Karel Tchápek - Histórias Apócrifas

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Karel Tchápek

HISTÓRIAS APÓCRIFAS

Tradução do original tchecoAleksandar Jovanovic

editora 34

Coleção LESTE

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4 Karel Tchápek

EDITORA 34 - ASSOCIADA À EDITORA NOVA FRONTEIRA

Distribuição pela Editora Nova Fronteira S.A.R. Bambina, 25 CEP 22251-050 Tel. (021) 286-7822 Rio de Janeiro - RJ

Copyright © 1994 34 Literatura S/C Ltda. (edição brasileira)Kniha apokrifu © 1955 Ceskoslovensky Spisovatel, Praha (textocorrigido e notas finais de Miroslav Halík)

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA

UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DE DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS.

Título original:Kniha apokrifu

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:Bracher & Malta Produção Gráfica

Revisão:Leny Cordeiro

Revisão técnica:Nelson Ascher

1ª Edição - 1994

34 Literatura S/C Ltda.Rua Jardim Botânico, 635 s. 603 CEP 22470-050Rio de Janeiro - RJ Tel. (021) 239-5346 Fax (021) 294-7707

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Tchápek, KarelT243h Histórias apócrifas / Karel Tchápek ; tradução do

original tcheco Aleksandar Jovanovic. — Rio de Janeiro :Ed. 34, 1994.152 p. (Coleção LESTE)

Tradução de : Kniha apokrifu

ISBN 85-85490-51-9

1. Ficção tcheca. I. Jovanovic, Aleksandar.II. Título.

CDD - 891.8694-1475 CDU - 885-3

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HISTÓRIAS APÓCRIFAS

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Edição original, Kniha apokrifu, publicada pelo CeskoslovenskySpisovatel, em Praga, 1955 (204 p.), com texto corrigido e notas fi-nais de Miroslav Halík.

As notas constantes na edição original, em tcheco, foram adap-tadas e complementadas pelo tradutor.

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HISTÓRIAS APÓCRIFAS

O castigo de Prometeu ......................................................... 9

Sobre a decadência dos tempos ............................................ 14

Como nos bons velhos tempos ............................................. 19

Tersites ................................................................................ 22

Ágaton, ou a respeito da sabedoria ...................................... 28

Alexandre, o Grande............................................................ 32

A morte de Arquimedes ....................................................... 38

As legiões romanas .............................................................. 42

Sobre os dez justos ............................................................... 47

Pseudo-Ló, ou a respeito do patriotismo .............................. 52

Noite de Natal ..................................................................... 57

Marta e Maria ..................................................................... 60

Lázaro ................................................................................. 66

Sobre os cinco pães .............................................................. 70

Ben-Khanan ......................................................................... 74

A crucificação ...................................................................... 78

A noite de Pilatos ................................................................. 81

O credo de Pilatos................................................................ 85

O imperador Diocleciano..................................................... 88

Átila..................................................................................... 93

A iconoclastia ...................................................................... 98

O irmão Francisco ............................................................... 106

Ofir...................................................................................... 110

Goneril, a filha de Lear ........................................................ 116

Hamlet, príncipe da Dinamarca ........................................... 120

A confissão de Don Juan...................................................... 128

Romeu e Julieta ................................................................... 134

O senhor Hynek Rab de Kufchtein ...................................... 140

Napoleão ............................................................................. 145

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O CASTIGO DE PROMETEU

Escarrando e soltando gemidos, depois de um longo processo deverificação, o Senado extraordinário decidiu deliberar à sombra dasoliveiras sagradas

— Bem, bem, meus nobres pares — bocejou Hipometeu, presi-dente do Senado. — Com os demônios, como isso tudo acabou se ar-rastando! Creio, no entanto, que eu sequer precisaria fazer um resu-mo; contudo, para que não haja objeções formais... O acusado, Pro-meteu, cidadão local, foi trazido à Corte sob a suspeita de ter inven-tado o fogo e coisas similares — hmmm, hmmm —, subvertendo, as-sim, a ordem constituída, e tendo confessado o seguinte: primeiro,que, de fato, ele teria inventado o fogo; a seguir, que ele seria capaz,a seu bel-prazer, de produzir o fogo com pederneira; em terceiro lu-gar, que esse segredo, essa descoberta escandalosa, ele não a escon-deu; revelou-a, isto sim, diante de pessoas desautorizadas, em vez decomunicar às autoridades competentes, como, aliás, foi relatado pe-las pessoas em questão, que já foram interrogadas por nós. Creio queisto basta e que poderíamos, portanto, proceder à declaração de cul-pa e, a seguir, sentenciá-lo.

— Desculpe-me, presidente — objetou o assessor Apometeu —,eu, contudo, creio que em vista da importância deste tribunal extraor-dinário seria mais adequado se pronunciássemos a culpa após termosdeliberado, ou seja, depois de um debate mais amplo.

— Como desejardes, meus nobres pares — consentiu o concilia-dor Hipometeu. — O caso é perfeitamente claro, mas se algum de vósdesejar fazer alguma observação, por favor, que a faça.

— Tomaria a liberdade de observar — disse Ameteu, membrodo tribunal, tossindo bastante — que um aspecto merece ser enfatizadonisso tudo. Penso, meus nobres pares, no aspecto religioso da ques-tão. Pergunto-lhes eu: o que é o fogo? O que é essa fagulha dardejante?Conforme o próprio Prometeu o admite, ela nada mais é do que umacintilação, e a cintilação, como todos nós sabemos, é a expressão doextraordinário poder de Zeus, o deus do trovão. Podem explicar-me,

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meus nobres pares, como pode um mortal comum, como Prometeu,ter acesso ao fogo divino? Com que direito ele o conseguiu? De ondeo tirou? Prometeu procurou persuadir-nos de que ele, simplesmente,o inventou. Mas isso é um pretexto idiota. Se tudo isso fosse tão sim-ples e inocente, como ele pretende, por que nenhum de nós inventouo fogo? Estou convencido, meus nobres pares, de que Prometeu sim-plesmente roubou o fogo de nossos deuses. Suas negativas e suas pre-varicações não nos enganam. Gostaria de descrever-lhe o crime comosendo, de um lado, simples roubo, e, de outro, blasfêmia e sacrilégio.Estamos aqui para punir, com a máxima severidade, essa presunçãoímpia e para proteger a sagrada propriedade de nossos deuses nacio-nais. É tudo o que desejo observar — concluiu Ameteu e assoou o nariz,de forma enérgica, na bainha de sua clâmide.

— Muito bem observado — concordou Hipometeu —, alguémmais deseja fazer alguma intervenção?

— Peço-lhe complacência — disse Ameteu —, mas eu não pos-so concordar com a argumentação de meu estimado colega. Pude eupróprio verificar como o mencionado Prometeu tirou fogo da peder-neira e devo dizer-lhes, com franqueza, meus nobres pares — e queisso fique entre nós —, que nisso nada existe de extraordinário. Ofogo poderia ter sido inventado por qualquer vagabundo, malfeitorou pastor de cabras. Nós simplesmente não chegamos a pensar nis-so, porque cidadãos sérios não têm tempo ou inclinação para dedi-car-se a infantilidades semelhantes ao ato de arrancar fagulhas depedras. Posso assegurar ao prezado colega Ameteu que estão em jogo,de fato, forças ordinárias e cotidianas, forças com as quais cidadãospensantes jamais haveriam de preocupar-se, e muito menos os nos-sos deuses fariam tal coisa. Segundo a minha modesta opinião, o fogoé algo demasiado inexpressivo para que possua relação com aquelascoisas que são sagradas para nós. A questão, no entanto, possui umaoutra faceta e devo chamar a atenção de meus nobres pares para essefato. Parece-me que o fogo é bastante perigoso; diria, até, que se tra-ta de um elemento nocivo. Pudemos ouvir o depoimento das testemu-nhas e várias delas reconheceram que Prometeu provocou, com a suainvenção infantil, graves queimaduras e, em certos casos, causou pre-juízos materiais consideráveis. Meus nobres pares: se o crime come-tido por Prometeu permitir que o manuseio do fogo se torne coisa cor-riqueira — um fato que, lamentavelmente, a esta altura dos aconte-cimentos, sequer pode ser obstado —, nenhum de nós será capaz de

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colocar-se a si próprio em segurança e tampouco aos seus bens, e isso,senhores, pode representar o fim de qualquer indício de civilização.Basta a menor falta de cuidado, a menor falta de habilidade, e comopoderemos frear esse elemento indomável? Prometeu, meus senhores,com a sua irresponsabilidade criminosa, trouxe ao mundo um obje-to nocivo e perigoso que, simplesmente, deixou livre pelo mundo afo-ra. Gostaria de qualificar-lhe o crime como sendo algo que põe emrisco a segurança pública e também provoca danos corporais mor-tificantes. Em vista disso, sou a favor de uma pena de prisão perpé-tua a ser cumprida sobre um catre duro e com grilhões. Terminei,presidente.

— Estais com toda a razão — manifestou-se Hipometeu. — E gos-taria apenas de indagar, meus nobres pares: para que nós precisamosdesse fogo? Será que os nossos gloriosos antepassados usaram fogo? In-ventar uma coisa dessas é nada mais nada menos do que desrespeitara ordem estabelecida, herdada, hmmm, é apenas uma atividade revo-lucionária. Brincar com fogo, quem é que já ouviu uma coisa dessas?E, levem em conta, meus nobres pares, aonde isso tudo pode conduzir:as pessoas serão capazes de espairecer, serão capazes de chafurdar noconforto e no calor em vez, bem, sei lá, em vez de lutar e fazer coisasdesse gênero. Isso apenas pode levar à efeminação, à degeneração damoral e, hmmm, à desordem geral, e assim por diante. Numa única pa-lavra: algo deve ser feito contra fenômenos tão pouco saudáveis. Os tem-pos são muito perigosos. É tudo o que desejava observar.

— Muito correto — declarou Antimeteu. — Certamente, todosconcordamos com o nosso respeitável presidente quanto ao fato de ofogo de Prometeu ter conseqüências imprevisíveis. Senhores, não nosenganemos, e isto já é uma grande coisa. Se alguém controlar o fogo,que novas possibilidades isso pode descortinar! Gostaria de citar al-gumas, assim, ao acaso: será possível queimar a colheita do inimigo,incendiar-lhe os bosques de oliveiras, e assim por diante. Com o fogo,meus nobres pares, o nosso povo recebeu uma nova força e uma novaarma; com o fogo, tornamo-nos quase iguais aos deuses — bradouAntimeteu, explodindo, de repente, de maneira feroz: — Acuso Pro-meteu de ter confiado esse elemento divino e irresistível, o fogo, a pas-tores e escravos, ao primeiro que apareceu; acuso-o de não o ter de-positado em mãos autorizadas que, assim, poderiam salvaguardar ofogo como um tesouro do Estado e que assim seria gerenciado. Acu-so Prometeu de ter sido, portanto, um depositário desonesto da des-

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coberta do fogo, que deveria permanecer como segredo do clero. Acu-so Prometeu — gritou Antimeteu, guiado pela emoção — de ter ensi-nado estrangeiros a fabricar o fogo com pederneiras! De não tê-losequer ocultado aos nossos inimigos! Prometeu roubou-nos o fogo,presenteando-o a qualquer um! Acuso Prometeu de alta traição! Acu-so-o de conspiração contra a comunidade! — A sua voz cresceu atétornar-se um grito quebrado pela tosse. — Proponho a sentença demorte — esforçou-se para controlar-se.

— Senhores — pronunciou-se Hipometeu —, alguém mais dese-ja fazer uso da palavra? Ninguém mais? Portanto, segundo a opiniãoda Corte, o acusado, Prometeu, é culpado dos seguintes crimes: blas-fêmia, sacrilégio, o ato de causar ferimentos graves, o ato de causardanos à propriedade alheia, o ato de pôr em risco a segurança públi-ca, o que equivale a alta traição. Os senhores sugerem a pena de pri-são perpétua a ser cumprida sobre um catre duro e preso com grilhõesou a pena de morte. Hmmm.

— Ambas as penas! — bradou o pensativo Ameteu. — Ambasas propostas devem ser aceitas!

— Como, ambas as propostas? — indagou o presidente.— Estava pensando justamente a este respeito — murmurou Ame-

teu. Talvez pudéssemos solucionar a questão do seguinte modo... Secondenássemos Prometeu à pena de prisão perpétua, acorrentado auma rocha... quem sabe, assim, os abutres poderiam arrancar-lhe, abicadas, o fígado ímpio?... Será que pude fazer-me compreender pe-los meus nobres pares?

— Talvez isso seja possível — declarou, satisfeito, Hipometeu.— Senhores, assim poderíamos punir, de forma exemplar, similar ex-centricidade criminosa, não é mesmo? Alguém mais deseja fazer algumaobservação? Bem, neste caso, a sessão está encerrada.

* * *

— Papai, por que vocês condenaram aquele Prometeu à morte?— Indagou Epimeteu, o filho de Hipometeu, durante o jantar.

— Você seria incapaz de compreender — resmungou Hipometeu,enquanto mastigava uma perna de carneiro. — Palavra de honra, estaperna de carneiro assada tem um gosto muito melhor do que a carnecrua. Vejam só: até que esse tal fogo serve para alguma coisa, hein?Precisamos condená-lo em função do interesse público, você entendeisso? Aonde iríamos parar se qualquer um pudesse aparecer por aí, im-

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punemente, com invenções novas e retumbantes? Vê o que eu querodizer? É, tem alguma coisa a mais de que esta carne precisaria. Ah!sim, descobri! — exclamou extasiado. — Carneiro assado precisa sersalgado e friccionado com alho! Essa é a maneira correta de prepará-lo! Isso sim é que é uma descoberta verdadeira! Veja você que umsujeito como Prometeu jamais teria pensado numa coisa destas!

(1932)

NOTAS

Prometeu — segundo a mitologia grega, roubou o fogo dos deuses do Olimpoe presenteou-o aos homens. Como castigo, Zeus condenou-o a ficar acorrentadonum rochedo, para que um abutre lhe comesse o fígado. Sob as ordens de Zeus,Herácles matou o abutre e acabou libertando Prometeu.

Clâmide (substantivo feminino; do grego chlamys, pelo latim chlamyde) —manto dos antigos gregos, que se prendia por um broche ao pescoço ou ao ombrodireito.

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SOBRE A DECADÊNCIA DOS TEMPOS

Reinava silêncio diante da caverna. Sacudindo as suas lanças, oshomens haviam saído muito cedo, em direção de Blansko ou Ráietz,onde encontraram os rastros de uma manada de renas. Enquanto isso,as mulheres colhiam bagos de mirtilo, e seus gritos e seu vozerio po-diam ser ouvidos apenas de vez em quando. As crianças pareciam cha-pinhar embaixo, no riacho — mas, afinal de contas, quem é que sepreocupa com esse bando feroz e levado de moleques? Iánetchek, ovelho homem das cavernas, dormitava naquele silêncio bendito, sobo sol brando de outubro; para sermos mais exatos, devemos lembrarque ele roncava e soprava o ar pelo nariz, mas ele fazia de conta quenão dormia, como se estivesse vigiando a caverna da tribo e aindaestivesse reinando sobre ela, como, aliás, convém a um velho chefe.

A velha senhora Iánetchek esticou uma pele fresca de urso e co-meçou a raspá-la com um sílex afiado. Era um trabalho meticuloso, quedevia ser feito de polegada em polegada — e não como as mulheres jo-vens o fazem, pensava consigo a velha mulher de Iánetchek, pois aque-las estabanadas apenas esfregavam de qualquer jeito e logo se apressa-vam em afagar e mimar os filhos. Uma pele daquelas, concluía a velhamulher de Iánetchek, não agüentaria muito, quebraria logo ou, então,se esfolaria. Mas eu não vou me meter nas tarefas dela — continuavaa velha a tecer os seus pensamentos —, se o meu filho não diz nada...A bem da verdade, a minha nora não sabe fazer economias. E, olhemsó, esta pele acabou sendo furada bem no meio das costas! Mas, mi-nha gente, que mão desastrada perfurou esta pele? A bem da verdade,arruinou a pele inteira! O meu marido jamais faria uma coisas destas,amargurou-se a velhota; ele sempre espetava na garganta...

— Ahhh — gemeu o velho Iánetchek, esfregando os olhos. — Elesainda não voltaram?

— Claro que não! — resmungou a velhota. — Você que espereainda!

— Bahh! — bufou o velho, enquanto piscava sonolento. — Comopoderiam ter voltado? É claro. E as mulheres, onde estão?

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— Sou o vigia delas, é? — rugiu a velhota. — Você mesmo sabe,devem estar fofocando em algum lugar...

— Ah! sim, sim — bocejou o avô Iánetchek. — Estão fofocandoem algum lugar. Em vez de, em vez de, digamos, fazer isso ou aqui-lo..., é assim mesmo...

Silêncio. Apenas a velha mulher de Iánetchek esfregava a pele cruacom esforço irado.

— Digo-lhe — pronunciou-se o velho Iánetchek, coçando as cos-tas com sofreguidão —, digo-lhe que você vai ver: eles não irão trazercoisa alguma de novo. É fácil compreender, com aquelas lanças de ossoimprestáveis... Eu fico dizendo ao meu filho, olhe, osso algum podeser tão duro e forte que sirva de lança. Embora você seja apenas umamulher, você também deve saber que nenhum osso ou chifre possuiaquela, aquela força perfuratriz, você me entende? Você acerta um ossocom outro osso e não o perfura, não é mesmo? Isso é evidente. Agorauma lança de pedra, isso sim! Claro, dá mais trabalho, sem dúvida,mas aquilo é uma ferramenta! Mas será que o meu filho deixa expli-car-lhe isso?

— É isso — observou entristecida a velha senhora Iánetchek. —Hoje em dia você não pode dar ordens para ninguém.

— Mas eu nem quero dar ordens a quem quer que seja — abor-receu-se o avozinho. — Mas eles nem os conselhos querem aceitar! On-tem mesmo encontrei ali, debaixo da rocha, um seixo afiado tão bo-nito. Bastava afiá-lo para que ficasse mais pontiagudo e seria umabeleza de ponta de lança! Aí eu trago o seixo para casa e mostro parao meu filho: veja, isto é que é um seixo! É mesmo, papai, mas, e daí?Serviria para ponta de uma lança, digo-lhe eu. Ora, deixe para lá, papai,quem é que ficaria perdendo tempo com isso? Temos um monte des-sas geringonças dentro da caverna e nem conseguimos encontrar-lhesuma serventia; não serve nem para ser cabo de alguma coisa, por maisque o amarremos, e o que fazer, então? Uns preguiçosos — gritou,aborrecido, o velhote. — O problema está no fato de que, hoje em dia,ninguém mais quer trabalhar decentemente um seixo. Tornaram-se unsfolgados! Qualquer um sabe que uma ponta de osso daquelas qual-quer um prepara num zás-trás, mas ela também quebra de uma horapara outra. Tanto faz, diz o meu filho, fazemos outra, e pronto! É, sim,mas aonde chegaremos, assim? A cada instante, uma lança nova! Mas,diga-me uma coisa apenas: quem é que já viu uma coisa destas? Comos diabos, uma ponta de lança feita de um seixo dura anos! Eu só digo

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o seguinte: um dia ainda alguém vai lembrar-se de minhas palavras,ah! vai! E, então, irão desengavetar as nossas ferramentas decentes depedra, irão sim! É por isso que eu escondo tudo aquilo que me cai nasmãos: pontas antigas de lanças, clavas e facas de seixos. Para eles, tudoisso não passa de tranqueira!

O velhote, de fato, estava sufocando de amargura e revolta.— Veja você — pronunciou-se a velha senhora Iánetchek, a fim

de dirigir os seus pensamentos em outra direção —, o mesmo aconte-ce com as peles. Mamãe — diz-me a nora —, por que você fica esfre-gando tanto? Não vale a pena esse trabalho todo! Por que você nãotenta trabalhar a pele com cinzas, pela menos o couro não vai ficarfedendo! E você quer ficar dando lições para mim! — irritou-se a ve-lhota com a nora ausente. — O que eu sei, eu sei! Desde que eu medou por gente, esfregamos as peles, e ficavam umas peles! Agora, éclaro, se alguém tem pena de trabalhar... Eles são assim: procuram,por todos os meios, fugir ao trabalho. É por isso que eles ficam inven-tando, sempre, alguma coisa nova, diferente... Curtir peles com cin-zas, ora, essa é uma boa! E quem é que já ouviu uma coisa destas?

— É, mas eles são assim — bocejou Iánetchek. — Para eles, nadadaquilo que nós fazíamos serve mais. Dizem que as armas de pedra sãodesconfortáveis para as mãos. E, verdade seja dita, nós nunca nos pre-ocupamos com o conforto... Hoje em dia, é claro... criar bolhas nasmãozinhas delicadas? Imagine só! Diga você, aonde isso tudo pode levar-nos? Estas são as crianças de hoje! Deixe-os, avozinho, lamenta-se mi-nha nora. Deixe que elas brinquem. Sim, mas o que será delas um dia?

— Se, ao menos, não fizessem aquela barulheira toda! — quei-xou-se a velhota. — São malcriadas, esta é a verdade toda!

— É, essa é a educação de hoje — disse o velho Iánetchek. — Eainda se digo alguma para coisa para meu filho, ele me responde: pai,você já não entende dessas coisas; hoje, os tempos são outros, os cos-tumes são outros. Ele me diz que as armas de osso já não representama última palavra; um dia, repete-me ele, os homens haverão até de in-ventar materiais melhores. Então, você sabe, aqui é que a gente deixade entender as coisas: será que alguém já viu um outro material, alémda pedra, da madeira e do osso? E você deve reconhecer, até em suacondição de mulher ignorante que... que isso já passa dos limites!

A senhora Iánetchek deixou cair os braços.— E onde você acha que eles acabam juntando essas bobagens

todas?

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— Bem, você sabe, parece que agora essa é a moda — resmungouo velho. — Veja você, ali, a quatro dias de caminhada, uma nova triboacabou se estabelecendo, um bando estranho, e dizem que eles fazema mesma coisa... Então, veja, é lá que os nossos também arranjam assuas bobagens todas. Até esses objetos de osso. Afinal... afinal, com-pram coisas deles — gritou voluntarioso. — Em troca de nossas pelespreciosas! Como se de estrangeiros pudessem obter alguma coisa queprestasse! A gente nunca deve meter-se com estrangeiros. É uma sabe-doria ancestral, que os nossos avoengos nos legaram: todos os estran-geiros devem ser atacados e degolados! É assim, desde que o mundo émundo: nada de conversa mole, matá-los, e pronto! Mas, papai, diz meufilho, hoje as relações são outras, pois até já se iniciou a troca de mer-cadorias... Ora, troca de mercadorias! Se eu abato o sujeito que encon-tro pela frente, e tomo-lhe os bens, então fico com as mercadorias delee não lhe dou nada em troca. Que troca de mercadorias, coisa nenhu-ma! Deixe disso, pai, diz meu filho, pagam com vidas humanas, e issoé uma lástima! Veja você: lastimar-se por uma vida humana! Assim sãoas opiniões de hoje — murmurou o velhote, desanimado. — E comopoderão viver tantas pessoas neste mundo, se não matarmos ninguém?As renas começam a escassear, assim mesmo! Eles lamentam pelas vi-das humanas, mas não dão valor às tradições, aos ancestrais, aos pais...Estão se arruinando, com rapidez! — constatou o velho Iánetchek, irado.— E outro dia, o que foi que eu vi? Um desses pirralhos, rabiscandocom argila a figura de um bisão dentro da caverna! Claro que lhe deiuma bela bofetada, mas meu filho chamou-me a atenção: deixa, pai, obisão até parece vivo!... É aqui que a gente deixa de entender tudo! Quemé que já viu eles se ocuparem com essas bobagens? Se você não tem tra-balho, filho, tome, tome um sílex, você deve afiá-lo; mas não fique aípintando bisões na rocha! Para que nos servem essas coisas estúpidas?

A senhora Iánetchek comprimiu os lábios, com amargura.— Se fossem bisões apenas! — soltou, em seguida.— E o que mais? — perguntou o avozinho.— Nada, nada, deixe para lá — furtou-se diante da resposta a

senhora Iánetchek. — Bom, é para que você também fique sabendo —decidiu-se, de repente. — Hoje, pela manhã, dentro da caverna... encon-trei uma presa de mamute... Eles esculpiram a presa em forma de mu-lher nua. Tinha seios, e coisa, tudo... Veja se você me compreende...

— Ora, o que é isso? — horrorizou-se o velho. — E quem foi queesculpiu?

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A senhora Iánetchek sacudia os ombros, revoltada.— E quem pode saber? Parece que foi um dos jovens. Joguei

aquela droga no fogo, mas você sabe... Tinha uns peitões, assim! Quenojo!

— Isso não pode continuar assim! — explodiu o velho Iánetchek.— Isso já é o limiar da devassidão! E você sabe onde está a origem dissotudo? Claro, a origem é o fato de ficarem esculpindo qualquer coisaem osso! Nós jamais teríamos tido idéia de cometer uma coisa desa-vergonhada, porque em sílex nem é possível esculpir... É a isso queconduzem essas novidades todas, as famosas invenções!... Eles vão ficaraí inventando coisas novas e mais novas, até que arruínem e destruamtudo! E eu digo a você — levantou a voz Iánetchek, o homem dascavernas, com visão profética —, isso não pode durar muito!

(1931)

NOTAS

Blansko e Ráietz (Rájec, na grafia original, em tcheco) — aldeias da Mo-rávia, junto ao rio Svitavá. Nas inúmeras cavernas da região, foram encontradosobjetos arqueológicos que testemunham a respeito dos caçadores da Idade da Pe-dra que ali teriam vivido.

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COMO NOS BONS VELHOS TEMPOS

O vizinho, Filágoros, irrompeu na residência de Eupator, cida-dão tebano e canastreiro que tecia cestos no quintal, e já gritava delonge:

— Eupator, Eupator! Largue os cestos, e ouça! Coisas terríveisestão acontecendo!

— O que foi que pegou fogo? — perguntou Eupator, que já selevantava de sua cadeira.

— É pior do que o fogo! — explicava Filágoros. — Você sabe oque foi que aconteceu? Querem acusar nosso generalíssimo, Nicômaco!Uns dizem que ele se juntou aos tessálios; outros, que se juntou aoPartido dos Descontentes. Venha depressa, o povo todo está na ágora!

— E o que é que vou fazer ali? — indagava Eupator, desconcer-tado.

— Trata-se de uma coisa importantíssima — esforçava-se Fi-lágoros em explicar. — Os oradores estão se revezando; uns dizem queele é culpado; outros, que é inocente. Venha ouvi-los!

— Espere um pouco! — disse Eupator. — Espere eu terminar estecesto. Mas, diga-me, de que mesmo esse Nicômaco é culpado?

— É justamente isso o que não se sabe — dizia o vizinho. —Afirma-se isso e aquilo, mas continuam calados todos aqueles que de-veriam manifestar-se sobre o assunto, porque, dizem, a investigaçãonão foi encerrada ainda. Mas você deveria ver o que está acontecen-do lá, na ágora. Uns estão gritando que Nicômaco é inocente...

— Espere um pouco. Como podem dizer que é inocente, se se-quer sabem do que ele está sendo acusado?

— Olhe, isto é uma outra coisa. Todos ouviram algo e repetem,apenas, aquilo que escutaram. Afinal de contas, todo cidadão tem odireito de manifestar-se a respeito daquilo que ouviu, não é mesmo?Eu até acredito que Nicômaco tenha desejado trair-nos com os sálios.Um sujeito disse isto mesmo, e afirmou que um conhecido dele che-gou a ver uma carta. Mas um outro garantia que se trata de uma cons-piração contra Nicômaco, e bem que ele poderia revelar certas coisas...

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O Conselho Comunal também está metido na coisa.. Ouviu, Eupator?Agora, a questão é a seguinte...

— Espere um pouco — interrompeu o cesteiro. — Agora, a ques-tão é a seguinte: afinal de contas, as leis que nós votamos para nósmesmos são boas ou más? Será que alguém falou a respeito disto, lána ágora?

— Não, mas não é isto o que está em discussão; a discussão é arespeito de Nicômaco.

— E será que alguém disse, lá na ágora, que os funcionários queestão investigando o caso de Nicômaco são maus e injustos?

— Não, ninguém disse coisa alguma.— Então, disseram o quê?— Mas eu já lhe disse: se Nicômaco é inocente, ou culpado!— Escute, Filágoros, se sua mulher brigasse com o açougueiro,

porque faltou uma libra de carne que ele vendeu, o que você faria?— Ajudaria à mulher.— Nada disso! Você deveria ver, primeiro, se o açougueiro res-

peita a regulamentação dos pesos.— Ora, isso eu sei também, sem que você me diga!— Está vendo só?! Depois, você verificaria a balança, para ver

se está em ordem, ou não.— Mas você nem deve dizer-me isto, Eupator.— Fico contente. Mas, se os pesos e a balança estivessem em

ordem, e você visse o peso da carne, saberia se tem razão o açouguei-ro ou sua mulher. Coisa estranha, Filágoros, que os homens tenhammais juízo quando está em jogo o seu pedaço de carne do que nosmomentos em que se discute o bem-estar comum. Nicômaco é inocenteou culpado? A balança pode indicá-lo, desde que a balança esteja emordem. Se, no entanto, desejamos pesar as coisas de maneira correta,não podemos soprar sobre os pratos da balança, para que se inclinemem direção deste ou daquele lado. E por que vocês estão dizendo queos funcionários responsáveis pela investigação do caso de Nicômacosão vagabundos, ou coisa que o valha?

— Mas ninguém disse isso, Eupator!— Pensei que vocês não tivessem confiança neles. Todavia, se

vocês não têm motivo para desconfiar, por que diabos ficam sopran-do sobre os pratos da balança? Ou porque vocês não estão interessa-dos em que a verdade venha à luz, ou porque vocês estão aproveitan-do a oportunidade para dividir-se em dois partidos e obter, assim, o

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confronto. O raio que parta alguns de vocês, Filágoros, porque eu nãosei se Nicômaco é culpado. Mas vocês todos são terrivelmente culpa-dos por ofender, assim, de pronto, à lei e à verdade. É curioso que esteano tenham nascido tantos talos ruins de vime: encurvam-se comocordel, mas não têm a mínima resistência. Filágoros, seria necessárioque o tempo fosse mais quente. Mas isso está nas mãos dos deuses, enão em nossas mãos humanas.

(1926)

NOTAS

Tebas — importante cidade da Grécia, na Antigüidade. Em 335 a.C., ostebanos revoltaram-se contra Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), que conquis-tou a cidade. O imperador mandou destruir o local.

Tessália — região oriental da Grécia setentrional que atingiu o período má-ximo de poder no século VI a.C., quando subjugou as tribos vizinhas e buscouestender o seu poderio até à Grécia Central.

Ágora — nas antigas cidades-estados gregas, a praça central em que se fa-zia o mercado e onde se reuniam as assembléias do povo.

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TERSITES

Já era noite e os acaios sentaram-se mais perto da fogueira.— Esta carne de carneiro está ruim, novamente — declarou Ter-

sites, palitando os dentes. — Admiro-me, acaios, que vocês suportemisso tudo. Aposto a minha cabeça que eles pelo menos jantariam cor-deiros tenros; claro que para nós, velhos soldados, até um bode fedo-rento está bastante bom. Gente, quando eu me lembro da carne decarneiro lá da Grécia...

— Deixe para lá, Tersites — resmungou o paizinho Eupator. —Guerra é guerra.

— Guerra! — observou Tersites. — Faça-me um favor, o que éque você chama de guerra? Isso, que há mais de dez anos estamos va-diando por coisa alguma? Eu digo a vocês, rapazes, o que é isso: nãose trata de guerra alguma. Apenas os comandantes e os nobres é queorganizaram para si uma excursão às custas do governo. E nós, ve-lhos soldados, estamos aqui para observarmos, boquiabertos, como éque um moleque, um queridinho da mamãe, fica correndo para cimae para baixo no acampamento, para exibir-se com o seu escudo. É issomesmo, meus caros.

— Você está pensando no Aquiles de Peléia? — indagou o jovemLaomedon.

— Penso em quem eu quiser — declarou Tersites. — Quem temolhos, e enxerga, sabe de quem se trata. Senhores: ficam falando emvão para nós, porque, se de fato estivéssemos aqui para ocupar aque-la Tróia estúpida, já estaríamos lá, faz tempo. Bastaria que déssemosum espirro e Tróia estaria em pedaços. Por que é que não mandaminiciar um ataque contra o portão principal? Vocês sabem, um daquelesataques verdadeiros, com gritos, ameaças e ao som de canções de guer-ra, pois logo a guerra teria fim.

— Hmmm — murmurou o prudente Eupator. — Tróia não cai-rá com gritarias.

— Agora você acertou na mosca! — riu-se Tersites. — Qualquercriança sabe que os troianos são covardes, sarnentos, canalhas e pol-

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trões. Uma vez apenas deveríamos mostrar-lhes quem somos nós, osgregos! Aí vocês ficariam admirados de como eles rastejariam e men-digariam misericórdia! Bastaria que, vez ou outra, atacássemos as mu-lheres troianas, à noite, quando elas vão buscar água...

— Atacar mulheres? — sacudiu os ombros Hipodamos. — Mas,Tersites, isso não se faz!

— Guerra é guerra! — berrou Tersites, valente. — Mas que belopatriota é você, Hipodamos! Você acredita mesmo que venceremos aguerra se sua senhoria, Aquiles, a cada quatro anos organizar uma liçacom aquele palerma, o Heitor? Ora, homem, aqueles dois combinamtudo de antemão de tal modo que é uma alegria vê-los; a disputa de-les, em verdade, é um solo, para que estes cabeças-de-bagre acreditemque eles dois lutam por eles! Aqui, Tróia, aqui Hélade: venham con-templar os dois heróis! Nós, os outros, somos menos que o nada; nin-guém quer saber de nossos sofrimentos, nem ao menos um cão sarnentose importaria. Digo uma coisa a vocês, acaios: Aquiles posa de heróisomente para tirar proveito de tudo e privar-nos de todos os méritos;o que ele quer mesmo é que todos falem dele, apenas dele, como seele tivesse feito tudo, e os demais tivessem ficado aí, de boca aberta. Éassim mesmo, jovens. É por isso que a guerra vem se estendendo háanos, para que o senhor Aquiles possa empinar o nariz, cada vez mais.Admira-me muito que vocês não enxerguem isto!

