Kant (1)

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Abordagem sobre a compreensão da história da arte a partir da Crítica da

faculdade do juízo, de Kant.

O primeiro ponto a ser esclarecido é sobre a posição ocupada pela Crítica da

faculdade de julgar em sua diferença com a estética anterior. No seu curso “Antigos e

modernos na poética da época de Goethe”, na década de 70, Peter Szondi começa

abordando o “sentido de poética” para demarcar a especificidade da abordagem poética de

Aristóteles. A teoria da arte, segundo Szondi, tinha um caráter duplo: era uma doutrina da

poesia (Dichtung), que se preocupava com a pergunta sobre o que é arte, qual a sua

essência e fundamento filosófico, ao mesmo tempo em que era uma arte poética

(Dichtkunst) que prescrevia normas e técnicas para melhor fazer uma poesia, de como fazer

arte. A teoria estética do ocidente, desde Aristóteles, estaria marcada por esse duplo caráter,

passando por Longino e Horácio, chegando no iluminismo francês e exercendo influência

em autores alemães, tais como Winckelmann, Lessing, Lenz.

A especificação da teoria aristotélica por Szondi tem o objetivo de pontuar a sua

influência da tematização da Dichtkunst, do como fazer arte, na teoria artística do início da

época de Goethe (1770-1831) e do iluminismo francês. Com Schiller e o romantismo

alemão, com os irmãos Schlegel, a teoria artística começa a ganhar outra face, na medida

em que ela procura romper com o caráter prescritivo da arte e busca estabelecer o

conhecimento universal do que é arte, isto é, procura buscar “um conhecimento sobre a arte

que se basta a si mesmo”, separado da tematização do como fazer (Terra). É importante

salientar que no seu início a ruptura com a poética prescritivo-normativa aristotélica e do

iluminismo francês ainda não é definitiva, pois, não obstante, o ponto de partida dos

teóricos alemães ser filosófico, ele aparece, principalmente com os teóricos que são

também artistas, muitas vezes em unidade com a técnica e a norma do fazer poético. Como

acontece, por exemplo, com Schiller em suas correspondências com Goethe, nas quais a

pergunta sobre a melhor maneira de se elaborar um drama ainda os coloca em contato com

a poética normativa. Mas a tematização filosófica sobre a arte nas correspondências,

todavia, já aparece em unidade com o conteúdo histórico social e a pergunta pelo “como

fazer” está em relação com a época na qual as artes foram produzidas. Nas Cartas sobre a

educação estética do homem, diferentemente de suas correspondências, a teoria estética de

Schiller apresenta o caráter de filosofia da arte, na qual a pergunta pelo estatuto universal

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da arte não está unida às normas do como fazer e escrever poesia, mas já anuncia e se

aproxima da filosofia da arte que irá se consolidar definitivamente, primeiro com Schelling

e depois com Hegel.

A originalidade da Crítica da faculdade de julgar se inscreve nessa estética de

transição da época de Goethe, transição entre a estética prescritiva de herança aristotélica,

ainda dominante no iluminismo, e a filosofia da arte tal como irá ser concebida por

Schelling e Hegel. Desse modo, Kant caminha de mãos dadas com os teóricos de seu

tempo, que já iniciam uma ruptura com a poética normativa e já apontam para uma estética

entendida como filosofia da arte. Mas a originalidade da transição de Kant está indicada na

importância que as questões filosóficas, suscitadas por ele, tiveram, tanto para a estética de

Schiller e do romantismo, como para a última filosofia da arte da época de Goethe, a

Estética de Hegel. O esforço kantiano de estabelecer uma unidade entre o belo sensível e o

ideal subjetivo, a natureza e a bela arte, a concepção de jogo livre entre as faculdades da

imaginação e do entendimento, bem como a elaboração de uma universalidade pertencente

ao belo, os conceitos de sublime e de gênio nortearão o desenvolvimento teórico das Cartas

de Schiller e dos Fragmentos de Schlegel, bem como, de maneira modificada pela ótica

especulativa do conceito de Ideal de arte, irão estar presente na tematização da bela arte em

Hegel. A problemática trabalhada na Crítica do Juízo prepara a filosofia da arte vindoura,

ao mesmo tempo em que procura dar um novo caminho à questão da normatividade bela.

