Caldeirão de raças, sopa de desigualdadepuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17 - caldeirão de...

4
passaporte brasileiro é um dos mais cobiçados no mercado paralelo intern a- cional. Um dos motivos é a diversidade racial do país. Como se costuma dizer, o brasileiro pode parecer chinês, italiano, africano, alemão. O Brasil sempre foi re c o- nhecido como o país da mes- tiçagem, uma nação em que, por não haver preconceito, diversas etnias se relacionam e procriam harmonicamente. Tal fato é re c o- nhecido pelo Ministério da Justiça que, devido a pressões intern a- cionais, resolveu acelerar o pro c e s- so de mudança do passaport e para cumprir com as regras de segurança e evitar falsificação. A idéia de democracia racial, sustentada tanto na língua do povo quanto em teses acadêmi- cas, não se comprova na ma- temática da realidade social. Há uma questão histórica não re- solvida: a camada mais desfa- v o recida economicamente na sociedade é, em sua grande maioria, negra. A questão é tão evidente que pode ser percebida em quase todos os ambientes sociais, onde geralmente os ne- gros realizam trabalhos conside- rados subalternos. A questão de ser pobre passa pela questão de ser negro, senão por um fato real, pelo menos por uma associação direta entre raça e pobreza. Em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso re- conheceu a existência de racismo no Brasil, quebrando um para- digma de negação ligado ao tema na sociedade brasileira, o que proporcionou a abertura de um ciclo de políticas públicas de afirmação. Cada país tem um sis- tema segregador. No Brasil, aparentemente, todos estão no mesmo espaço, mas o tratamen- to para a distribuição de riquezas e oportunidades ainda é diferen- ciado. Em 2002, o sistema de cotas para negros foi adotado pela primeira vez na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e, até hoje, o assunto gera polêmica e divide opiniões. O principal argumento daqueles que são contra as cotas é a ofi- cialização de critérios raciais para se pensar o Brasil, um país considerado mestiço. Recente- mente, o jornalista Ali Kamel, diretor-executivo da Central Glo- bo de Jornalismo lançou o livro Não somos racistas, defendendo a tese da miscigenação, contra a política de cotas. Do outro lado, a favor das cotas, estão movimentos negros, que acreditam que esse sistema pode reverter um quadro históri- co de desigualdade e mudar o perfil da elite brasileira. “Quando o jornalista lança o livro Não somos racistas, parece que está querendo dizer o contrário. A necessidade de afirmar o não ALINE LEAL, CECÍLIA BERTOCHE E LORENA MONTENEGRO Caldeirão de raças, sopa de desigualdade Julho/Dezembro 2006 64 Cadastramento no FESP

Transcript of Caldeirão de raças, sopa de desigualdadepuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17 - caldeirão de...

Page 1: Caldeirão de raças, sopa de desigualdadepuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17 - caldeirão de raças, sopa de... · mente, o jornalista Ali Kamel, diretor-executivo da Central

p a s s a p o rte brasileiro é umdos mais cobiçados nom e rcado paralelo intern a-cional. Um dos motivos é

a diversidade racial do país. Comose costuma dizer, o brasileiro podep a recer chinês, italiano, africano,alemão. O Brasil sempre foi re c o-nhecido como o país da mes-tiçagem, uma nação em que, pornão haver preconceito, diversasetnias se relacionam e pro c r i a mh a rmonicamente. Tal fato é re c o-nhecido pelo Ministério da Justiçaque, devido a pressões intern a-cionais, resolveu acelerar o pro c e s-so de mudança do passaport epara cumprir com as regras desegurança e evitar falsificação.

A idéia de democracia racial,sustentada tanto na língua do

povo quanto em teses acadêmi-cas, não se comprova na ma-temática da realidade social. Háuma questão histórica não re-solvida: a camada mais desfa-v o recida economicamente nasociedade é, em sua grandemaioria, negra. A questão é tãoevidente que pode ser percebidaem quase todos os ambientessociais, onde geralmente os ne-gros realizam trabalhos conside-rados subalternos. A questão deser pobre passa pela questão deser negro, senão por um fato real,pelo menos por uma associaçãodireta entre raça e pobreza.

Em 1995, o então presidenteFernando Henrique Cardoso re-conheceu a existência de racismono Brasil, quebrando um para-

digma de negação ligado aotema na sociedade brasileira, oque proporcionou a abertura deum ciclo de políticas públicas deafirmação. Cada país tem um sis-tema segre g a d o r. No Brasil,aparentemente, todos estão nomesmo espaço, mas o tratamen-to para a distribuição de riquezase oportunidades ainda é diferen-ciado.