— Faça-me um favor, Tersites — manifestou-se o jovem Lao-medon. — Afinal de contas, o que foi que o Aquiles fez para você?

— Para mim? Menos do que nada! — disse Tersites, irritado. —O que eu tenho a ver com isso? Para o seu governo, nem ao menosfalo com ele, mas todo mundo está até aqui com ele, porque ele se fazde importante. Veja, por exemplo, como todos estão amuados aquina tenda. Vivemos tempos históricos, a honra da Grécia está em jogo,o mundo todo nos contempla — e o grande herói, o que ele está fa-zendo? Fica rolando dentro de sua tenda e diz que não vai lutar mais.Será que somos nós que devemos viver por ele o momento histórico esalvar a honra da Grécia? É, mas isto é assim mesmo: quando senteque levou a pior, Aquiles enfia-se em sua tenda e finge-se de ofendido.Que comédia! São esses os tais heróis nacionais! Todos, uns medrosos!

— Não sei, não, Tersites — interveio Eupator, judicioso. — Di-zem que Aquiles se ofendeu terrivelmente, porque Agamenon devol-veu aos pais dele a escrava, como é mesmo o nome dela? Briseis, Kriseis,uma coisa assim... Ele transformou isso numa questão de honra, mas

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parece que estava apaixonado pela escrava... Rapaz, olhe que isto nãoé nenhuma comédia.

— E você vem dizer isto para mim? — perguntou Tersites. — Soueu quem sabe muito bem como é que tudo aconteceu! Agamenon, sim-plesmente, tirou-lhe a escrava, entendeu? Mas é fácil para ele, porqueele amealhou tantas jóias que nem sabe o que fazer com elas, e quan-do vê um rabo de saia... De outro lado, chega de mulheres! Afinal, foipor causa daquela tal Helena que a coisa toda teve início, e agora, estaoutra... Vocês ouviram? parece que a Helena agora está caída pelo Hei-tor. Ela já foi possuída por todo mundo em Tróia, inclusive o Príamo,aquele que tem um pé na cova. E nós, agora, vamos passar necessida-des e lutar por causa de uma fulaninha destas? Muito obrigado, mas,para mim, basta!

— Dizem — observou Laomendon, meio envergonhado — queHelena é muito bonita.

— Dizem, dizem — respondeu Tersites, com desprezo. — Masjá está meio murcha, e, ademais, é uma rameira sem concorrente. Eunão daria por ela sequer um prato de feijões. Rapazes, o que eu dese-jaria mesmo para que boçal do marido dela, o Menelau, é que ganhás-semos a guerra e ele a recebesse de volta. A beleza de Helena não énada mais do que lenda, impostura e um pouco de pó-de-arroz.

— Então, nós, gregos, estamos lutando por uma simples lenda?Diga, Tersites?! — perguntou Hipodamos.

— Meu caro Hipodamos — respondeu Tersites —, percebo quevocê não enxerga a essência das coisas. Nós, gregos, lutamos, em pri-meiro lugar, para que a velha raposa do Agamenon possa encher assuas sacolas com o fruto do saque; em segundo lugar, para que o ado-lescente Aquiles possa satisfazer a sua imensa sede de glória; em ter-ceiro lugar, para que o vigarista do Odisseu possa arrancar-nos até ocouro por intermédio dos suprimentos de guerra; por fim, lutamos paraque um bardo vulgar e corrupto, um tal de Homero, ou como é mes-mo o nome dele, possa glorificar, por alguns vinténs ensebados, osmaiores traidores da nação grega e, ao mesmo tempo, possa vilipen-diar ou ignorar os verdadeiros, modestos e abnegados heróis da Acaia,heróis como vocês. É assim, Hipodamos.

— Os maiores traidores — observou Eupator — é uma expres-são muito forte, Tersites.

— Pois saibam vocês — respondeu Tersites baixando a voz —que eu tenho provas sobre a traição deles. Senhores, isto é uma coisa

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terrível; não posso contar tudo o que sei, mas observem muito bemuma coisa: fomos vendidos. Vocês podem ver com os próprios olhos:quem poderia imaginar, em sã consciência, que nós, gregos, o povomais heróico e mais culto da face da terra, não tenhamos conseguidoconquistar esse monte de lixo, essa Tróia, e não tenhamos consegui-do dar um jeito nesses mendigos e vagabundos da Ília, se não estivés-semos sendo traídos, ano após ano? Talvez você, Eupator, imagine-nos, acaios, como cães covardes que não pudessem ter acabado, hámuito tempo, com essa Tróia nojenta? Talvez os troianos sejam sol-dados melhores do que nós? Escute, Eupator, se você pensa desse modo,você não pode ser um verdadeiro grego; talvez seja um trácio ou umhabitante do Épiro... O verdadeiro grego da Antigüidade deve sentirna pele que estamos vivendo em meio a uma chusma de canalhas, eem opróbrio.

— A verdade é que esta guerra vem se arrastando de modo mal-dito — observou Hipodamos, pensativo.

— Você está vendo? — retrucou Tersites. — E digo-lhes tambémpor que: porque os troianos têm aliados e auxiliares entre nós. Talvezvocês saibam em quem estou pensando...

— Você está pensando em quem? — indagou Eupator, com gra-vidade. — Se você começou, agora deve terminar, Tersites.

— Digo-o sem prazer algum — defendeu-se Tersites. — Vocês,gregos, conhecem-me, e sabem que não faço fofocas. Então, se vocêsacham que é para o bem comum, contar-lhes-ei toda essa coisa horrí-vel. Há pouco tempo, conversei com alguns gregos valentes e corre-tos; como bom patriota, falei sobre a guerra, sobre o inimigo, e, comoditou a minha natureza grega correta, declarei que os troianos, nos-sos inimigos jurados e ferozes, não passam de um bando de ladrões,medrosos, vagabundos, insignificantes e ratos, cujo rei, Príamo, é umvelho senil, e Heitor, um maricas. Vocês próprios podem reconhecer,gregos, que um verdadeiro grego somente pode pensar desta manei-ra. E, então, inesperadamente, Agamenon posta-se diante de nós vin-do das sombras — nem tem mais vergonha em ficar espionando! — edeclara: “Contenha-se, Tersites, porque os troianos são bons solda-dos; Príamo é um velho justo e Heitor, um herói verdadeiro!” Tendodito isto, virou-nos as costas e desapareceu, antes que eu pudesse dar-lhe uma resposta à altura. Senhores, fiquei ali como se tivesse sidoatingido por um raio. “Veja você — disse para mim mesmo —, a coi-sa toda está aí!” Agora já sabemos quem é que fica espalhando em nos-

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so acampamento a propaganda do inimigo, a desmoralização e o de-sânimo! Então, como podemos ganhar a guerra se aqueles troianosimprestáveis têm entre nós a sua gente, os seus sequazes, e nos postosmais importantes? E vocês, gregos, pensam mesmo que esses traido-res fazem esse trabalho ordinário em troco de nada? Não, rapazes, não;de graça ele não elevaria os nossos inimigos aos céus; deve ter recebi-do muito dinheiro dos troianos para fazê-lo. Pensem bem, rapazes: aguerra vai se arrastando indefinidamente; Aquiles foi ofendido de ma-neira proposital; em nossas fileiras, ouvem-se apenas queixas, insatis-fação; a cada passo, cresce a insubordinação; o acampamento virouum bordel, um covil de ladrões. Qualquer um em quem você ponhaos olhos, é um traidor, um mercenário, um estrangeiro ou um trafi-cante. E, se, por algum acaso, alguém descobre-lhes as manhas, dizemque se trata de um elemento subversivo ou revolucionário. É isto o quenós recebemos, como patriotas que não olham nem à direita nem àesquerda, no afã de servirmos à honra e à glória da pátria! Foi isto oque nós conseguimos, nós, os gregos da Antigüidade! É de admirar quenão tenhamos afundado nisso tudo! Uma vez, contudo, haverão defalar a respeito de nossa época como de um tempo da mais profundadesgraça nacional, sujeição, infâmia, pequenez e traição, desordem eservidão, covardia, corrupção e depravação...

— Sempre houve isso, e sempre haverá — bocejou Eupator. —Eu vou dormir. Senhores, boa noite!

— Boa noite! — respondeu Tersites cordialmente, espreguiçan-do-se com gosto. — Mas que conversa agradável tivemos esta noite,não é mesmo?

(1931)

NOTAS

Tersites — na Guerra de Tróia, um dos soldados gregos; segundo a tradi-ção, o mais desbocado, o mais sem-vergonha e o mais revoltado. Caluniado porAgamenon, Tersites foi punido por Odisseu. Acabou sendo morto por Aquiles.

Tróia — famosa cidade da Antigüidade, situada na Ásia Menor, tambémconhecida como Ílion. A denominação da cidade, segundo a lenda, derivava donome do rei Tros ou Ilos. Tróia foi o palco de uma guerra longa (1193-1183 a.C.),que terminou com a destruição da cidade, e está retratada na Ilíada, poema épicocuja autoria é atribuída ao bardo Homero.

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Heitor — filho de Príamo, rei de Tróia, e Hécuba, filha de Dimas, rei daTrácia, esposo de Andrômaca; foi o principal herói de sua cidade; comandou astropas de Tróia.

Agamenon — segundo a Ilíada, o principal causador da Guerra de Tróia.

Acaios — denominação pela qual eram conhecidos os integrantes da maisnumerosa tribo grega; antes que o nome heleno passasse a ser usado como sinôni-mo de grego, na Antigüidade, o termo acaio era empregado para denominar boaparcela dos gregos.

Aquiles — herói principal da Ilíada; filho de Peleu, rei da Tessália, e de Tétis,deusa marítima; comandante das tropas gregas vitoriosas em Tróia.

Épiro — possessão grega da Antigüidade, situada nos atuais territórios daGrécia e Albânia; seus habitantes não eram considerados verdadeiros gregos naépoca.

Trácios — denominação dos primitivos habitantes da Trácia (antes da pre-sença grega, na Antigüidade), região situada na Península Balcânica entre os ma-res Egeu e Negro e a bacia do Danúbio.

Príamo — rei de Tróia; segundo a lenda, tinha cinqüenta filhos, dentre osquais os mais conhecidos foram Heitor e Páris, este último perpetuado na Ilíadapor ter convencido Helena a fugir com ele, fato que desencadeou a Guerra de Tróia.

Menelau — irmão de Agamenon, rei de Esparta e marido de Helena; depoisda fuga da esposa, Helena, reuniu as tribos gregas para mover a guerra contra Tróia.

Odisseu — rei de Ítaca, herói lendário grego, que se destacou na Guerra deTróia. Suas aventuras durante a viagem de volta de Tróia para casa, ao longo dedez anos, foram perpetuadas na Odisséia, poema épico grego, também atribuídoao bardo Homero.

Homero — bardo grego, autor da Ilíada e da Odisséia, poemas épicos daAntigüidade; o lugar e a data de seu nascimento continuam sendo objeto de con-trovérsia, porque pelo menos sete cidades gregas disputavam a honra de tê-lo comofilho. O mais provável é que tenha vivido no século VII a.C.

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ÁGATON, OU A RESPEITO DA SABEDORIA

Os membros da Academia da Beócia convidaram o filósofo ate-niense Ágaton para que lhes fizesse uma conferência sobre a Filoso-fia. Embora Ágaton não fosse orador eminente, aceitou o convite a fimde contribuir, na medida de suas possibilidades, para a difusão daFilosofia, visto que, de acordo com os historiadores, “estava em de-clínio”. Chegou à Beócia no dia marcado, mas era muito cedo ainda;Ágaton, portanto, começou a passear pela cidade, sob o lusco-fuscoda alvorada, apreciando o vôo das andorinhas sobre os telhados.

Quando já eram oito horas, dirigiu-se à sala de conferências queainda estava bastante vazia; havia apenas cinco ou seis pessoas sobreos bancos. Ágaton sentou-se à cátedra e decidiu aguardar um pouco,até que um número maior de ouvintes se juntasse; abriu o rolo deanotações que pretendia expor, e começou a ler.

Aquele rolo de anotações continha todas as questões fundamen-tais da Filosofia: começava com a Teoria do Conhecimento, definia aVerdade, refutava a crítica confusa das opiniões heréticas, isto é, detoda a Filosofia do mundo — menos a de Ágaton —, e oferecia umesboço das idéias mais elevadas. Quando Ágaton chegou a este pontoda leitura, levantou os olhos e percebeu que havia apenas nove ouvintes;a raiva e a pena tomaram conta dele e, batendo com o rolo sobre amesa, começou a pronunciar-se da seguinte maneira:

— Senhoras e senhores, ou, melhor dizendo, homens da Beócia,não me parece que a cidade de vocês tenha muito interesse nas ques-tões acima, que figuram em nosso programa. Sei, homens da Beócia,que, no momento, vocês estão ocupados com as eleições locais e, nes-sas ocasiões, não há lugar para a sabedoria ou para a razão; as elei-ções representam uma boa oportunidade para os astutos.

Aqui, Ágaton fez uma pequena pausa e ficou pensativo.— Esperem um pouco — recomeçou. — Há pouco, deixei esca-

par de meus lábios algo a respeito de que jamais havia refletido. Dis-se três palavras: astúcia — razão — sabedoria. Foi a raiva que me fez

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dizer isto. As três palavras significam uma determinada habilidadeintelectual; sinto que têm significados completamente diferentes, mastenho dificuldade em dizer no que se diferenciam. Desculpem-me,voltarei ao programa já; antes, porém, preciso definir melhor estas trêspalavras.

— Pelo menos está claro — prosseguiu, após uma pausa — quea antítese da astúcia é a estupidez, ao passo que a antítese da razão éa loucura. Mas o que vem a ser a antítese da sabedoria? Existem pen-samentos, senhores, que não são nem astutos, porquanto são dema-siado simples, nem racionais, porquanto parecem malucos, e que, ain-da assim, são sábios. A sabedoria não se parece nem com a astúcia,nem com a racionalidade.

— Homens da Beócia: na vida cotidiana vocês não dão sequerum figo podre, como dizemos em grego, pela definição dos conceitos,e, ainda assim, vocês sabem distingui-los claramente. Vocês dizem arespeito de alguém que é um ladrão astuto; mas jamais dizem que sejaum “ladrão racional”, ou um “ladrão sábio”. Vocês elogiam o seualfaiate, porque os seus preços são racionais, mas jamais dizem queele tem preços sábios. Existe uma óbvia diferença que impede vocêsde misturar essas palavras.

— Se, por outro lado, vocês dizem a respeito de alguém que é umcamponês astuto, sem dúvida alguma querem dizer que ele sabe ven-der bem os seus produtos no mercado; se o chamam de camponês ra-cional, vocês querem dizer que ele gerencia bem a sua propriedade. Masse vocês o chamam de camponês sábio, certamente desejam dizer queele vive bem, sabe uma grande quantidade de coisas e é capaz de darconselhos sérios.

— Tomemos um outro exemplo: o político astuto também podeser um ladrão, capaz de dar prejuízos sérios à República; você somentechama o político de racional quando ele é capaz de gerenciar as coi-sas de maneira elogiosa, em função do bem coletivo. Contudo, o po-lítico é sábio, e isto todos sentem, quando se trata de um homem queé chamado de “pai da pátria”, ou com algum outro termo similar; ficaclaro, portanto, que a sabedoria é uma qualidade cordial.

— Quando digo de alguém que é astuto, refiro-me a uma pecu-liaridade marcante; é como se dissesse que a abelha tem ferrões, e oelefante, tromba. Mas é muito diferente quando digo que a abelha éesforçada ou que o elefante possui uma força descomunal; nisso járeside uma espécie de reconhecimento, respeito-lhe a força, mas não

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lhe respeito a tromba. Há um elemento de estima também na afirma-ção de que alguém é racional. Mas, se eu digo que alguém é sábio, écomo se dissesse que gosto dele. Em outros termos: a astúcia é um domou um talento; a racionalidade, uma qualidade ou uma força, mas asabedoria é uma virtude.

— E agora sei a diferença entre estas três palavras. Habitualmente,a astúcia é cruel, maliciosa e egoísta; ela busca a fraqueza do próxi-mo, usando-a em proveito próprio; conduz ao sucesso.

— A racionalidade costuma ser cruel para os homens, mas é jus-ta diante dos objetivos fixados; busca o bem-estar comum; se desco-bre uma fraqueza no próximo, tenta removê-la através da disciplinaou da educação; conduz ao aperfeiçoamento.

— A sabedoria não pode ser cruel, porque é benevolência e sim-patia; já não busca o bem-estar comum, porque ama demais aos ho-mens, de tal modo que não poderia buscar um outro objeto de amor;se descobre uma fraqueza ou pobreza no próximo, perdoa-o e ama-o;conduz à harmonia.

— Homens da Beócia, será que vocês já ouviram alguém alcu-nhar de sábio ao homem desgraçado ou ao bufão, ao homem amar-gurado ou desapontado? Pensem bem por que, até na vida filosófica,é costume chamar de sábio alguém que cultiva o menor ódio possívele entende-se bem com o mundo que o cerca? Dizem, para si próprios,reiteradas vezes a palavra “sabedoria”; repitam-na, quando experimen-tarem alegria ou tristeza, cansaço, impaciência ou raiva; haverá tris-teza nela, mas uma tristeza confortada, alegria, mas repetida com cons-tância e delicadeza; cansaço, mas repleto de encorajamento, paciên-cia e perdão infindável; e isto tudo, meus amigos, é o som delicioso emelancólico, a voz da sabedoria.

— Sim, a sabedoria é uma espécie de melancolia. O homem podepôr a sua razão a serviço permanente de sua obra, pode realizar-se comela. Todavia, a sabedoria permanecerá acima de todas e quaisquerobras. O homem sábio é como o jardineiro que, enquanto revolve ocanteiro ou amarra a roseira a um bastão, talvez esteja pensando emDeus. A sua obra jamais contém ou corporifica a sua sabedoria. A razãositua-se na ação; a sabedoria, na experiência.

— Mas os poetas e artistas sábios são capazes de corporificar asua experiência em suas próprias obras; eles não expressam a sua sa-bedoria em atos, mas através de experiências. Este é o valor específi-co da Arte, e não há nada no mundo que se lhe compare.

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— Vejam vocês: acabei por desviar-me, completamente, de meuprograma. E o que mais eu poderia dizer? Se a sabedoria reside naexperiência, e não nas idéias, torna-se desnecessário que leia para vocêso meu rolo de anotações.

(1920)

NOTAS

Beócia — uma das antigas possessões gregas, na região central da Grécia.

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ALEXANDRE, O GRANDE

Para Aristóteles de Estagira,Diretor do Liceu de Atenas.

Meu grande e amado mestre, caro Aristóteles!Faz muito, muito tempo que não vos escrevo; mas, como bem o

sabeis, tenho estado super-ocupado com assuntos militares e, enquantomarchávamos através da Hircânia, Dranguiana e Gedrósia, conquis-tando a Bactriana e avançando além do Indo, não tive nem tempo nemvontade de apanhar a pena. Agora, estou, há alguns meses, em Susa;mas, assim que cheguei, comecei a ficar atulhado de assuntos admi-nistrativos, nomeação de funcionários, sufocamento de revoltas e in-trigas de toda espécie, de tal modo que, até o dia de hoje, não conse-gui escrever-vos a meu respeito. É verdade que, com base nas infor-mações oficiais, sabeis, de modo geral, o que se sucedeu; mas a minhadevoção por vós e a confiança em vossa influência nos círculos inte-lectuais helênicos levam-me a abrir-vos, novamente, o meu coração,diante de meu prezado mestre e guia espiritual.

Lembro-me de que, anos atrás (parece-me que foi há tanto tem-po!), escrevi-vos uma carta absurda e entusiasmada à beira do túmulode Aquiles; estava eu às portas de minha expedição para a Pérsia e haviajurado para mim que o filho heróico de Peleus seria o meu exemplopara todo o resto de minha vida. Eu sonhava apenas com o heroísmoe com a grandeza; já havia conquistado a Trácia e eu pensava que estavaavançado contra Dario, à frente de meus macedônios e gregos, somentepara orlar a própria fronte de louros, para fazer jus aos meus ances-trais que o divino Homero soube tão bem eternizar. Pude constatarque nada fiquei devendo aos meus ideais nem em Caronéia nem emGranicus; hoje, porém, tenho uma visão bastante distinta do signifi-cado político de minhas ações daquele período. A verdade nua e cruaé que a nossa Macedônia, que se uniu, de certo modo, à Grécia, vinhasendo ameaçada pelo flanco norte pelos bárbaros da Trácia. Eles po-deriam ter nos atacado num momento desfavorável que os gregos te-

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riam condições de aproveitar para violar os tratados e desvincular-seda Macedônia. Em outras palavras: precisei submeter os trácios paraque a Macedônia tivesse um flanco garantido, no caso de uma trai-ção grega. Foi pura necessidade política, meu caro Aristóteles; vossoaluno, contudo, ainda não havia compreendido isso e ainda se entre-gava aos sonhos sobre os feitos de Aquiles.

Com a conquista da Trácia, a nossa situação modificou-se; pas-samos a controlar toda a costa oriental do mar Egeu até o Bósforo.Entretanto, o nosso domínio sobre o mar Egeu vinha sendo ameaça-do pelo poderio marítimo da Pérsia; assim que chegamos ao Helespontoe ao Bósforo, púnhamo-nos em proximidade crítica com a zona de in-fluência persa. Cedo ou tarde, a guerra entre nós e os persas teria deexplodir pelo domínio do mar Egeu e dos estreitos do Ponto. Afortu-nadamente, golpeei antes que Dario estivesse pronto. Pensava eu es-tar seguindo os passos de Aquiles e, assim, teria a glória de conquis-tar uma nova Ílio para os gregos; de fato, como hoje eu posso ver,claramente, tornava-se necessário rechaçar os persas do mar Egeu; enós os derrotamos, meu caro mestre, de tal forma que ocupei a Bitínia,a Frígia e a Capadócia, devastei a Cilícia e eu me detive apenas emTarsus. A Ásia Menor era nossa. Estava em nossas mãos não somen-te a bacia do mar Egeu, mas também o Mediterrâneo, ou como é mes-mo que se chama, a costa norte inteira do mar do Egito.

Talvez vós, meu caro Aristóteles, possais afirmar que o meu prin-cipal objetivo político e estratégico, isto é, a expulsão final dos persasdas águas helênicas, tenha sido alcançado. Mas, com a conquista da ÁsiaMenor, surgiu uma nova situação: as nossas novas costas vinham sen-do ameaçadas pelo sul, por fenícios e egípcios; a Pérsia continuariarecebendo dali reforços, para continuar a guerra contra nós. Portanto,era indispensável que ocupássemos o litoral de Tiro e controlássemoso Egito. Desse modo, tornamo-nos senhores do litoral inteiro, mas umnovo perigo apareceu: Dario, apoiando-se em sua rica Mesopotâmia,poderia invadir a Síria, cortando as ligações entre o Egito e as nossasbases da Ásia Menor. Portanto, precisei arrasar Dario, a qualquer pre-ço; consegui fazê-lo em Gaugamela; como bem o sabeis, Babilônia, Susa,Persépolis e Pasárgada caíram em nosso colo. Apoderamo-nos do Golfoda Pérsia, mas, para que pudéssemos defender essas novas possessõesde possíveis ataques vindos do norte, precisamos voltar-nos contra osmedas e os hircanianos. Assim, o nosso território passou a estender-sedo mar Cáspio ao Golfo da Pérsia, mas continuava aberto em duas

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direções; à frente de meus macedônios, arrasei a Aréia e a Dranguiana,acabei com a Gedrósia, devastei a Aracósia e ocupei, gloriosamente, aBactriana. Para que pudesse selar minha vitória militar com laços per-manentes, tomei por esposa a princesa Roxana, da Bactriana. Isso foiuma simples necessidade política; conquistei tantas terras orientais paraos meus macedônios e gregos que, querendo ou não, devia vencer osmeus bárbaros súditos orientais através de minha aparência e do meuesplendor, porque, sem isso, esses miseráveis pastores de ovelhas nãoconseguem imaginar um governante poderoso. Mas a verdade é que aminha antiga Guarda Macedônia suportou isso tudo com dificuldades;talvez tenha achado que o comandante deles começava a distanciar-sede seus antigos camaradas de armas. Infelizmente, vi-me obrigado aexecutar os meus velhos amigos Filotas e Calístenes; o meu caro Par-mênio também perdeu a vida. Fiquei muito triste por causa deles; masnão havia outra saída para que a rebelião dos meus macedônios nãoameaçasse os meus passos seguintes. À época, preparava a minha expe-dição contra a Índia. Para que saibais, a Gedrósia e a Aracósia são cerca-das de altas montanhas que parecem fortificações; mas, para que se possapenetrar nessas fortificações, é preciso ter um vestíbulo do qual se possainiciar um assalto ou se possa recuar para trás das fortalezas. Esse vestí-bulo estratégico é a Índia, até o rio Indo. Era uma necessidade militarocupar esse território e com ele a cabeça-de-ponte da outra margem doIndo. Um comandante ou político responsável nem poderia agir de mododiferente. Contudo, mal chegamos ao rio Hífasis, os meus macedôniosvoltaram a rebelar-se, afirmando que eles não iriam adiante, estavamcansados, doentes e desejosos de retornar à pátria. Vi-me obrigado avoltar; foi uma caminhada terrível para os meus veteranos, e muito piorpara mim; o meu desejo era chegar até o Golfo de Bengala, a fim de quepudesse garantir fronteiras estáveis, a leste, para a Macedônia, mas fuiobrigado a desistir, temporariamente, da realização dessa tarefa.

Retornei a Susa. Poderia estar satisfeito por ter conquistadotamanho império para os meus macedônios e gregos. Entretanto, paraque não precisasse apoiar-me nos meus homens exaustos, alistei trintamil persas em meus exércitos; eles são excelentes soldados e eu tinhanecessidade deles para defender as fronteiras orientais. Vede, contu-do, esse meu gesto amargurou em demasia os meus velhos soldados.Não foram capazes de compreender que, depois de ter conquistadoum território oriental cem vezes maior do que a nossa pátria, eu mehavia tornado imperador do Oriente; era preciso ter oficiais e conse-

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lheiros do Oriente e devia estar rodeado por uma corte oriental; issotudo é uma necessidade política óbvia que eu preciso realizar para obem de minha Grande Macedônia. As circunstâncias exigem de mimmais e mais sacrifícios pessoais; suporto-os sem censuras, porque pen-so na grandeza e na força de minha querida pátria. Devo aturar apompa e magnificência bárbaras de meu poder; precisei tomar poresposas três princesas de reinos orientais; agora, meu caro Aristóteles,finalmente tornei-me um deus.

Isso mesmo, meu caro mestre: proclamei-me deus; os meus bonssúditos orientais ajoelham-se diante de mim e oferecem-me sacrifícios.Trata-se de uma necessidade política, desde que eu queira possuir au-toridade sobre esses pastores das montanhas e esses condutores decamelos. Como vão longe os dias em que me ensináveis a usar a ra-zão e a lógica! Mas a razão obriga-me a adaptar os meios à desrazãohumana. Ao primeiro relance, a minha carreira pode parecer fantás-tica para qualquer um; agora, no entanto, quando a contemplo dosilêncio de meu escritório divino, percebo que jamais fiz outra coisaque não tivesse sido necessária em função de meus passos seguintes.

Vede, meu caro Aristóteles: seria de interesse da paz e da ordem,e as necessidades políticas o exigem, que eu fosse reconhecido comodeus também nos territórios ocidentais. Haveria de deixar-me de mãoslivres no Ocidente se a minha própria Macedônia e a Grécia aceitas-sem o princípio político de minha autoridade absoluta; poderia, por-tanto, triunfar, tranqüilamente, a fim de que conseguisse obter fron-teiras estáveis no litoral da China para a minha pátria helênica. As-sim, eu poderia assegurar o poder e a segurança eternos para a minhaMacedônia. Como vedes, trata-se de um plano sóbrio e razoável; dei-xei de ser, há muito tempo, aquele visionário que prestou juramentojunto ao túmulo de Aquiles. Se agora vos peço, na qualidade de meusábio amigo e guia, que prepareis o caminho filosófico e justifiqueis aminha proclamação como deus de modo que isso seja aceito por meusgregos e macedônios, faço-o como estadista e político responsável; con-fio em vossa decisão, se desejais realizar a tarefa, razoável e patrióti-ca, e que é politicamente necessária.

Saúdo-vos, meu caro Aristóteles,

Alexandre.

(1937)

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NOTAS

Alexandre, o Grande — (356-323 a.C.) — rei da Macedônia, filho deFilipe II; com suas conquistas militares, estendeu a influência da cultura gre-ga até à Índia.

Aristóteles (384-322 a.C.) — filósofo grego, o maior sábio da Antigüidade;a partir de 343 a.C. viveu na corte de Filipe II, tendo sido o preceptor de Alexan-dre, o Grande, até 340 a.C.

Hircânia — denominação, na Antigüidade, de área deserta ao norte do Irã.

Dranguiana — antigo país da Ásia, a sudoeste do Afeganistão.

Bactriana — na Antigüidade, a parte setentrional do Irã; após a morte deAlexandre, o Grande, a região teve reis gregos que, até o ano 180 a.C., exerceraminfluência sobre a bacia do rio Indo; a Bactriana perdeu a independência por vol-ta do ano 165 a.C.

Indo — rio do noroeste da Índia, cuja foz Alexandre, o Grande, atingiu entreos anos 327-326 a.C.

Dario — nome de três reis persas da Antigüidade, todos pertencentes à di-nastia dos Akaimênidas; o texto de Karel Tchápek faz referência a Dario III, últi-mo rei da Pérsia, vencido por Alexandre, o Grande, em duas batalhas — uma, em333 a.C., junto ao rio Issos, e outra, em 331, em Gaugamela.

Khaironéia — antiga cidade grega na Beócia, na parte ocidental da Grécia;local em que Felipe II, da Macedônia, derrotou os atenienses e tebanos, em 338 a.C.

Helesponto — antigo nome do estreito de Dardanelos.

Ponto — antigo nome do Mar Negro.

Susa — capital da antiga Elam, a leste da Babilônia; ainda hoje o local éconhecido devido às importantes escavações arqueológicas ali realizadas.

Granicos — rio da Ásia Menor, em cujas margens Alexandre, o Grande,derrotou os persas pela primeira vez.

Bitínia — na Antigüidade, possessão localizada a noroeste da Ásia Menor.

Frígia — nome de dois países da Ásia Menor; a Pequena Frígia referia-se àregião situada ao sul do mar de Mármara; a Grande Frígia, por seu turno, desig-nava o país situado na Ásia Menor entre os rios Sangários e Halus.

Capadócia — antigo país da Ásia Menor, situado entre os rios Halus eEufrates.

Cilícia — antigo país da Ásia Menor, a sudeste, hoje situado na fronteirada Turquia e da Síria.

Tarsus — antiga cidade da Ásia Menor, a sudeste; hoje o local faz parte daTurquia.

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Fenícia — país da Antigüidade, situado na área que corresponde, em parte,ao litoral dos atuais Líbano e Síria.

Mesopotâmia — região situada entre os rios Tigre e Eufrates.

Gaugamela — localidade situada na antiga Assíria (atual Tell Gomel); foiali que Alexandre, o Grande, derrotou Dario III, em 331 a.C., colocando fim aoImpério Persa.

Persépolis — capital do antigo reino persa, fundada por Dario I; destruídapor Alexandre, o Grande, em 330 a.C.

Pasárgada — antiga cidade persa, capital de uma região habitada por tribodo mesmo nome.

Roxana — princesa de Bactriana, filha do rei Oxuarte, esposa de Alexan-dre, o Grande.

Aracósia — região montanhosa que se estende entre os rios Sind e Paropamis,na Península Índica.

Média — na Antigüidade, denominação de um país da Ásia Central, entreo atual Irã e o Cáucaso.

Ária — denominação, na Antigüidade, de uma possessão persa; hoje, regiãodo Afeganistão.

Filotas — um dos comandantes de confiança de Alexandre, o Grande; acusa-do de conspiração, foi executado.

Calístenes — primo e discípulo de Aristóteles; acompanhou Alexandre, oGrande em suas expedições na Ásia; em 327 a.C. desentendeu-se com Alexandre,foi encarcerado e acabou morrendo em circunstâncias nebulosas.

Parmênio — comandante militar de Filipe II e Alexandre, o Grande, or-ganizador das guerras contra a Pérsia (336 a.C.), pai de Filotas; após a Batalha deGaugamela, governador da Média.

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A MORTE DE ARQUIMEDES

Aquela história com Arquimedes não aconteceu exatamente as-sim como ela acabou sendo escrita; é verdade que ele foi morto quan-do os romanos conquistaram Siracusa. Não é certo, no entanto, queum soldado romano tenha irrompido na casa dele para pilhar e queArquimedes, absorto no desenho de alguns construtos geométricos,tenha se voltado para ele, irritado: “Deixe os meus círculos em paz!”Em primeiro lugar, Arquimedes não era um professor tão distraído quenão soubesse o que se passava ao seu redor; pelo contrário, por natu-reza, era um soldado verdadeiro, que inventava máquinas de guerrapara os habitantes de Siracusa defenderem a cidade. Em segundo lu-gar, nem o soldado romano era um aproveitador embriagado, mas oculto e ambicioso comandante dos centuriões, Lucius, que sabia mui-to bem com quem tinha a honra de estar dialogando, e ele não estavaali para pilhar, mas, batendo continência na soleira da porta, disse:

— Saúdo-te, Arquimedes.Arquimedes levantou o olhar do quadro de cera sobre o qual, de

fato, desenhava algo, e disse:— O que foi?— Arquimedes — começou Lucius —, sabemos muito bem que,

sem as tuas máquinas de guerra, os siracusanos não resistiriam um mêssequer; mas, desse modo, precisamos agüentá-los durante dois anos.Não imagine que nós, soldados, não consideramos isso. São máqui-nas excelentes. Meus parabéns!

