o problema da pobreza com maior
êxito nos últimos anos - Irlanda, Espanha, Coréia, apenas para
citar três exemplos - viram na educação o caminho mais curto
para a superação da pobreza. Investiram muitos Iecursos, quali
ficando o seu povo que, assim, pôde disputar pOSiD~ de trabalho
128 NÃO SOMOS RACISTAS
com salários mais altos. Naturalmente, uma camada da pobreza
continuou pobre. Como me disse certa vez o pesquisador Ricardo
Paes de Barros, do IPEA, há casos em que, mesmo com uma boa
escola ao lado de casa, mesmo com um bom posto de saúde na
vizinhança, mesmo com bom postos de trabalho, certas pessoas,
sozinhas, não saem da pobreza. Os programas sociais devem tê-las
como público-alvo. Mas elas serão sempre a minoria.
No Brasil, o governo as trata aos milhões. O preço? Dinheiro que
é drenado da educação. É o que veremos nas páginas a seguir.
EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO
DIANTE DAS CRÍTICAS DE QUE os RECURSOS PARA o ASSISTENCIALISMO s.3,o
excessivos e sem foco, drenando os recursos da educação, o gover
no tem dito que isso não ocorre: os níveis de investimentos públi
cos no setor seriam proporcionalmente equivalentes aos dos paí
ses mais adiantados. Uma rápida olhada por nossas escolas Brasil
afora mostra, porém, que nossa juventude vem sendo relegada a
um ensino sem qualidade, que em muito pouco ajudará os pobres
a deixarem a pobreza. Como eu disse em um dos meus artigos, dáuma tristeza grande.
Eu me lembro bem de quando fui apresentado a uma biblioteca.
Estava com 11 anos e tinha acabado de chegar a uma nova escola.
A bibliotecária se chamava Graça, era jovem, gostava do que fazia
e, melhor, gostava da minha curiosidade. Dizendo assim parece
piada, mas eu me encantei pelos segredos da catalogação: aquelas
fichas eram o caminho seguro para um mundo de assuntos, qual
quer um: bomba atômica, poluição, árabes (um tema caro a um
jovem que vinha de uma família de imigrantes) e, claro, biologia
(aparelho reprodutor, sexo, temas caríssimos a todo pré-adoles
cente). Havia também, naturalmente, a possibilidade de consultar
a partir dos autores, e eles eram uma multidão, nomes que eu
nunca tinha visto antes. Graça ficava atrás do balcão, terreno proi
bido para os estudantes pela irmã Emerenciana, responsável pela
biblioteca. Depois de muita insistência, porém, Graça me permitiu
130 NÃO SOMOS RACISTAS
ver como os livros ficavam dispostos, todos rotulados de acordo
com o código que constava das fichas: estantes e mais estantes de
livros, o equivalente mais modesto, mas, mesmo assim, muito po
deroso, do Google de hoje em dia (sem o lixo). No início, o que me
interessou mesmo foi a coleção de As aventuras de Tintim, que eu
li toda, mas, com o tempo, comecei a recorrer à biblioteca sempre
que um assunto martelava na minha cabeça. Na minha formação,
aqueles livros foram fundamentais.
Da mesma forma, o laboratório de ciências da escola provocou
em mim uma impressão que eu nunca vou esquecer. Eram ban
cadas retangulares de ladrilhos brancos, bem altas, dispostas em
duplas, cada uma com urna pia. :-Jós nos sentávamos em bancos
altos, o que nos fazia sentir importantes. Um dia, na aula de ciên
cias, depois de apresentados ao aparelho nervoso, fomos conhecer
no laboratório um cérebro conservado em formal. O cheiro forte
nos fez chorar, mas vestir luvas descartáveis e sentir nas mãos as
estruturas do cérebro com seus sulcos e fendas nos fazia ter preco
cemente os sentimentos que os alunos de medicina têm nas aulas
de anatomia. Não sei quantos de nós se tornaram médicos; sei que
aquelas aulas me fizeram ter a certeza de que a área de humanas
era o meu destino. No mesmo prédio do laboratório, havia uma
sala que apelidávamos de museu, com animais empalhados, inse
tos catalogados e algo a que apenas os mais velhos do científico
tinham acesso: fetos humanos em diferentes estágios conservados
em formal. No mesmo andar, uma sala de projeção, um cinemi
nha com cadeiras em patamares diferentes, sempre mais altos,
para que ninguém atrapalhasse a visão.