Não se trata mais, em Kant, da mescla aristotélica entre Dichtung e Dichtkunst, tampouco

da poética normativa do iluminismo, da pergunta sobre a melhor maneira de realização de

uma bela poesia. Para Kant não se trata nem de prescrever normas para julgar a bela arte,

nem ainda de uma filosofia da arte nos moldes hegelianos. A concepção estética da Crítica

do juízo é sui generis assim, de um lado, porque “propõe um encaminhamento” da

problemática da estética normativa do iluminismo e, por outro lado, porque aponta para

questões preparatórias da estética da filosofia da arte do idealismo alemão (Ricardo Terra).

Vejamos um pouco mais detidamente a posição de Kant para melhor situar sua

contribuição.

A preocupação kantiana, na Terceira Crítica, é com a investigação sobre a

pergunta pela ampliação da razão a partir do “conhecimento” necessário e universal que o

juízo reflexionante pode fornecer. Embora a questão principal de Kant seja a pergunta pela

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dimensão da “atividade crítica” do juízo reflexionante, ele estende e amplia essas

considerações ao juízo de gosto. Neste sentido a obra de Kant não pretende “estabelecer

uma ‘estética’, mesmo que os resultados sejam de suma importância para esta disciplina”,

mas antes pensar a ampliação da dimensão crítica da razão em dar conta das leis empíricas

e da constituição orgânica e final da natureza. A tematização da teleologia na natureza é o

ponto de partida que permite a Kant fundamentar o juízo reflexionante, a “descoberta” de

que os objetos da natureza se apresentam como se existisse uma finalidade racional em si

mesmos. Para a razão perscrutar essa finalidade como que racional da natureza é necessário

permitir que o objeto subsista fora do sujeito. Na Crítica da razão pura a referência aos

fenômenos era dada a partir de uma regra universal a priori e a sua existência particular só

possuía validade “racional” na medida em que a faculdade do entendimento lhes fornecia as

formas à priori. No reconhecimento de uma racionalidade teleológica na própria natureza, o

sujeito, através do “como se” apresentado por Kant como próprio ao juízo reflexionante,

olha para a particularidade a partir dela e procura encontrar uma regra universal que

informe este particular. O sujeito transcendental se admira e sente prazer ao olhar para a

natureza e perceber uma constituição racional teleológica análoga à razão humana, como se

fosse o próprio homem que fornecesse essa racionalidade.

A admiração do sujeito racional diante de um objeto “como se” fosse

igualmente racional, permite a Kant tematizar os objetos da natureza não mais a partir da

finalidade do conhecimento, pois não se trata de conhecê-los racionalmente, mas a partir da

“finalidade sem fim” do sentimento de prazer que a pretensa racionalidade teleológica da

natureza pode suscitar no sujeito que a admira. Ao perceber a natureza como se fosse

racional, Kant procura estabelecer um critério necessário e universal de apreensão dos

objetos da natureza pelo sujeito transcendental. Ora, a regra não está mais somente nesse

sujeito transcendental que fornece a forma aos objetos, mas a própria natureza aparece

“como se” carregasse sua própria regra, por que não dizer, sua própria forma. Cabe ao

sujeito do juízo reflexionante acompanhar de modo desinteressado o movimento

teleológico da natureza, “como se” desejasse desvendar através dele a sua beleza final e

orgânica.

O conceito de forma é de crucial importância para determinar o estatuto do juízo

estético puro. Ao contrário deste, o juízo estético empírico expressa nos homens agrado e

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desagrado a partir do material sensível, enquanto o juízo estético puro, desinteressado,

relaciona-se com a forma. Na bela arte pictórica, por exemplo, o juízo estético empírico

restringe-se ao que na obra pode suscitar agrado e desagrado à visão e ao ouvido, ou se

refere a algum aspecto ligado à emoção particularizada dos homens, a partir da

materialidade das cores e do som. Neste caso, o juízo não pode garantir a universalidade e

necessidade, isto é, que seja compartilhado por todos, pois a matéria sensível particular se

refere apenas ao juízo igualmente particularizado dos homens. Neste caso, a obra não existe

como se possuisse um fim em si mesma, mas é apenas meio. No juízo estético puro a forma

deve ser percebida como final, mas sem que o sujeito represente efetivamente um fim. As

cores ou o som, como elementos materiais não são excluídos sem mais da bela arte,

todavia, esses aspectos sensíveis são colocados secundariamente em relação à forma, pois

eles servem para vivificar e intensificar a satisfação com a própria forma. Essas partes

sensíveis só recebem estatuto de beleza a partir da unidade e “finalidade da forma como

fundamento de determinação” do juízo de gosto (Kant).