Arquimedes fez um gesto com a mão.— Por favor, isso não é nada. São mecanismos comuns para lan-

çar objetos. Sob o ponto de vista científico, não têm valor algum...— Mas sob o ponto de vista militar, têm — disse Lucius. — Ouça,

Arquimedes, eu vim pedir-lhe que trabalhe para nós.— Para quem?— Para nós, romanos. Antes de mais nada, você precisa reconhe-

cer que Cartago está em declínio. Qual é a vantagem de ajudá-los?Vocês bem que poderiam ficar do nosso lado, todos vocês.

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— Por que? — resmungou Arquimedes. — Nós siracusanos so-mos gregos, assim, por um acaso. Por que nos juntaríamos a vocês?

— Porque vocês vivem na Sicília e nós precisamos da Sicília!— E para que vocês precisam da Sicília?— Porque desejamos tornar-nos senhores do Mediterrâneo!— Ahã! — disse Arquimedes e ficou pensativo diante de seu qua-

dro de cera. — E por que vocês desejam isso?— Qualquer um que domine o Mediterrâneo — observou Lucius

— haverá de dominar o mundo. Isso é óbvio.— E vocês, por acaso, têm a obrigação de dominar o mundo?— Sim. A missão de Roma é tornar-se senhora do mundo. E posso

dizer-lhe que é exatamente isso o que Roma vai ser.— Pode ser — disse Arquimedes, apagando alguma coisa do qua-

dro. — Mas eu não trabalharei com vocês, Lucius. Ouça: tornar-se se-nhor do mundo, isso vai dar um trabalho dos diabos a vocês. É umapena essa trabalheira toda que vocês terão...

— Não faz mal; mas seremos uma grande potência.— Uma grande potência — murmurou Arquimedes. — Quer eu

desenhe círculos pequenos ou grandes, sempre serão círculos. E, afinal,tem fronteiras — e jamais vocês haverão de livrar-se das fronteiras, Lucius.Você pensa que o círculo grande é mais perfeito do que o pequeno? Vocêpensa que se torna um geômetra maior ao desenhar um círculo maior?

— Vocês, gregos, sempre ficam brincando com argumentos —protestou o centurião Lucius. — Nós demonstramos a nossa verdadede outro modo.

— De que modo?— Com ações. Por exemplo, ocupamos a Siracusa de vocês. Por-

tanto, Siracusa é nossa. É uma demonstração clara?— É — disse Arquimedes e coçou a cabeça com o estilete. — Sim,

vocês conquistaram Siracusa; só que não é e jamais será a mesma Si-racusa de antes. Foi uma cidade grande e famosa e, agora, nunca maishaverá de ser grande. Pobre Siracusa!

— Mas Roma será grande. Roma será a mais forte do mundo.— Por quê?— Para manter-se. Quanto mais fortes nos tornarmos, mais ini-

migos teremos. Por isso mesmo devemos tornar-nos os mais fortes.— Bem, no que respeita à força... — resmungou Arquimedes. —

Você sabe, eu entendo um pouco de Física, Lucius, e devo dizer-lheuma coisa: a força absorve a si própria.

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— E o que isto quer dizer?— É apenas uma lei, Lucius. A força ativa absorve a si própria.

Quanto mais fortes vocês forem, tanto mais força vocês precisarãogastar, e chegará o momento em que...

— O que é que você quis dizer?— Nada, nada. Não sou profeta, Lucius. Sou apenas um físico.

A força se auto-absorve. Mais do que isto, eu não sei.— Escute, Arquimedes: você não gostaria de trabalhar conosco?

Você não faz idéia das grandes possibilidades que você teria em Roma!Você poderia construir as máquinas de guerra mais fortes do mundo...

— Desculpe-me, Lucius; sou um homem velho, e eu gostaria ape-nas de concretizar uma ou duas idéias minhas... E como você bem podever, agora mesmo estou desenhando umas coisas...

— Arquimedes, não o atrai a idéia de conquistar o mundo aonosso lado? Por que você permanece calado?

— Desculpe — sussurrou Arquimedes, curvado sobre o quadrode cera. — O que foi que você disse mesmo?

— Que um homem da sua espécie poderia ter o domínio domundo.

— Sei, domínio do mundo... — disse Arquimedes ensimesmado.— Não se ofenda comigo, mas agora eu tenho um trabalho mais im-portante. Algo permanente, algo realmente duradouro.

— E o que é?— Tome cuidado! Não apague os meus círculos! É o método de

calcular a área de um segmento de círculo.

* * *

Tempos depois, noticiou-se que Arquimedes perdeu a vida numacidente.

(1938)

NOTAS

Arquimedes — o mais famoso matemático e físico da Antigüidade grega,nascido na Sicília por volta de 287 a.C., na época da segunda Guerra Púnica. Ar-quimedes defendeu a cidade de Siracusa durante mais de dois anos, causando gran-des perdas aos romanos. Após a conquista de Siracusa, um soldado romano as-sassinou Arquimedes, que contava 75 anos de idade.

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Siracusa — fundada por volta de 734 a.C., uma das mais antigas possessõesgregas da Sicília.

Cartago — grande cidade da Antigüidade, situada no litoral norte da Áfri-ca, aproximadamente na região em que se encontra hoje Túnis; originalmente, foipossessão fenícia; as Guerras Púnicas foram movidas pelos romanos contra Cartago,na disputa pelo domínio da bacia do Mediterrâneo; a terceira Guerra Púnica (149-146 a.C.) resultou na ocupação e destruição de Cartago pelos romanos.

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AS LEGIÕES ROMANAS

Quatro dos veteranos de César, que lutaram nas campanhas daGália e da Britânia e retornaram cobertos de glória e do maior triun-fo que o mundo jamais havia presenciado antes, estes quatro heróis,Bullio, ex-cabo, Lucius chamado de Macer devido à sua magreza,Sartor, apelidado de Hilla, veterinário da Segunda Legião e, finalmente,Strobus de Gaeta, encontraram-se na taberna de Onócrates, um gre-go velhaco da Sicília, para rememorarem juntos os grandes e notáveiseventos militares que eles haviam testemunhado. Como fazia bastan-te calor, Onócrates colocou-lhes uma mesa na rua e, ali, estes quatrosoldados sentaram-se para bebericar, falando em voz alta. E quempoderia imaginar que os transeuntes, os artesãos, os condutores demulas e as mulheres com crianças no colo iriam aglomerar-se ao re-dor deles para ouvir o que eles diziam? Saibam que os gloriosos feitosdo grande César ainda despertavam o interesse de todos os cidadãosromanos naquela época.

— Escutem — disse Strobus de Gaeta. — Deixem-me contar-lhescomo foi aquilo, quando à beira daquele rio estávamos diante de trintamil gauleses da província Lugdunense.

— Espere um pouco — corrigiu-o Bullio. — Em primeiro lugar,aqueles gauleses não eram trinta mil; eram, na pior das hipóteses, unsdezoito mil. Em segundo lugar, você pertencia à Nona Legião, quejamais chegou a lutar com os gauleses daquela província. Naquelaépoca vocês estavam acampados na Aquitânia, remendando as nos-sas botas, porque apenas uns cagões e uns remendões serviam comvocês. Mas, está certo. Prossiga.

— Você confundiu as coisas — protestou Strobus. — Para quevocê saiba, nós estávamos então acampados na Lutécia. E as botas devocês, nós remendamos, quando vocês lhes gastaram a sola, porquefugiam desesperadamente de Gergóvia. Na verdade, então vocês e aQuinta Legião tomaram uma bela surra, e foi bem feito!

— Não foi assim, não — disse Lucius, chamado de Macer. — AQuinta Legião jamais esteve em Gergóvia. A Quinta Legião levou uma

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verdadeira sova foi em Bibracta e, desde então, ela não pôde ser enviadaa lugar algum, exceto para engordar. Era uma bela legião — disseMacer, cuspindo longe.

— Mas foi culpa de quem que a Quinta Legião tenha sido der-rotada em Bibracta? — indagou Bullio. — A Sexta Legião deveria teravançado, para salvar a Quinta; mas a Sexta não queria, porque fu-gia ao confronto. Ela vinha direto de Massília, lá das raparigas...

— Que nada! — protestou Sartor, apelidado de Hilla. — A Sex-ta Legião não esteve jamais em Bribacta; ela chegou à linha de frenteapenas em Axona, quando Galba estava no comando.

— Seu bastardo, bem que você sabe bastante disso tudo — re-trucou Bullio. — Em Axona, estiveram a Segunda, a Terceira e a Sé-tima Legiões. Os éburos mandaram a Sexta de volta para as mãezi-nhas deles...

— Isto tudo é uma mentira! — disse Lucius Macer. — A únicaverdade é que a Segunda Legião, em que eu servi, lutou em Axona; oresto você inventou.

— Não me diga! — disse Strobus de Gaeta. — Em Axona, vocêsestavam de folga, na retaguarda e, quando vocês acordaram, a bata-lha havia terminado. Vocês souberam foi incendiar Genabum, e apu-nhalar uma centena de civis, enforcar três usurários; o que vocês sou-beram fazer foi isso!

— Foi César quem nos ordenou! — disse Macer sacudindo osombros.

— Isto não é verdade! — gritou Hilla. — Não foi César, masLabienus. César era político demais para ordenar isso; Labienus, sim,era um soldado.

— Galba era um soldado — disse Bullio. — Foi por isso que elenão tinha medo. Mas Labienus sempre ficou meia milha atrás da frentede batalha, para que nada lhe acontecesse. E onde estava Labienus,quando os nérvios nos cercaram? Nosso centurião tombou naquelaoportunidade e eu, como legionário mais velho, tomei o comando. Ra-pazes, eu disse, aquele que der um passo para trás...

— Com os nérvios, aquilo foi uma brincadeira! — interrompeuStrobus. — Eles atiravam em vocês com pinhas e bolotas de carvalho.Pior mesmo foi com os arvérnios.

— Vá para o inferno! — resmungou Macer. — Nem consegui-mos alcançá-los. Gente, era como se estivéssemos caçando coelhos!

— Na Aquitânia — pronunciou-se Hilla —, certa feita atirei num

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cervo; e aquilo sim, tinha chifres como uma árvore — dois cavalosprecisaram arrastá-lo até o acampamento.

— Isso não é nada — declarou Strobus. — Na Britânia é que haviacervos!

— Segurem-me! — gritou Bullius. — Strobus quer fazer vocêsacreditarem que ele esteve na Britânia!

— Mas nem você esteve lá! — retrucou Macer. — Olá, Onócrates,vinho! O que eu posso contar a vocês é que já encontrei muitos fa-lastrões que disseram que estiveram na Britânia, mas não acreditei emnenhum deles!

— Eu estive lá! — declarou Hilla. — Conduzi leitões para lá. Es-tiveram lá a Sétima, a Oitava e a Décima Legiões.

— Deixe de dizer bobagens, homem! — disse Strobus. — A Dé-cima Legião jamais esteve além do acampamento dos sequanos. Vo-cês deveriam ter visto como eles desfilaram em Alésia. Mas depois le-varam o deles, aqueles molengas.

— Todos nós levamos o nosso — disse Bullio. — Fomos ceifa-dos como trigo e, ainda assim, vencemos.

— Não foi assim — disse Macer. — Aquilo nem foi uma grandebatalha. Quando eu saí, de manhã, da tenda...

— Não foi assim — retrucou Hilla. — Na Alésia, aquilo come-çou à noite...

— Vá para certo lugar... — disse Bullio. — Começou depois doalmoço. Almoçávamos carneiro...

— Não é verdade! — gritou Hilla, batendo sobre a mesa. — NaAlésia, comemos carne bovina, porque as nossas vacas estavam doen-tes. Ninguém mais queria comer...

— Mas eu digo que era carne de carneiro — insistiu Bullio. — Ocenturião Longus tinha chegado justamente então, lá da Quinta Legião...

— Homem! — disse Macer. — Longus já servia conosco, na Se-gunda Legião, e na Alésia ele estava morto há muito tempo. Hirtusera centurião da Quinta Legião.

— Não é verdade — observou Hilla. — Na Quinta, era aquele— como é mesmo? — ah! sim!, Corda.

— Nada disso! — sustentou Bullio. — Corda esteve em Massília.Era Longus, e pronto. Ele veio e disse: chuva maldita...

— Cale a boca! — gritou Strobus. — Não foi assim! Jamais che-gou a chover em Alésia. Fazia um calor dos diabos, eu lembro, e comofedia aquela carne de porco!

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— Era carne de carneiro! — gritou Bullio. — E chovia a cânta-ros! E veio aquele Hirtus, e disse: rapazes, creio que hoje vamos en-trar bem! E tinha razão. A batalha durou vinte horas...

— Não foi assim, não — disse Macer. — Durou apenas três horas.— Você está misturando tudo — observou Strobus. — Durou três

dias, mas com intervalos. No segundo dia, perdemos...— Não é verdade! — declarou Hilla. — Fomos derrotados no

primeiro dia, mas vencemos no segundo.— Bobagem! — disse Bullio. — Não vencemos em momento al-

gum; estávamos prestes a entregar-nos, mas eles se renderam antes...— Não foi nada disso! — retrucou Macer. — Na Alésia, nem mes-

mo houve batalha. Olá, Onócrates, vinho! Esperem um pouco, agoraeu vou dizer-lhes algo: quando sitiamos Avaricum...

— Mas nem foi assim — resmungou Bullio adormecendo.

(1928)

NOTAS

César, Caius Julius (100-44 a.C.) — comandante e estadista romano queconquistou poder absoluto no Império Romano.

Aquitânia — região sudeste da Gália, situada entre os Pireneus e o rio Ga-ronne; tornou-se província romana independente; hoje corresponde, grosso modo,à Gasconha francesa.

Lutécia — cidade antiga que se situava na região da Paris atual.

Massêlia — antiga cidade da Gália, litoral do Mediterrâneo; atual Marselha.

Gergóvia — a cidade mais populosa habitada pela tribo gaulesa dos arvérnios;essa cidade conseguiu repelir, sob o comando de Vercinguétorix, o cerco que lhehavia sido imposto pelas tropas romanas, comandadas por Júlio César.

Bibracte — a cidade mais populosa habitada pela tribo gaulesa dos edulos(corresponde à atual cidade francesa de Beauvray); local em que Júlio César der-rotou os celtas da Helvécia em 58 a.C.

Éburos — denominação comum aos membros da tribo gaulesa que vivia entreos rios Reno e Maas; Júlio César impôs-lhes, em 55 a.C., severa derrota, levandoa tribo praticamente à extinção.

Nérvios — denominação comum aos membros da tribo germânica que ocupavaa região nordeste da Gália, na atual fronteira franco-belga, entre os rios Saône eSchelde.

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Arvérnios — denominação comum aos membros da mais importante tribogaulesa que, provavelmente no século II a.C., teria submetido todas as demais tri-bos gaulesas, estendendo o seu poderio na área compreendida entre o rio Reno eos Pireneus.

Sequanos — denominação comum aos membros de uma tribo gaulesa, quehabitava uma região compreendida entre os Montes Jurássicos e o curso do rioRhône; Júlio César derrotou-os entre 58-52 a.C.

Avaricum — cidade gaulesa (Bourges atual, na França), ocupada por JúlioCésar entre 52 a.C.

Cenabum — a atual Orléans (em França), ocupada por Júlio César em 52a.C.

Axona — denominação antiga do atual rio Aisne.

Campanha da Gália — as lutas de César na Gália entre 59-52 a.C.

Campanha da Bretanha — as duas campanhas movidas por Júlio Césarcontra as Ilhas Britânicas; a primeira, em 55 a.C.; a segunda, em 54 a.C.

Labienus, Attius Titus — comandante militar de César na Gália entre 58-50 a.C., responsável pela ocupação da Lutécia; mais tarde, colocou-se ao lado dePompeu e chegou a lutar contra César, morrendo em combate em 45 a.C.

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SOBRE OS DEZ JUSTOS

“Disse mais o Senhor: com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorratem-se multiplicado e o seu pecado se tem agravado muito.

Descerei e verei se de fato o que têm praticado corresponde a esseclamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei.

Então partiram dali aqueles homens e foram para Sodoma; po-rém Abraão permaneceu ainda na presença do Senhor.

E, aproximando-se Dele, disse: Destruirás o justo com o ímpio?Se houver, porventura, cinqüenta justos na cidade, destruirás

ainda assim, e não pouparás o lugar por amor aos cinqüenta justosque nela se encontram? Longe de ti o fazeres tal cousa, matares o jus-to com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de ti. Nãofará justiça o Juiz de toda a terra?

Então disse o Senhor: Se eu achar em Sodoma cinqüenta justosdentro da cidade, pouparei a cidade toda por amor deles.

Disse mais Abraão: Eis que me atrevo a falar ao Senhor, eu quesou pó e cinza.

Na hipótese de faltarem cinco para cinqüenta justos, destruiráspor isso toda a cidade? Ele respondeu: Não a destruirei se eu achar aliquarenta e cinco.

Disse-lhe ainda mais Abraão: E se, porventura, houver ali qua-renta? Respondeu: Não o farei por amor dos quarenta.

Insistiu: Não se ire o Senhor, falarei ainda: Se houver, porven-tura, ali trinta? Respondeu o Senhor: Não o farei se eu encontrar alitrinta.

Continuou Abraão: Eis que me atrevi a falar ao Senhor: Se, por-ventura, houver ali vinte? Respondeu o Senhor: Não a destruirei poramor dos vinte.

Disse ainda Abraão: Não se ire o Senhor, se lhe falo somente maisesta vez: Se, porventura, houver ali dez? Respondeu o Senhor: Não adestruirei por amor dos dez.

Tendo cessado de falar Abraão, retirou-se o Senhor; e Abraãovoltou para o seu lugar”.

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(Gênesis, 18, 20-33)* * *

E quando Abraão voltou para o seu lugar, chamou a mulher, Sara,e disse-lhe:

— Escuta, sei da mais fidedigna das fontes, mas ninguém podesabê-lo. O Senhor decidiu destruir Sodoma e Gomorra por causa deseus pecados. Ele próprio me disse.

E Sara disse:— Vê só, e não foi isto que eu te disse faz tempo? E quando eu

disse o que se passava ali, tu ainda saístes em defesa deles e repreen-deu-me, dizendo: “Cala-te, mulher, não mete o nariz; o que é que tensa ver com isso?”. Agora podes ver, faz tempo que eu o venho dizen-do; já era esperado que o fim fosse esse. Há pouco tempo, quando con-versava sobre o assunto com a mulher de Ló, disse-lhe: “Senhora, aondeisso pode conduzir?”. E o que tu pensas: que o Senhor acabará ani-quilando a mulher de Ló também?

Abraão respondeu do seguinte modo:— Trata-se exatamente disso. Como eu diria, o Senhor concor-

dou, sob a minha influência, em poupar Sodoma e Gomorra, contan-to que ali encontre cinqüenta justos. Consegui regatear, e ele deixoupor dez. Foi por isso que te chamei, para que juntos escolhêssemos parao Senhor os dez justos.

E Sara disse:— Fizeste muito bem. A mulher de Ló é minha amiga, e Ló, do

teu irmão, Harã. Não afirmo que Ló seja justo, tu o sabes bem, elesublevou todos os membros de sua casa contra ti; então, Abraão, nemme fales sobre isto, não é direito, ele não é sincero contigo. De qual-quer maneira, ele é teu sobrinho. Harã tampouco se comportou comoum irmão de sangue, mas isto já é uma coisa familiar.

E ela prosseguiu:— Dize ao Senhor que poupe Sodoma. Sou uma mulher que não

deseja mal a ninguém. As minhas pernas tremem quando penso naquantidade de pessoas que poderiam morrer. Vai, dize ao Senhor quese compadeça deles.

E Abraão respondeu assim:— O Senhor haverá de compadecer-se, se encontrar dez justos.

Creio que poderíamos aconselhá-lo a esse respeito. Afinal, conhece-mos a todos os que moram em Sodoma e Gomorra. E por que não ha-veríamos de ajudar ao Senhor a encontrar dez justos?

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E disse Sara:— Nada mais fácil! Posso indicar-lhe vinte, cinqüenta, ou até cem

justos. O Senhor sabe muito bem que não faço mal a ninguém. Assim,temos a mulher de Ló, o próprio Ló — se bem que ele seja falso e in-vejoso, mas pertence à família. Já temos dois.

Abraão ponderou:— E as duas filhas deles.Sara observou, no entanto:— Nem pense nisso, Abraão. A mais velha, Iscá, é uma sem-ver-

gonha. Será que tu não percebeste como ela sacudia o traseiro na tuafrente? A própria mulher de Ló disse: “Essa Iscá causa-me dissabo-res; ficarei muito contente se alguém a desposar”. A filha mais jovemparece mais humilde. Mas se tu achas que deve ser assim, acrescentaas duas.

Abraão respondeu:— Até agora, teríamos apenas quatro justos. E quem mais deve-

ríamos escolher?E Sara disse:— Se acrescentares as duas, devemos também contar-lhes os noi-

vos, Seboim e Jobá.Abraão, no entanto, respondeu:— O que há contigo? Seboim é filho do velho Dodanim. Será que

o filho de um ladrão e usurário pode ser justo?E observou Sara:— Ora, Abraão, faz isto, por favor, pela família. Por que Milcá

não poderia ter um noivo bom, se aquela leviana da Iscá pode ter? Elaé uma moça direita; afinal, nem fica requebrando diante dos parentesmais idosos, que deveria respeitar.

E disse Abraão:— Que seja como tu dizes. Com Jobá e Seboim, teríamos seis

justos. Precisamos encontrar ainda outros quatro.Sara argumentou:— Isto será fácil. Espera um pouco: quem mais é justo em Sodoma?E Abraão retrucou assim:— Diria que o velhor Naor.Sara ponderou:— Admira-me muito que fales a respeito dele. Será que não sa-

bes que, a despeito da idade, ele fica dormindo com jovens pagãs?Então, deverias considerar Sabá muito mais justo do que Naor.

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Revoltado, Abraão respondeu:— Sabá é um idólatra e perjuro. Não me peças que o arrole en-

tre os justos diante do Senhor. Neste caso, seria mais lógico que melembrasse de Elmodá ou Eliá.

E Sara disse:— Mas sabes que Eliá cometeu adultério com a mulher de El-

modá. Se Elmodá fosse homem de verdade, expulsaria a mulher, aquelarameira, para o lugar que ela merece. Talvez pudesses recomendarNamã, que não tem culpa de nada, porque é louco.

E Abraão respondeu assim:— Não recomendarei o nome de Namã, mas poderei lembrar

Melquiel.E Sara disse:— Se recomendares Melquiel, é melhor que não me dirijas mais

a palavra. Não foi ele quem te ridicularizou por não teres conseguidoum filho varão comigo, mas com a filha de Hagar?

Abraão observou:— Melquiel eu não recomendarei. O que tu pensas: que talvez

pudéssemos arrolar também, entre os justos, Ezron ou Jaquelel?Sara retrucou, afirmando:— Jaquelel é um pervertido, e Ezron vive às voltas com as pros-

titutas da Acádia.E disse Abraão:— Recomendarei Efraim.Sara respondeu:— Efraim afirma que lhe pertence a planície de Mamra onde

pastam os nossos rebanhos.E Abraão observou:— Efraim não é um homem justo. Recomendarei o filho de Jaziel,

Aquirã.E Sara ponderou:— Ele é amigo de Melquiel. Já que desejas recomendar alguém,

por que não recomendas o nome de Nadá?Abraão afirmou:— Nadá é avarento. Recomendarei Amrã.E disse Sara:— Mas ele quis dormir com a tua Hagar. Nem mesmo sei o que

foi que ele viu nela. Seria melhor recomendar Azriel.E Abraão respondeu:

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51Histórias Apócrifas

— Ele é um sujeito ruim. Não posso recomendar ao Senhor umfanfarrão destes. Talvez devesse indicar Namuel. Não, Namuel não omerece. Nem mesmo sei por que deveria recomendar Namuel.

E Sara disse:— Espera um pouco. Deixa Namuel de lado, porque ele se en-

volveu nos pecados de Sodoma. Quem mais vive em Sodoma? Deixa-me pensar um pouco: Caá, Salfá, Itamar...

E Abraão retrucou:— Afasta de ti este pensamento. Itamar é um mentiroso. Quan-

to a Caá e Salfá, será que não sabes que ambos estão ao lado do mal-fadado Peleg? Mas, quem sabe ainda sobrem uma ou duas mulheresjustas? Por favor, esforça-te um pouco...

E Sara disse:— Não há nenhuma.Entristecido, Abraão respondeu:— Será que não há dez justos em Sodoma e Gomorra, para que

o Senhor poupe por causa deles estas duas belas cidades?Sara retrucou:— Vai, Abraão, vai, ajoelha-te diante da face do Senhor, rasga as

tuas vestes e dize: “Senhor, Senhor, eu e minha mulher, Sara, rogamo-te que não aniquiles Sodoma e Gomorra por causa de seus pecados”.

E diz ainda o seguinte:— Compadece-te de Teu povo culpado, tem paciência. E tem

piedade, deixa-os viver. De nós, Senhor, do Teu povo, não deves pe-dir que apontemos dez justos entre todo o Teu rebanho.

(1931)

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PSEUDO-LÓ, OU A RESPEITO DO PATRIOTISMO

E chegaram os dois anjos a Sodoma, ao anoitecer, e Ló estavasentado junto aos portões da cidade. E assim que os viu, Ló levan-tou-se e prostrou-se com a face sobre o chão.

E disse:— Senhores, peço-vos que vos digneis a ingressar na casa de vosso

servo, onde podeis repousar e lavar os vossos pés. Pela manhã, podeislevantar e prosseguir vosso caminho. E eles responderam: Não, fica-remos na rua.

Mas ele insistiu muito, e os anjos entraram em sua casa. E ele osserviu, cozeu-lhes pão ázimo, e eles comeram.

E os dois homens disseram a Ló:— Quem mais de tua família estiver aqui — genros, filhos, filhas

e todos que te pertencerem —, deves tirar da cidade. Porque devere-mos aniquilar esta cidade, uma vez que o grito deles elevou-se diantedo Senhor, e Ele nos enviou para destruí-la.

Diante destas palavras, Ló estremeceu e disse:— Por que eu deveria sair daqui?E eles responderam:— Porque o Senhor não deseja aniquilar o justo.Ló calou-se por muito tempo, e finalmente disse:— Por favor, senhores, permitam-me agora que eu me vá, que

chame os genros e as filhas, e que lhes diga que devem preparar-se parapartir.

E eles retrucaram:— Faze isto.Tendo saído Ló, correu pela cidade inteira, gritando para os ha-

bitantes:— Acordem, saiam deste lugar, porque o Senhor haverá de ani-

quilar este lugar.Mas eles achavam que Ló estava brincando.Ló voltou para casa, mas não se deitou; ficou pensativo a noite

inteira.

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De madrugada, os anjos apressaram Ló, dizendo-lhe:— Acorda, toma a tua mulher, as tuas duas filhas, para que não

pereças por causa da infâmia da cidade.— Não vou — respondeu Ló. — Desculpem-me, mas eu não vou.

Pensei sobre o assunto a noite inteira. Não posso sair, porque eu tam-bém sou um dos habitantes de Sodoma.

— És um justo — observaram os anjos. — E eles, injustos. E asações deles provocaram a ira do Senhor. O que tu tens a ver com eles?

— Nem eu mesmo sei — disse Ló. — E fiquei também pensandosobre aquilo que tenho a ver com eles. Passei a vida inteira queixan-do-me de meus concidadãos, julgando-os de maneira tão severa, e agorasinto pavor ao pensar que eles devem morrer. Quando fui parar nacidade de Segor, julguei que o povo de lá fosse melhor que o de Sodoma.

— Levanta-te — disseram os anjos. — Vai até Segor, porque aque-la cidade será poupada.

— E o que Segor representa para mim? — indagou Ló. — Ali viveum único homem justo, e quando conversei com ele, queixou-se detodos os demais, enquanto eu xingava os habitantes de Sodoma. Masagora eu não posso ir embora. Suplico-lhes: deixem-me.

E pronunciou-se um dos anjos, dizendo:— O Senhor ordenou-nos que exterminássemos os sodomitas.— Que seja feita a vontade Dele — afirmou Ló, em voz baixa.

— Passei a noite inteira pensando, e lembrei-me de tantas coisas quecheguei a chorar. Será que já chegastes a ouvir os habitantes de Sodomacantando? Não. Não os conheceis de modo algum, caso contráriofalaríeis de maneira distinta. Quando as jovens andam pelas ruas, re-quebram as cadeiras e cantarolam, e sorriem quando vertem água desuas bilhas. Nenhuma água é mais limpa que a dos regatos de Sodoma,e não há língua alguma que tenha som tão belo. E quando uma crian-ça fala, compreendo-a, como se fosse minha; e quando brinca, brincacom as mesmas coisas com que eu brincava quando era pequeno. Equando chorava, minha mãe consolava-me com as palavras de Sodoma.Ó Senhor — suspirou Ló —, é como se tivesse sido ontem!

— Os sodomitas pecaram — disse severamente o segundo anjo— e por isso...

— Pecaram, eu também sei — cortou Ló, impaciente. — Mas,ao menos, chegastes a ver os nossos artesãos? Quando trabalham, écomo se brincassem. E quando terminam uma bilha ou um tecido, ocoração da gente pula de alegria, tal é a beleza daquilo que eles fazem.

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Eles são tão hábeis que dá vontade de ficar vendo trabalharem o diatodo. E quando cometem os piores pecados, isso dói muito mais doque se fosse um habitante de Segor que os tivessem cometido. E issofaz com que a gente sofra mais, como se fosse um partícipe do pecadodeles. De que me adianta que tenha sido considerado um justo, se tam-bém sou um sodomita? Se julgais Sodoma, deveis julgar-me também.Eu não sou justo. Sou como eles. Não sairei daqui.

— Serás aniquilado junto com eles — disse o anjo irritado.— Talvez; antes, porém, tentarei de tudo para evitar que sejam

exterminados. Ainda nem sei o que farei. Mas pensarei, até o últimoinstante, que devo ajudá-los. Poderia eu, afinal, ir embora, assim? Entroem confronto com o Senhor; por isso é que ele não me dá ouvidos. Se,ao menos, Ele me desse três anos, ou três dias, ou três horas! O quesão três horas para Ele? Se me tivesse dito ontem — vai, afasta-te de-les, porque não são justos —, teria respondido: tem um pouco de pa-ciência, tentarei falar com uns e outros. Julguei-os, em vez de juntar-me a eles. E agora que o aniquilamento os espera, como é que eu po-deria deixá-los? Será que não sou eu também culpado pelo fato de ascoisas terem chegado tão longe? Eu não desejo morrer, mas precisoque tampouco eles morram. Eu permaneço.

— Não salvarás Sodoma.— Sei que não; mas o que posso fazer? Mas tentarei, não sei exa-

tamente o quê; sei, contudo, que insistirei. A vida toda julguei-os demodo tão severo como a ninguém mais, porque suportei, com eles, omaior peso de todos: os pecados deles. Senhor, sequer sei dizer o queeles significam para mim. Posso demonstrá-lo, apenas, permanecen-do aqui.

— Teus concidadãos somente podem ser os justos e os que crê-em no mesmo Senhor em que tu crês — explicou o anjo. — Os peca-dores, os ateus e os idólatras não podem ser teus concidadãos.

— Como não podem, se são sodomitas? Vós não conseguis com-preender isto, porque não entendeis a voz da carne e da argila. O queé Sodoma? Dizeis que é a cidade dos injustos. Mas quando os sodomitaslutam, não lutam por serem injustos, lutam por algo melhor, que jáexistiu ou existirá, e até o pior de todos pode tombar por todos. Sodomasomos nós, alguns de nós. E se eu tiver algum valor diante do Senhor,que o atribua a Sodoma, não a mim. O que mais posso dizer? Dizeiao Senhor: Ló, Teu servo, colocar-se-á ao lado dos homens de Sodoma,defendendo-os contra Ti, como se fosses um inimigo.

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55Histórias Apócrifas

— Espera — disse o anjo. — O teu crime é terrível, mas o Se-nhor não te ouviu. Apronta-te e sai da cidade, salva, ao menos, tuamulher e filhas.

Ló caiu em prantos:— Sim, devo salvá-las, tendes razão. Conduzi-me, por favor.E como ele se retardava, os anjos tomaram-lhe a mão, tomaram

a mão de sua mulher e de suas duas filhas, e o Senhor compadeceu-se dele.

(Enquanto era conduzido, Ló pôs-se a rezar, dizendo:)— Tudo o que a vida me concedeu, deu-me por intermédio de

tuas mãos; a minha carne foi criada a partir da tua argila, e as pala-vras que estão nos lábios dos teus homens e de tuas mulheres foramaquelas palavras que foram colocadas em meus lábios; ó, por isso éque eu os amei com todas as minhas palavras, mesmo quando osamaldiçoava.

— Vejo-te inclusive quando cerro os olhos, porque estás mais fundodentro de mim do que os meus próprios olhos; estás em mim assim comoeu estive em ti.

— As minhas mãos, inconscientes, executam os teus atos, e mes-mo que estivesse no deserto, os meus pés conduzir-me-iam em dire-ção dos teus caminhos.

— Sodoma, Sodoma, será que não és tu a mais bela de todas ascidades? E se eu visse apenas uma de tuas janelinhas, cobertas comtecido listrado, reconhecê-la-ia, saberia que é uma janela de Sodoma.