Os professores me pareciam todos muito bem preparados. E de
dicados. Davam aulas na minha escola e, no máximo, em mais
uma. Os salários da época deviam permitir isso. Todos tinham o
próprio carro, e estes ficavam estacionados num pátio coberto e
serviam para esconder os meninos mais velhos, que fumavam es
condido. Os professores moravam nas redondezas, muitos eram
EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO 131
vizinhos dos alunos. Andavam bem vestidos, sempre com muitos
livros nas mãos. Tinham uma dedicação grande, sabiam dividir a
atenção com todos, na medida certa. Se um aluno saía dos trilhos,
ia conversar na coordenação com ]urídice, uma mulher alta, de
porte esguio, cuja filosofia era nos fazer responsáveis. Diante de al
guma travessura, ela perguntava: "Você assume que fez tal coisa?"
Quando nós dizíamos que sim, assumíamos, ela nos mandava de
volta à sala de aula, sem castigos. Na primeira vez que isso me
aconteceu, eu achei meio louco. Eu me perguntei: "Não vai ter
castigo?" Depois, entendi: voltar a fazer algo que nós assumíramos
como errado era tão desmoralizante que, embora njnguém fosse
santo, evitávamos fazer. Além de ]urídice, com quem convivi pou
co, Graça e Seline, coordenadoras do primeiro e do segundo graus,
influenciaram de tal modo a minha formação que os acertos que
tive na vida eu devo atribuir em grande parte a elas.
E, no entanto, o Santa Rosa de Lima era (e ainda é) apenas um
colégio simples de bairro, voltado para a classe média de Botafo
go, Flamengo e adjacências. Nunca foi um colégio de elite, caro,
nunca constou da lista dos mais badalados, mas tinha um projeto
a que as irmãs dominicanas se dedicavam (e se dedicam) com zelo.
Tampouco era o único com esse perfil; havia (e ainda há) muitos.
O problema é que o esmagamento da classe média é de tal ordem
que uma família com os recursos proporcionais aos que a minha
tinha na época dificilmente pode matricular hoje quatro filhos em
colégios de qualidade.
Todas essas reminiscências me vieram à mente depois de uma
visita à página do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu
cacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao MEC. A boa notícia é
que, diferentemente do que acontecia na minha época, quando
só crianças de classe média como eu estavam na escola, hoje prati
camente todas em idade escolar estão nas salas de aula do ensino
fundamental. Mas as estatísticas sobre educação me fizeram ter a
certeza de que estamos a anos-luz do que realmente precisamos
132 NÃO SOMOS RACISTAS
para educar o nosso povo. Segundo dados de 2003 (os mais recen
tes), de todas as escolas públicas de ensino fundamentat apenas
23% têm bibliotecas; só S% dispõem de laboratórios de ciências;
13% contam com salas de vídeo; 27% têm computadores; 9% pos
suem laboratórios de informática; e somente 10% têm acesso à
intemet. Entre os professores que trabalham para a rede pública,
apenas SS% têm curso superior.
É uma situação desoladora, que não levará a maior parte dos
alunos a superar os entraves da pobreza e manterá o Brasil na eter
na posição de país pobre e desigual.
O que poucos percebem é que também a escola privada não é
um oásis no meio de um sistema de ensino degradado. Oferece
mais recursos, mas, pelas estatísticas, há muitos pais que se esfor
çam para pagar por um ensino privado que nem de longe lhes dá
o que devia: 24% das escolas privadas de ensino fundamental não
têm biblioteca; 69% não têm laboratório de ciências; 4S% não têm
salas de vídeo; 47% não dispõem de laboratório de informática;
18% não contam com computadores; e 48% estão desconectadas
da intemet. Basta também que os pais se interessem por saber qual
o salário dos professores de seus filhos para que cheguem à con
clusão de que o dinheiro não é suficiente para que eles sustentem
a família e, ao mesmo tempo, possam comprar livros e fazer os
curSOS necessários para o seu contínuo aperfeiçoamento. Isso vale
para todas as escolas, mesmo as de elite. Outro dia mesmo, um
professor de uma dessas escolas estava me contando que tem de se
desdobrar em muitos "bicos" para ter um salário que lhe permita
ao menos ter alguma dignidade. Mas nem de longe consegue ter o
suficiente para estudar, comprar livros, viajar.