Em 2002, o sistema de cotaspara negros foi adotado pelaprimeira vez na UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro (UERJ)e, até hoje, o assunto gerapolêmica e divide opiniões. Oprincipal argumento daquelesque são contra as cotas é a ofi-cialização de critérios raciaispara se pensar o Brasil, um paísconsiderado mestiço. Recente-mente, o jornalista Ali Kamel,diretor-executivo da Central Glo-bo de Jornalismo lançou o livroNão somos racistas, defendendo atese da miscigenação, contra apolítica de cotas.

Do outro lado, a favor dascotas, estão movimentos negros,que acreditam que esse sistemapode reverter um quadro históri-co de desigualdade e mudar operfil da elite brasileira. “Quandoo jornalista lança o livro Nãosomos racistas, parece que estáq u e rendo dizer o contrário. Anecessidade de afirmar o não

ALINE LEAL, CECÍLIA BERTOCHE E LORENA MONTENEGRO

Caldeirão de raças,sopa de desigualdade

Julho/Dezembro 200664

Cadastramento no FESP

Page 2: Caldeirão de raças, sopa de desigualdadepuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17 - caldeirão de raças, sopa de... · mente, o jornalista Ali Kamel, diretor-executivo da Central

racismo denuncia a vontade damanutenção dessa ordem. Sa-bemos muito bem que aindaexistem lugares na sociedadepara negros e lugares para bran-cos”, argumentou Márcio Flávio,c o o rdenador do Pré-vestibularpara Negros e Carentes de Duquede Caxias, o PVNC.

Pré-vestibular comunitário O Pré-vestibular para Negros e

Carentes é a favor da reserva devagas para negros nas universi-dades. Apesar de existirem pes-soas contra e a favor dentro domovimento, tal posição foi toma-da em assembléia no ano de2001. De acordo com Márc i oFlávio, à primeira vista, o pré-vestibular rejeitou a proposta porconsiderar uma medida eleito-reira, patrocinada pelo entãosenador Antero Paes de Barros(PSDB/MT).

Hoje em dia, o movimento en-xerga nas cotas um mecanismode democratização do acesso aoensino superior e dos processos dedifusão e produção de conheci-mento. “As experiências das uni-versidades que já possuem pro-gramas de acesso e permanênciapara negros, mostram que aspolíticas de cotas não geram osconflitos previstos por grandes

veículos da imprensa. Sãomecanismos de democratização econtribuem para a necessáriatransformação concreta das uni-versidades estatais em institui-ções públicas de fato”, sustentaMárcio Flávio.

P roUni - Programa universidadepara todos

Moradora do Engenho daRainha, na Zona Norte do Rio,Priscila conseguiu a nota 77 noExame Nacional do Ensino Médio(Enem), e agora estuda Direito naPUC-Rio e recebe uma bolsa inte-gral do ProUni. Hoje, na PUC-Rio41% dos alunos matriculados sãobolsistas. Destes, 8% são benefici-ados pelo ProUni. Criado em2004, pelo Ministério da Educaçãodo governo Lula, o programa temcomo finalidade a concessão debolsas de estudos integrais e parc i-ais a estudantes de baixa re n d a ,em cursos de graduação e seqüen-ciais de formação específica, eminstituições privadas de educaçãos u p e r i o r, oferecendo, em contra-p a rtida, isenção de alguns tribu-tos àquelas que aderirem ao pro-grama. De acordo com o MEC, aeducação superior está restrita a10,4% da população na faixaetária entre 18 e 24 anos.

Para se candidatar a uma bolsado ProUni, além de obter a notamínima estabelecida pelo MEC, ép reciso também que o estudantetenha renda familiar, por pessoa,de até três salários mínimos e sa-tisfaça uma das seguintes con-dições: ter cursado o ensino médiocompleto em escola pública ouem escola privada com bolsa inte-gral, ser portador de deficiênciaou professor da rede pública deensino básico, em efetivo exerc í-cio. Neste último caso, a re n d afamiliar não é considerada.

Priscila atende à primeiradelas, por sempre ter estudadoem escola pública. “Sem oauxílio do ProUni seria pratica-mente impossível estar matricu-lada na PUC-Rio, por causa dovalor alto da mensalidade”, dizPriscila. Ela, que trabalha desdeos 15 anos para ajudar afamília, é otimista em relação àqualidade do ensino nas escolaspúblicas, e afirma com veemên-cia que teria conseguido ingre s-sar em uma universidade par-ticular através do vestibular: “Omaior problema das pessoas debaixa renda que o pro g r a m af a v o rece não está na questão doque elas aprendem, mas sim dotempo disponível para os estu-dos”.