— Sou como o cão arrastado para fora da casa de seu amo; emesmo que enterre a cabeça no pó, para que não enxergue, reconhe-ce o odor das coisas bem conhecidas.

— Cri no Senhor e em Sua lei; não acreditei em ti, mas tu exis-tes; e os outros países são feito sombras, através das quais passo semrecostar-me a uma única parede ou árvore, porque são como sombras.

— Tu existes como nada mais existe; e tudo o que existe, existeatravés de ti. Se te vejo, nada mais vejo além de ti; se vejo uma outracoisa, vejo-a somente através de ti.

— Cri no Senhor porque acreditei que fosse o Senhor de Sodoma;se não existir Sodoma, não existirá o Senhor.

— Ó portões, portões de Sodoma: aonde me conduzem, a quevazio me conduzem? Onde devo fincar os meus pés? Debaixo de meuspés não há terra; e fico parado como se não estivesse parado. Ide, fi-lhas, deixai-me; não consigo ir além.

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56 Karel Tchápek

Havendo-os levado fora, disse um deles: — Livra-te, salva a tuavida; não olhes para trás, nem pares em toda a campina; foge para omonte, para que não pereças.

Saía o sol sobre a terra, quando disseram isto.Então fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor,

sobre Sodoma e Gomorra.Ló olhou para trás, soltou um grito e voltou correndo para a

cidade:— O que estás fazendo, maldito? — gritaram-lhe os anjos.— Vou ajudar ao povo de Sodoma —, respondeu Ló entrando

na cidade.

(1923)

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57Histórias Apócrifas

NOITE DE NATAL

— Estou surpresa com você — disse a senhora Diná.— Se eles fossem pessoas corretas, iriam ao prefeito e não ficariam

mendigando por aí. Por que a família de Simão não os hospedou? Porque somos precisamente nós os que têm de recebê-los? Será que somospiores que a família de Simão? Claro, a mulher de Simão sequer deixariaessa gentalha entrar em casa. Eu me admiro muito que você, nem seibem o que dizer, se meta com gente assim!

— Não grite! — resmungou o velho Isacar. — Eles são capazesde ouvir.

— Que ouçam! — devolveu a senhora Diná, continuando em vozmais alta. — Uma coisa assombrosa! Talvez você queira que eu nemmesmo abra a boca, dentro de minha própria casa, por causa de unsvagabundos! Você, por acaso, os conhece? Alguém os conhece? Ele afir-ma que a mulher é esposa dele. A mulher dele, claro! Eu bem sei comoé que essa gente se casa! E você nem se envergonha de colocar uma genteassim dentro de casa!

Isacar pretendia acrescentar que os deixou entrar apenas no está-bulo. Mas preferiu calar-se. Apreciava muito a paz doméstica.

— A mulher — prosseguia a senhora Diná, escandalizada —, amulher está grávida, é bom que você saiba. Por Nosso Senhor JesusCristo, era o que nos faltava! Por Nossa Senhora, vamos cair na bocado povo! Por favor, diga, onde você estava com a cabeça? — A senhoraDiná tomou fôlego: — Claro, se vem aqui uma mulher jovem, vocênão sabe dizer não. Basta ela esticar os olhos para você e você se der-rete em gentilezas. Por mim, Isacar, você não faria isso! É como se euestivesse ouvindo: minha gente, tem palha suficiente no estábulo. Comose nós fôssemos os únicos, aqui em Belém, a ter um estábulo! Por quea família de Simão não lhes deu um fardo de palha? Porque a mulherde Simão não permitiria isso ao marido, você me entende? Somenteeu sou um trapo, que sempre fica calada...

O velho Isacar virou-se para a parede. Talvez ela fique quieta,pensou. Talvez ela tenha razão. Mas fazer um barulho destes por cau-sa de uma...

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— Receber gente estranha dentro de casa — revoltava-se a senhoraDiná em sua raiva justa. — Quem sabe o que eles são? E eu não possofechar os olhos de medo, a noite inteira! Para você, tanto faz, não émesmo? Para desconhecidos tudo; para mim, nada! Se, pelo menos, umavez você tivesse consideração por sua mulher velha e enferma! E, demanhã, toca a fazer limpeza atrás deles! Se esse homem é carpinteiro,por que é que não tem um emprego? E por que sempre eu é que tenhode ter tantos aborrecimentos? Você está me ouvindo, Isacar?

Mas Isacar, voltado para a parede, fazia de conta que dormia.— Minha Nossa Senhora! — suspirou a senhora Diná. — Que

vida, a minha! Ficar a noite inteira sem pregar o olho de preocupa-ção... E ele dorme feito chumbo! Poderiam carregar a casa inteira, eele ronca... Deus, que vida eu tenho!

E apenas o ronco de Isacar quebrava o silêncio.

Por volta da meia-noite, um gemido feminino forte acordou-o.Com os diabos! — assustou-se. Isso vem aqui da vizinhança. Tomaraque não acorde Diná... Seria um deus-nos-acuda!

E continuou deitado, imóvel, como se estivesse dormindo.Logo depois, novo gemido. Meu Deus, misericórdia! Senhor, não

permita que Diná acorde! — pedia Isacar, apavorado. Mas ele sentiuque Diná se mexeu. Ela sentou-se e ficou espreitando. Isto vai acabarmal, pensou Isacar. Mas permaneceu muito quieto.

A senhora Diná levantou-se em silêncio, cobriu-se com uma man-ta de lã e saiu para o quintal. Agora, ela vai expulsá-los, imaginouIsacar, impotente. Eu não vou me meter, ela que faça o que quiser...

Depois de alguns instantes, longos e pesados, a senhora Dinávoltou com passos firmes. O sonolento Isacar tinha a impressão de estarouvindo o estralejar de gravetos. Firme, decidiu que não mexeria umdedo sequer. Quem sabe ela está com frio, pensou, e vai acender a fo-gueira?

Diná, pé ante pé, saiu de novo, logo depois. Isacar abriu os olhose avistou um caldeirão cheio de água sobre o fogo cintilante. Para queserve isso? indagava-se, surpreso. Mas cochilou em seguida. Tornou aacordar somente quando a mulher, apressada e com passos imponen-tes pouco comuns, dirigia-se ao quintal, carregando o caldeirão fervente.

Isacar estava curioso. Levantou-se e arrumou as roupas. É preci-so verificar o que se passa lá fora, disse para si, enérgico. Mas trope-çou com a própria mulher no momento em que tentava sair.

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59Histórias Apócrifas

Tenha a santa paciência, o que é que você fica andando de lá paracá, tarde da noite, pretendia dizer. Mas não conseguiu.

— E você, o que é que está olhando? — irritou-se a mulher, quejá retornava correndo ao quintal, com alguns pedaços de tecido e tra-pos nas mãos. Virou-se na soleira da porta e disse em voz de comando:

— Volte para a cama e... e... não fique atrapalhando aqui, seráque você me entendeu?

O velho Isacar saiu furtivamente para o quintal. Avistou umafigura masculina forte e desacorçoada diante do estábulo. Aproximou-se dele:

— Pois é, José — resmungou amistoso —, quer dizer que vocêacabou caindo na armadilha dela, não foi mesmo? É, José, as mulhe-res são assim mesmo...

E, para desviar o assunto da inércia masculina de ambos, apon-tou para o céu, de repente:

— Veja, uma estrela! Será que você já viu uma estrela assim?

(1930)

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60 Karel Tchápek

MARTA E MARIA

“Indo eles de caminho, entrou Jesus num povoado. E certa mu-lher, chamada Marta, hospedou-o na sua casa.

Tinha ela uma irmã, chamada Maria, e esta quedava-se assenta-da aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos.

Marta agitava-se de um lado para outro, ocupada em muitosserviços.

Então se aproximou de Jesus e disse: Senhor, não te importas deque minha irmã tivesse deixado que eu fique a servir sozinha? Orde-na-lhe, pois, que venha ajudar-me.

Respondeu-lhe o Senhor: Marta! Marta! andas inquieta e te preo-cupas com muitas cousas.

Entretanto, pouco é necessário, ou mesmo uma só cousa; Ma-ria, pois, escolheu a boa parte e esta não lhe será tirada”.

(Lucas, 10, 38-42)

* * *

Naquela noite, Marta foi visitar a vizinha, Tamar, mulher deJacó Grünfeld, que se recuperava justamente do parto.

Vendo que o fogo da lareira se apagava, colocou alguns gravetos.E sentou-se para reavivar a fogueira. Quando as chamas voltaram acintilar, Marta fixou os olhos no fogo, e calou-se.

Depois de algum tempo, Tamar manifestou-se:— Martazinha, a senhorita é uma mulher de bem. Preocupa-se

tanto comigo... Eu nem mesmo sei como poderei agradecer-lhe.Marta nem respondeu, nem tirou os olhos do fogo.Tamar perguntou-lhe então:— Martazinha, é verdade que o rabino de Nazaré esteve hoje em

sua casa?E Marta respondeu:— Sim, esteve.Mãos cruzadas, Tamar observou:— Que alegria vocês devem ter tido, senhorita Marta! Eu sei que

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61Histórias Apócrifas

Ele sequer poria os pés aqui dentro; mas a senhorita bem que o mere-ce, é uma dona de casa zelosa...

Diante destas palavras, Marta curvou-se diante do fogo, arrumouos gravetos com movimento brusco, e falou assim:

— Posso dizer-lhe, dona Tamar, que eu gostaria mesmo de de-saparecer. Nem poderia supor que justo agora, antes das festas... Dis-se a mim mesma, pela manhã, que devemos lavar primeiro a roupasuja... A senhora sabe, a quantidade de roupa que a Maria sempresuja... Estou eu lá juntando a roupa suja, quando ouço, de repente:“Bom dia, donzelas!”. Era Ele quem estava à porta! Começo a gritar:Maria! Maria! Venha cá! Queria que ela me ajudasse a esconder to-das aquelas camisolas sujas... E a Mariazinha veio mesmo, correndo,desgrenhada como sempre, e, assim que O viu, começou a gritar comouma desmiolada: “Mestre, Mestre, então o senhor veio à nossa casa?”E lá estava ela, num piscar de olhos, ajoelhada diante d’Ele, soluçan-do e beijando-Lhe as mãos. Sabe, dona Tamar, eu tinha tanta vergo-nha... o que é que o Mestre poderia pensar, uma histérica, semidemente,e aquelas roupas sujas todas ali. Mal pude murmurar: “Mestre, sen-te-se, por favor”. E foi aí que comecei a recolher aquelas roupas sujastodas. E Maria, agarrando-Lhe as mãos, soluça: “Mestre, diga algu-ma coisa, fale-nos alguma coisa, Senhor. Imagine só, dona Tamar: elaLhe diz: Senhor! E onde quer que eu pusesse os olhos, aquela desor-dem toda, a senhora sabe como é quando a gente lava roupa; eu nemvarri a casa... o que é que Ele poderá pensar de nós?!

— Ora, ora, Martazinha — consolou-a a senhora Grünfeld. —Habitualmente, os homens mal percebem uma desordenzinha. Acre-dite-me, eu os conheço bem.

— Mesmo que fosse assim — respondeu Marta com um durosenso de responsabilidade nos olhos —, deveria haver ordem. Veja só,senhora Grünfeld: quando o Mestre almoçou na casa daquele fiscalde alfândega, Maria foi capaz de lavar os pés com as próprias lágri-mas e enxugá-los com os cabelos. E digo-lhe mais, dona Tamar: eujamais seria capaz de fazer uma coisa dessas, não teria essa coragem;mas, ao menos, gostaria que o assoalho sobre o qual Ele põe os pésestivesse limpo. Limpo como a mesa! E gostaria de ter podido esten-der diante d’Ele aquele tapete bonito, de Damasco, em vez de roupasuja. Lavar os pés com as lágrimas e enxugá-los com os cabelos, issobem que a Mariazinha sabe fazer; mas ela sequer pensa em pentear-sequando Ele vem à nossa casa. Nem pensa em limpar o assoalho. Ati-

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62 Karel Tchápek

ra-se ao chão diante d’Ele, olhos esbugalhados, e depois aquele — “fala,Rabboni!”

— E Ele falou? — interessou-se, curiosa, a senhora Tamar.— Falou — disse Marta, lentamente. — Sorriu, e ficou contan-

do coisas à Maria. Eu, é claro, primeiro procurei recolher a roupa suja;depois, coloquei diante d’Ele um pouco de leite de cabra, uma fatiade pão... Parecia cansado, alquebrado. A frase estava na ponta da lín-gua: “Mestre, trarei algumas almofadas, descanse um pouco, repou-se, que nós ficaremos aqui silentes, como se nem estivéssemos vivas,prendendo a respiração...”. Mas a senhora sabe, dona Tamar, a gen-te não quer interromper-Lhe as palavras... Então, o que mais eu po-dia fazer: fiquei andando de um lado para outro sobre a ponta dos pés,para que Maria, finalmente, pudesse compreender o que eu desejava— que ela também se calasse! “Mestre, conte alguma coisa mais, porfavor, conte! “ — ela insistia. E Ele, coitado, sorria e continuava con-tando.

— Puxa vida! Gostaria de tê-Lo ouvido falar! — suspirou a donaTamar.

— Eu também, senhora Grünfeld — observou Marta, secamen-te. — Mas alguém precisava esfriar-Lhe o leite, para que estivesse mor-no. E alguém tinha de arrumar um pouco de mel para colocar-Lhe sobreo pão. Depois, precisei ir à casa de Efraim — havia prometido à espo-sa dele que tomaria conta dos filhos enquanto ela estivesse no merca-do. Veja, senhora Grünfeld, até solteironas como eu têm a sua utili-dade... Se ao menos o nosso irmão mais jovem, Lázaro, tivesse estadoem casa! Mas quando ele viu, pela manhã, que eu me preparava paralavar roupa, disse: “Meninas, eu vou sair. Mas, você, Marta, fique deolho na rua. Quando passarem os vendedores de ervas do Líbano,compre aquela para o chá que cura males do peito”. A senhora sabe,dona Tamar, o Lázaro sofre de alguma doença do peito, e ultimamenteele tem piorado. Pois é, e eu fiquei ali, pensando: tomara que o Lázarovolte para casa, enquanto o Mestre está aqui. Eu tinha uma pontinhade esperança que Ele pudesse curar o nosso Lázaro... Assim que ou-via passos, saía correndo para o portão da rua e pedia a todos: “Se-nhor Ascher, senhor Levy, senhor Isacar, se virem o meu irmão, di-gam-lhe que se apresse e volte para casa!” E eu tinha de ficar de olhono vendedor de ervas também. Palavra de honra: eu nem sabia ondeestava com a cabeça!

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— Posso acreditar — meneava a cabeça a senhora Grünfeld. —Há muitos problemas com a família, com a casa...

— Eu lá pouco ligo para os problemas — disse Marta. — Mas,veja só, senhora Grünfeld, a gente gostaria também de ouvir a pala-vra do Senhor. Sou uma mulher tola; no fundo, uma espécie de cria-da. Afinal de contas, alguém precisa lavar e cozinhar, remendar asroupas, limpar a casa, já que a natureza da Mariazinha não é dada aessas coisas... Hoje ela nem é tão bonita como antes, dona Tamar. Masposso garantir-lhe: já houve tempo em que a beleza dela... era tama-nha que eu precisava servi-la, a senhora me entende? As pessoas pen-sam que sou má... senhora Grünfeld, a senhora é uma mulher inteli-gente, e sabe bem que uma mulher ruim não é capaz de cozinhar bem,e eu não sou lá uma cozinheira de jogar fora. Já que a Maria conse-guiu ser bonita, a Marta que cozinhe comidas gostosas, não tenhorazão? Mas, dona Tamar, talvez já tenha acontecido à senhora tam-bém: às vezes, por alguns breves instantes, a gente coloca as mãos nocolo, e accaba tendo algumas idéias tão estranhas, tão esquisitas. As-sim, como se alguém viesse e dissesse uma ou outra palavra, ou pu-sesse os olhos... dizendo, assim... minha filha, você nos alimenta coma sua bondade, você se divide para nós, você limpa a casa toda com oseu corpo, e você mantém a limpeza com a sua alma imaculada; en-tramos em sua casa como se ela fosse você, você mesma; Marta, deum jeito especial, você também amou muito...

— É verdade — concordou a senhora Grünfeld. — E se a senho-rita ainda tivesse dois filhos, como eu tenho, então é que saberia comosão essas coisas...

E disse Marta:— Sabe, senhora Grünfeld, quando o Mestre de Nazaré entrou

em casa, assim, de maneira tão inesperada, fiquei paralisada... talvez...talvez tenha vindo para dizer-me todas essas maravilhas que, anos afio, estive aguardando... E calhou de chegar quando havia aquela de-sordem toda! O coração saltava-me da boca e mal podia resmungaruma palavra... e repetia para mim mesma: isso passa, sou uma mu-lher estúpida, por isso, vou pôr a roupa de molho, depois darei umpulo à casa de Efraim, e pedirei que alguém chame o Lázaro, e depoisporei as galinhas fora do quintal para que não O incomodem... Final-mente, quando tudo estava em ordem, uma calma e uma segurançamaravilhosas apoderaram-se de mim: agora estou pronta para ouvira palavra do Senhor! Entrei em silêncio, grande silêncio, na sala em

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que Ele estava sentado, falando. Maria estava lançada aos pés d’Ele,não despregava os olhos d’Ele... — Marta soltou uma gargalhada seca.— Lembrei, então: com que cara ficaria eu se ficasse com os olhos pre-gados n’Ele. E então... então, senhora Grünfeld, Ele fitou-me com olhostão amistosos e limpos, como se desejasse dizer-me algo. Mas eu, derepente, pude ver apenas — Meu Deus, como este homem é magro!Claro, quase nunca tem um bom prato de comida. Aquele pedacinhode pão com mel, mal tocou... Lembrei-me, então: pombos! Vou cozi-nhar um pombo para Ele. Mandarei a Mariazinha até o mercado,enquanto Ele descansa um pouco. “Mariazinha — disse —, venha cá,um minuto, até à cozinha”. A Maria nem se mexeu, como se fossesurda.

— Não queria deixar o visitante sozinho — explicava a senhoraTamar, compreensiva.

— Era melhor que ela estivesse preocupada com o fato de o visi-tante ter o que comer — respondeu Marta, ríspida. — Esse é um ser-viço que nos compete, a nós, mulheres, não é verdade? Bem, quandoeu percebi que a Maria fazia ouvidos de mercador, que estava ali, olhosesbugalhados, como uma possessa, bem, então... Dona Tamar, nemeu mesmo sei como é que foi, mas tive de dizer...

“Senhor, eu disse, talvez Lhe seja indiferente que a minha irmãmais velha não ajude, permitindo que eu O sirva sozinha. Diga-lhe queme ajude na cozinha!” As palavras escaparam-me da boca, assim...

— E Ele disse? — perguntou a senhora Grünfeld.Os olhos cintilantes de Marta cobriram-se de lágrimas.— Marta! Marta! andas inquieta e te preocupas com muitas cou-

sas. Entretanto, pouco é necessário; ou mesmo uma só cousa; Maria,pois, escolheu a boa parte e esta não lhe será tirada... Foi mais ou menosisso o que Ele disse, dona Tamar.

Silêncio repentino.— E foi isso tudo o que disse? — indagou dona Tamar.— Que eu saiba, sim — respondeu Marta, enxugando as lágri-

mas com um gesto desajeitado. — Depois, fui comprar pombos; o mer-cado está cheio de ladrões, senhora Grünfeld, e eu lhe digo mais —assei os pombos e, com os miúdos, ainda cozinhei uma sopinha paraa senhora...

— Sei, sei — disse a senhora Grünfeld. — A senhorita é uma moçamuito prendada, Marta.

— Não sou, não — interrompeu-a Marta. — A senhora sabe, pela

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primeira vez na vida foi agora que não assei os pombos corretamen-te. Eles ficaram duros, mas eu... como é que eu vou dizer... tudo mecaía das mãos. E eu creio tanto n’Ele, dona Tamar!

— Eu também! — concordou a senhora Grünfeld, entusiasma-da. — E, além disso, o que disse, Martazinha? A respeito de que faloucom Maria? O que ensinou a ela?

— Não sei — respondeu Marta. — Eu perguntei à Maria, mas asenhora sabe como ela é estabanada... “Nem sei mais — disse ela —,pela minha honra, não seria capaz de repetir uma palavra sequer; masfoi uma coisa tão maravilhosa, Marta, e eu fiquei tão feliz...”

— Então, para ela, valeu a pena — concordou dona Tamar.Marta assoou o nariz com força e disse, fungando:— Bem, senhora Grünfeld, vamos lá; deixe eu trocar o seu nenê...

(1932)

NOTAS

Rabino — doutor da lei judaica; sacerdote do culto judaico.

Rabino de Nazaré — Jesus Cristo.

Rabboni (palavra aramaica) — Mestre.

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LÁZARO

A notícia de que o homem da Galiléia acabou sendo preso e haviasido atirado numa masmorra também chegou a Betânia.

Marta, conhecendo o fato, entrelaçou as mãos, desesperada, ecorreram lágrimas de seus olhos.

— Estão vendo só? — repetia. — Bem que eu disse! Por que éque ele precisou ir lá, a Jerusalém? Por que não pôde ficar aqui? Nin-guém tomaria conhecimento dele... poderia continuar, tranqüilo, coma sua atividade de carpinteiro... poderia ter instalado a sua oficina emnosso quintal...

O rosto de Lázaro estava pálido; as faíscas da paixão saltitavamdentro de seus olhos.

— Conversa tola, Marta — disse. — Ele precisou ir a Jerusalém,precisou entrar em confronto com aqueles... aqueles fariseus e publi-canos, precisou dizer-lhes tudo, face a face, e como... Vocês, mulhe-res, não entendem dessas coisas!

— Compreendo — disse Maria, em voz baixa e encantada. —Vou confidenciar a vocês que eu sei o que irá acontecer. Um milagre!Ele vai fazer um gesto com o dedo e as portas da masmorra se abri-rão... e todos O reconhecerão, cairão de joelhos diante d’Ele, e excla-marão: “Milagre!”

— Você pode ficar esperando por isso! — respondeu Marta, re-calcitrante. — Ele jamais foi capaz de tomar conta de si próprio. Nadafaz por si próprio, não ajuda a si próprio, na pior das hipóteses, se...— aduziu e os seus olhos ficaram muito abertos —, na pior das hi-póteses, se outros O ajudarem. Talvez esteja esperando que outrossaiam em Seu socorro... aqueles... aqueles que Ele próprio ajudou...que desembainhem espadas e corram ao Seu encontro.

— Creio nisso — declarou Lázaro. — Garotas, vocês não devemter dúvida de que a Judéia inteira está com Ele. Só falta... bem que eugostaria de ver... Marta, prepare provisões. Vamos a Jerusalém.

Maria levantou-se.— Também vou! Quero ver como os portões da masmorra de-

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verão entreabrir-se e como Ele deverá aparecer em meio a uma luzdivina... Vai ser ótimo, Marta!

Marta teria dito mais alguma coisa, mas engoliu as palavras.— Vão vocês, meninos — concordou. — Alguém tem de tomar

conta da casa, dar comida à criação, e as cabras...Vou preparar asroupas de vocês agora mesmo, umas fogaças. Fico contente que vocêsestejam lá!

* * *

Quando retornou, com as faces afogueadas pelas chamas do for-no, rosto cinzento, Lázaro murmurou preocupado:

— Não me sinto bem, Martazinha. Como está o tempo?— Ótimo, faz calor — respondeu Marta. — Vocês farão uma boa

viagem.— Calor, calor — observou Lázaro, descontente. — Mas, lá em

cima, em Jerusalém, sempre sopra um vento frio.— Já separei aquela sua manta quente — acalmou-o Marta.— Manta quente! — reclamou Lázaro. — A gente fica todo sua-

do debaixo dela; depois, toma vento, e pronto! O mal está feito! Po-nha a mão na minha testa. Será que não estou com febre novamente?Você sabe, detesto ficar doente, Marta, e ainda em viagem, a gente nãopode confiar... Que utilidade eu teria para Ele se chegasse junto d’Elealquebrado?

— Você não está com febre — animou-o Marta, e logo pensou:Meu Deus! Ele está tão estranho desde que... desde que foi ressus-citado...

— Mas quando... quando fiquei doente, também foi um ventoruim que me atingiu — preocupou-se Lázaro. Não falava muito à von-tade a respeito de sua morte anterior. — Você sabe, Martazinha, nãosou mais aquele de antigamente, não sirvo mais para viagens e ner-vosismos... Naturalmente, viajarei, assim que passarem estes calafrios.

— Eu sei que você vai viajar — observou Marta, com peso nocoração. — Alguém precisa correr em Seu socorro. Afinal, você foi...curado por Ele, acrescentou com receio, porque considerava falta detato falar a respeito da ressurreição. Mas, Lázaro, veja bem, você podepedir-Lhe que o ajude, assim que vocês O libertarem... se, por algumacaso, você ainda não se sentir bem...

— Sabe que você tem razão? — suspirou Lázaro. — Mas o quevai acontecer, se eu nem chegar lá? E se eu chegar tarde demais? Te-

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mos de levar em consideração todas as possibilidades. As coisas an-dam mal em Jerusalém também. Menina, você não conhece os solda-dos romanos. Meu Deus, se eu tivesse saúde!

— Mas, Lázaro, de fato você tem saúde — Marta deixou esca-par. — Você precisa estar saudável, se Ele curou você!

— Saudável! — disse Lázaro, amargurado. — Talvez seja eu quemdeve saber isto, se estou com saúde ou não... Posso dizer a você apenasque, desde então, não me senti bem um momento sequer... Não que eunão Lhe seja tremendamente grato, porque... porque me pôs em pé denovo. Você nem pense uma coisa dessas a meu respeito, Marta... Masalguém que, a meu exemplo, já chegou a conhecer essa... a conheceressa... — Lázaro estremeceu e escondeu o rosto entre as mãos. — Porfavor, Marta, deixe-me em paz agora. Devo recuperar-me... uns minu-tos apenas... certamente vai passar...

Marta tomou o caminho do quintal, em silêncio. Sentou-se efixou os olhos secos num ponto diante de si, cruzou as mãos, mas nãoestava rezando. As galinhas pretas pararam diante dela, contemplan-do-a com olhar esquivo, porque, contrariando o hábito, não lhes ati-rou comida alguma. Afastou-se para tirar uma sesta debaixo da som-bra do meio-dia.

Foi justamente então que Lázaro apareceu à porta da casa, deualguns passos cambaleantes, rosto mortalmente pálido, os dentesrangendo.

— Marta, eu... eu agora não sou... capaz de... — gaguejava. —Teria muito prazer em ir... talvez amanhã...

Marta sentiu um nó na garganta.— Vá deitar, Lázaro, vá — conseguiu dizer Marta com dificul-

dade. — Você não pode... não pode viajar.— Bem que eu viajaria — resmungou Lázaro. — Mas se você pen-

sa que não devo, Martazinha... Talvez amanhã... E você não vai medeixar sozinho em casa, vai? O que é que eu faria sozinho?

Marta levantou-se.— Vá, vá deitar — disse em sua habitual voz áspera. — Ficarei

aqui com você.Nesse mesmo instante, Maria saiu para o quintal, pronta para

viajar.— Então, Lázaro, vamos?— Lázaro não pode ir a lugar algum — respondeu Marta seca-

mente. — Está se sentindo mal.

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— Então, eu vou sozinha, para ver um milagre! — suspirou Ma-ria.

Lágrimas preguiçosas escorreram dos olhos de Lázaro.— Bem que eu iria, iria de bom grado, se não tivesse tanto medo

de... de morrer novamente!

(1932)

NOTAS

Betânia — aldeia palestina no topo do Monte das Oliveiras, ao lado da es-trada que unia Jerusalém a Jericó; segundo o Evangelho de João, foi nesse lugarque Marta e Maria teriam morado e Jesus teria ressuscitado Lázaro exatamenteali. [“Estava enfermo Lázaro, de Betânia, da aldeia de Maria e Marta, suas irmãs.Esta Maria, cujo irmão Lázaro estava enfermo, era a mesma que ungiu com bál-samo o Senhor e lhe enxugou os pés com os seus cabelos. Mandaram, pois, as ir-mãs de Lázaro, dizer a Jesus: Senhor, está enfermo aquele a quem amas. Ao rece-ber a notícia, disse Jesus: Esta enfermidade não é para morte, e, sim, para a glóriade Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado”. João, 11: 1-4].

Judéia — região meridional da Palestina, situada entre o curso do rio Jordãoe o litoral do Mar Mediterrâneo; foi transformada em província romana.

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SOBRE OS CINCO PÃES

... Qual é o meu problema com ele? Bem, eu vou explicar-lhe,vizinho: não é que eu tenha algo contra os ensinamentos dele. Nãoé nada disso. Certa vez, ouvi-lhe a pregação até o fim e, devoconfessar-lhe, faltou muito pouco para que não me tivesse transfor-mado num discípulo dele. Então, ao chegar em casa, disse ao meuprimo, àquele seleiro: olhe, rapaz, você deveria ouvi-lo, esse sujeitoé um perfeito profeta. Ele fala muito bem, sem sombra de dúvida; écomo se o coração da gente estremecesse. Eu tinha os olhos rasos.Por mim, eu bem que fecharia a minha venda e o seguiria, paranunca mais perdê-lo de vista. Divide tudo o que tens, dizia, e segue-me! Ama o teu próximo, ampara os desamparados, perdoa os teusdesafetos, e coisas desse gênero. Sou um simples padeiro, masenquanto o escutava, sentia uma alegria e uma dor singulares, nemeu próprio consigo explicar-lhe: era como se um peso tivesse caídosobre mim, de tal modo que eu teria ajoelhado e chorado. Mas, emvez disso, sabe, era como se todas as preocupações e toda a cóleradespencassem de mim. É, disse ao meu primo, olhe aqui, seu burro,finalmente você poderia ter um pouco de vergonha; você fala, otempo todo, a respeito de sua própria cobiça, quem são os seusdevedores, quais e quantos são os dízimos, os juros e os encargosque você precisa ficar pagando. Seria melhor que você dividissetudo entre os pobres, largasse mulher e filhos, e o seguisse...

Tampouco posso objetar contra ele o fato de curar os doentes eos possuídos. Verdade seja dita, esse é um poder fantástico e sobrena-tural, mas todos sabem que os nossos médicos são uns embusteiros eque esses romanos não são nada melhores; arrancam o seu dinheiro,isso bem que eles sabem fazer, mas quando você os chama para veros moribundos, eles dão de ombros e ainda repetem — por que vocênão os chamou antes! Antes!? Minha finada esposa, durante dois anosinteiros, ficou sofrendo de hemorragia; eu a levei de médico em médi-co; o senhor, vizinho, nem faz idéia do dinheiro que precisei gastar, enenhum deles ajudou a coitadinha. Se esse profeta já estivesse pere-

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grinando por nossas cidades, eu teria caído de joelhos diante dele, eteria dito: Senhor, cura esta mulher! E ela, ela teria tocado as vestesdele e estaria curada. Pobrezinha, sofreu tanto que não dá nem paracontar... Como eu havia dito: deveria elogiá-lo por curar os desvali-dos. Claro, esses magarefes gritam contra ele, ficam dizendo que tudonão passa de embuste. Pretendem até proibi-lo de curar as pessoas. É,é assim mesmo, quando os interesses estão em jogo. Aquele que dese-ja ajudar as pessoas e quer transformar o mundo sempre acaba trope-çando nos interesses de alguém. Você não consegue fazer o bem paratodos, ao mesmo tempo. Sempre foi assim. Por isso, eu lhe digo: eleque fique curando as pessoas; se quiser, que até as ressuscite. Masaquele caso dos cinco pães, aquilo ele não deveria ter feito nunca. Comopadeiro decente, devo dizer-lhe que ele cometeu uma grande injustiçacontra os padeiros.

Então, o senhor ainda não ouviu aquela história dos cinco pães?Eu não consigo entender; todos os padeiros estão revoltados com aquelahistória. Dizem que aquilo aconteceu da seguinte maneira: num lugardeserto, ele foi procurado por uma multidão, e ele curou a todos. Denoitezinha, os discípulos disseram-lhe: “Este lugar é deserto, e já é muitotarde. Dispensa a multidão, para que as pessoas possam retornar a suasaldeias e possam comprar alimentos para si”. Mas ele teria respondi-do: “Eles não precisam ir embora. Alimentai-os vós”. E os discípulosteriam dito: “Mas nós não temos nada além de cinco pães e dois pei-xes”. E ele teria respondido: “Trazei-mos”. E ele ordenou à multidãoque se sentasse no chão, apanhou os cinco pães e os dois peixes, lan-çou o olhar para o céu, abençoou os alimentos, partiu os pães, deu-osaos discípulos que os passaram adiante para a multidão. Todos come-ram e todos saciaram-se. E recolheram migalhas e ainda encheram dozecestos. E os que comeram eram cinco mil homens, sem contar as mu-lheres e as crianças.