Ninguém está a salvo.
Enquanto isso, o governo prefere continuar gastando bilhões
em políticas assistencialistas sem foco, como tenho tentado mos
trar neste livro. Em qualquer município é possível, numa rápida
pesquisa, encontrar comerciantes, funcionários públicos e paren-
EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO 133
tes de vereadores recebendo o Bolsa Família. A imprensa tem mos
trado isso, e, toda vez, o governo diz que são casos isolados, mas
não são. O Ministério do Desenvolvimento Social tenta limpar o
Cadastro Único, de onde devem sair os beneficiários de programas
sociais, mas o trabalho caminha lentamente, muito lentamente. É
uma promessa nunca cumprida. Ao que parece, o peso desses pro
gramas assistencialistas numa eleição é entrave para qualquer ação
que tenha por objetivo rediscutir a abrangência dos programas e
seu foco. Uma vez instituído um programa assim, que político tem
a coragem de botar um freio? Thomas Sowell, como mostramos no
capítulo sétimo, tem razão: o mercado de votos impõe que esse tipo
de beneficio seja estendido a grupos cada vez mais numerosos.
Apenas para dois programas - Bolsa Família e os Benefícios de
Prestação Continuada, ambos, a meu ver, com problemas de foco
e público-alvo superestimado - o governo prevê gastar R$19,3
bilhões em 2006. Enquanto isso, o orçamento previsto para inves
timentos em educação é de R$8,S bilhões. O Fundo de Manuten
ção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) prevê que a
União participará dele com recursos de R$2 bilhões no primeiro
ano; ao fim de quatro anos, a participação será de R$4,S bilhões ao
ano. Uma quantia ainda assim pequena para modificar o quadro
que tracei aqui.
Esse é o beco em que nos metemos: remediar a pobreza com
recursos que são altos pelo desperdício e falta de foco em vez de
vencê-la com investimentos realmente maciços em educação.
Para fugir dessa realidade, de um tempo para cá, é comum ouvir
dos políticos que o problema brasileiro na educação não é dinhei
ro. O número mais citado é o volume de recursos investidos na
educação pelo setor público (municipal, estadual e federal) como
proporção do PIB: o Brasil não estaria longe das maiores potências
do planeta ao investir 4%. De fato, o estudo "Education at a Glance,
200S", da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econô
mico (OCDE), mostra que esse investimento é da ordem de 4,4% na
134 NÃO SOMOS RACISTAS 1 EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOlUÇÃO 135
PROPORÇÃO DO PIB GASTO EM EDUCAÇÃO NO BRASIL
E EM ALGUNS PAíSES
Alemanha; 5,3% nos EUA; 4,4% na Austrália; 4,6% na Itália; 4,6%
na Holanda; e de 5,1% na média de todos os países da OCDE.
Para reforçar a tese de que investimos o necessário, passaram
a nos comparar aos países que, com mais êxito, ultrapassaram a
barreira do desenvolvimento com investimentos pesados em edu
cação: a Coréia investe 4,2% do PIB; a Irlanda, 4,l°/b; a Espanha,
4,3%. Mesmo em relação aos nossos vizinhos latino-americanos,
não fazemos feio: a Argentina gasta 3,9% de seu PIB com educa
ção; o Chile, 4%; o México, 5,1%. Estamos, portanto, na média,
seja qual for o parâmetro.
Brasil
Alemanha
Austrália
Estados Unidos
Coréia
Espanha
4,0%
4,4%
4,4%
5,3%
4,2%
4,3%
dispor muito mais recursos. Quando esses dados são levados em
conta, a posição do Brasil no ranking de países é vexatória.