P & B65

Bolsistas do FESP

O reitor da PUC-Rio recebe da de-putada Georgette Vidor moção dehonra conferida ao FESP

“O objetivo é fazer comque estes alunos negros e c a rentes, que até então o

sistema educacionalexcluía, tivessem a

o p o rtunidade de ter acesso a uma universidade

de boa qualidade”Lady Christina de Almeida

Page 3: Caldeirão de raças, sopa de desigualdadepuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17 - caldeirão de raças, sopa de... · mente, o jornalista Ali Kamel, diretor-executivo da Central

Antes de entrar na PUC-Rio,Priscila trabalhou até os 18 anos

estagiando em uma ONG, benefi-ciada por outro programa do

governo Lula direcionado para osjovens, o Primeiro Emprego. As-sim como ela, um vasto leque deadolescentes de baixa renda éobrigado a trabalhar desde cedopara aumentar a renda dafamília. O tempo para os estudosdiminui e se torna às vezes, insa-tisfatório frente aos re q u i s i t o snecessários para competir comestudantes que se preparam emcaros cursos de pré-vestibular. As

Julho/Dezembro 200666

O Núcleo Interdisciplinar de Reflexão eMemória Afrodescendente, o Nire m a ,vinculado à PUC-Rio, foi criado em 2003com o objetivo de congregar pesquisas detrês departamentos – História, ServiçoSocial e Política – relacionadas àhistória, cultura e cidadania dos afrodes-cendentes. A realidade da própria uni-versidade serviu de base para o surgi-mento do Núcleo. Desde 1993, quando a PUC-Rioaderiu às políticas de ação afirmativa, o número deestudantes negros tem aumentado consideravel-mente. As pesquisas realizadas pelo Nirema podemdar origem a disciplinas acadêmicas ou a oficinaspara o desenvolvimento de currículos, materialdidático-pedagógico e congêneres, em resposta àsexigências legais de inclusão dos temas relativos àcultura e à história afrodescendentes nos ensinosfundamental e médio brasileiros (Lei 10.639, de09/01/2003).

P e rmanência na universidadeIngressar na universidade às vezes não é o passo

mais difícil. O dia a dia de um estudante univer-sitário, que inclui custos como transporte, alimen-tação e livros, pode ser o maior empecilho, porque,muitas vezes, não cabe no orçamento familiar.Pioneira na implementação do sistema de cotas, aUERJ concede um auxílio de R$ 192,00 mensais,provenientes da bolsa Jovens Talentos II. No entan-to, menos da metade dos cotistas são beneficiadoscom a bolsa, que só tem duração de um ano, sempossibilidade de prorrogação. Desse modo, o que seobserva é a diminuição progressiva dos alunos emsala de aula ao longo dos períodos do curso. Alémdisso, o valor da bolsa é considerado irrisório pelamaior parte dos alunos cotistas beneficiados. O

ProUni também estabelece uma bolsa deauxílio à permanência, no valor de R$300,00 mensais para alunos de baixarenda.

Na PUC-Rio, o Centro de PastoralAnchieta auxilia os alunos que não teri-am condições de se manter na universi-dade, apesar da bolsa integral. O FundoEmergencial de Solidariedade da PUC

(FESP), criado em 1997, hoje atende 720 bolsistasque têm um saldo de renda familiar de atéR$170,00. O benefício é concedido após uma análiseda situação sócio-econômica dos alunos, acompa-nhada anualmente. A maioria dos alunos recebevale-transporte e vale-alimentação, que dá direito auma refeição diária no restaurante da universidade.Além desses benefícios, o FESP proporciona auxílioterapêutico, aulas de informática, auxílio moradiae atendimento dentário.

Por ser desenvolvido pela divisão de pastoral, oFESP não trabalha com dados de religião e etnia. Ofundo é mantido através de doações dentro da PUC-Rio: funcionários, professores, alunos, Vice-reitoriasadministrativa e comunitária e Comunidade dosJesuítas, além de ser apadrinhado pela AssociaçãoN ó b rega de Educação e Assistência Social. Pro-fessores e funcionários podem doar mensalmenteem folha de pagamento. São aceitas colaboraçõesde pessoas físicas ou jurídicas. As doações podemser feitas mensalmente ou apenas uma vez, atravésdo Banco Itaú, Agência: 1108, C/C 19406-7, a favorde: Pastoral Atividades. Bianca Aguiar, uma dasc o o rdenadoras do fundo, afirmou que a ascensãosocial e o caminho para uma sociedade de igual-dade são via educação, mas pontuou: “uma políti-ca de acesso sem uma política de p e rmanência éi n e f i c i e n t e ”.