Reconheça, vizinho: padeiro algum pode deixar isso assim; nãose pode aturar uma coisa dessas! Se isso se tornasse um hábito, ou seja,se qualquer um puder alimentar cinco mil pessoas com cinco pães edois peixes, os padeiros poderiam ir pastar, não é mesmo? Que o dia-bo carregue os peixes! Afinal, eles se multiplicam sozinhos, dentrod’água. Pesca-os quem quer pescá-los... Mas os padeiros compram afarinha e a lenha por um dinheirão, tem ajudantes e pagam-lhes salá-rios; eles ainda precisam de uma venda, pagam impostos e outras des-pesas, e contentam-se quando lhes sobram alguns tostões para viver,

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para não viverem de esmolas. E esse homem, ele simplesmente levan-ta os olhos para o céu, e, assim, sem mais nem menos, tem pão paracinco mil pessoas, ou sei lá eu para quantas mais. Não compra fari-nha, não precisa carregar lenha, não tem despesa alguma, não temtrabalho algum. Então é claro que ele pode ficar distribuindo pão degraça ao povo... E ele nem se preocupa que fica subtraindo aos padei-ros das redondezas o direito aos ganhos habituais! Posso dizer-lhe, issonada mais é do que concorrência desleal. As autoridades deveriam proi-bir isso! Se ele quiser tornar-se padeiro, que pague os impostos, assimcomo nós o fazemos. Já nos basta o fato de que as pessoas ficam nosjogando na cara que cobramos um preço terrível por aqueles miserá-veis pãezinhos! Querem que distribuamos pães de graça, assim comoele o faz, mas sabe que espécie de pão é esse? Um pão branco, tosta-do, perfumado, um pão que ninguém cessa de comer... Fomos obri-gados a baixar o preço dos confeitos. Juro que nos custam mais doque o preço pelo qual estamos vendendo. Mas precisamos fazê-lo paranão fecharmos os nossos negócios. Mas, onde vamos parar sob taiscondições? A gente fica com o raciocínio paralisado quando pensa nissotudo! De outro lado, dizem que ele chegou a alimentar quatro milhomens, sem contar as mulheres e as crianças, tudo isso com sete pãese alguns peixes, mas ali ele juntou apenas quatro cestos de migalhas.Parece que o negócio dele também já não anda tão bem como antiga-mente. Mas, ainda assim, está nos levando, aos padeiros, à falência.Posso afiançar-lhe que ele faz isso tudo porque é um inimigo juradodos padeiros. Os vendedores de peixes também estão reclamando,embora esses ignorantes sequer saibam o preço que devem cobrar pelospeixes que vendem; bem, mas há muito tempo que não se respeita tantoa profissão deles quanto a dos padeiros.

Escute, vizinho: sou um velho sem ninguém no mundo; não te-nho esposa nem filhos; portanto, preciso de muito pouco. Já disse aomeu ajudante que ele tome conta do meu negócio. Juro que não estoupreocupado com o meu lucro. Por mim, eu bem que distribuiria opouco que possuo para segui-lo, para amar ao próximo e fazer aquilotudo que ele recomenda. Mas quando penso naquilo tudo que ele fezcontra nós, padeiros, posso dizer apenas: não, isso não! Como padei-ro, vejo que assim jamais será possível salvar o mundo; o que podeacontecer é a ruína de nossa profissão. Sinto muito, mas não possoperdoar-lhe isso! Eu não!

É fácil de entender que tenhamos apresentado queixa junto a

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Ananias e à autoridade local por violação da lei que regula as ativida-des profissionais e por incitação à desordem. Mas o senhor mesmo sabecomo as nossas autoridades deixam tudo acabar em água de batata...O senhor já me conhece, vizinho: sou um homem pacífico, não querodesentender-me com ninguém. Agora, se esse homem vier aqui, paraJerusalém, irei para a rua gritar: Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!

(1937)

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BEN-KHANAN

ANANIAS

Ben-Khanan, o senhor pergunta-me se esse homem é culpado?Olhe aqui: não o condenei à morte. Mandei-o apenas para Caifás. Eleque diga se o considera culpado. Eu nada tenho a ver com isso.

Sou um homem prático, Ben-Khanan, e digo-lhe a minha opiniãode modo claro. Creio, inclusive, que de sua pregação salvam-se algu-mas coisas boas. Esse homem tinha razão em muitas coisas, Ben-Kha-nan, e o seu intento também pode ser classificado de honesto; agora,a tática que ele utilizou era muito ruim. Daquele jeito, jamais poderiater vencido. Teria feito melhor se tivesse escrito tudo e editado um li-vro. As pessoas teriam lido o livro; teriam concluído que a obra é fra-ca, que o escritor exagera, não afirma nada de novo, e assim por diante,como habitualmente ocorre com os livros. Mas, passado algum tem-po, haveria pessoas que escreveriam a respeito de um ou outro pensa-mento ou constatação dele; depois, mais outros, e de tudo teria fica-do alguma coisa. Nem tudo no mundo é ensinamento; mas um homeminteligente nem pode exigir que seja assim. Seria suficiente se tivessemsido concretizadas uma ou duas idéias dele. É assim que se faz, meucaro Ben-Khanan; não pode ser de outro modo, se desejarmos consertaro mundo. Para uma tarefa desse quilate, é necessário ter paciência, tato.E o mais importante de tudo, como, aliás, eu já havia observado, atática correta. Que verdade é essa que somos incapazes de reificar?

O erro dele foi justamente a falta de paciência. Ele desejou mu-dar o mundo assim, num piscar de olhos, nem que fosse contra a von-tade do mundo inteiro. Mas não se pode fazer assim, Ben-Khanan.Ele não deveria ter tido essa iniciativa direta e apressada. A verdadedeve ser contrabandeada para a opinião pública aos poucos; é preci-so deixá-la cair aos poucos, um pouco aqui, um pouco ali, para queos homens possam acostumar-se a ela. Agora, não assim, de uma vezsó: divide tudo o que tens, e coisas do gênero. Essa é uma maneiramuito ruim. Além do mais, ele deveria ter ficado muito mais atento

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àquilo que estava fazendo. Por exemplo, quando chicoteou os cam-bistas no templo. Escute: aqueles também são bons judeus. E, afinalde contas, eles também precisam viver! Sim, eu sei, eu sei; o lugar doscambistas não é no templo. Mas desde que o mundo é mundo elessempre estiveram lá. Então, para que foi tudo aquilo? Ele poderia terse queixado ao Sinédrio; esse teria sido o caminho correto. Talvez oSinédrio tivesse ordenado que os cambistas afastassem um pouco assuas mesas. E tudo continuaria na mais santa ordem. Sempre o maisimportante é como fazemos as coisas. Aquele que deseja realizar al-guma coisa, jamais pode perder a cabeça; deve ter autocontrole, devemanter a calma. Depois, aquelas reuniões populares... o senhor tam-bém sabe, Ben-Khanan, autoridade alguma vê isso com bons olhos!De outro lado, aquela recepção suntuosa que ele mesmo organizoupara si, quando chegou a Jerusalém; ele nem faz idéia do mal que essegesto impensado causou. Ele deveria ter vindo a pé, cumprimentaraqui, ali; deve-se começar assim, se desejamos ter alguma influência.Também ouvi dizer que ele foi hóspede de um certo publicano. Bem,mas eu não acredito nisso; certamente, ele não teria tido tamanha faltade tato. Claro, depois as fofocas maldosas não têm começo nem fim.Tampouco ele deveria ter feito milagres; mais cedo ou mais tarde, te-ria que dar-se mal. Tenha a santa paciência: ele não teria conseguidomesmo ajudar a todos; por outro lado, aqueles para os quais não fezmilagre algum, é claro, ressentiram-se à toa. Ou, por exemplo, aque-le caso das adúlteras. Dizem, Ben-Khanan, que realmente aconteceu;mas esse foi um erro fatal. Dizer na cara dos juízes que eles não sãoinfalíveis, tenha paciência, como poderia haver justiça no mundo,assim? Digo-lhe apenas o seguinte: ele cometeu erro após erro. Deve-ria ter ensinado apenas; não poderia ter feito ação alguma. Ele nãodeveria ter tomado ao pé da letra a sua própria pregação, nem deve-ria ter tentado concretizá-la, assim, da noite para o dia. Meu caro Ben-Khanan, ele começou tudo errado. Cá entre nós, ele deve ter tido ra-zão em muita coisa; mas a tática dele era equivocada. Logo, não po-deria resultar em nada diferente.

Ben-Khanan, não adianta quebrar a cabeça; o caso todo está emordem perfeita. Foi um homem justo. Mas se ele pretendia convertero mundo inteiro, não deveria ter começado as coisas de maneira tãoradical. O quê? Se o julgamento dele foi justo? Ora, faça-me um fa-vor; isso lá é pergunta que se faça? Mas eu já lhe disse que é óbvio queele tenha perdido o jogo por causa de sua própria tática!

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CAIFÁS

Sente-se, meu caro Ben-Khanan. Estou à sua inteira disposição.Portanto, o senhor gostaria de saber se, em minha opinião, aquelehomem foi crucificado de maneira justa? A questão é simples, meu carosenhor. Em primeiro lugar, nós nada temos a ver com o caso; nós nãoo condenamos à morte. Simplesmente estivemos a serviço do poder ro-mano, não é mesmo? Por que é que deveríamos assumir qualquer cul-pa, assim, desnecessariamente? Se a condenação dele foi justa, entãotudo está em ordem; se, por outro lado, a condenação foi injusta, aculpa é dos romanos; nada mais podemos fazer do que culpá-los. Éassim que são as coisas, meu caro Ben-Khanan. Questões como essadevem ser examinadas politicamente. E, na qualidade de sumo sacer-dote, o mínimo que preciso ter em mente é de que maneira determi-nados fatos precisam ser avaliados. Pense bem, meu caro amigo: osromanos livraram-nos de um homem que... como é que se diz, mes-mo?... que, sob determinados aspectos, era indesejável para nós e, aomesmo tempo, a responsabilidade recai sobre eles próprios...

Como? O senhor me pergunta por que motivo ele era indesejá-vel? Ben-Khanan, Ben-Khanan, parece que esta juventude de hoje nãotem consciência patriótica suficiente. Então o senhor não compreen-de o quanto nos prejudica quando alguém ataca as autoridades cons-tituídas, os fariseus e os juízes? O que é que os romanos vão pensarde nós? Ora, isso nada mais é do que a subversão da consciência na-cional! Por outro lado, nós, por razões patrióticas, devemos aumen-tar o prestígio das personalidades mencionadas, se desejarmos livrara nossa nação de influências estrangeiras! Aquele que despojar Israelde sua crença, investida nos fariseus, está trabalhando a favor dosromanos. Nós, de mais a mais, conduzimos a coisa toda de tal manei-ra que foram os romanos que acabaram com ele: isso é que se chamapolítica, meu caro Ben-Khanan. E ainda aparecem por aí uns e outrosque nada mais têm a fazer do que ficar indagando se o indivíduo foiexecutado justa ou injustamente! Meu caro jovem, guarde bem: os in-teresses da pátria estão acima de qualquer justiça! Sei, melhor do quequalquer outro, que os nossos fariseus não estão isentos de culpa; cáentre nós, essa turma toda é constituída por indivíduos boquirrotos eladrões impenitentes; mas não podemos permitir, em hipótese algu-ma, que alguém lhes arruíne a autoridade! Sei, Ben-Khanan, que osenhor foi discípulo dele; o senhor apreciava-lhe os ensinamentos, que

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devemos amar ao próximo e aos nossos inimigos, e coisas do gênero.Mas, diga-me uma coisa: no que isso tudo pode ajudar-nos, a nós,judeus?

E uma outra coisa: ele não deveria ter mencionado que veio parasalvar o mundo, e que ele é o Messias, o filho de Deus, e sei lá mais oquê. Todos sabemos muito bem que ele nasceu em Nazaré. Então, queespécie de salvador pode ser esse? Ainda estão vivas pessoas que se lem-bram, muito bem, do filho do carpinteiro. E é esse o homem que desejaconsertar o mundo! E o que mais ele não pensa a respeito de si próprio?Eu sou um bom judeu, Ben-Khanan, mas ninguém poderá fazer-meacreditar que um dos nossos será capaz de salvar o mundo. Estaríamosnos valorizando demais, meu filho. Se fosse um romano, um egípcio,quem sabe; mas um judeuzinho da Galiléia! Ora, isso é uma piada! Eleque conte para os outros que veio para salvar o mundo, Ben-Khanan.Não para nós! Para nós, não! Para nós, não!

(1934)

NOTAS

Sinédrio — na Antigüidade, tribunal, em Jerusalém, formado por sacerdo-tes, anciãos e escribas, o qual julgava as questões criminais ou administrativasreferentes a uma tribo ou cidade, os crimes políticos importantes.

Fariseus (em hebraico, perusim) — membros de uma seita e partido religio-so judeu que se caracterizava pela oposição aos outros, fugindo-lhes ao contato epela observância exageradamente rigorosa das prescrições legais.

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A CRUCIFICAÇÃO

E Pilatos deu a palavra a Naum, que, como a historiografia nos fezconhecer, era um homem culto. E dirigiu-se a ele da seguinte maneira:

— Naum, para mim é muito desagradável ver que o teu povo enfiouna cabeça que se deve crucificar aquele homem. O raio que vos parta!Trata-se de uma evidente injustiça!

— Se não fosse injustiça, nem seria História — respondeu Naum.— Não tenho nada a ver com essa história — declarou Pilatos.

— Dize-lhes que repensem o caso.— Agora é tarde — afirmou Naum. — Eu, na verdade, estou

acompanhando os fatos apenas através dos livros e, por isso mesmo,não fui lá ficar espiando o local da execução. Mas a minha arruma-deira veio e contou-me que ele já foi crucificado, e ele está lá pendu-rado, entre o homem da direita e o homem da esquerda.

O semblante de Pilatos ficou anuviado. Escondeu a face entre asmãos. Pouco tempo depois, pronunciou-se:

— Bem, então não falemos mais sobre o caso. Mas, dize, por fa-vor: qual foi o crime do homem da direita, e do homem da esquerda?

— Eu próprio não sei — respondeu Naum. — Uns dizem que am-bos são criminosos; outros acham que são pregadores daquela espécie.Olhando as coisas sob a perspectiva histórica, creio que estavam en-volvidos em algum assunto político. A única coisa que não consigoentender é que o povo tenha crucificado a ambos, ao mesmo tempo.

— Não te compreendo — observou Pilatos.— A coisa é a seguinte — explicou Naum —, ora as pessoas cru-

cificam o da direita, ora o da esquerda. Sempre foi assim na História.Cada época teve os seus mártires. Há períodos em que atiram à mas-morra ou crucificam aquele que lutou pela pátria; em outros momen-tos, chega a vez daqueles que anunciam que se deve lutar pelo bem-estar dos pobres e dos escravos. São esses dois tipos que se revezam, ecada um tem o seu próprio período.

— Ah! sim — ponderou Pilatos. — Então pregais sobre a cruz atodos que têm intenções boas e honestas?

— É mais ou menos isto — concordou Naum. — Mas as coisas

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têm um segredo. Às vezes, poderias pensar que essa gente envolta empalavras está pregando muito mais o ódio contra os seus adversáriosdo que defendendo as coisas certas que eles próprios apregoam. As pes-soas são sempre crucificadas por algo belo e grandioso. Aquele que estálá, pendurado sobre a cruz, sacrificou a vida por uma grande causa. Masaquele que o conduziu até à cruz e o pregou ali, esse, Pilatos, é mau esafado; até o seu aspecto é horrível e nauseabundo. Sim, Pilatos, o povoé uma coisa grandiosa e bela.

— Sim, como o nosso povo, o romano — disse Pilatos.— E o nosso também — observou Naum. — Mas a verdade dos

pobres também é uma coisa grandiosa e bela. Só que as pessoas acabamse sufocando de ódio, de raiva, por todas essas coisas grandiosas e belas.E os demais, ora estão ao lado destes, ora ao lado daqueles; e sempreacabam ajudando a crucificar aquele cuja vez chegou. Talvez observemas coisas, assim, de longe, pensando: bem feito! por que não ficou aonosso lado?

— Mas, então, por que crucificaram aquele, do centro? — inda-gou Pilatos.

— Bem, a coisa é a seguinte: se o da esquerda estiver por cima,irá crucificar o da direita; mas, antes de tudo, crucificará o do centro— respondeu Naum. — Se o da direita vencer, crucificará o da esquer-da; mas, antes de tudo, crucificará o do centro. Pode ser, também, queas coisas se compliquem e haja luta. Nesse caso, o da direita e o daesquerda irão crucificar o do centro, porque este não se decidiu comqual dos dois deveria ficar. Se subisses ao telhado da tua casa, poderi-as lançar o olhar até o campo de Hakeldamá: à direita, o ódio; à es-querda, o ódio; ao centro, aquele que desejou consertar o mundo comamor e compreensão. Bem, pelo menos, é isso que se fala a respeitodele. Poderias ver, ainda, um punhado de pessoas que ficam contem-plando tudo, enquanto devoram o seu almoço, que, prudentemente,carregaram para lá. O céu está ficando anuviado; agora, todos elesdeverão correr para casa para que não molhem as vestes.

Na sexta hora, a escuridão cobriu a terra e ela não se dissipou atéà nona hora. Na nona hora, aquele que está pregado à cruz do centrogritou a plenos pulmões: “Eloí, Eloí, lama zabakhtani?” E eis que ascortinas do templo partiram-se em duas partes, a terra estremeceu e osrochedos estouraram.

(1932)

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NOTAS

Eloí, Eloí, lama zabakhtani? (aramaico) — Deus, ó Deus, por que me de-samparaste?

Karel Tchápek faz referência às seguintes passagens do Novo Testamento:

[“Chegada a sexta hora, houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona.À hora nona clamou Jesus em alta voz: Elói, Elói, lamá sabactâni? que quer dizer:Deus meu, Deus meu, por que desamparaste?” Lucas, 15: 33-34].

[“Desde a hora sexta até à hora nona houve trevas sobre toda a terra. Porvolta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lemá sabactâni,que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que desamparaste?” Mateus, 27: 45-46].

[“Chegada a hora sexta, houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona.À hora nona clamou Jesus em alta voz: Eloí, eloí, lamá sabactâni? que quer dizer:Deus meu, Deus meu, por que abandonaste” Marcos, 15: 33-34].

Hakeldamá [ou Atzeldamá] (aramaico) — o cemitério dos forasteiros emJerusalém que, segundo o Evangelho de Mateus, foi comprado com as trinta mo-edas de prata de Judas.

O Autor faz referência às seguintes passagens do Novo Testamento:

[“Então Judas, atirando para o santuário as moedas de prata, retirou-se efoi enforcar-se. E os principais sacerdotes, tomando as moedas, disseram: Não élícito deitá-las no cofre das ofertas, porque é preço de sangue. E, tendo delibera-do, compraram com elas o campo do oleiro, para cemitério dos forasteiros. Porisso, aquele campo tem sido chamado até ao dia de hoje Campo de Sangue”.Mateus, 27: 5-8].

[“Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora, compunha-sea assembléia de umas cento e vinte pessoas) e disse: Irmãos: Convinha que se cum-prisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu anteriormente por boca de Davi,acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam a Jesus, porque ele eracontado entre nós e teve parte neste ministério (ora, este homem adquiriu um campocom o preço da iniqüidade; e, precipitando-se, rompeu-se pelo meio, e todas assuas entranhas se derramaram; e isto chegou ao conhecimento de todos os habi-tantes de Jerusalém de maneira que em sua própria língua esse campo ere chama-do de Aceldama, isto é, Campo de Sangue)”. Atos, 1: 15-19].

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A NOITE DE PILATOS

Naquela noite, Pilatos jantava com o seu ajudante de ordens ecom Susa, um jovem tenente oriundo de Cirenaica. Susa mal percebe-ra que, então, de forma pouco habitual, o governante estava muitocalado. E Susa tagarelava alegremente, fazendo anedotas a respeito doprimeiro terremoto que presenciara em sua vida.

— Foi uma comédia excelente — berrava entre dois bocados. —Quando escureceu, após o almoço, corri para a rua para ver o que afinalde contas estava acontecendo. Na escadaria, tive uma sensação de queas minhas pernas estavam adormecendo ou escorregando. Posso afir-mar que foi muito engraçado. Palavra, Excelência, desde que me doupor gente jamais poderia imaginar que um terremoto é assim. Antesque eu pudesse chegar à esquina, os civis já estavam correndo em minhadireção, olhos esbugalhados, gritando como tresloucados: “As sepul-turas vão se abrir, os rochedos vão rebentar!” Com os diabos, pensei,vai ver que é um terremoto! Rapaz, disse a mim mesmo, você tem umasorte danada! Um fenômeno tão raro da natureza, não é mesmo?

Pilatos meneou a cabeça.— Já presenciei um terremoto na Cilícia, lá se vão uns dezessete

anos. Mas a coisa, então, foi bem maior.— Bem, então podemos dizer que nem aconteceu coisa alguma

— exclamou Susa, de maneira impensada. — No caminho que con-duz a Hakeldamá rompeu-se um pedaço de rochedo. Sim, e alguns tú-mulos abriram-se dentro do cemitério. Admira-me muito que, nestepaís, eles cavem sepulturas tão rasas; não chegam a ter um côvado.No verão, deve ser uma fedentina...

— É o hábito — resmungou Pilatos. — Na Pérsia, por exemplo,eles simplesmente não enterram os mortos: colocam o cadáver debai-xo do sol, e pronto.

— Meu senhor, isso deveria ser proibido! — objetou Susa. — Porrazões de saúde pública, etecétera.

— Proibir! — murmurou Pilatos. — Nesse caso, você não pode-ria fazer outra coisa a não ser ficar dando ordens e proibir-lhes algu-

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ma coisa, o tempo todo. Essa é uma política ruim, Susa. Não deve-mos imiscuir-nos nos negócios deles; pelo menos, nesse caso eles fi-cam quietos. Se vocês desejam viver como selvagens, bem, seja feita avontade de vocês. E olhe, Susa, que eu já andei por muitos países...

— Gostaria de saber como é que surge um terremoto destes —voltou Susa ao objeto de sua curiosidade momentânea. — Digamosque existem buracos debaixo da terra e eles, assim, sem mais nemmenos, desabam. Está certo; isso eu consigo entender. Mas por que océu fica encoberto? Não tenho inteligência suficiente para compreen-der. Pela manhã, o céu ainda estava limpo...

— Peço-vos perdão — manifestou-se o velho Papadokitis, umgrego do Dodecaneso que servia à mesa. — Já ontem à noite era pos-sível ver que alguma coisa estava se preparando. O pôr-do-sol estavaextraordinariamente rubro. Eu havia dito à minha cozinheira: “Miriam,amanhã teremos tempestade ou ciclone”. E Miriam respondeu: “E eutenho dores nas costas”. Já se podia esperar que o tempo ficasse ruim.Peço-vos que me perdoem, novamente.

— Já se podia esperar — repetiu Pilatos, cismado. — Sabe, Susa,eu também esperava que algo acontecesse hoje. Aliás, desde a manhãde hoje, quando entreguei para eles aquele homem de Nazaré; preci-sei entregá-lo, porque, segundo o conceito romano de política, não nosdevemos imiscuir nos assuntos internos dos nativos. Guarde bem isso,Susa; quanto menos relações as pessoas tiverem com o poder do Esta-do, mais facilmente serão eles capazes de suportá-lo... Por Júpiter! ondefoi que eu parei?

— Naquele nazareno — auxiliou Susa.— Sim, o nazareno! Sabe, Susa, interessei-me um pouco por ele.

Nasceu em Belém. Eu creio que os nativos efetivamente cometeram umcrime contra ele. Mas, afinal de contas, isso é um assunto deles. Se nãolhes entregasse aquele nazareno, iriam crucificá-lo da mesma forma;e, nesse caso, apenas a autoridade romana acabaria sendo prejudica-da. Mas, espere: isso não tem nada a ver com o resto. Ananias disseque ele era um homem perigoso; quando nasceu, os pastores de Belémacorreram para junto dele e renderam-lhe homenagens, como se fos-se um rei! Há pouco tempo, receberam-no, nesta cidade, como se fos-se um comandante vitorioso. Isso não entra na minha cabeça, Susa.Em verdade, eu esperava que...

— Esperava o quê? — observou Susa, após um longo silêncio.— Que os habitantes de Belém viessem para cá. Que eles não o

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deixassem cair nas garras destes intrigantes daqui. Que eles se apre-sentassem a mim e dissessem: “Senhor, ele é um dos nossos e, portan-to, zelamos por ele; viemos dizer-vos que estamos com ele, e não per-mitiremos que se cometa uma injustiça contra ele”. Susa, realmenteeu teria ficado contente com aqueles montanheses. Eu já estou por aquicom estes insolentes e rábulas... Eu teria dito a eles: “Que Deus estejaconvosco, homens de Belém; esperava-vos. Por causa dele — e porcausa de vosso país também. Não se pode governar marionetes; so-mente é possível governar homens, mas não esses linguarudos... Ho-mens como vós serão os soldados que não se rendem; homens da vos-sa espécie é que constituem os povos e as nações. Ouvi dizer que essevosso patrício ressuscita os mortos. Mas, por favor, o que faríamosnós com os mortos? Mas vós estais aqui, e vejo que esse homem é capazde ressuscitar os vivos também; que ele conseguiu inocular-vos algu-ma coisa que se assemelha à lealdade e à honra. A isso, nós, romanos,chamamos virtus; nem sei como se diz isso em vossa língua, homensde Belém, mas isso está dentro de vós. Creio que esse vosso homemainda será capaz de fazer algo. Seria uma pena por ele.

Pilatos calou-se e limpou, metodicamente, as migalhas da mesa.— Mas não vieram — resmungou. — Ó, Susa, que coisa mais

estéril é governar!

(1932)

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O CREDO DE PILATOS

“Respondeu Jesus: (...) Eu para isso nasci e para isso vim aomundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é daverdade ouve a minha voz.

Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito isto, voltouaos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum.”

(João, 18: 37-38).

* * *

À noite, um homem respeitado da cidade, chamado José de Ari-matéia, que também era discípulo de Jesus, dirigiu-se a Pilatos e pe-diu-lhe que entregasse o corpo de Jesus. Pilatos concordou e disse:

— Executaram-no inocente.— Você próprio o entregou à morte — protestou José.— Sim, entreguei-o — respondeu Pilatos. — Além do mais, as

pessoas entendem que o fiz por medo desses tagarelas e do Barrabásdeles. Bastaria mandar cinco soldados contra eles, e teriam se caladologo. Mas não se trata disso, José de Arimatéia.

— De fato, não se trata disso — prosseguiu logo depois. — Masquando falei com ele, percebi que, depois de algum tempo, seriam osdiscípulos dele que crucificariam aos outros: em nome dele, em nomeda verdade dele, seriam capazes de crucificar e torturar, matar todasas outras verdades e colocariam sobre os ombros outros Barrabás. Essehomem falava a respeito da verdade. Que é a verdade?

— Vocês são um povo estranho, muito falaz. Têm lá os seus fa-riseus, profetas, salvadores e membros de outras seitas. Sempre quealguém outorga uma verdade, proíbe todas as demais verdades. É comose um carpinteiro, que fabrica uma cadeira nova, proibisse às pessoasque se sentassem sobre outras cadeiras, que outros fabricaram antesdele. Como se a fabricação de uma cadeira nova destruísse todas ascadeiras velhas. Enfim, pode ser que a cadeira nova seja melhor, maisbonita e mais confortável que as demais; mas, por favor, por que é queum homem cansado não poderia sentar-se sobre uma cadeira miserá-vel, roída pelos cupins ou até mesmo feita de pedra? Cansado e alque-

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brado, ele necessita de descanso; mas vocês, à força, querem arrancá-lo da cadeira em que se aboletou para fazê-lo sentar-se sobre aquelacadeira de vocês. Não consigo compreender vocês, José.

— A verdade — protestou José — não se assemelha às cadeirase ao descanso. Mais se parece com uma ordem que determina: vai aliou acolá, faze isso ou aquilo; vence o inimigo, ocupa esse lugar, punea traição, e assim por diante. Quem não obedece a essa ordem, é uminimigo e um traidor. É assim com a verdade.

— Ora, José — pronunciou-se Pilatos. — Você bem sabe que souum soldado e passei a maior parte da vida entre soldados. Sempreobedeci ordens, mas não porque visse nelas a verdade. A verdade eraque eu estava cansado ou com sede, que desejava voltar para casa juntode minha mãe ou que eu aspirava obter a glória, ou que um soldadoqualquer estivesse pensando na própria mulher e o outro, em suas terrasou cavalos. A verdade era que, sem uma ordem, soldado algum iriaassassinar outros homens, também cansados e infelizes. Portanto, queé a verdade? Creio, ao menos, que sigo a verdade, quando penso nossoldados, e não nas ordens.

— A verdade não é a ordem do comandante — respondeu Joséde Arimatéia —, mas a ordem da razão. Veja que essa coluna é bran-ca; se eu afirmasse que é negra, minhas palavras estariam contrarian-do a sua compreensão, e você não poderia suportar isso.

— E por que não? — disse Pilatos. — Pensaria que você é um infelize melancólico, que enxerga na coluna branca uma coluna negra; tenta-ria alegrá-lo; sem dúvida, interessar-me-ia mais por você do que antes.E se se tratasse de simples engano, diria para mim mesmo que em seuengano existe o mesmo tanto de sua alma quanto em sua verdade.

— A minha verdade não existe — protestou José de Arimatéia.— Existe apenas uma verdade, para todos.

— E qual é essa verdade?— Aquela em que creio.— Está vendo! — disse Pilatos lentamente. — Portanto, é a sua

verdade. Vocês parecem umas crianças, que acreditam que o mundo sereduz aos limites do olhar e que além daquilo não existe nada mais. Omundo é grande, José, e muitas coisas cabem nele. Creio que muita ver-dade pode caber dentro da realidade. Veja só: sou um estrangeiro nes-te país, e a minha pátria está longe do alcance do olhar; ainda assim,não diria que este país é incorreto. De modo similar, os ensinamentosdesse Jesus de vocês são estranhos para mim; devo dizer a meu próprio

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respeito que sou incorreto? Creio, José, que cada país, tomado por si,é correto; mas o mundo deve ser incomensuravelmente amplo para quenele tudo possa caber, lado a lado, uma coisa após a outra. Se colocás-semos a Arábia no lugar do Ponto, naturalmente isso seria incorreto.Isso aplica-se também às verdades. Deveríamos criar um mundo dema-siado grande, amplo e livre para que nele pudessem caber todas as ver-dades efetivas. E eu, José, acredito que o mundo seja exatamente as-sim. Se você subir ao pico de uma montanha, verá que as coisas se fun-dem, elas se igualam sobre uma superfície. Vistas de determinada altu-ra, as verdades também se fundem. É claro que os homens não vivem,nem podem fazê-lo, no pico de uma montanha; basta que vejam a suacasa ou a sua terra de perto, para que ambas estejam repletas de verda-des e de coisas; e ali estão o verdadeiro lugar e a verdadeira tarefa doshomens. Mas, de vez em quando, os homens podem levantar os olhospara o céu ou para as montanhas e podem pensar que as suas verda-des, vistas lá de cima, existem e nada lhes faltará, se se fundirem sobreuma superfície muito mais livre e que já não é mais propriedade deles.Ajeitar-se a essa visão distante e continuar lavrando a sua própria ter-ra, José, assemelha-se a devoção. Acredito que o Pai do Céu daquelehomem realmente existe em algum lugar, mas que ele pode convivermuito bem com Apolo e com os demais deuses. Veja só: são inimagináveisos lugares do céu. Alegra-me que o Pai do Céu esteja lá também.

— Você não é quente nem frio; apenas morno — respondeu Joséde Arimatéia, levantando-se.

— Não sou, não — disse Pilatos. — Eu creio, creio ardentementena existência da verdade e creio que o homem é capaz de reconhecer essaverdade. Seria tolice imaginar que a verdade serve apenas para que aohomem não seja dado conhecê-la. Reconhecem-na, sim; mas quem? Vocêou eu, ou, quem sabe, todos? Eu creio que todos a reconhecem, todos apartilham, inclusive aqueles que dizem sim e os que dizem não. Se estesdois se unissem, seriam capazes de compreender-se mutuamente e, tal-vez, a verdade completa nasceria de ambos. Não se podem unir o sim eo não; mas os homens sempre podem dar-se as mãos; há mais verdadesnos homens que nas palavras. Preocupam-me mais os homens que asverdades deles. E nisso também existe um credo, José de Arimatéia; paraisso também se torna necessária uma alma e um entusiasmo. Eu creio.Creio, sim, de modo absoluto e sem dúvida alguma. Mas que é a verdade?

(1920)

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NOTAS

Arimatéia — aldeia cujo nome tornou-se conhecido por causa de José deArimatéia; segundo algumas versões, corresponde à atual aldeia de Ramataim, emIsrael.

O Autor faz aqui referência às seguintes passagens do Novo Testamento:

[“Ao cair da tarde, por ser o dia da preparação, isto é, a véspera do sábado,vindo José de Arimatéia, ilustre membro do Sinédrio, que também esperava o rei-no de Deus, dirigiu-se resolutamente a Pilatos e pediu o corpo de Jesus”. Marcos,15: 42-43].

[“Caindo a tarde, veio um homem rico de Arimatéia, chamado José, que eratambém discípulo de Jesus. Este foi ter com Pilatos e lhe pediu o corpo de Jesus.Então Pilatos mandou que lho fosse entregue. E José, tomando o corpo, envolveu-o num pano limpo de linho, e o depositou no seu túmulo novo, que fizera abrir narocha; e, rolando uma grande pedra para a entrada do sepulcro, se retirou”. Mateus,27: 57-60].

[“Depois disto, José de Arimatéia, que era discípulo de Jesus, ainda queocultamente pelo receio que tinha dos judeus, rogou a Pilatos lhe permitisse tiraro corpo de Jesus. Pilatos lho permitiu. Então foi José de Arimatéia e retirou o cor-po de Jesus. E também Nicodemos, aquele que anteriormente viera ter com Jesusà noite, foi, levando cerca de cem libras de um composto de mirra e aloés. Toma-ram, pois, o corpo de Jesus e o envolveram em lençóis com os aromas, como é ouso entre os judeus na preparação para o sepulcro”. João, 19: 38-40].

[“E eis que certo homem, chamado José, membro do Sinédrio, homem bome justo (que não tinha concordado com o desígnio e ação dos outros), natural deArimatéia, cidade dos judeus, e que esperava o reino de Deus, tendo procurado aPilatos, pediu-lhe o corpo de Jesus, e tirando-o do madeiro, envolveu-o num len-çol de linho e o depositou num túmulo aberto em rocha, onde ainda ninguém haviasido sepultado. Era o dia da preparação e começava o sábado”. Lucas, 23: 50-54].