Uma boa maneira de se analisar o quanto um país investe num
aluno, sem correr o perigo de comparar custos de vida diferentes,
é medir o gasto público por aluno como proporção da renda percapita. No Brasil, os três níveis de governo investem em cada estu
dante de ensino fundamental o equivalente a 11,3% da renda per
capita. No ensino médio, em que pese a maior complexidade, essa
proporção cai para 10,9%. Façamos as comparações com os países
desenvolvidos. Na Alemanha, os números são, respectivamente,
16,9% e 21,8%. Nos EUA, 21,2% e 24,5%. Na Austrália, 16,6% e
21,8%. Na comparação com aqueles países que venceram os entra
ves do desenvolvimento, nossa situação continua trágica. Na Co
réia, os números são 16,6% e 21,1%. Na Irlanda, 12% e 17,9%. Na
Espanha, 18,9% e 24,3%. Nada melhora quando nos comparamos
aos nossos vizinhos. Na Argentina, os valores são 12,4% e ] 5,8%.
No Chile, 15,8% e 15,7%. No México, 13,89/0 e 18,4%.
GASTO PÚBLICO POR ALUNO COMO PROPORÇÃO DA RENDA
PER CAP/TA NO ENSINO FUNDAMENTAL E NO ENSINO MÉDIO,
NO BRASIL E EM ALGUNS PAíSES
Mas os números enganam.
Parece óbvio, mas ninguém sublinha o fato de que investimen
tos em educação como proporção do PIB dizem pouco quando
não consideramos o tamanho do PIB e o número de estudantes
atendidos. Imaginemos dois países. O primeiro tem um PIB enor
me e poucos estudantes; o segundo tem um PIB pequeno e mi
lhões de estudantes. Os dois países podem investir igualmente 4%
do PIB, mas, certamente, no primeiro país, os alunos terão ao seuInvestir a mesma porcentagem do PIB em educação diz pouco,
portanto.
Irlanda
Argentina
Chile
México
4,1%
3,9%
4,0%
5,1%
México
Chile
Arg entina
Irlanda
Espanha
Coréia
Estado s Un ido s
Austrália
Alemanha
Brasil
0% 5% 10% 15% 20% 25°!c
• Gasto n() ensino fundamental .. Gasto no ensino médio
30%
136 NÃO SOMOS RACISTAS EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO 137
GASTO PÚBLICO POR ALUNO COMO PROPORÇÃO DA RENDA PER
CAPITA NO ENSINO SUPERIOR, NO BRASIL E EM ALGUNS PAíSES
No ensino superior, a situação se inverte: nós gastamos despu
doradamente em excesso. No Brasil, gasta-se por aluno o equiva
lente a 5S,6% da renda per capita ao ano. Na Alemanha, 41,2%; na
Austrália, 25,4%. Na Coréia, 7,3%; na Irlanda, 27,2%; na Espanha,
22,4%. Se a comparação for com os nossos vizinhos, os números
são os seguintes: na Argentina, 17,8%; no Chile, 17,7%; no Méxi
co,35%.
Por que digo que há excesso? Porque, no Brasil, a relação entre
o percentual de verbas destinadas ao ensino superior e a respectiva
população de estudantes é escandalosa. Na maior parte dos países,
o montante de verbas destinado às universidades excede a propor
ção de alunos nelas inscritos. Na média, nos países da OCDE, 15%
de todos os alunos estão nas universidades, mas o ensino superior
abocanha 24% do total de verbas destinadas à educação. Énormal:
o ensino superior é mesmo mais caro. No Brasil, porém, vivemos
um descalabro: os alunos inscritos em universidades somam ape
nas 2% do total de alunos, mas o ensino superior fica com 20% de
todas as verbas aplicadas em educação. Não há nada nem de longe
parecido em qualquer um dos países aqui mencionados.
Diante desses números, entende-se melhor paI que as nossas
escolas públicas do ensino fundamental não têm bibliotecas, labo
ratórios de ciências, laboratório de informática, acesso à intemet.
Entende-se também por que o professorado é uma classe cada vez
menos prestigiada, que recebe um salário indigno, o que tira dele
inclusive as condições de se aperfeiçoar. Entende-se fundamental
mente por que estamos perdendo a corrida para superar a pobrezae alcançar o desenvolvimento.