O juízo estético puro se constitui a partir de uma contemplação desinteressada

do sujeito em relação ao objeto que se refere ao sentimento de prazer ou desprazer que esse

objeto pode causar. Não se trata de estabelecer o que é belo a partir do que nele é útil ou

agradável como no juízo de gosto empírico. Neste caso o objeto apareceria como meio e

não como fim em si mesmo, isto é, ao observar, por exemplo, uma obra arquitetônica o

sujeito deve abstrair conscientemente a sua finalidade útil de abrigar, para contemplá-la

desinteressadamente quanto à sua beleza. Ao se deparar com uma flor o homem que julga a

sua beleza a partir do juízo de gosto puro não deve remeter-se à agradabilidade que o cheiro

da flor causa aos sentidos, tampouco a uma lembrança agradável outrora experimentada.

Ao contrário, a flor deve suscitar um prazer desinteressado para que o juízo de gosto possa

aparecer em sua pureza, isto é, sem misturar-se a outras determinações que, embora possam

também ser ditas do objeto (como de uma construção que ela é útil e adequada), não

caracterizam a sua beleza. Tanto o agradável como o útil devem ser descartados do juízo de

gosto puro, pois ambos se remetem ao juízo a partir do interesse subjetivo e privado. Um

pôr do sol, que tenha como ponto de partida um juízo interessado privado, uma inclinação,

não será julgado a partir da beleza “objetiva” que o pôr do sol apresenta, mas no que nele

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remete a alguma experiência agradável que o sujeito tenha vivido. Aqui cabe a sentença:

“cada qual tem um gosto”.

Nas duas Introduções, bem como na Analítica do belo, a natureza se apresenta,

para Kant, como o paradigma para pensar o conceito de belo. No juízo estético a pergunta

sobre o belo não se remete primeiramente à bela arte, mas por meio da conexão entre a

finalidade da natureza e o belo natural torna possível uma analogia com a bela arte. Por se

tratar de um juízo que não possui no sujeito “formas a priori” para enformar o objeto belo,

o gosto aparece num duplo jogo entre o sujeito e o objeto. Nos juízos determinantes das

faculdades do conhecimento e da faculdade de desejar existe a regra já dada no sujeito

transcendental que a aplica ao caso. O homem apreende o fenômeno natural, desse modo, a

partir de formas a priori do entendimento, bem como a norma do bem agir aparece legislada

pela razão. Ora, mas o juízo estético não possui uma forma a priori para julgar o caso

particular, como é possível, então, um juízo de gosto universal? A diferença da faculdade

de julgar estética em relação às duas outras faculdades, aparece primeiramente na

importância que o caso particular possui na busca de um juízo universal do gosto. Ao invés

de partir da regra já dada e aplicar ao caso, na faculdade de julgar Kant afirma que o sujeito

parte do caso particular para buscar a regra.

A flor e a arquitetura são figuras distintas de beleza, pois pertencem,

respectivamente, à natureza e à criação humana. Bela arte e beleza natural, ambas são

objetos do julgamento do gosto em Kant, pois tanto a beleza como produto da criação

humana como a beleza da natureza, quando julgadas a partir do juízo reflexionante do

gosto, apresentam a finalidade nelas mesmas, como se o belo fosse pertencente ao próprio

objeto. Mas o belo não só pode ser reconhecido pelo homem? Como Kant resolve tal

problema? Ao se deparar com um objeto belo o juízo reflexionante percebe certa

legalidade, todavia essa legalidade é livre, apreende-se uma unidade na multiplicidade sem

que, contudo, esta unidade tenha um conceito que lhe dê sustentação, por isso a

regularidade do objeto belo aparece como se residisse na própria forma do objeto. Há uma

espécie de disposição finalística na forma do objeto que remete à forma indeterminada do

jogo livre entre as faculdades da imaginação e do entendimento.