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O IMPERADOR DIOCLECIANO

Esta história surtiria muito mais efeito, não há dúvida, se a he-roína fosse a filha de Diocleciano, ou uma outra personagem jovem evirginal. Entretanto, para satisfazer à verdade histórica, a irmã maisvelha de Diocleciano está no centro dos acontecimentos, uma matronaidosa e respeitável que, segundo a opinião do imperador, talvez sejaum pouco histérica e exaltada e, devemos ainda reconhecer, o tiranoenvelhecido tem certo receio dela. Assim, quando ela mandou anun-ciar-se, o imperador imediatamente interrompeu a audiência com ogovernador da Cirenaica (a quem comunicava a sua insatisfação compalavras fortes) e foi recebê-la à porta.

— Então, Antônia, quais as novidades? — perguntou em tomjovial. — O que há? Vai me dizer que você novamente tem alguns quei-mados? Ou você deseja que eu interceda em favor dos animais sacri-ficados no circo? Ou, quem sabe, devemos ocupar-nos da educaçãomoral dos legionários? Vamos lá, diga, diga, mas sente-se, sente-se.

Antônia, contudo, ficou em pé.— Diocleciano — disse em tom formal. — Preciso dizer-lhe algo.— É assim?! — observou o imperador, resignado, coçando a nuca.

— Por Júpiter! Hoje eu tenho tanto serviço! Será que você não pode-ria esperar um pouco?

— Diocleciano — prosseguiu-lhe a irmã, impassível. — Vim,porque preciso comunicar-lhe: você deve pôr um fim à perseguição aoscristãos.

— Ora, faça-me um favor... — resmungou o velho imperador. —Assim, de uma vez só... ou depois de trezentos anos... — Ele observavaatento a matrona excitada; o semblante grave, os dedos deformados pelagota, davam-lhe uma expressão resoluta. — Está bem — apressou-seDiocleciano. — Podemos falar a esse respeito. Mas, antes de mais nada,tenha a bondade de sentar-se.

Antônia obedeceu involuntariamente, e tomou assento na pon-ta da cadeira. Assim, desapareceu de seu semblante aquela resoluçãoguerreira; a sua figura diminuiu, enfraqueceu mesmo; os lábios finostomaram posição de choro.

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— Aquelas pessoas são tão santas, Diocleciano — disse, enfim...— e crêem de uma maneira tão maravilhosa... Sei, se você pudesse co-nhecê-los... Diocleciano, você deve conhecê-los. Você vai ver que... quevocê terá uma opinião completamente diferente a respeito deles...

— Bem, mas a verdade é que eu não tenho uma opinião negati-va a respeito deles — protestou Diocleciano, mansamente. — Eu seimuito bem que tudo aquilo que se fala a respeito deles não passa defofoca e injúria. Foram os nossos áugures que inventaram tudo, vocêsabe, por inveja profissional, e assim por diante. Examinei a coisa todae concluí que esses cristãos são pessoas bastante corretas. São extre-mamente decentes e abnegados.

— Então, por que você os persegue de modo tão inclemente? —indagou Antônia, aterrorizada.

Diocleciano franziu o sobrolho.— Por quê? Ora, faça-me um favor! Isso lá é pergunta que se faça?

Sempre eles foram perseguidos, não é mesmo? E mal podemos perce-ber que o número deles diminui. Aquelas conversas todas a respeitodas perseguições são exageradas. É claro que, vez ou outra, é precisopunir alguns deles, assim, de maneira exemplar...

— Por quê? — tornou a perguntar a matrona.— Por razões políticas — explicou o velho imperador. — Preste

atenção, minha querida; eu poderia arrolar aqui dúzias de argumentos.Por exemplo: é uma exigência do povo. Pro primo, isso desvia-lhe a aten-ção de outras coisas. Pro secundo, isso desperta nele a consciência agudade que se governa com mão de ferro. E, pro tertio, trata-se de um cos-tume popular entre nós. Posso dizer-lhe que governante algum, respon-sável e consciente, tocaria naquilo, assim, em vão, que se tornou umcostume nacional. Essas coisas despertam tão-somente incertezas e,poderia aduzir, revoltas e confusões. Veja só, minha cara, desde que estouno trono, introduzi mais novidades do que qualquer outro. De certomodo, havia necessidade. O que não foi necessário, eu não fiz.

— Mas a justiça, Diocleciano — disse Antônia calmamente —,finalmente deve fazer-se justiça. Eu somente peço justiça a você.

Diocleciano deu de ombros.— A perseguição aos cristãos é justa, porque está de acordo com

as leis vigentes. Sei o que você quer dizer: bem que eu poderia revogaressas leis. Sim, poderia revogá-las; mas não o farei. Querida Tônia, guar-de bem: minima non curat praetor. E eu não posso ocupar-me de por-menores desse tipo. Pense bem que sobre os meus ombros pesa a admi-

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nistração do império todo; e você sabe, minha cara, que eu também mu-dei essa administração. Recriei a Constituição, alterei o Senado, cen-tralizei a administração, reorganizei a burocracia toda; redefini a fron-teira das províncias, regulamentei-lhes a administração; são todas coi-sas que precisaram acontecer em função do interesse da nação. Você éuma mulher, não entende dessas coisas. Mas as tarefas mais importan-tes do estadista são exatamente os atos administrativos. Diga você mes-ma: por exemplo, o que significam os seus cristãos diante da necessi-dade de fiscalizar as finanças públicas? Bobagens, são bobagens...

— Mas, Diocleciano, ainda assim, você poderia fazê-lo facilmente— suspirou Antonia.

— Poderia. E não poderia — disparou o imperador, decidido.— O império inteiro fui eu quem colocou debaixo de novas normasadministrativas e as pessoas, posso dizer-lhe, pouco sabem a esse res-peito. Apenas porque deixei-lhes intactos os costumes. Se lhes entre-go aqueles poucos cristãos, eles têm o sentimento de que tudo estácomo nos tempos antigos, e eles deixam-me em paz. Meu tesouro, umestadista deve ter consciência a respeito dos limites das reformas quepode introduzir. É isto!

— Então, é só porque, só porque você deseja que esses vagabun-dos e tagarelas deixem você em paz! — disse a matrona, azeda.

Diocleciano mostrou os dentes.— Se você quer assim, então, é assim, sim. Mas deixe-me dizer-

lhe o seguinte: eu li os livros dos seus cristãos, e meditei um pouco arespeito deles.

— E que mal você encontrou naqueles livros? — indagou Antôniaexcitada.

— Que mal? O imperador ficou meditando. Ao contrário, exis-te algo... Amor, e outras coisas... por exemplo, a renúncia aos bensterrenos... Afinal de contas, são belos ideais, e se eu não fosse impera-dor... Você sabe, Tônia, tem algumas coisas nos ensinamentos delesque me agradam terrivelmente. Se eu tivesse um pouco mais de tem-po livre... e pudesse também pensar em minha alma... — O impera-dor deu um murro exaltado sobre a mesa. — Mas a coisa inteira é umabsurdo! Sob o ponto de vista político, é completamente impossível.Irrealizável! Você pode criar o país de Deus? Como ele seria adminis-trado? Com amor? Com o verbo divino? Ora, eu conheço bem as pes-soas, ou será que não? Sob o ponto de vista político, esses ensinamen-tos são tão imaturos e tão irrealizáveis que... que devem ser punidos.

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— Mas, em verdade, eles não se ocupam de política alguma —saiu Antônia em defesa dos cristãos. — E os livros santos deles nãofazem menção alguma à política.

— Na qualidade de estadista provado — pronunciou-se Dio-cleciano —, para mim tudo é política. Tudo possui um significadopolítico. Todos os pensamentos devem ser encarados sob o ponto devista político; como eles poderiam ser concretizados, o que pode seraproveitado, quais seriam os resultados, as conseqüências. Durantelongos dias e longas noites, fiquei quebrando a cabeça a respeito doseguinte: como seria possível concretizar, politicamente, os ensinamen-tos cristãos? E percebi que a coisa toda é inviável. Posso dizer-lhe queesse Estado cristão seria incapaz de subsistir por mais de um mês. Ora,faça-me um favor: seria possível organizar um exército à moda cris-tã? Seria possível coletar impostos à moda cristã? Poderiam existirescravos numa sociedade cristã? Tenho as minhas próprias experiên-cias, Tônia; seria impossível governar, com base nos preceitos cristãos,por um mês ou por um ano. É por isso que o cristianismo jamais con-seguirá deitar raízes. Poderá permanecer como religião de escravos eartesãos, mas nunca, nunca poderá tornar-se religião de Estado. Issoestá fora de cogitação. Você sabe, os pontos de vista deles a respeitoda fortuna, do amor ao próximo, a condenação de toda a violência, eassim por diante, tudo isso é muito bonito, mas impossível na práti-ca; são coisas indesejáveis para a vida real, Tônia. Agora, diga-me oseguinte: o que eu devo fazer com eles?

— Pode ser que os princípios deles sejam irrealizáveis — sussur-rou Antônia —, mas isso ainda não os torna culpados.

— Culpado é todo aquele que prejudica o Estado! — sentenciouo imperador. — E o cristianismo estremeceria o poder soberano doEstado. Isso não pode acontecer. Meu tesouro, o poder maior deve estarlocalizado neste mundo, e não num outro mundo. Se lhe digo que anação cristã é conceptualmente impossível, isso significa, sob o pontode vista lógico, que o Estado não pode aturar o cristianismo. Um po-lítico responsável deve agir, de modo consciente, contra os sonhosinsanos e irrealizáveis. De mais a mais, todo esse cristianismo não passade uma fantasia de loucos e escravos...

Antônia levantou. Respirava com dificuldade.— Diocleciano, quero que você saiba: eu também tornei-me cristã!— Ora, deixe disso! — surpreendeu-se, mansamente, o impera-

dor. — Está certo, e por que não? Quer dizer, bem que eu observei

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que existe algo naquilo tudo; bem, e enquanto isso for mantido comouma coisa sua, pessoal... Não quero que você pense, Tônia, que nãotenho compreensão em relação a essas coisas. Eu também gostaria deser, mais uma vez, uma simples alma humana; sim, Tônia, bem queeu largaria o império, a política, e todo o resto... Mas, antes disso, eupreciso terminar a reforma administrativa do império e coisas do gê-nero. Depois, sim, eu teria gosto em mudar-me para algum lugar dointerior... para estudar Platão, Cristo, Marco Aurélio... e aquele Pau-lo deles... como é que ele se chama mesmo? Mas agora você deve des-culpar-me: tenho uma importante reunião política.

(1932)

NOTAS

Diocleciano (Caius Aurelius Valerius Diocletianus, 243-313/316 d.C.) —imperador romano que governou entre 284-305; durante o seu reinado ocorreu aúltima grande perseguição aos cristãos, no ano de 303.

Pro primo, pro secundo, pro tertio (expressões latinas) — em primeiro lu-gar, em segundo lugar, em terceiro lugar.

Minima num curat praetor (expressão latina) — o pretor (magistrado ousuperintendente do erário ou tesouro púlico) não se ocupa de coisas supérfluas.

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ÁTILA

Pela manhã, chegou um mensageiro vindo das bordas da florestapara anunciar que, a sudeste, durante a noite, um incêndio tingiu o céude rubro. Naquele dia, chuviscava novamente, e as toras úmidas nãoqueriam acender-se. Três pessoas da multidão que se escondia nas gretasentre os rochedos haviam morrido de disenteria. A comida também haviaacabado e, por isso, dois homens foram procurar os pastores que viviamalém da floresta. Retornaram no fim da tarde, molhados até os ossos eextenuados, e mal puderam contar que havia perigo: as ovelhas estavammorrendo, as vacas estavam inchadas; os pastores haviam-nos atacadocom facas e porretes, quando um deles tentou carregar um novilho quelhes havia entregue, há muito tempo, quando se refugiaram na floresta.

— Oremos — disse o padre, também atacado de disenteria. —O Senhor haverá de compadecer-se de nós.

— Kriste eleison — repetia a multidão. — Nesse exato momento,estourou uma briga entre as mulheres, por causa de um lenço de lã.

— O que foi agora, malditas matracas? — gritou o juiz, tirandoo chicote para sossegar as mulheres. De repente, aquela tensão desa-pareceu e os homens começaram a sentir-se homens novamente.

— Aqueles bebedores de leite de égua não conseguirão chegar atéaqui! — declarou um barbudo. — Nestas gretas entre os rochedos, entreaqueles arvoredos... Dizem que os cavalos deles são miúdos e resse-quidos, como cabras.

— Sou um daqueles — objetou um homenzinho irritado — queacham que deveríamos ter ficado na cidade. Já pagamos tanto poraqueles baluartes... Com aquela dinheirama toda poderíamos ter umafortificação que nem os raios poderiam destruir, não é mesmo?

— É sim — ironizou o donzel tísico. — Por aquele dinheiro todopoderíamos ter uma fortificação feita de bolo. Vá lá, dê-lhe uma boamordida... muitos poderiam fartar-se, meu bom homem; quem sabesobraria um pouco para você também...

O juiz resfolegou significativamente: uma conversa daquelas nãotinha lugar ali.

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— Sou ainda daqueles — prosseguiu o burguês revoltado — queentendem que a cavalaria pouco pode fazer diante de nossas fortifica-ções. Deveríamos ter-lhes dito que não os deixaríamos penetrar nacidade, e pronto! Poderíamos ter nos livrado facilmente.

— Então, você deve voltar à cidade e enfiar-se dentro de sua cama— aconselhou o barbudo.

— E o que eu faria lá, sozinho? — ralhou o homenzinho irado. —Digo apenas que deveríamos ter ficado na cidade para defender-nos...Afinal de contas, tenho o pleno direito de afirmar que isso foi um erro!Quanto dinheiro aquelas fortificações não consumiram? E agora nosdizem que elas não servem para coisa alguma? Ora, façam-me um favor!

— Agora, se é assim ou de outra maneira — observou o padre—, devemos confiar no auxílio divino. Meus bons homens, o Átila nãopassa de um pagão...

— O flagelo de Deus — manifestou-se o monge arrepiado. — Ocastigo de Deus.

Os homens calaram-se. E o monge febril bem que continuariafazendo a sua pregação, embora nem pertença à comunidade. Para quetemos, então, um padre? — pensavam os homens. Ele é um dos nos-sos, está sempre conosco, e não fica sempre xingando os nossos peca-dos. Como se tivéssemos cometido tantos pecados — pensavam as pes-soas mal-humoradas.

A chuva parou. Mas as gotas pesadas ainda inundavam as co-pas das árvores.

— Meu Deus, meu Deus — gemia o padre, constantemente mo-lestado pela doença.

À noite, os guardas carregaram um rapaz desventurado para den-tro do acampamento. Dizia que fugira do leste, da área invadida.

O juiz se inflou todo e começou a interrogar o fugitivo. Era evi-dente que ele deveria realizar toda essa coisa oficial de modo bastantesevero. Sim, dizia o rapaz, os hunos estão a apenas onze milhas daquie avançam vagarosamente; invadiram a cidade dele também, ele os viu;não, Átila não estava entre eles... Viu um outro comandante, um gor-do. Se eles incendiaram a cidade? Não, não a incendiaram; aquele co-mandante deu-lhes uma ordem para que a população civil não fossemolestada; mas a cidade deveria fornecer-lhes alimentos, ração e ou-tras coisas. Ele afirmou, também, que a população deveria resguardar-se de toda e qualquer atitude inamistosa em relação aos hunos, por-que, nesse caso, haveria represálias bastante drásticas.

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— Mas aqueles pagãos assassinam mulheres e crianças... — ga-rantiu o barbudo.

Não é bem assim, disse o rapaz. Na cidade dele, pelo menos, nãoaconteceu nada disso. Ele próprio refugiou-se dentro da forragem, mas,quando a sua mãezinha lhe disse que os hunos iriam carregar os jo-vens para serem vaqueiros, ele fugiu durante a noite. Isso era tudo oque ele sabia.

As pessoas estavam insatisfeitas.— É fato muito bem conhecido — declarou um deles — que eles

cortam as mãos dos recém-nascidos, e o que eles fazem com as mu-lheres, bem, isso não se pode sequer contar...

— Não sei nada a esse respeito — disse o rapazola, como se es-tivesse se escusando. — Em nossa cidade, a coisa toda não foi tão pe-rigosa. E quantos são os hunos? Talvez uns duzentos; não devem sermais que isso.

— Você está mentindo! — irritou-se o barbudo. — Todos sabemque eles são mais de quinhentos mil. E onde quer que eles cheguem,assassinam a todos e queimam tudo.

— Eles trancam as pessoas nos celeiros e queimam-nas vivas —disse um outro.

— Espetam as crianças sobre lanças — garantia um terceiro.— E assam-nas sobre fogueiras — aduziu um quarto, resfriado,

assoando o nariz. — Malditos pagãos!— Meu Deus, meu Deus — gemia o padre. — Meu Deus, tem

piedade de nós!— De alguma forma, você parece-me suspeito — dirigiu-se o

barbudo ao rapaz. — Como você afirma que viu os hunos, se você es-tava escondido na forragem?

— A minha mãezinha viu os hunos — tartamudeava o rapazola.— Todos os dias ela levava comida para mim, lá no sótão...

— Você está mentindo! — disse o barbudo em voz estridente.Sabemos muito bem que onde os hunos chegam devoram tudo, comose fossem gafanhotos. Não restam depois deles sequer folhas verdessobre as árvores, você me entendeu?

— Deus do céu, Santo Deus — começou a urrar, histérico, o padreirritado. — Por que isso tudo? Por quê? É culpa de quem? Quem osdeixou vir até aqui? Pagamos tanto para o exército... Deus do céu!

— Quem os deixou vir até aqui? — interrompeu, irônico, o don-zel. — E você não sabe? Pergunte ao imperador bizantino, quem cha-

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mou esses macacos amarelos? Meu bom homem, hoje todos sabem quemestá financiando essa invasão de povos. Isso se chama alta política, sabia?

O juiz resfolegou de modo imponente.— Bobagens. A coisa é completamente diferente. Aqueles hunos,

lá na terra deles, estão quase morrendo de fome... é um bando de pre-guiçosos... não sabem trabalhar... não possuem civilização... e queremempanturrar-se. É por isso que nos atacam... para tomar-nos a coisa...o... o fruto de nosso trabalho. Isto é, para roubar, distribuir o lucro...e ir adiante. Aqueles vagabundos!

— São uns pagãos incultos — disse o padre. — Um povo selva-gem e pouco instruído. Nosso Senhor está nos colocando à prova;oremos e agradeçamos a Ele, para que a nossa sorte mude.

— O flagelo de Deus — recomeçou a pregação irada o mongefebril. — Deus está vos castigando devido aos vossos pecados. É Deusquem está conduzindo os hunos para varrer-vos da face da terra, comoEle fez com os sodomitas. Por causa de vossa fornicação, de vossablasfêmia, de vossos corações empedernidos, de vossa cobiça, de vos-sa avareza, de vosso bem-estar pecaminoso, de vossos bezerros de ouro,Deus não se compadeceu de vós e entregou-vos ao inimigo!

O juiz interveio ameaçador:— Cuidado com as palavras, domine: não estamos dentro de uma

igreja, você entendeu? Eles vieram para empanturrar-se. São famin-tos, esfarrapados, uns desgraçados, todos eles...

— Isso tudo é política — continuou o donzel. — Bizâncio estámetido nisso.

Foi então que um homem de face escura, a julgar pela aparên-cia, um tanoeiro, manifestou-se apaixonadamente:

— Bizâncio, coisa alguma! Foram os caldeireiros, e ninguém mais!Faz três anos passou por aqui um caldeireiro, e ele tinha um cavalomirrado, pequenino, como esses hunos.

— E daí? — perguntou o juiz.— Aquele que tem juízo — gritou o homem de face escura — pode

perceber. Os caldeireiros vieram na frente, para espionar, para ver oque havia... Eram espiões... Tudo isso é obra dos caldeireiros! E al-guém sabe de onde eles teriam vindo? E o que eles queriam aqui? Comoé? Ora, o que eles queriam! Se existe na cidade um tanoeiro estabele-cido!... Estragar o nosso ofício... espionar... Jamais entraram numaigreja... fizeram magia... encantamento... arrastaram atrás de si os...Tudo é culpa dos caldeireiros!

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— Tem alguma coisa aí — observou o barbudo. — Os caldeireirossão uma gente estranha. Dizem que eles comem carne crua.

— Bando maldito! — concordou o juiz. — Ladrões de galinhase além do mais...

O tanoeiro sufocava-se em sua cólera justa.— Vocês estão vendo? Dizem que Átila, na verdade, os caldei-

reiros... Esses malditos caldeireiros, esses caldeireiros estão metidos emtudo! Encantaram-nos os animais... mandaram-nos a disenteria... Tu-do... os caldeireiros! Deveríamos ter enforcado o primeiro que nos apa-recesse! E vocês ainda não conhecem aquela história do... do caldeireirodo inferno? E vocês não sabem que os hunos, antes dos ataques, ba-tucam em suas caldeiras? Mas qualquer criança é capaz de ver a rela-ção! Foram os caldeireiros que nos arrumaram a guerra... os caldei-reiros são culpados de tudo... E você — gritou com a boca espuman-te, apontando para o rapaz estranho —, você também é um caldeireiro,comparsa deles, e espião... Você veio para... e você pretendia enganar-nos... trair-nos para os caldeireiros...

— Enforquem-no — berrou o homem ensandecido.— Esperem, vizinhos! — gritava o juiz. — Silêncio! É preciso in-

vestigar o caso.— Mas que histórias são essas? — gritou alguém da multidão.As mulheres aproximaram-se correndo.

* * *

Naquela noite, o incêndio tingiu o céu de rubro a sudoeste tam-bém. A chuva caía vagarosa. Cinco pessoas morreram de disenteria ede tosse.

Após longa tortura, enforcaram o rapaz.

(1932)

NOTAS

Kriste eleison (grego) — Piedade, Cristo!

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A ICONOCLASTIA

Nicéforo, prior do claustro de São Simeão, foi procurado por umcerto Procópio, conhecido como colecionador apaixonado e profundoespecialista da arte bizantina. Ele aguardava com impaciência eviden-te, passeando de um lado para outro no corredor transversal do mos-teiro. “Tem belas colunas — pensava. Devem ser do quinto século. So-mente Nicéforo pode ajudar-nos. É um homem influente na Corte, e jáhouve tempo em que ele também andou pintando. E até que o velhonão era dos piores pintores. Lembro-me de que chegou a entregar àimperatriz desenhos para bordados e pintou alguns ícones... Foi por issoque o tornaram abade, quando a gota deformou-lhe tanto as mãos quejá não podia mais segurar os pincéis. Dizem que até hoje a palavra deletem peso na Corte. Pelo santo nome de Deus, que capitel mais lindo!Sim, Nicéforo deverá ajudar. Sorte que nos lembramos do velho!”

— Seja bem-vindo, Procópio — pronunciou-se uma voz mansaatrás dele.

Procópio voltou-se. Um velho amistoso e seco estava parado ali,as mãos escondidas dentro das mangas.

— Um belo capitel, não é mesmo? — perguntou. — Um antigotrabalho de Naxos, meu senhor.

Procópio beijou-lhe a manga do hábito.— Padre, vim procurar-vos... — começou nervoso, mas o abade

o interrompeu.— Venha sentar-se ao sol, meu caro. O sol faz bem para a mi-

nha gota. Quanta luz, meu Deus, quanta claridade! Então, o que vostrouxe a mim? — indagou depois que se acomodaram sobre um ban-co de pedra no centro do mosteiro. Ao redor deles, revoavam abelhas,e havia perfume de sálvia, menta e incenso.

— Padre — recomeçou Procópio a sua história —, dirijo-me avós porque sois o único que podeis afastar o grave e incorrigível peri-go que ameaça a nossa cultura. Sei que terei a vossa compreensão. Soisum artista, padre. Que éreis um pintor, enquanto não fostes obrigadoa tomar sobre os ombros o peso da responsabilidade desta abadia. Que

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Deus me perdoe, mas, por vezes, lamento que não tenhais permaneci-do entre os pintores que, tantas e tantas vezes, conseguiram os maisbelos ícones bizantinos.

Em vez de responder, o padre Nicéforo dobrou as mangas de seuhábito e deixou que o sol banhasse as mãos deformadas pela gota, cujosdedos se assemelhavam a garras de pássaros.

— Ora, meu caro, não diga estas coisas — e disse somente isto.— Digo a verdade, Nicéforo — afirmou Procópio (Virgem Ma-

ria! que mãos!). — Hoje, os vossos ícones não têm preço. Há poucotempo, um judeu ofereceu duas mil dracmas por uma pintura vossa, equando o comprador não se mostrou disposto a pagar-lhe o preço, elerespondeu que esperaria, porque, em dez anos, receberia três vezes mais.

Nicéforo tossiu modestamente, e uma alegria incontida tingiu-lhe de vermelho as faces.

— Deixe para lá — murmurou. — Por favor, quem se daria aotrabalho de falar a respeito de minha obra sem importância? Ninguémprecisa dela, mesmo porque agora temos mestres festejados e reconhe-cidos como Argurópulos, Malvasias, Papadianos, Megalocastros, seilá eu quantos outros; por exemplo, como se chama aquele homem quefaz os mosaicos...?

— Pensais em Papanastasias? — indagou Procópio.— Sim, sim — resmungou Nicéforo. — Dizem que é muito res-

peitado. Eu nem sei, porque vejo mais um trabalho de artesanato empedra nos mosaicos do que uma verdadeira arte. Dizem também queesse... o... como é que se chama?

— Papanastasias?— Sim, Papanastasias. Dizem que ele é de Creta. No meu tem-

po, as pessoas olhavam com outros olhos para a Escola de Creta. Di-ziam que nem era arte verdadeira. Tem linhas por demais duras, e ascores! O senhor afirma, então, que esse homem de Creta está sendoreconhecido? Hmmm... é curioso...

— Eu não disse nada disso — defendeu-se Procópio. — Mas che-gastes a ver, padre, o último mosaico dele?

O padre Nicéforo balançava a cabeça com determinação.— Não, não cheguei a ver, meu caro. E o que veria nele? As li-

nhas, como um arame, e aquele ouro berrante! O senhor deve ter per-cebido que no último quadro o arcanjo Gabriel está tão torto comose estivesse caindo? Pois é, e esse homem de Creta dos senhores não écapaz de desenhar decentemente uma figura humana em pé!

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— Ora — protestou Procópio, com cautela —, ele pintou aque-la figura, daquele modo, propositalmente, por razões de composição...

— Muito obrigado — estourou o abade e ficou com o semblan-te aborrecido. — Razões de composição! Quer dizer que se pode de-senhar mal por razões de composição, é isso? E o próprio imperadorolha aquilo e afirma: interessante, muito interessante! O padre Nicéforoprocurava controlar-se. Meu senhor, o desenho é, antes de tudo, de-senho; é nisso que consiste toda a arte.

— Assim fala um mestre — lisonjeou, com palavras rápidas, Pro-cópio. — Guardo em minha coleção a vossa Ascensão, e devo dizer-vos que não o trocaria sequer por um Nikaon.

— Nikaon era um bom pintor — constatou Nicéforo. — EscolaClássica, meu senhor. Meu Deus, que ouros maravilhosos! Mas a mi-nha Ascensão é um quadro fraco, Procópio. Aquelas figuras inertes, eCristo, com aquelas asas, parece uma cegonha... Homem, Cristo devevoar sem asas também! É a isso que chamam de arte! — Exaltado, opadre Nicéforo assoou o nariz na manga de seu hábito. — Não adianta,naquele tempo eu ainda não sabia desenhar. Meus quadros não pos-suíam nem profundidade nem movimento...

Procópio fitou espantado as mãos do abade.— Padre, ainda estais pintando?O abade Nicéforo meneou a cabeça.— Não, não. De vez em quando, para o meu próprio prazer.— Figuras? — fugiu a palavra da boca de Procópio.— Figuras. Não há nada mais belo do que as figuras, meu filho.

Figuras humanas em pé, que parecem estar caminhando. E atrás de-las, um fundo em que — você poderia pensar — poderíamos penetrar.É uma coisa difícil, meu caro. O que sabe a esse respeito o seu — comoé que ele se chama? —, aquele artista de pedra de Creta, com aqueleespantalho semiconcluído?

— Teria muito gosto em ver vossos quadros mais recentes, Ni-céforo — disse Procópio.

— Por quê? O senhor já tem o seu Papanastias! É um excelenteartista, foi o que o senhor me disse. Vejamos: razões de composição!Sabe, se aquele espantalho de mosaico também pode ser consideradoarte, então, realmente, nem sei mais o que é a pintura. Procópio, osenhor, naturalmente, é um especialista; talvez tenha razão quando afir-ma que Papanastias é um gênio.

— Eu não disse isto — protestou Procópio. — Nicéforo, não vim

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aqui para discutir convosco a respeito de arte, mas para salvar a arte,enquanto houver tempo.

— Salvá-la de Papanastias? — indagou Nicéforo, vivamente.— Não, do imperador. Sabeis da coisa toda, não? Sua Majestade,

o imperador Constantino Coprônimo, cedendo à pressão de determinadoscírculos do clero, deseja proibir que ícones sejam pintados, porque con-sideram isso idolatria, ou algo semelhante. Que tolice, Nicéforo!

O abade baixou a cabeça.— Ouvi falar, Procópio — murmurou. — Mas nada disso é cer-

to ainda. Ainda não tomaram a decisão.— Foi por isso mesmo que vim ver-vos, padre — entusiasmou-

se Procópio. — Está claro para todos que, segundo o imperador, o casoestá revestido de um exclusivo significado político. Ele quer que a ido-latria vá para o diabo, mas deseja ter paz. Então, se nas ruas a maltao persegue, guiada por fanáticos sujos, e grita “Abaixo os ídolos!”,então o nosso imperador pensa que a solução mais prática é fazer avontade daquela multidão exaltada. Ouvistes já que os afrescos daCapela do Amor Supremo acabaram sendo danificados?

— Sim, ouvi — suspirou o abade de olhos fechados. — Que gran-de pecado, Minha Nossa! As pinturas de Stefanides, afrescos tão valio-sos! Lembra-se da figura de Santa Sofia, à esquerda do Cristo ben-dizente com as mãos erguidas? Procópio, aquela era a figura em pé maisbela que jamais pude ver. Stefanides, esse foi um verdadeiro mestre;não há sequer palavras...

Procópio aproximou-se do abade em tom suplicante:— Nicéforo, nas Leis de Moisés está escrito: Não farás para ti

imagem de escultura nem semelhança alguma do que há em cima docéu, nem embaixo na terra, nem as águas debaixo da terra. Nicéforo,teriam razão aqueles que dizem que Deus proibiu a pintura de qua-dros e fabricação de esculturas?

O abade Nicéforo, de olhos fechados, meneava a cabeça.— Procópio — suspirou pouco tempo depois —, a arte é tão santa

quanto a religião... porque glorifica a obra divina... e ensina-nos a amá-la. — Com as mãos deformadas, fez o sinal-da-cruz no ar. — O Cria-dor, então, não terá sido um artista? Ele não moldou a figura do ho-mem em argila? Não presenteou todos os objetos com contornos e cores?E que artista foi Ele, Procópio! Jamais poderemos aprender o suficien-te com Ele, Procópio... Além do mais, aquelas leis valiam apenas paraas épocas bárbaras, quando os homens ainda nãos sabiam desenhar bem.

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Procópio suspirou profundamente.— Sabia, abade, que diríeis isto — disse respeitosamente. — Como

padre, e como artista também. Nicéforo, não deixareis, não permitireisque destruam a arte!

O abade levantou os olhos.— Eu? O que posso eu fazer, Procópio? São tempos terríveis, o

mundo culto está se tornando bárbaro, vem toda espécie de gente láde Creta, e sei lá eu de onde mais... É uma coisa terrível, meu caro;mas como poderíamos impedi-lo?

— Nicéforo, se falásseis ao imperador...— Não, não — protestou o padre Nicéforo. — Não posso falar

com o imperador a respeito disso. O imperador não tem qualquer sen-sibilidade para a arte, Procópio. Ouvi dizer que, há pouco tempo, eleelogiou aquele seu... como é que ele se chama?

— Papanastias, meu padre.— Sim, aquele que desenhou os espantalhos semiconcluídos. En-

tão, ele elogiou aqueles mosaicos dele. O imperador não tem a míni-ma noção do que seja arte. E, segundo a minha opinião, Malvasias tam-bém é um mau artista. Claro, Escola de Ravenna. E, apesar disso, estávendo, confiaram a ele os mosaicos da capela da Corte! Ora, Procópio,nada pode ser feito junto à Corte. Eu não posso chegar lá, e suplicarque deixem um Argurópulos ou aquele sujeito de Creta, como é quese chama mesmo? Papanastias! Que continuem a estragar as paredes!

— Não se trata disso, meu padre — argumentou com paciênciaProcópio. — Mas, pensai bem, se os iconoclastas forem vitoriosos, des-truirão todas as obras de arte. Queimarão os vossos ícones também,Nicéforo!

O abade fez um gesto com a mão.— São uns quadros fracos, Procópio — resmungou. — Antiga-

mente, eu não sabia desenhar. Pois é, meu senhor, não aprendemos adesenhar figuras com tanta facilidade.

Mãos trêmulas, Procópio indicou uma estátua antiga que, escon-dida numa roseira, representava o jovem Baco.

— Destruirão essa estátua também — disse.— Que pecado, que pecado — murmurou Nicéforo, e fechou os

olhos com um semblante sofredor. — Chamávamos a essa estátua deSão João Batista, mas, de fato, é um Baco original, perfeito. Contem-plo-o durante horas, durante horas. É como se eu estivesse orando,Procópio.

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— Estais vendo, Nicéforo. E deixaremos destruir esta perfeiçãodivina? Permitiremos que um fanático piolhento, de voz desarticula-da, o destrua com sua marreta?