Mas nosso problema, de fato, não é falta de recursos, mas falta
de prioridade. Repito aqui, como num mantra, o que venho escre
vendo ao longo deste livro: o governo federal quer gastar em 2006
R$S bilhões em educação e R$19 bilhões em programas sociais
superestimados, como Bolsa Família e aposentadorias especiais
para idosos e deficientes físicos pobres. Não se trata, portanto, de
conseguir dinheiro novo, mas de realocar o já existente: redimen
sionar os programas sociais para atender apenas aos necessitados
e investir a maior parte em educação, o único instrumento que
redime o homem da pobreza.
Todo investimento que desvia dinheiro da educação é contra
producente, mesmo o antigo Bolsa Escola na dimensão que teve
no governo passado. Porque o número de crianças que não estu
dam porque precisam trabalhar jamais chega à casa dos milhões.
O grande professor Sérgio Costa Ribeiro já mostrava no jnício da
década de 1990 que o acesso das crianças à escola era de 95%.
Em média, elas passavam oito anos tentando desesperadamente
estudar, mas saíam de lá sem nem de longe concluir o ensino fun
damental. O que as afastava da escola não era a necessidade de
trabalhar, mas a repetência, o único estímulo que os professores
tinham à mão para que o aluno estudasse.
O remédio contra a repetência foi a progressão automática, mas
Sérgio sempre a criticou, por considerá-la uma medida isolada,
inócua. Mais importante, dizia ele, é dar autonomia às escolas,
tendo como contrapartida a avaliação de desempenho dos alu-
60%50%40%30%20%10%0%
Brasil
Cor éia
Espanha
Irlanda
Arqentina
Chile
México
Austrália
Alemanha
138 NÃO SOMOS RACISTAS
nos. Dotar as escolas de recursos materiais e humanos para que
se tornem ao mesmo tempo atraentes e efetivas, com uma didá
tica nova e professores estimulados e bem pagos. Mas não deixar
de submetê-las a um sistema de avaliação que seja o parâmetro de
tudo: a autonomia e os recursos financeiros extras da escola esta
riam condicionados por essa avaliação.
Sérgio morreu precocemente e o que vimos foi a adoção indis
criminada da progressão automática, sem nova didática, sem mais
recursos, sem uma avaliação com resultados práticos: os professo
res se esforçam para ensinar, mas a escola fracassa.
Diante desse quadro, vamos continuar tendo uma legião de po
bres que dependerá sempre de uma esmola do governo. Mas esta
esmola jamais tirará os pobres da pobreza. Ao contrário, será um
dos fatores que os manterão pobres. Porque cada dinheiro dre
nado da educação é um estímulo para que pobres permaneçam
pobres.
HÁ SOlUÇÃO
EM MAIO DE 2005, DIANTE DAS AGRESSÕES RACISTAS QUE JOGADORES NEGROS
sofriam nos gramados espanhóis, Ronaldo deu a seguinte decla
ração: "Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância. A so
lução é educar as pessoas. COrÍligo, o preconceito é outro, bemmenos grave. As pessoas me chamam de gordinho."
O mundo desabou sobre ele. Ronaldo, branco? Foram muitas as
ofensas, muitas as piadas. O próprio pai deu declarações dizendo
que não sabia onde o filho estava com a cabeça, porque certamen
te ele era negro. Sob pesadas críticas, Ronaldo deu nova declara
ção, que devia ser aplaudida por todos os anti-racistas do mundo:
"Eu quis dizer que tenho pele mais clara, só isso, e mesmo assim
sou vítima de racismo. Meu pai é negro. Não sou branco, não sou
negro, sou humano. Sou contra qualquer tipo de discriminação."
A crise em torno de Ronaldo era o sinal mais claro de que o
efeito do vírus da nação bicolor - negros e brancos - já está
amplamente disseminado. Em outros tempos, talvez muitos ra
cistas questionassem a cor de Ronaldo, mas envergonhadamente,
porque a nossa etiqueta social nos impunha ignorar questões re
lativas à cor. Ronaldo se acha branco? Ótimo, a vida é dele. Para a
maioria, a cor de Ronaldo não seria uma questão. Mas, no Brasilde hoje, vira escândalo.