No juízo de gosto o belo é tratado como se o predicado se encontrasse no

próprio objeto. A universalidade do juízo de gosto está na exigência de que todos os

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homens, ao se deparar com uma coisa bela, sintam a mesma satisfação. Como no juízo de

gosto o objeto está livre de uma forma conceitual a priori, o belo se assenta no sentimento

de prazer e todo homem que julga corretamente e sob as mesmas condições o objeto belo,

poderá postular uma concordância universal de gosto. O sentimento se apresenta como uma

faculdade independente da faculdade do conhecimento e da faculdade de desejar, o que

permite a Kant uma tentativa de postular essa universalidade assentada no juízo de gosto.

Ora, esta faculdade, guiada conscientemente pelo jogo livre da imaginação e do

entendimento, exige uma espécie de senso comum na apreciação e comunicação do belo. O

sentimento de prazer que uma coisa bela suscita é postulado como regra a partir do que nela

possa ser comunicável quando qualquer homem contempla desinteressadamente uma coisa

bela. No gosto, o juízo reflexionante fornece uma finalidade ao objeto, mas como não

encontra nenhum conceito que submeta o objeto à regra, a finalidade na natureza ou no

objeto aparece como se pertencesse a ele próprio. Mas a finalidade, mesmo que sem fim, só

pode ser posta pelo sujeito, desse modo é que para Kant “o objeto sendo uma forma pura,

sem conceito, é regular e final, e essa finalidade aparece como predisposta para o acordo

entre imaginação e entendimento”. A imaginação, subordinada à regularidade da faculdade

do entendimento, representa um fim, todavia este fim não pode estar submetido ao

conhecimento conceitual, tampouco ao critério isolado da imaginação, pois a sua natureza

livre tenderia, por não se basear em nenhuma associação empírica, a uma infinitude sem

regra. O fim se apresenta, portanto, no jogo livre harmonioso entre a imaginação e o

entendimento, liberdade caracterizada pela proporcionalidade entre a natureza reguladora

do entendimento e a liberdade imaginativa. A partir dessa harmonia pode-se afirmar que a

imaginação aparece como uma faculdade livre e regrada. Ao se deparar com uma flor, o

botânico possui a finalidade de conhecer as sua partes, as funções de cada parte, etc. Neste

procedimento ele decompõe as múltiplas partes da flor aplicando a regra universal das

formas a priori do entendimento e remetendo a uma totalidade que só se constitui por meio

das formas conceituais a priori. Na contemplação desinteressada, ao contrário, o objeto é

concebido como se a totalidade e organicidade se encontrassem nele mesmo. Uma flor

submetida ao juízo de gosto desinteressado aparece como se o objeto contivesse em si uma

unidade e totalidade, pois ela aparece como uma bela flor porque suas partes estão

subsumidas à sua forma total.

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A partir da noção de gênio Kant realiza a passagem do julgamento do juízo de

gosto para a criação da bela arte. A partir dessa noção Kant elabora uma resposta sobre a

questão da norma artística em voga na teoria iluminista. Vamos por parte, primeiro

exporemos a importância da noção de gênio para a teoria kantiana da bela arte, depois

faremos as relações com a sua recepção pelo romantismo e a crítica que hegel faz a essa

recepção. Até o momento da aparição da noção de gênio Kant trata da relação entre

finalidade da natureza e beleza natural, o que o leva, na sua teoria do gosto, a privilegiar a

beleza natural em detrimento da beleza artística. A partir da elaboração do conceito de

gênio a bela arte começa a aparecer na sua especificidade, especificidade que, ainda uma

vez, está em harmonia com o belo natural. Ora, arte não é uma produção natural, mas uma

criação humana, e enquanto tal a sua criação deve considerar a subjetividade representativa

do artista.

Na criação da arte o artista estabelece um fim, posto que o sujeito representativo

é aquele que forma o objeto artístico. Ao pintar uma tela, por exemplo, a razão humana põe

em conexão as diferentes figuras, avalia e constitui a noção de espaço a perspectiva da obra

e relaciona esses múltiplos elementos na totalidade da forma-arte. Todavia, para Kant, o

aspecto subjetivo sozinho não estabelece de forma segura o critério normativo da arte, pois

se a arte deve ser livre e sem um fim que se refira a algo exterior a ela, a tentativa

normativa da subjetividade, ora poderia escambar para a arte utilitária mecânica, ora para a

arte agradável. A exigência da liberdade da bela arte está justamente que seu fim lhe seja

inerente, não tenha um fim exterior que o determine. Como Kant resolve esse problema se a

obra é uma causa e fundamento das ações e da razão subjetivas? É justamente na

introdução da noção de gênio, caracterizado por Kant como “um talento ou dom natural”

que ele constitui a regra para a bela arte. A arte, desse modo, é produto da razão humana, ao

mesmo tempo, que é uma produção da natureza presente no artista. Na produção artística da

bela arte, o homem conscientemente abstrai a finalidade subjetiva e deixa que a natureza

genial seja o instrumento para a regra artística. “Como se” a arte fosse produto da natureza,

participasse da finalidade racional sem fim da beleza natural.