O abade continuava calado, as mãos entrecruzadas.— Podeis salvar a arte, Nicéforo — esforçava-se Procópio em

convencê-lo. — Vossa vida santa e vossa sabedoria conquistaram-vosum respeito incomensurável dentro da Igreja; a Corte respeita-vosmuito; sereis membro do Grande Sínodo, que deverá decidir se todasas estátuas e todos os ícones são, ou não, instrumento da idolatria. Meupadre, todo o destino da arte está em vossas mãos!

— O senhor exagera a minha influência, Procópio — suspirou oabade. — Aqueles fanáticos são muito fortes, têm atrás de si aquelamalta... — Nicéforo calou-se. — O senhor diz que haverão de destruirtodas as estátuas e todos os quadros?

— Sim.— Os mosaicos também?— Sim. Arrancarão das paredes e das abóbadas e atirarão as

pedras ao lixo.— Ora, ora — disse Nicéforo com evidente interesse. — Então,

arrancariam aquele arcanjo Gabriel terrivelmente malsucedido, daquelelá também, é?

— Creio que sim.— Isto é muito bom, muito bom! — alegrou-se o abade. — Ho-

mem, aquele é um quadro terrivelmente ruim. Jamais em minha vidavi uns espantalhos tão impossíveis; e ainda dizem que foi por razões decomposição! E digo-lhe uma coisa, Procópio: o mau desenho é pecadoe blasfêmia; um pecado contra o Senhor! E as pessoas ainda deveriamdobrar os joelhos diante de um quadro daqueles? Não, não! Se os ho-mens se ajoelham diante de quadros ruins, trata-se, de fato, de idola-tria. Nem me admira que o povo se revolte contra isso. O senhor temrazão. A Escola de Creta é uma heresia, e um Papanastias é pior do queos próprios Arianos. O senhor também afirma — tagarelava alegre oabade — que eles arrancariam aqueles borrões das paredes? Meu carofilho, o senhor trouxe-me boas novas. Alegra-me que tenha vindo. —Nicéforo levantou-se do banco com dificuldade, sinalizando o final daaudiência. — Faz bom tempo, não é?

Procópio levantou-se também, visivelmente arrasado e desesperado.— Nicéforo — tornou a falar —, destruirão os quadros também!

Não compreendeis que deverão queimar e destruir a arte toda?

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— Ora, ora — tranqüilizava-o o abade. — É uma pena, uma gran-de pena. Mas, se desejarmos salvar o mundo dos maus artistas, nãopodemos ver com severidade alguns exageros. O mais importante é queas pessoas não se ajoelhem mais diante de espantalhos malsucedidos,que aquele seu...

— Papanastias.— ... sim, Papanastias, que o seu Papanastias desenha. Procópio,

a infame Escola de Creta. Alegra-me que me tenha chamado a aten-ção para o Sínodo. Estarei lá, Procópio; estarei lá, nem que tenha deir carregado para lá. Não me perdoaria nem no leito de morte se dei-xasse de estar presente. Finalmente eles arrancarão da parede aquelearcanjo Gabriel — esboçou um sorriso a figura seca de Nicéforo. —Deus o abençoe, meu filho — e ergue as mãos para bendizê-lo.

— Que Deus esteja convosco, Nicéforo — suspirou Procópio,desesperado.

O abade Nicéforo afastava-se cismado, meneando a cabeça.— Infame, aquela Escola de Creta — murmurava. — Já não é

sem tempo que lhe vão fazer justiça... Meu Deus, que heresia!... AquelePapanastias... e Papadianos... Não desenham figuras, desenham ído-los, malditos ídolos — gritou Nicéforo, gesticulando com as mãosressequidas. — Desenham ídolos... ídolos... ídolos...

(1936)

NOTAS

Naxos — ilha grega famosa pelas jazidas de mármore.

Dracma — moeda grega.

Constantino Coprônimo (também conhecido como Iconoclasta; imperadorbizantino entre 751 e 775 d.C.). Empenhou-se com rigor em banir as imagens santas.O Sínodo de 754 proibiu, sob inspiração de Constantino, que imagens fossemveneradas nas igrejas. Ameaçou os religiosos desobedientes com o fechamento dosmosteiros e o casamento forçado de padres e freiras. Seus inimigos deram-lhe oapelido de Coprônimo (isto é, imundo, cagão) por ter sujado a água benta porocasião de seu próprio batismo.

Escola de Ravenna — estátuas e pinturas dos séculos V e VI, na cidade ita-liana de Ravenna.

Baco — na mitologia grega antiga, o deus do vinho.

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Sínodo — assembléia regular de párocos e outros padres, convocada pelobispo local; órgão colegiado e permanente do governo eclesiástico das Igrejas doOriente.

Arianos — membros da seita liderada por Arius (280-326 d.C.), padre nas-cido em Alexandria, considerado herege, que negava a divindidade de Cristo.

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O IRMÃO FRANCISCO

Diante de Forli, onde a estrada vai para Lugano, um frade men-dicante parou diante da oficina do ferreiro; era de estatura baixa, e osorriso amplo deixava entrever alguns dentes amarelados.

— Irmão ferreiro — disse alegremente —, Deus esteja convosco!Hoje não comi ainda.

O ferreiro endireitou-se, enxugou o suor, e teve um pensamentoqualquer a respeito dos vagabundos.

— Aproxime-se — resmungou. — Ainda devo ter um pedaço dequeijo.

A mulher do ferreiro estava grávida e era devota; queria beijar amão do frade, mas ele imediatamente escondeu ambas as mãos, e pro-testou incisivo:

— Ora, mãezinha, talvez eu devesse beijar-lhe a mão. Chamam-me de irmão Francisco, o mendigo. Que Deus vos abençoe.

— Amém — murmurou a jovem esposa do ferreiro, e foi buscarpão, queijo e vinho.

O ferreiro era casmurro; fitava o chão e nem sabia o que deveriadizer.

— De onde vem, domine? — perguntou finalmente.— De Assis — respondeu o frade. — Um bom pedaço de cami-

nho, meu irmãozinho. Não me acreditarias quantos córregos, vinhe-dos e atalhos existem no mundo. E a gente mal consegue trilhá-los to-dos; mas é preciso, meu bom homem, é preciso. Em todos os lugaresestão as criaturas de Deus, e, quando andamos entre elas, é como seestivéssemos rezando.

— Certa vez, estive em Bolonha — observou o ferreiro cismado.— Mas faz muito tempo. Sabe, domine, o ferreiro não pode carregara sua oficina.

O padre balançou a cabeça.— Bater o ferro — disse —, é como se servisses a Deus. O fogo é

uma coisa bela e santa. Meu bom homem, o fogo é nosso irmão, umacriatura viva de Deus. Depois, quando o ferro se torna dúctil e pode-

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mos moldá-lo, que maravilha, mestre ferreiro! E quando fitamos o fogo,sentimos algo como se estivéssemos diante de uma visão.

O frade abraçou as pernas com ambas as mãos, feito menino, ecomeçou a falar sobre o fogo. Sobre o fogo dos pastores, dos vinhe-dos, dos archotes, das velas e da sarça ardente. Enquanto isso, a mu-lher do ferreiro havia estendido uma toalha branca sobre a mesa, ten-do colocado ali pão, queijo e vinho. O ferreiro piscava confuso, comose estivesse fitando o fogo.

— Padre — disse a mulher calmamente —, não gostaria de co-mer algo?

O irmão Francisco partiu o pão com as mãos e levantou os olhosinterrogativos para o ferreiro e a mulher. O que vocês dois têm, admi-rou-se, por que estão tão calados e estranhos? É um casal bom, o ho-mem parece um urso, a mulher é abençoada; o que há então? Engas-gou-se com o bocado, confuso e compadecido. Com que posso alegrá-los, filhos de Deus? Deveria contar-lhes anedotas ou aventuras de via-gens? Deveria cantar e dançar para deixar esta mulher grávida contente?

Abriu-se uma fresta estreita na porta. A mulher do ferreiro co-briu a face com as mãos, empalideceu. Apareceu o focinho de um ca-chorro, submisso, olhos amedrontados.

O ferreiro irritou-se, as veias saltaram-lhe nas têmporas. Correupara a porta de punhos cerrados.

— Fora, animal maldito! — gritou, chutando a porta.O cachorro uivou e fugiu.O irmão Francisco entristeceu-se e, desconcertado, começou a

fazer bolinhas com o miolo do pão.— Ferreiro, mestre ferreiro — disse, finalmente. — Que mal vos

fez aquela infeliz criatura?Preocupado, o ferreiro voltou-se para a mulher.— Giuliana — resmungou —, então? E então?A mulher procurou sorrir, lábios trêmulos. Levantou-se, pálida

e debilitada, e saiu calada. O ferreiro observava-a aborrecido.— Meu irmão — sussurrou Francisco aflito —, por que expulsaste

aquele nosso irmão canino de sua mesa? Vou-me embora de tua casa.Nervoso, o ferreiro pigarreava.— Bem, domine, sabe, aquele cachorro... — disse áspero. — Na

Páscoa, esperávamos visita. A irmã mais nova de minha mulher. Amenina deveria vir de Forli... Ela não chegava. Duas semanas depois,os pais vieram buscá-la. Fomos procurar a menina; ela havia sumido.

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Na véspera de Pentecostes, o cachorro tinha chegado de algum lugarno campo, segurando algo na boca. Trouxe aqui, na soleira de nossaporta. Vejamos o que é isso: vísceras humanas. Mais tarde, encontra-mos o que havia restado da menina... — O ferreiro mordeu os lábiospara conter a ira. — Não sabíamos quem havia feito aquilo. Deus ha-verá de castigar o culpado. Mas este cachorro, domine... — O ferrei-ro fez um gesto com a mão. Não posso matá-lo a pauladas. Isso é opior de tudo. Expulsá-lo é impossível. Ele anda em volta da casa feitopedinte... Domine, pode imaginar que horror... — O ferreiro esfrega-va muito a face. Não consigo sequer deitar os olhos sobre esse cachorro.Ele uiva à noite diante da porta.

O irmão Francisco estremeceu.— Está vendo só? — grunhia o ferreiro. — Desculpe-me, domine,

mas eu vou ver o que houve com Giuliana.Sufocado pelo silêncio, o frade ficou sozinho no recinto. Pé ante

pé, saiu. Diante da casa, não longe dali, o cachorro amarelo, rabo entreas pernas, tremia e fitava indeciso o padre. O irmão Francisco voltou-se para o cachorro, que tentou sacudir a cauda e ganir.

— Coitado de ti — resmungou. Francisco queria tirar os olhosdo cachorro. Mas ele continuava abanando a cauda e não tirava osolhos do frade. — O que tu queres? — repetia o irmão Francisco. —Estás triste, irmãozinho, o teu destino é triste, hein? É uma coisa di-fícil. — O cachorro levantava uma e outra pata e tremia. — Ora, vai— acalmava-o o padre. — Ninguém quer falar contigo? — O ca-chorro rastejava aos pés do frade, que demonstrava repugnância. —Vai embora, vai — disse. — Meu irmão, não deverias ter feito aqui-lo. Era o corpo santo de uma menina... — O cachorro deitou-se aospés do frade e gania. Pára com isso, por favor — murmurava Fran-cisco e curvou-se sobre o animal. O corpo do cachorro ficou imóvelde impaciência.

Nesse mesmo instante, o ferreiro e a mulher saíram para pro-curar o hóspede. E o padre estava ajoelhado diante da casa, coçava aorelha do cachorro, que gemia, e sussurrava-lhe:

— Estás vendo, meu irmãozinho, estás vendo, querido, por queficas lambendo a minha mão?

O ferreiro começou a bufar. Francisco voltou-se para ele e dissereceoso:

— Sabes, mestre ferreiro, ele ficou implorando! Como se chama?— Bracco — resmungou o ferreiro.

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— Bracco — repetiu Francisco. E o cachorro saltou para lamber-lhe o rosto. O irmão Francisco levantou-se. — Agora chega, meu ir-mão, obrigado. Agora devo ir-me.

De repente, não sabia como despedir-se. Estava ali, parado dianteda mulher do ferreiro, olhos cerrados, pensando numa bênção.

Quando abriu os olhos, deparou com a mulher ajoelhada, mãospostas sobre a cabeça do cachorro.

— Graças a Deus! — suspirou Francisco e os dentes amarelosaparecem novamente em sua boca. — Que Deus vos pague!

E o cachorro, louco de alegria, rodopiava à volta do homem santoe da mulher prostada de joelhos.

NOTAS

Forli — cidade da Itália central, na província de Emilia-Romagna.

Francisco de Assis (1182-1226) — o fundador da ordem dos franciscanos.

Bolonha — antiga cidade italiana na província de Emilia-Romagna, no sopédos Montes Apeninos.

Domine (expressão latina) — senhor.

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OFIR

Os vagabundos da Praça de São Marcos mal voltaram os olhosquando os policiais conduziram o velhote para levá-lo diante do doge.Ele estava sujo e maltrapilho e qualquer um diria que se tratava de umladrão do porto.

— Este homem — disse o podestà vicegerente, diante do tronodo doge — afirma que se chama Giovanni Fialho, um mercador lis-boeta. Afirma, também, que é dono de navios e que o seu navio foiaprisionado, com tripulação e cargas, pelos piratas da Argélia. Diz, ain-da, que conseguiu fugir das galés e que poderia prestar um grande favorà República de Veneza. Que tipo de favor poderia prestar garante quesó revela, pessoalmente, a Sua Graça, o doge.

O idoso doge, vivo, com olhos de pássaro, examinava o velhotedesgrenhado.

— Então, você afirma que serviu nas galés? — indagou, finalmente.Em vez de dar uma resposta, o prisioneiro desnudou o calcanhar

imundo, mostrando os pés inchados sob grilhões.— As minhas costas — acrescentou — estão cheias de feridas e ci-

catrizes, Sua Graça. Tende a bondade de permitir-me que vos mostre...— Não, não — respondeu o doge prontamente. — Não se torna

necessário. O que é que você queria dizer-nos?O velho decrépito levantou a cabeça.— Dai navios, Sua Graça — disse em voz determinada. — Vou

conduzi-los a Ofir, ao país do ouro.— A Ofir? — resmungou o doge. — Você descobriu Ofir?— Descobri — disse o velho —, e passei lá nove meses, porque

precisamos reparar o navio.O doge trocou um rápido olhar com o seu sábio conselheiro, o

bispo de Pordenone.— E onde fica Ofir? — perguntou ao velho mercador.— A três meses de viagem daqui — explicou o marinheiro. — É

preciso contornar a África inteira e virar o leme novamente para o norte.O bispo de Pordenone inclinou-se, atento.

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— Ofir está no litoral?— Não. Fica a nove dias de viagem do litoral, à beira de um gran-

de lago, azul como safira.O bispo de Pordenone meneou a cabeça de modo quase imper-

ceptível.— E como você conseguiu penetrar naquele país? — indagou o

doge. — Dizem que Ofir está separado do litoral por montanhas e de-sertos intransponíveis.

— É isso mesmo — disse o mercador Fialho. — Não há cami-nho que conduza a Ofir. E o deserto está povoado de leões, as monta-nhas são de vidro, escorregadias como o cristal de Murano.

— E ainda assim você conseguiu transpô-los — alfinetou o doge.— Sim. Enquanto reparávamos o navio, que as tempestades da-

nificaram terrivelmente, chegaram à praia homens vestidos de branco,com roupões adornados de insígnias purpúreas, e fizeram-nos sinais.

— Eram negros? — interessou-se o bispo.— Não, Eminência. Eram brancos, como os ingleses, cabelos

longos, cobertos de pó de ouro. Eram homens muito bonitos.— Portavam armas? — indagou o doge.— Sim, lanças de ouro. Ordenaram-nos que juntássemos todos

os objetos de ferro que carregávamos e os trocassem por ouro, em Ofir.Não existe ferro em Ofir. Eles próprios fiscalizaram-nos para que le-vássemos todos os objetos de ferro: anzóis, correntes, armas, e até ospregos do navio.

— E depois, o que houve? — perguntou o doge.— Na praia, havia uns jumentos alados, umas sessenta cabeças.

Tinham asas de cisne. Chamavam-nos de Pégaso.— Pégaso — observou, meditativo, o sábio bispo. — Os antigos

gregos já tinham conhecimento disso, deixaram-nos documentos. Por-tanto, os gregos conheciam Ofir.

— Bem, eles falam grego em Ofir — declarou o velho comerciante.— Sei um pouco de grego, porque em todos os portos há um ou doisladrões originários de Creta ou Esmirna.

— São muito interessantes as notícias que você traz — murmu-rou o bispo. — E essa gente de Ofir, é cristã?

— Que Deus me perdoe — disse Fialho —, mas são tão pagãosquanto a madeira, monsignore. Eles adoram um tal de Apolo, ou seilá como é que se chama.

O bispo de Pordenone meneava a cabeça.

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— Isso coincide com as demais notícias. Parece que são descen-dentes daqueles gregos que as tempestades marítimas devem ter arras-tado para lá, depois da ocupação de Tróia. E depois, o que houve?

— Depois? — prosseguiu Giovanni Fialho. — Bem, carregamosos objetos de ferro nos jumentos alados. Três de nós — eu, um talChico, de Cádiz, e Manolo Pereira, de Coimbra — recebemos, cadaum, um jumento alado e, conduzidos pelos habitantes de Ofir, voa-mos em direção ao oriente. A viagem durou nove dias. Pousávamostodas as noites, para que os pégasos pudessem comer e beber. Nãocomem nada além de narcisos e asfódelos.

— Bem se vê que têm origem grega — resmungou o bispo.— No nono dia, avistamos o lago, azul como safira — prosse-

guiu o velho mercador. — Pousamos à beira do lago. Peixes de prata,com olhos de rubi, nadavam dentro do lago. E a areia do lago, SuaGraça, é de pérolas, do tamanho de um pedregulho. Manolo ajoelhou-se, imediatamente, e começou a recolher as pérolas. Um de nossosacompanhantes logo nos disse que a areia era de qualidade excelente,porque dela faziam cal em Ofir.

Os olhos do doge aterrorizado quase saltaram das órbitas.— Fazer cal de pérolas! Isso é um horror!— Depois, conduziram-nos ao palácio real, construído inteiro de

alabastro. Apenas a cúpula, brilhante como o sol, era feita de ouro.Ali nos recebeu a rainha de Ofir, sentada em seu trono de cristal.

— Então, uma mulher governa Ofir? — admirou-se o bispo.— Sim, Eminência. Uma mulher de beleza estonteante, parece

uma deusa.— Talvez seja uma das amazonas — comentou o bispo.— E as outras mulheres? — perguntou o doge. — Você sabe, as

outras mulheres, você me entende, elas são bonitas?O marinheiro bateu as mãos.— Ó, Sua Graça, mulheres tão belas não havia sequer em Lis-

boa, quando eu era jovem!O doge fez um gesto impaciente com a mão.— Você fala cada coisa! Dizem que em Lisboa as mulheres são

negras como gatos. Mas em Veneza, em Veneza, meu bom homem, éque havia umas mulheres... há uns trinta anos... Era como se você ob-servasse as Madonnas de Tiziano. Mas fale das mulheres de Ofir, fale!

— Majestade, sou um homem velho — explicou-se Fialho. —Mas o Manolo poderia falar-vos a respeito delas, se os muçulmanos

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não o tivessem assassinado, quando invadiram o navio junto às IlhasBaleares.

— E poderia falar muito a respeito delas? — perguntou o doge,curioso.

— Minha Nossa! — exclamou o velho marinheiro. — Ninguémiria acreditar, Majestade. Posso dizer-vos apenas que, depois de duassemanas em Ofir, quando já nos preparávamos para regressar, o Manolomal se agüentava em pé.

— E a rainha, como era ela?— Usava um cinto de ferro, e braceletes de ferro. “Dizem que

vocês têm objetos de ferro — dirigiu-se ela a mim —; faz alguns dias,mercadores árabes trouxeram-nos um pequeno carregamento”.

— Mercadores árabes! — gritou o doge, batendo com o punhosobre o trono. — Aqueles pilantras, arrancam-nos das mãos todos osmercados! Não podemos aturar isso! Afinal de contas, estão em jogoos mais santos interesses da República de Veneza! Nós é que vamosfornecer o ferro a Ofir, e não se fala mais nisto! Giovanni, dar-lhe-eitrês navios, carregados de ferro...

O bispo levantou a mão em sinal de aviso.— E depois, Giovanni, o que houve?— A rainha trocou o ferro por igual quantidade de ouro.— Seu ladrão, e você aceitou?— Não aceitei, não, Eminência. Disse a ela que o ferro não de-

veria ser pesado, mas vendido por volume.— Correto — concordou o bispo. — O ouro é mais pesado.— E ouro de Ofir, Eminência! Pesa três vezes mais do que o ouro

comum, e é rubro como a brasa. E a rainha ordenou que nos fizessemferramentas de ouro — anzóis, espadas, correntes e pregos — iguaisàquelas de ferro. Por isso é que nos detivemos ali algumas semanas.

— E para que eles precisam de ferro? — espantou-se o doge.— Porque estimam-no muito, Majestade — explicou o velho

mercador. — Fazem jóias e moedas de ferro. Eles guardam os pregosde ferro em baús, como se fosse um tesouro. Eles ficam repetindo queo ferro é mais bonito do que o ouro.

O doge deixou cair as pálpebras, semelhantes às de um peru.— Estranho, muito estranho — resmungava. — É uma coisa mui-

to estranha, Giovanni. E depois, o que houve?— Depois, carregaram o ouro sobre os jumentos alados e leva-

ram-nos de volta ao litoral pelo mesmo caminho que trilhamos para

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chegar lá. Ali, montamos o navio com pregos de ouro e levantamos aâncora com uma corrente de ouro. As velas e o cordame estraçalhados,trocamos por seda, e com brisa favorável rumamos para casa.

— E as pérolas? — disse o doge. — Vocês não trouxeram pérolas?— Em verdade, não trouxemos — disse Fialho. — Com a devi-

da licença, mas havia tantas pérolas quanta areia. Couberam apenasalgumas em nossas alpercatas, mas aqueles pagãos da Argélia toma-ram-nas, quando fomos aprisionados perto das Ilhas Baleares.

— Esta história parece muito verossímil — murmurou o doge.O bispo meneou levemente a cabeça.— E que espécie de animais vocês puderam ver? — lembrou-se

de repente. — Existem centauros em Ofir?— Não ouvi falar deles, Eminência — disse, respeitoso, o mari-

nheiro. — Mas vivem flamingos lá.O bispo fungou.— No que diz respeito a isso, você está muito enganado. Os fla-

mingos podem ser encontrados no Egito e todos sabem que eles têmapenas uma perna.

— Eles têm jumentos selvagens também — acrescentou o mer-cador. — Têm listras negras e brancas, como os tigres.

O bispo contemplou-o desconfiado.— Homem, você não está querendo enganar-nos, está? Onde é

que se viu um jumento listrado? Giovanni, estou estranhando umacoisa: você nos diz que vocês sobrevoaram as montanhas de Ofir mon-tados em jumentos alados, é isso?

— Sim, é verdade, Eminência.— Hmmm, vejamos... Segundo fontes árabes, um pássaro chamado

grifo habita os cumes das montanhas de Ofir, um pássaro com bico egarras metálicas e penas de bronze. Você não ouviu falar dele, Giovanni?

— Não — guaguejou o marinheiro.O bispo de Pordenone meneava a cabeça em sinal de dúvida.— Não se podem sobrevoar aquelas montanhas; você nos conta

isso em vão. Está comprovado que o local está infestado de grifos. Sobo ponto de vista técnico, aí está uma coisa impossível, porque os grifosengoliriam os pégasos assim como as andorinhas engolem as moscas.Meu bom homem, você não vai nos levar no bico, não! E escute aqui,seu ladrão, que espécie de árvores existem ali?

— Que espécie de árvores? — gemeu o infeliz. — Todos sabem,Eminência, que são palmas.

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— Agora eu apanhei você! — vangloriou-se o bispo. — Segun-do Bubon de Biskra, que é um especialista neste assunto, existem ro-mãs em Ofir e os frutos possuem carbúnculos no lugar das sementes.Você inventou uma história estúpida.

Giovanni Fialho prostrou-se de joelhos.— Deus é minha testemunha, Eminência. Como é que um comer-

ciante ignorante como eu poderia inventar o país de Ofir?— Não adiante você ficar falando — irritou-se o bispo. Sei bem

melhor do que você que existe um país no mundo, Ofir, a terra do ouro.Mas você é um embusteiro, mentiroso. O que você nos conta vai deencontro às fontes confiáveis; portanto, é mentira. Excelentíssimo doge,este homem é um embusteiro!

— Mais um — suspirou o velho doge, piscando preocupado. —É impressionante o número de aventureiros hoje em dia. Levem-no!

O podestà vicegerente dirigiu-lhe um olhar interrogativo.— Como de costume, como de costume — bocejou o doge. —

Deixem-no sentado, até que fique roxo; depois, vendam-no para umagalé qualquer. É uma pena — resmungou —, é uma pena que estehomem seja impostor. Muito do que ele contou parecia verdade...Talvez ele tenha ouvido isso dos árabes.

(1932)

NOTASOfir — país lendário da África, o “País do Ouro”.

Doge (do italiano doge) — Magistrado supremo nas antigas repúblicas deVeneza e Gênova.

Tiziano Vecelli (1477-1576) — pintor italiano, fundador da Escola de Veneza.

Ilhas Baleares — arquipélago espanhol na região ocidental do Mar Medi-terrâneo.

Pégaso — na mitologia grega, cavalo alado, que representava, inclusive, odom poético.

Amazonas — nas antigas lendas da Grécia, mulheres guerreiras que teriamvivido no litoral do Mar Negro e travavam guerras com os povos vizinhos.

Centauro — na mitologia grega, ser lendário, monstro fabuloso, metadehomem, metade cavalo.

Asfódelos (do grego antigo) — planta liliácea, de flores brancas, cuja raizcontém açúcar e amido; nome científico: Asphodelus albus.

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GONERIL, A FILHA DE LEAR

Não, minha ama, não tenho nada — e não me diga, minha filhi-nha querida. Sei, sim, sei que você me chamava assim, quando eu erapequenina. O rei Lear, por sua vez, chamava-me de garoto miúdo, nãoé mesmo? Ele queria um menino — você acha que os meninos sãomelhores do que as meninas? Regan, desde a infância, sempre foi umasenhorita enjoada, e Cordélia... bem, você mesma sabe... aí, solzinho,você não me deve iluminar, porque vou derreter... Uma verdadeira não-me-toques. E Regan... a gente não seria capaz de acreditar... narizempinado, como uma rainha, sempre buscando o proveito em tudo,você se lembra? Foi assim desde que nasceu. Mas, diga, minha ama,eu fui uma criança levada? Está vendo só!

O que torna a gente ruim? Sim, minha ama, sei que sou ruim.Não diga nada, sei que você também pensa assim a meu respeito. Paramim, tanto faz o que vocês pensem de mim. Está certo, sou ruim; masnaquele negócio, naquele episódio do papai, eu estava com a razão,minha ama. Por que ele tinha de enfiar na cabeça que deveria andarpara cima e para baixo com aquelas centenas de homens; bom, se aindafosse uma centena; a criadagem ia atrás dele para todos os lugares; issonão podia continuar assim. Eu teria encontrado o papai com prazer,pela minha honra, acredite-me, minha ama; eu o amava, amava-o maisdo que a qualquer outra pessoa no mundo, mas aquela centena de em-pregados, Jesus Cristo!... Faziam de minha casa um verdadeiro bordel!Você se lembra, minha ama, a todo passo a gente tropeçava num va-gabundo, aquela gritaria sem fim, aquela sujeira... Até o lixo era maislimpo do que a nossa casa, naqueles tempos. Diga-me, sinceramente,minha ama, que dona de casa aturaria isso? Ninguém conseguia dar-lhes ordens! Não davam ouvidos a mais ninguém, apenas ao rei Lear...De mim, davam risada de mim! De noite, corriam atrás das criadas;eu não ouvia outra coisa, de madrugada, além de passos, batidas àsportas, farfalhar de vestidos, gargalhadas e gemidos... O príncipe dor-mia, feito um urso; eu o sacudia, acordava, você está me ouvindo,homem? Ele resmungava apenas: deixe-os em paz, vá dormir... Ima-

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gine só, minha ama, como é que eu me sentia?! Você também já foijovem, e você consegue imaginar, não consegue? Quando fui queixar-me ao rei Lear, ele apenas ria: filhinha, você nem pode esperar outracoisa de solteirões. Tape os ouvidos, e durma.

No final das contas, precisei dizer-lhe que expulsasse da casaaqueles parasitas, pelo menos a metade deles, e você viu? ele ofendeu-se. Falou que eu era mabagradecida, e coisas assim. Você nem faz idéiacomo ele ficou furioso. Mas, afinal, quem deve saber se pode ser ounão pode ser sou eu mesma; eles, homens, ficam pensando somentena honra deles; e nós, mulheres, somos obrigadas a preocupar-nos coma casa, com a ordem. Eles nem ligariam se a casa da gente fosse seme-lhante a um estábulo. Então, minha ama, diga-me, eu não estava coma razão? Está vendo, só! E o papai ficou profundamente ofendido. Oque é que eu poderia fazer? Sei, minha ama, sei o que devo a ele; mas,enquanto mulher, tenho outras obrigações em meu lar, o cuidado coma casa! E o papai amaldiçoou-me por isso! O príncipe... ele só ficavapiscando e resmungando. Você pensa que ele disse uma palavra sequerem minha defesa? Que nada! Deixou que me tratassem como se eu fosseuma mulher ruim, mesquinha, rabugenta. Escute, minha ama, naque-le instante pareceu-me que algo havia estourado dentro de mim... eu...eu passei a odiar o meu marido. Quero que você fique sabendo: eu oodeio! Odeio! E odeio o papai também, porque ele é a causa de tudo,você me entendeu? É assim, não adianta; sou uma criatura ruim, eusei; mas sou ruim apenas porque eu estava com a razão...

Deixe de histórias; sou ruim mesmo. Você também sabe, minhaama, que tenho um amante, não é mesmo? Se você soubesse... eu nemligo se você sabe, ou não! E você acha mesmo que eu amo o Edmund?Amo nada! Mas quero vingar-me do príncipe, porque não se portoucomo homem. Odeio-o; simplesmente, odeio-o. Minha ama, você éincapaz de imaginar o que isso significa: odiar! Quer dizer que a genteé ruim, ruim, é ruim em cada pedaço de seu corpo. Quando a gentecomeça a odiar, é como se a gente se transformasse por completo.Outrora, eu fui uma moça correta, minha ama, e poderia ter sido umamulher honesta; fui criança, fui irmã, mas agora sou apenas ruim.Nem de você eu gosto mais, minha ama, e de mim... Mas eu estavacom a razão; se me tivessem dado razão naquela época, eu teria sidooutra pessoa, acredite-me...

Chorar, eu não vou chorar, não. Você nem precisa imaginar quea coisa toda me incomode. Ao contrário: a gente torna-se mais livre,

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quando odeia. Pode pensar o que quiser, não precisa assustar-se comnada. Você sabe, antigamente, eu não conseguia enxergar no meumarido que ele é antipático, nojento, barrigudo, um falso herói, queele sua nas mãos; hoje, consigo enxergar isso tudo, e também consigover que o papai, o velho Lear, é um tirano cômico, desdentado, umvelho imbecil; consigo enxergar tudo! Que Regan é uma cobra, e eu,minha ama, que eu carrego dentro de mim umas coisas estranhas erepulsivas, bem, antes nem fazia idéia disso. Isso tudo veio de repen-te. Diga, por acaso é culpa minha? Eu estava com a razão; eles nãodeveriam ter me deixado chegar a isso...

... Você não entende disso, minha ama. De vez em quando, euimagino que seria capaz de matar o príncipe, quando ele está ali, ron-cando ao meu lado. Simplesmente cortar-lhe a garganta, com uma faca.Ou matar Regan. Pronto, irmãzinha, tome um pouco de vinho. Vocêsabia que Regan quer tirar o Edmund de mim? Não que ela esteja apai-xonada por ele; Regan é uma pessoa fria como gelo. É apenas parafazer turra. E ainda ela espera que o Edmund consiga fazer desapare-cer, de algum jeito, aquele príncipe molengão e obtenha o trono de Learpara si próprio. Certamente é assim, minha ama. Regan agora estáviúva; aquela cobra teve sorte a vida inteira. Mas não se preocupe, não;ela não vai conseguir realizar o seu intento! Eu tomo cuidado, e odeio.Nem durmo para que possa ficar tecendo os meus pensamentos e omeu ódio. Se você soubesse como é possível odiar no escuro, de ma-neira maravilhosa e infinita! E quando penso que isso tudo resulta dateimosia do papai e de um pouco de desordem... Mas, veja só, justa-mente aquela desordem, nenhuma dona de casa do mundo seria ca-paz de aturar...

Minha ama, minha ama, porque é que eles não reconheceram queeu estava com a razão?