Vejam que aqueles que defendem a idéia de uma nação bicolor
avançaram um degrau a mais: antes, todo o discurso era a favor
140 NÃO SOMOS RACISTAS
da autodeclaração, a própria pessoa decidiria a que grupo "racial"
pertencia. Hoje, eles vão além: dão-se o direito de dizer se Ronaldo
é ou não negro} é ou não branco. Isso é o cúmulo do racismo, e
vindo de pessoas que dedicaram a vida a combatê-lo. É a encruzi
lhada em que nos encontramos.
Depois de ler os originais deste meu livro, Luciano Trigo, editor
da Nova Fronteira, indagou-me sobre o porquê de} justamente no
momento em que "raça", definitivamente, não é mais um concei
to aceito pela ciência} o discurso do orgulho racial negro, da nação
bicolor} da divisão do país em raças, da adoção de políticas de pre
ferência racial, ganhou tanto espaço e tanto eco no BrasiL
Eu arrisco várias respostas, todas elas esboçadas no decorrer dos
capítulos até aqui.
A primeira delas é que} por dez anos, o Brasil teve em seu co
mando um homem que sempre pensou o Brasil em termos de
uma nação dividida, em que brancos oprimem negros: Fernando
Henrique Cardoso, primeiro como ministro da Fazenda e, depois,
como presidente da República por dois mandatos consecutivos.
Somente aqueles que não leram a obra sociológica de FH podem
imaginar que ele, como presidente, guiaria o país com os olhos vol
tados para outros paradigmas. Não cabe a mim fazê-lo aqui, mas
fica a indicação: à luz de Dependência e desenvolvimento na Améri
ca Latina, muito do que o seu governo fez no campo económico
- privatizações, reforma do estado, fim de monopólios - está
em linha e é coerente com o pensamento do sociólogo. A questão
racial, como já demonstrei na introdução} não foi exceção. O ho
mem que ajudou a construir a tese sobre a nação bicolor no poder
não agiria de outra forma, senão a partir dos pressupostos em que
acreditava. Dez anos de ação, se não mudam, ao menos ajudam,
e muito, a mudar a face de um país. É certo que o presidente era
mais sutil que o jovem sociólogo, reconhecia que aqui havia, e há,
o gosto pela mistura, o que, no entanto, não muda em essência o
fato de que a desigualdade entre negros e brancos se deve em gran-
HÁ SOlUÇÃO 141
de medida ao racismo. Que ele tenha sido e seja pessoalmente
contra as cotas raciais, importa pouco: a adoção delas só é possível
se antes toma corpo todo um processo que substitui o ideal de
nação miscigenada e tolerante pela crença numa nação dividida
entre negros oprimidos e brancos opressores. Equem instituciona
liza esse processo é FH.
A segunda resposta tem a ver com um ambiente externo favo
ráveL A subida de FH ao poder coincide com um momento em
que as Nações Unidas desenvolvem um esforço monumental no
sentido de amenizar o racismo presente em grande parte do mun
do. Esforço que envolve patrocínio} em dinheiro} a campanhas e
estudos mundo afora. O ponto que escapa a muitos é que, talvez
desanimadas de empreender a luta certa - o fim do racismo e a
defesa da mistura de todos os homens num único caldeirão -, as
Nações Unidas se voltam para a luta possível: fazer prevalecer o
respeito pelas diferenças. O resultado esperado dessa luta - como
ideal- é a instauração nos diversos países de nações multiétnícas:
cada um no seu canto, mas todos respeitando e tolerando as dife
renças. Nada de misturas, nada do cozimento de um só cidadão,
independentemente da cor, da "raça", mas a luta para que todos
os diferentes sejam aceitos como cidadãos. É assim no Reino Uni
do, que desenvolve campanhas para que os súditos se orgulhem
dos co-cidadãos hindus, árabes, africanos, cada um em seu bairro}
cada qual com a sua "diversidade, mas todos igualmente brltâni
coso É assim na França, com os franceses "puro-sangue" sendo esti
mulados a conviver com os franceses-argelinos, com os franceses
africanos, com os franceses-antilhanos. É assim no mundo todo.