A harmonia kantiana entre beleza natural e beleza artística está consumada, pois

a natureza possui uma racionalidade final como se fosse elaborado pelo homem, bem como

a arte possui uma finalidade como se fosse constituída pela própria natureza. Em Kant tal

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norma ou regra artística não pode ser aprendida através da observação, pois a noção de

gênio é uma natureza inata ao sujeito. Essa noção de regra fornecida pelo talento ou dom

natural do gênio rompe com a estética normativa, de inspiração aristotélica, do iluminismo.

A normatividade artística iluminista versava sobre a melhor maneira de se fazer uma arte

poética, para tal realização era preciso mimetizar os elementos poéticos constitutivos da

poesia grega, modelo cultural de bela arte. O Cânon artístico do passado, para Kant, perde

seu lugar de ideal de belo, pois somente a natureza genial pode fornecer regra à arte e,

desse modo, não existiu apenas gênio no passado grego, mas, igualmente, existe no

presente. As obras produzidas nas diferentes experiências históricas servem para a

observação e cultivo do artista, mas quem fornece o modelo é o talento natural do gênio.

Podemos observar, através dessas considerações sobre o gênio, que Kant fornece um lugar

privilegiado a arte moderna, na medida em que afirma que a bela arte em geral não é apenas

produto da subjetividade particular do artista, mas é uma criação predominantemente

objetiva, natural.

O primeiro romantismo alemão vai coadunar a noção de gênio kantiana com a

extremada subjetividade do artista para justificar o lugar privilegiado que a arte deve

ocupar na experiência moderna. Ironia e gênio, desse modo, andam de mãos dadas na teoria

estética do romantismo. O primeiro romantismo vê a modernidade como uma experiência

prosaica fragmentada e separada da vontade subjetiva do homem. Perante essa experiência

fragmentada o artista romântico se refugia na sua própria interioridade, contraposta à

fragmentação do mundo. Esta contraposição não se resume apenas em reconhecer a

fragmentação do mundo, tampouco constatar que este mundo não é favorável à realização

da grande obra de arte, mas em reconhecer que o mundo tolhe o ímpeto genial de criação e

de viver artisticamente. O gênio se sente tolhido e incompreendido pelo prosaísmo e a vida

objetiva moderna, na medida em que o estado e suas instituições não aparecem mais, como

em algumas experiências pré-modernas, em unidade imediata com a vontade individual. O

gênio artístico, mesmo no interior dessa experiência, é impelido a realizar a obra. O papel

da ironia é a negação da fragmentação do mundo moderno e a criação ideal de um mundo

no qual ainda é possível viver artisticamente, onde o gênio possa desenvolver sua grande

obra, assim os românticos, ora recorrerão, de maneira nostálgica, a experiência medieval da

cavalaria, ora à experiência grega arcaica e da pólis. A noção de gênio romântico, não

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obstante carregar ainda a unidade kantiana entre subjetividade e dom natural, ao ser posto

em relação com a ironia não extrapolaria o estatuto normativo do talento natural kantiano e,

desse modo, não concentraria na subjetividade o aspecto normativo da arte a partir da

recriação ideal de mundo mais propício à experiência artística? O romantismo, desse modo,

não dissolveria a harmonia kantiana, da noção de gênio, entre subjetividade e natureza

objetiva?

De fato há uma dissolução no romantismo, no que toca à questão do gênio, da

harmonia entre esses dois aspectos. Sob a perspectiva do gênio kantiano a exacerbação da

subjetividade romântica aparece injustificada, todavia caso levemos em consideração o

conceito de sublime na Crítica da faculdade de julgar, talvez esteja justificada a

determinação, também romântica, subjetiva da produção artística moderna. O conceito de

sublime em Kant está alicerçado no sentimento