Nirema

Priscila Barbosa de Jesus, BolsistaPro-Uni

Há uma questão histórica não resolvida:

a camada mais desfavorecida

economicamente nasociedade é em sua

grande maioria negra

Page 4: Caldeirão de raças, sopa de desigualdadepuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17 - caldeirão de raças, sopa de... · mente, o jornalista Ali Kamel, diretor-executivo da Central

universidades públicas são cadavez mais concorridas, o que fazaumentar, a cada ano, o níveldas provas e, conseqüentemente,dos alunos.

Diante da lei, as universidadesparticulares foram obrigadas aabrir suas portas para aquelesque não poderiam pagar sequera matrícula. No caso da PUC-Rio,a mensalidade ultrapassa amédia de três salários mínimos.Priscila acredita que esta oportu-nidade incentiva os alunos daescola pública a estudar maispara obter a nota mínima esta-belecida pelo MEC e conseguiringressar em uma boa faculdadepelo ProUni.

A PUC-Rio já possuía seupróprio programa de bolsas antesdo ProUni ser estabelecido peloGoverno Federal em 2004. As bol-sas de auxílio para estudantescarentes existem na universidadecarioca desde o início dos anos

1990, quando começaram a serrecebidos os primeiros alunosp rovenientes de movimentossociais, como o PVNC e o Pré-vestibular Comunitário. Estasforam as medidas encontradaspela universidade para apoiar aparcela de jovens que é excluídade um ensino de boa qualidadepor causa da sua condição social.“O objetivo é fazer com que estesalunos negros e carentes, que atéentão o sistema educacionalexcluía, tivessem a oportunidadede ter acesso a uma universidadede boa qualidade”, ressalta LadyChristina de Almeida, uma daspesquisadoras do Nirema – Nú-cleo Interdisciplinar de Reflexão eMemória Afrodescendente (verbox).

Mas, com a chegada do ProUni,este benefício foi monopolizadopelo programa do governo, queatinge todas as instituições par-ticulares. O PVNC ainda existe e

atende atualmente estudantes dediversas partes do Estado do Riode Janeiro, principalmente nasperiferias, mas não oferece maisvagas na PUC-Rio. Para Lady, omaior defeito do ProUni é quenão há uma preocupação com aqualidade do ensino, como há noPVNC. Para piorar a situação,um decreto do prefeito CésarMaia proibiu atividades extra-curriculares nas escolas munici-pais a partir de 2007, o queimpede o acesso aos locais onde amaioria dos pré-vestibulares fun-ciona.

P & B67

Nos Estados Unidos, as políti-cas de afirmação para negroscomeçaram, na década de1970, por pressão de movi-mentos de direitos civis. Parase ter uma idéia, em 1955 eralegal e institucionalizada asegregação racial no sul dopaís. A política de afirmaçãopode ser considerada bemsucedida, pois hoje há umageração de atores, professores,e até secretários de governonegros. No entanto, nos Es-tados Unidos as cotas nas uni-versidades são proibidas nopaís, pois acredita-se que elasestariam infringindo o princípio de igualdade.Diferentemente dos EUA, onde a luta está centradana eqüidade dos direitos civis, de liberdade e igual-

dade, no Brasil a luta é emtorno dos direitos sociais, co-mo habitação, saúde e edu-cação.

Já na Índia, foram estabele-cidas cotas nas universidadespara os mais desfavorecidos.As cotas lá são adotadas porum Estado laico, que nãoreconhece a classificação reli-giosa. Nos EUA, por sua vez,as ações afirmativas foramimplementadas juntamentecom a eliminação das leisracistas. Por outro lado, noBrasil, essas ações são ado-tadas enquanto as condições

que as motivaram são mantidas: o ensino na grandemaioria das escolas estaduais e municipais de ensi-no fundamental e médio é de baixa qualidade.

As cotas pelo mundo: Brasil, EUA e Índia

Charlotte, North Carolina, EUA, 4 de Setembrode 1957. Dorothy Counts, uma das primeirasestudantes negras a entrar numa escola sem se-g regação racial sofre da intolerância dos alunosbrancos. Foto vencedora do World Press Photo

Patrícia Batista, Lady Cristina e AnaBritto, pesquisadoras do Nirema