E esse ideal chegou aqui como uma importação acrítica de uma
atitude "bacana". Logo aqui, onde já existia, também como ideal,
uma atitude muito mais revolucionária, muito mais civilizada: a
exaltação das virtudes, não da convivência respeitosa de I}raças",
mas da mistura delas. Desde Oswald de Andrade, com a sua defini
ção maravilhosa de antropofagia cultural, vivíamos a querer isso:
142 NÃO SOMOS RACISTAS
um povo misturado, em que ninguém sabe onde começa o branco
e onde termina o negro. E, no entanto, pouco a pouco, esse ideal
foi sendo substituído pelo respeito à diferença, a etnias diversas. E
passamos a ouvir como se fosse algo muito "chique": "Somos uma
nação multiétnica." Mal percebendo que nações multiétnicas es
tão num degrau abaixo em termos de ideal civilizatório: no topo,
nações misturadas, em que cor e "raça" são noções de um passado
bárbaro; no meio, nações multiétnicas, em que a discriminação
é odiosa, mas onde a mistura é evitada como "antinatural"; e no
degrau mais baixo, as nações que se orgulham de sua pureza racial,
seja ela qual for.
A terceira resposta, eu a encontro em nossa imensa desigualda
de. Somos uma nação dividida entre ricos e pobres, e com um abis
mo entre eles. E, como os negros e os pardos são a maioria entre os
pobres, a saída mais fácil é atribuir a desigualdade ao racismo de
brancos, ignorando que, entre os pobres, há 19 milhões de almas
brancas. Passa-se então a lutar por políticas de preferência racial
que promovam a emancipação de parte da pobreza, sem que os
defensores dessas idéias percebam a monstruosidade que há nelas.
Em vez de defender investimentos que visem à superação de toda
a pobreza - a educação em primeiro lugar -, passa-se a defender
políticas que visam a emancipar apenas os negros.
A quarta e última resposta, e que decorre da anterior, diz res
peito ao nosso gosto pelas soluções fáceis, pelas soluções mágicas.
Reconhecemos que a educação no Brasil é um desafio ao qual de
vemos dar prioridade? Então põe-se nas constituições estaduais a
obrigação de se investir ao menos 25% no setor (na Constituição
Federal, a obrigação é de 18%). E qual o resultado? 25% e 18%,
que deveriam ser o piso, passam a ser o teta. A educação continua
sem dinheiro, mas os administradores dormem com a consciência
tranqüila. Nenhuma nação adulta precisa de pisos ou tetas para
investir em educação: basta investir o necessário, e o necessário
depende das necessidades, vejo-me obrigado a dizer uma obvieda-
HÁ SOLUÇÃO 143
de como essa. Outro caminho mágico que seduz são as cotas. Mes
mo todo mundo sabendo que o problema está na má qualidade
da educação básica, muitos passam a imaginar que basta facilitar o
acesso de negros e pardos às universidades para que todos os pro
blemas estejam resolvidos, quando, na verdade, eles estarão ape
nas começando: porque no rastro das cotas, ensina a experiência
internacional, nem sempre vem o resultado esperado em termos
de diminuição de desigualdades, mas quase sempre aparece o ódio
racial. Outro fator de sedução é imaginar que se pode acabar com
a pobreza com políticas assistencialistas. Isso, infelizmente, não é
possível. Tire o dinheiro do programa social e o pobre voltará a ser
pobre, caso tenha saído da pobreza graças ao assistencialismo. E o
pior: num país pobre como o nosso, cada centavo que deixa de ir
para a educação contribui para a manutenção dos pobres na vida
trágica que levam. Sejam brancos, negros, pardos ou de qualquer
outra cor.
Há solução? Há caminho de volta? Eu não tenho dúvidas de
que há. Este livro é fruto dessa certeza. Basta que, como eu, mani
festem-se todos aqueles que ainda pensam que uma nação mistu
rada, miscigenada, colorida, sem espaço para diferenças de "raça"
é ainda muito superior a uma nação multiétnica, mas que vive de
nariz tampado.