(1933)

NOTAS

Goneril — a filha mais velha do rei Lear. Tchápek apresenta uma paródia arespeito de uma das personagens da tragédia Rei Lear, de William Shakespeare.Lear, cansado dos encargos do governo, decide dividir o reino com as três filhas(Goneril, Regan e Cordélia). Goneril é casada com o duque de Albany, e Regan,com o duque da Cornualha. Ambas prodigalizam-se em demonstrações de amor

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filiar e recebem um terço do reino. Cordélia, no entanto, apesar de sentir afeiçãoprofunda pelo pai, cala-se. Furioso, Lear a manda para o exílio, inobstante osprotestos de seu fiel servidor, Kent. Esse também acaba sendo banido e Cordélia édada em casamento ao rei da França, que a aceita sem dote. Edmund, filho ilegí-timo de Gloucester, indispõe o pai, através de uma carta forjada, contra Edgar, ofilho legítimo. Goneril e Regan valem-se do comportamento desregrado dos cria-dos de Lear para expulsá-los da corte, ordenando que Kent seja espancado e acor-rentado. De nada adiantam os protestos de Lear. As irmãs também planejam ba-nir o pai. O rei é levado por Kent e pelo bobo da corte. Edmund e Regan delibe-ram punir Gloucester por tê-los traído, socorrendo Lear. Edmund apóia Goneril,que tenta convencer Albany a partir em campanha contra o rei da França, cujoexército desembarcou em Dover. Gloucester tenta justificar seu comportamento,invocando a piedade que sentiu pelo rei, homem velho, abandonado pelas filhas eque já começa a perder a razão. O duque de Cornualha arranca um dos olhos deGloucester, mas morre assassinado por um dos criados. Regan mata o assassino earranca o outro olho de Gloucester, que pede ajuda a Edmund, que acaba traindoo pai. Goneril promete a Edmund a coroa e a si própria, se ele ajudá-la a livrar-sedo marido, Albany, que a repudiou, escandalizado com sua crueldade. Cordéliarecebe a notícia de que o pai enlouqueceu e envia soldados à sua procura. Edgaracaba salvando o pai, Gloucester, do suicídio. Edmund acaba tendo Lear e Cordéliaem seu poder, enquanto Goneril e Regan disputam seus favores e o trono da In-glaterra vacila. Edmund ordena o encarceramento de Lear e de uma filha, enquantoespera que Goneril cumpra suas promessas. Mas acaba rechaçado por Albany,disposto a ser clemente com Lear e Cordélia. Edmund passa-se, então, para o ladode Regan, cujas tropas estão sem comando desde a morte do duque de Cornualha.Goneril faz a irmã ingerir veneno. Quando Edgar vinga o pai, matando Edmundem combate corpo-a-corpo, Regan morre ao lado do amante e cúmplice. Sozinhae sem esperanças, Goneril se apunhala. Lear descobre o corpo de Cordélia e, logodepois, abatido pela dor, morre também. Lear também foi transformado em ópe-ra pelo compositor alemão Aribert Reimann (nascido em 1936), com libreto deClaus H. Henneberg; a estréia ocorreu em Munique, em 1978.

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HAMLET, PRÍNCIPE DA DINAMARCA

CENA X

(Rosenkrantz e Guildenstern começam a afastar-se)

HAMLET — Um momento, meu caro Guildenstern, uma pala-vra apenas, Rosenkrantz!

ROSENKRANTZ — Ordenai, príncipe!

GUILDENSTERN — Que desejais, príncipe?

HAMLET — Uma pergunta apenas. Como havíeis dito que a re-presentação na corte, essa tragédia sobre o rei envenenado, afetou o rei?

ROSENKRANTZ — Terrivelmente, príncipe.

HAMLET — É verdade? Terrivelmente?

GUILDENSTERN — O rei estava fora de si.

HAMLET — E os demais?

GUILDENSTERN — A quem Vossa Alteza se refere?

HAMLET — A vós, é claro, e aos cortesãos e damas da corte, ea todos quantos estavam presentes na sala, durante a interpretação.Nada disseram?

ROSENKRANTZ — Nada, príncipe.

GUILDENSTERN — Estavam tão extasiados que não podiampronunciar uma única palavra.

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HAMLET — E Polônio?

GUILDENSTERN — Polônio gemia.

HAMLET — E os cortesãos?

ROSENKRANTZ — Os cortesãos soluçavam. Nem eu própriopude conter as lágrimas, príncipe, e vi que o meu amigo Guildensternescondia a umidade traidora com as mangas de sua roupa.

HAMLET — E os soldados?

GUILDENSTERN — Eles voltavam o rosto para ocultar suaenorme emoção.

HAMLET — Então credes que essa representação foi...

ROSENKRANTZ — Um êxito enorme!

GUILDENSTERN — Porém merecido...

ROSENKRANTZ — Aquela decoração magnífica!

GUILDENSTERN — E uma trama tão fluente!

HAMLET␣ — Hmmm... eu reconheceria que a obra tem lá os seusdefeitos...

ROSENKRANTZ — Perdoai, príncipe, que defeitos?

HAMLET — Por exemplo... sinto que poderia ter sido melhorinterpretada. Sei: os artistas fizeram o que podiam. Mas aquele rei delesnão foi o rei bastante, nem o assassino foi bastante assassino. Queri-dos senhores, se eu tivesse podido interpretar o assassino! Por Hécate!Aquele assassino teria sabido o que é um assassinato! Julgai vós mes-mos! (representa)

ROSENKRANTZ — Monumental, Alteza!

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GUILDENSTERN — Magistralmente representada!

ROSENKRANTZ — Dir-se-ia que — por Deus! — havíeis vistojá um dia o assassino arrastando-se em direção de seu trabalho terrível.

HAMLET — Não, Rosenkrantz, isto é inato em mim. De ondee para quê? Quem sabe? Pssst! Aproximem-se! Hamlet...

GUILDENSTERN — Sim, príncipe?...

HAMLET — ...tem o seu segredo.

ROSENKRANTZ — É mesmo, príncipe?

HAMLET — Um grande segredo! Não para cortesãos, mas paraos ouvidos dos meus melhores amigos. Aproximem-se!

GUILDENSTERN — Sim, príncipe.

HAMLET — Não, nada de príncipe!

GUILDENSTERN — Não, Alteza.

HAMLET — Hamlet apenas!

GUILDENSTERN — Como desejardes, príncipe.

HAMLET — Escutai, enfim, e guardai para vós mesmos a mi-nha intenção que já amadureceu.

ROSENKRANTZ — Qual, meu querido príncipe?

HAMLET — Quero ser ator!

ROSENKRANTZ — Deveras, príncipe?

HAMLET — Está decidido, Rosenkrantz. Amanhã sairei pelomundo afora com essa farândola. Representarei, de cidade em cida-de, essa peça sobre o assassinato do grande rei, e sobre o assassino que

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lhe ocupou o trono e o leito conjugal ainda quente. E sobre a rainhaque, apenas um mês depois de enviuvar, faz amor no leito suado eensebado com o assassino, covarde, desnaturado e ladrão, que rou-bou o império. Quanto mais penso nele, mais me atrai esse persona-gem... Poder apresentá-lo em toda a sua vileza, essa baixa e perversacriatura, serpente que infecta com a sua sarna a tudo o que toca... Oh,papel! Bastaria interpretá-lo diferentemente desse ator ambulante...Não basta, pois, ainda que faça o que pode, para tanta maldade. Podeinterpretar o bom rei, mas para criar um canalha, faltam-lhe qualida-des. Lástima de papel! Como eu o faria bem! Compenetrar-me-ia emsua alma resvaladiça, arrancando-lhe até a última gota de todo o de-senfreio humano. Que papel!

GUILDENSTERN — E que peça!

HAMLET — A peça não está má...

ROSENKRANTZ — Era magnífica!

HAMLET — Deveria ser polida e, por fim... Talvez eu volte aotema... valeria a pena. Esse rei traidor, esse monstro vil, esse caráterrepugnante, muito me agrada. Querido Rosenkrantz, desejo escreverum drama.

ROSENKRANTZ — Isso é fantástico, príncipe!

HAMLET — Hei de escrever, hei de escrever! Já tenho tantos te-mas! Minha primeira obra será a respeito desse rei canalha, e a segunda,sobre os servis e desprezíveis cortesãos...

ROSENKRANTZ — Tremendo, príncipe!

HAMLET — A terceira será uma comédia a respeito de um ve-lho e tonto camarista do rei...

GUILDENSTERN — Tema extraordinário!

HAMLET — A quarta será uma obra sobre uma donzela...

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ROSENKRANTZ — E que gênero de obra?

HAMLET — Ora, uma obra...

GUILDENSTERN — Sobre um eterno amor?

ROSENKRANTZ — Pura poesia...

HAMLET — Hamlet haverá de escrever. No trono estará um servil que ferirá as pessoas sem punhal, os cortesãos curvarão a espinha,e Hamlet haverá de escrever. Haverá guerras, o débil sofrerá mais, eo forte, menos. E Hamlet haverá de escrever. Não para levantar-se eintentar algo...

GUILDENSTERN — E o que poderíeis intentar, príncipe?

HAMLET — E como posso eu saber? O que se pode fazer con-tra os maus governantes?

ROSENKRANTZ — Nada, príncipe.

HAMLET — Absolutamente nada?

GUILDENSTERN — Bem, na História aparecem às vezes homensque se colocam à frente do povo e, com a sua eloqüência e exemplo,arrastam-no para que em luta deponha os maus governantes.

ROSENKRANTZ — Mas isso, príncipe, acontece apenas naHistória...

HAMLET — Sim, sim. Apenas na História. E dizeis que a elo-qüência pode arrastar o povo? A dor é muda. Mas há de chegar o diaem que alguém chame as coisas por seus nomes. Vede, isto é opres-são, e isto aqui, injustiça. Sobre vós todos um criminoso vil pasta, esseque se chama vosso rei, ladrão, fuleiro, assassino e mulherengo, as-sim é, não? E quem dentre vós é ainda homem e suporta esta afronta?Por que não tomais a espada e a cachamorra? Ou será que já estaiscastrados pela vergonha? Sois escravos e por isso suportais viver semhonra...?

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GUILDENSTERN — Sois eloqüente, príncipe...

HAMLET — Ah, eloqüente! Deveria, por acaso, pôr-me à fren-te... como na História... com a minha eloqüência criar voz para o povo?

ROSENKRANTZ — O povo, com certeza, tem o seu príncipeem alta conta...

HAMLET — E à frente dele, conduzi-lo e fazer cair o trono apo-drecido.

GUILDENSTERN — Por favor, príncipe, isto já é política.

HAMLET — Sensação especial... Ver-me diante de uma tarefaassim... Grato, senhores!

ROSENKRANTZ — Não queremos molestar, príncipe.

(Rosenkrantz e Guildenstern afastam-se)

HAMLET — Ser ou não ser! Eis a questão! E ser o quê? Dos céusser príncipe, verdade! Estar junto ao trono com um sorriso cortês eleal... E por que não sobre o trono? Não, lá está outro... E aguardarque morra, que coagule, no sangue negro... É assim? Não! É melhorcravar o punhal no peito traidor, e vingar a morte de meu pai. Lavara vergonha do leito de minha mãe! Por que ainda hesito? Sou por acasoum covarde sem sangue? Não, não é assim... Fixo os olhos em seu vilrosto, nesses lábios lascivos e em seus olhos esquivos, e sinto: possuo-o agora, agora eu poderia criá-lo. E ensaio às escondidas o seu papel.E que papel! Ser artista, sim. E descobriria assim todo o vergonhoso eoculto mal que esconde em seu sorridente e mordaz rosto... Atrai...atrai... Mas o seu rosto apenas reconheceriam as camadas superiores...e ninguém mais? Melhor desmascará-los para a eternidade e, com eles,a todos os seres humanos, e toda a podridão em que estão suspensosno Estado dinamarquês. Que tarefa grata! Pois sou poeta, sim! Possoescrever, portanto, uma denúncia que perdurará séculos afora, e, comoum dedo que jamais resseca, mostrar essa úlcera purulenta... Vede queeloqüência! Não seria lástima desperdiçá-la comigo tão-somente? E se,colocado na praça, chamasse ao povo, e lhe falasse... falasse... Não são

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de argila! E um homem eloqüente neles ressuscita tormentas purifica-doras contra os tiranos. Atrai-me... atrai-me... Mas, em seguida, já nãopoderia ser interpretado. Uma lástima! Que grande artista poderia euser! E sendo artista poderia depois desatar tormentas que derrubamtronos... Mas então deixaria de poder escrever as minhas outras obras...Uma lástima! Que fazer? Aos diabos! Haverei de desmascará-los emcena, ou devo eu, para a eternidade, pregá-los à porta como aos mor-cegos? Ou derrubá-los do trono com o povo exaltado? Que fazer? Ese, digamos, desejo acreditar que minha ânsia é a vingança... Por queser artista apenas para arrancar a máscara de suas carrancas? Se de-sejo representar, que seja porque o tenho dentro de mim e porque devofazê-lo. Devo criar personagens humanos, sejam bons ou miseráveis.Interpretá-los-ia melhor do que ninguém! Que papel! Ser, simplesmen-te, artista. Ou simplesmente escrever, não para vingar-me, mas parater a alegria de ver nascer palavras debaixo de minhas mãos... E porque escrever somente? Por que não falar? Ser, em resumo, orador, guiado povo, e falar, falar, como quando o pássaro trina, formosa e arreba-tadoramente, e eu próprio poderia convencer-me e acreditaria naqui-lo que digo... Assim é. Ser, por completo, nada. Esta é a palavra re-dentora! Ser ator! Ou escrever? Ou ir com o povo? Isto ou aquilo? Oh,inferno! Que hei de escolher? Que há de ser de Hamlet? Quanto con-seguiria se fosse algo! Sim, mas o quê? Eis a questão!

(1934)

NOTAS

Karel Tchápek apresenta uma versão apócrifa da famosa tragédia de WilliamShakespeare (1564-1616). O mito de Hamlet é uma antiga lenda escandinava. Noséculo XII, um dinamarquês, Saxo Grammaticus, narrou a história de Hamlet noterceiro livro de sua compilação, intitulado Historia Danica. François de Belleforest(1530-1583) publica suas Histoires Tragiques em 1576, entre as quais figura ahistória de Hamlet. Belleforest serve de base para Shakespeare, segundo tudo fazpresumir. A tragédia de Shakespeare narra a morte do rei da Dinamarca, que obrigao príncipe Hamlet a deixar os estudos na Universidade de Wittenberg e retornarpara Elsenor, onde estava a Corte. O príncipe fica entristecido ao verificar que suamãe apressou-se em casar com o tio, Cláudio, que se apossara do trono e que estálutando para que o príncipe norueguês, Fortimbrás, não invada a Dinamarca parareaver territórios perdidos. Cláudio ordena que Hamlet permaneça na Corte. Osdois únicos amigos e confidentes de Hamlet são Horácio e Ofélia, filha de Polônio,

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a quem ele ama, mas que prometera ao pai não se casar com o príncipe. Horácioe dois oficiais vão dizer a Hamlet que o espectro do falecido rei estava aparecendoentre as ameias do castelo e, num encontro com o espectro, Hamlet acaba desco-brindo a verdade: o tio assassinara o pai e ele está obrigado a vingar o assassina-to. Hamlet finge estar louco e Polônio pensa que a insanidade tenha resultado darejeição de Ofélia. O rei, contudo, não se deixa enganar e manda que Rosenkrantze Guildenstern vigiem o príncipe e descubram a verdade. Hamlet decide surpreen-der o rei, fazendo que uma companhia de atores ambulantes represente em suapresença uma peça com passagens similares à da morte do pai. Rosenkrantz, Guil-denstern e o lorde camarista não conseguem descobrir a causa da loucura de Hamlete, por isso, Cláudio resolve enviá-lo à Inglaterra, com dois espiões. A peça apre-sentada ao rei causa-lhe tanto mal que ele abandona a sala. Hamlet fica convenci-do de que o tio é o criminoso, mas não tem coragem de matá-lo. A sós com a rai-nha Gertrudes, Hamlet acaba matando Polônio por engano. A morte do pai levaOfélia à loucura. Ofélia suicida-se. Laertes, filho de Polônio, deseja vingar a mor-te do pai: briga com Hamlet no enterro de Ofélia, mas acabam sendo separadospelos assistentes. Laertes desafia Hamlet para um duelo: durante a luta, Laertesfere Hamlet com um florete envenenado, acabam trocando as armas e o príncipetambém fere Laertes. Bebendo pelo êxito do filho, a rainha toma o vinho envene-nado que Cláudio havia preparado para Hamlet. Quando estão morrendo, Ger-trudes e Laertes revelam a vilania do monarca; Hamlet mata o monstro com o floreteenvenenado. Tchápek faz uma paródia do famoso monólogo de Hamlet — que seinicia com a frase “Ser ou não ser, eis a questão!” (Ato Terceiro, Cena I);

Hécata — deusa grega, por vezes identificada com Diana e, outras vezes, comProsérpina. Como Diana representava o esplendor da noite de lua cheia, Hécatasimbolizava as trevas. Hécata, portanto, era a deusa da bruxaria, do encantamen-to; acreditava-se que vagava à noite pela terra, vista somente pelos cães, cujos la-tidos indicavam sua aproximação.

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A CONFISSÃO DE DON JUAN

A morte da infeliz Doña Elvira havia sido vingada; Don JuanTenorio estava deitado na Posada de Las Reinas com o peito trespas-sado e estava expirando.

— Enfisema pulmonar — resmungava o médico local. — Háquem consiga recuperar-se disso, mas um caballero tão vivido comoDon Juan... É difícil, Leporello; mas devo confessar-lhe que o cora-ção dele não me agrada. Hmmm! é claro, é compreensível: com tan-tos excessiones in venere — é um caso típico de astenia, meus senho-res. Sabe, Leporello, por uma questão de segurança, eu chamaria opadre; talvez ele ainda recobre a consciência, mas, segundo as conquis-tas atuais da ciência... bem, eu não sei, não. Caballeros, sou um fielservo de Vossas Senhorias...

Foi assim que Padre Jacinto tomou lugar aos pés da cama de DonJuan, e ficou esperando que o paciente recobrasse a consciência. Devez em quando, rezava por aquela alma notoriamente pecaminosa. Seeu pudesse, ao menos, salvar esse pecador dos infernos, pensava o bompadre; parece que a hora dele chegou; talvez isso lhe reduza a soberbae desperte o seu arrependimento. Não acontece a qualquer um de teràs mãos um libertino tão famoso e irresponsável; com os diabos, tal-vez nem mesmo o bispo de Burgos tenha um caso tão raro. As pes-soas começarão a cochichar, quando me virem: vejam só, ali vai o padreJacinto, aquele que salvou a alma de Don Juan...

O padre agitou-se. E fez o sinal-da-cruz; de um lado, para reco-brar-se daquela diabólica tentação de soberba ; de outro, porque sen-tiu que se cravavam nele os olhos ardentes e zombadores do moribundoDon Juan.

— Querido filho — disse o respeitável padre tão amavelmentequanto pôde —, você está morrendo. Daqui a pouco, estará se apre-sentando diante do tribunal divino, carregado com o peso de todos ospecados que cometeu durante a sua vida porca. Suplico que, pelo amorde Nosso Senhor, você se livre desses pecados enquanto ainda é tem-po. Não é correto que você parta para o outro mundo vestido com a

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sua túnica de todos os vícios e manchada com as maldades de seus feitosterrenos.

— Sim — fez-se ouvir Don Juan. —Trocarei de roupa uma vezainda. Padre, sempre levei em consideração que deveria vestir-me deacordo com as circunstâncias.

— Receio — disse o padre Jacinto — que você não me tenhacompreendido bem. Pergunto-lhe: você deseja confessar-se e arrepen-der-se dos pecados?

— Confessar-me... — repetiu debilmente Don Juan. —Denegrir-me todo?... Ah, padre! O senhor nem acreditaria que efeito isso temsobre as mulheres!

— Juan — entristeceu-se o bom padre —, deixe essas coisas mun-danas. Lembre-se de que você irá falar ao Criador.

— Sim, eu sei — disse respeitoso Don Juan. — Sei também que éde bom tom morrer como um bom cristão. Sempre levei em conside-ração aquilo que é de bom-tom, sempre que pude, padre. Primeiro, por-que sou demasiado frouxo para grandes contendas e, segundo, sem-pre foi meu método ir direto ao ponto, através do caminho mais cur-to e sem rodeios de espécie alguma.

— Sua intenção é elogiosa — concordou o padre Jacinto. — Antesde mais nada, querido filho, prepare-se bem, faça o seu exame de cons-ciência e procure despertar em si um arrependimento profundo portodas as ações más. Ficarei aguardando.

Então, Don Juan fechou os olhos e refrescou a consciência, en-quanto o padre Jacinto orava em voz baixa para que Deus o ajudassee o iluminasse.

— Estou preparado, padre — disse Don Juan após alguns mo-mentos. E iniciou a confissão.

O padre Jacinto, satisfeito, inclinava a cabeça. Parecia uma con-fissão sincera e completa. Não faltavam as mentiras, as maldições, oscrimes, os juramentos em falso, o orgulho, o engano e a traição. Defato, Don Juan era um grande pecador. De repente, ele calou-se, comose estivesse cansado, e fechou os olhos.

— Descanse, filho querido — animou-o o padre, paciente. —Logo mais, você poderá prosseguir.

— Já terminei — disse Don Juan. — Se me esqueci de algo, cer-tamente são pormenores que Deus haverá de perdoar-me.

— Como é? — gritou o padre Jacinto, indignado. — E a isso vocêchama de “pormenores”? E o que você me diz da fornicação que você

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praticou durante a vida inteira, das mulheres que você seduziu, des-sas paixões pouco limpas e indecorosas? Confesse-os, francamente,rapaz! Seu sem-vergonha! Na presença de Deus, nenhuma das açõesvergonhosas que você cometeu fica escondida. Vale mais que você searrependa de sua miséria e alivie a sua alma pecadora.

Sinais de dor e impaciência manifestaram-se no rosto de Don Juan.— Já lhe disse, padre, que eu terminei — disse obstinado. — Pela

minha honra: nada mais tenho a dizer-lhe!Naquele momento, o taberneiro da Posada de las Reinas ouviu

uma gritaria frenética no quarto do enfermo.— Deus seja louvado! — disse e fez o sinal-da-cruz. — Parece que

o padre Jacinto está expulsando o diabo do corpo do desgraçado doseñor. Meu Deus, não me agrada que coisas assim aconteçam em mi-nha pousada.

Os gritos duraram muito, o tanto quanto se demora para cozi-nhar favas. De vez em quando, apagavam-se como discussões e, ou-tras vezes, tornavam-se gritos ensandecidos. Vermelho como um pi-mentão, o padre Jacinto saiu do quarto do enfermo e, invocando a Mãede Deus, dirigiu-se à igreja. Depois, reinou silêncio na pousada. Ape-nas o entristecido Leporello deslizou para o quarto de seu amo, queestava deitado de olhos fechados e se queixava.

À tarde, chegou ao lugar o padre Ildefonso, sacerdote jesuíta, queparou na paróquia e visitou o padre Jacinto, uma vez que o dia estavaexcessivamente quente. Era um cura delgado, seco como uma lingüi-ça envelhecida e de sobrancelhas peludas como o sovaco de um velhosoldado da cavalaria.

Depois de beberem juntos leite azedo, o jesuíta fixou os olhos nopadre Jacinto, que inutilmente buscava mascarar a sua preocupação. Osilêncio era tão profundo que o zumbido das moscas parecia um trinado.

— O caso é o seguinte — contou, por fim, o desgraçado padreJacinto —: temos aqui um grande pecador que vive os seus derradei-ros momentos. Para que o senhor saiba, padre Ildefonso, trata-se dotristemente célebre Don Juan Tenorio. Teve aqui uns amores, um duelo,e sei lá eu o que mais... em resumo, fui confessá-lo. No começo, tudocorria muito bem. Confessava-se bem, é preciso reconhecer. Mas, che-gando ao sexto mandamento, não pude arrancar dele uma palavra se-quer. Ele repetia, o tempo todo, que não tinha nada para dizer-me. PelaMãe de Deus, esse sem-vergonha! Se tiver em conta o fato de que se

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trata do maior libertino de Castilha, e que não há tampouco quem oiguale em Valencia ou Cádiz... Afirmam que seduziu seiscentas e no-venta e sete jovens durante os últimos anos; destas, cento e treze reti-raram-se para um convento, umas cinqüenta morreram nas mãos dospais ou esposos, justamente enojados, e a dor partiu o coração de umasoutras cinqüenta. E agora, imagine o senhor, padre Ildefonso, que umsem-vergonha destes, em seu leito de morte, assegura, olhando-me nosolhos, que nada tem a confessar a respeito da fornicação. O que mediz o senhor a respeito disto?

— Nada — respondeu o jesuíta. — E o senhor negou-lhe a absol-vição?

— É claro! — respondeu o padre aflito. — Tudo o que disse foi emvão. Tratei de convencê-lo com palavras que teriam comovido até aspedras... Mas para esse valdevinos não há nada que adiante... Pequei pororgulho, padre, dizia-me, cometi perjúrio, tudo o que o senhor quiser...Mas isto que o senhor me pergunta, a respeito disso nada tenho a con-fessar-lhe. E sabe o senhor o que se esconde atrás disso tudo? Creio, DonIldefonso — disse o padre Jacinto, fazendo o sinal-da-cruz rapidamen-te —, creio que ele estava mancomunado com o diabo. Mas não pudeconfessá-lo a respeito disto. Era uma magia suja. Seduzia as mulherescom um poder diabólico — agitou-se o padre Jacinto. — O senhor de-veria vê-lo, domine. Eu diria que se pode ver-lhe a maldade nos olhos...

Don Ildefonso, sacerdote jesuíta, meditava em silêncio.— Se é o que o senhor acha... — disse, finalmente —, irei ver esse

homem.

Don Juan cochilava quando Don Ildefonso entrou rápido no quartoe, com um gesto, fez Leporello sair. Sentou-se logo sobre uma cadeira,à cabeceira do enfermo, e contemplou-lhe o rosto pálido e agonizante.

Depois de muito tempo, o enfermo gemeu e abriu os olhos.— Don Juan — disse o jesuíta, sossegadamente —, parece que o

señor se cansa ao falar.Don Juan fez um débil gesto de assentimento.— Não importa — prosseguiu o jesuíta. — A sua confissão, señor

Don Juan, não foi clara num ponto. Não lhe farei pergunta alguma,mas talvez o señor possa dar-me a entender que concorda ou discor-da daquilo que lhe direi... a respeito do senhor mesmo.

Os olhos do ferido fixaram-se quase com angústia sobre a faceimóvel do cura.

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— Don Juan — começou Don Ildefonso quase ligeiro —, ouvifalar a seu respeito há muito tempo. Meditei a respeito do fato de osenhor lançar-se de uma mulher para outra, de um amor para outro.Por que o senhor jamais pôde sossegar, deter-se nessa plenitude da tran-qüilidade a que nós chamamos de felicidade?

Don Juan exibiu os dentes, num gesto de dor.— De amor em amor — prosseguiu Don Ildefonso com tranqüi-

lidade —, como se o senhor desejasse, uma vez ou outra, convencer aalguém, seguramente a si próprio, de que era digno de ser adorado pelasmulheres, de que era um homem como aqueles que elas amam. PobreDon Juan!

Os lábios do ferido moveram-se... Parecia repetir as últimas pa-lavras...

— E no entanto — prosseguiu o padre, amistoso —, o senhor,Don Juan, jamais foi homem. Apenas o seu espírito era o espírito deum homem, e envergonhava-se, señor, e tratava desesperadamente deocultar que a natureza não lhe deveria ter dado aquilo com que pre-senteia a todos os seres vivos...

Um gemido infantil saiu do leito.— Por isso, Don Juan, desde jovem, o señor representou o papel

de homem, e era atarantadamente valente e aventureiro, orgulhoso evistoso, para vencer essa humilhante sensação de que havia outros me-lhores e mais homens do que o señor. Mas era tudo mentira e, por isso,señor, comprava, em vão, prova após prova. Nenhuma poderia bas-tar-lhe, porque era apenas ficção estéril... o señor jamais seduziu mu-lher alguma, Don Juan. O señor jamais conheceu o amor, esforçava-se apenas, de maneira febril, para encantar toda mulher desejável enobre com o seu espírito, com o seu cavalheirismo, com a sua paixão,criados pelo señor mesmo. O señor sabia disso, perfeitamente, porqueera puro teatro. E quando chegava aquele momento em que a mulhersente que irá desfalecer... para o señor devia ser um inferno, Don Juan,um verdadeiro inferno! porque, nesse momento, o seu orgulho febriltriunfava ao mesmo tempo em que sofria a mais terrível humilhação.E o señor precisava desligar-se dos braços que havia conquistado aoexpor a própria vida, e precisava fugir, desgraçado Don Juan, fugirdo abraço da mulher vencida... E ainda com alguma mentira formosanos lábios irresistíveis. Devia ser um inferno, Don Juan.

O ferido estava com o rosto voltado para a parece e chorava.Dom Ildefonso levantou-se.

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— Pobrezinho — disse —, o señor sentia vergonha de reconhe-cer isso tudo até mesmo na santa confissão. E, bem, o señor está ven-do só? Já conseguimos sair do apuro. Mas não posso privar o padreJacinto de seu penitente.

Mandou chamar o cura. Quando o padre Jacinto chegou, DonIldefonso disse:

— Veja, padre, ele confessou todos os pecados e caiu em pran-tos. O seu arrependimento, sem sombra de dúvida, é verdadeiro. Tal-vez possamos absolvê-lo.

(1932)

NOTAS

Don Juan Tenorio — o personagem — libertino e blasfemador, pecador,conquistador e assassino, talvez fascinante para os homens pela audácia e para asmulheres, pela reputação escandalosa — surge, pela primeira vez, na Literaturacom El Burlador de Sevilla, do espanhol Tirso de Molina (1571-1641). Depois,na peça Le Festin de Pierre (1665), de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673)— que pouco tem em comum com o original espanhol — acaba sendo introduzi-do um personagem importante, Doña Elvira. No final do século XVII, a históriajá era famosa em toda a Europa. Em 1736, o escritor italiano Carlo Goldoni (1707-1793) escreveu, em versos, Don Giovanni Tenorio o sia il Dissoluto. WolfgangAmadeus Mozart (1756-1791) compôs a ópera Don Giovanni (cujo enredo se passana Sevilha do século XVII) em dois atos, com libreto de Lorenzo da Ponte (1749-1838), cuja estréia ocorreu em 29 de outubro de 1787, no Teatro Nacional de Praga.

Leporello — na ópera de Mozart, o criado de Don Juan.

Excessio in venere (expressão latina) — devassidão sexual.

Caballero (expressão espanhola) — cavalheiro, senhor.

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ROMEU E JULIETA

O jovem nobre inglês Oliver Mandeville, que se havia detido naItália em viagem de estudos, recebeu, em Florença, a notícia de que opai, Sir William, havia abandonado este mundo. Com grande pesar elágrimas abundantes, Sir Oliver despediu-se da senhorita Magdalena,jurando-lhe que voltaria o mais cedo possível. E, depressa, acompa-nhado pelo criado, pôs-se a caminho de Gênova.

No terceiro dia de sua viagem, foi apanhado por um forte agua-ceiro, exatamente quando chegavam a uma espécie de refúgio. SirOliver deteve o cavalo debaixo de um velho olmo.

— Paolo — disse ao criado —, informe-se para saber se há poraqui algum albergue onde possamos refugiar-nos até que a chuva pare.

— No que diz respeito ao criado e ao cavalo — ouviu-se uma vozsobre a sua cabeça, — o albergue está ali na esquina; mas o senhor,cavalheiro, honraria a minha paróquia se se refugiasse debaixo do meuhumilde teto.

Sir Oliver levantou o chapéu e virou-se para a janela, de onde lhesorria um gordo e velho padre.

— Vossa Senhoria Reverendíssima — disse respeitosamente —mostra uma grande amabilidade com um estrangeiro que abandonao vosso belo país cheio de agradecimentos por todo o bem com quefoi tão prodigamente obsequiado.

— Bem, querido filho — disse o padre —, se o senhor continuarfalando por um minuto mais, molhar-se-á da cabeça aos pés.

Sir Oliver ficou surpreendido quando o reverendíssimo padre saiuligeiro para o corredor. Jamais havia visto um padre tão pequeno.Quando se inclinou para saudá-lo, teve de fazê-lo de modo tal que osangue todo subiu-lhe à cabeça.

— Deixe de vênias — disse o cura. — Sou apenas um franciscano,cavalheiro. Chamam-me de padre Hipólito. Ei, Marieta, traga salsichãoe vinho! Por aqui, senhor; a escuridão aqui é tremenda. O senhor éinglês? Dá para perceber logo! Desde que os senhores se separaramda Santa Igreja Romana, os senhores estão na Itália aos magotes. Com-

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preendo, senhor, uma questão de nostalgia. Veja, Marieta, este senhoré inglês. Pobrezinho! Tão jovem, e já é inglês... Corte do salsichão,cavalheiro, é o verdadeiro, de Verona. Digo-lhe que, para acompanharo vinho, não há nada que se iguale ao salsichão de Verona. E os bo-lonheses que fiquem lá dissecando a sua mortadela! Prefira sempre osalsichão de Verona e as amêndoas salgadas, querido filho. Como? Osenhor nunca esteve em Verona? Que lástima! De lá era o divino Ve-ronese. Também sou de Verona, cidade famosa, meu senhor. Conhe-cida como a cidade de Escalígero. O vinhozinho está agradando?

— Obrigado, padre — murmurou Sir Oliver. — Em meu país,na Inglaterra, Verona é conhecida como a cidade de Julieta.

— Ora, não me diga! — estranhou o padre Hipólito. — Mas porquê? Nem sabia que em Verona havia uma duquesa chamada Julieta...A verdade é que faz quarenta anos que não estive lá. Mas de qual Julietase trata?

— Julieta Capuleto — explicou Sir Oliver. — O senhor sabe, te-mos uma obra de teatro a respeito dela, de um tal Shakespeare. Umabela peça teatral! O senhor a conhece, padre?

— Não... Mas espere... Julieta Capuleto... Julieta Capuleto... —repetiu o padre Hipólito. — Eu deveria conhecê-la. Eu visitava os Capu-letos com o padre Lorenzo.

— O senhor conhecia o padre Lorenzo? — suspirou Sir Oliver.— E como não iria conhecê-lo! Eu era menino de coro dele. Es-

cute uma coisa: por acaso não é aquela Julieta que se casou com o condePáris? Eu a conhecia. Muito piedosa, uma senhora magnífica essa con-dessa Julieta. Seu nome de solteira era Capuleto, daqueles Capuletosque tinham um comércio de veludos.

— Não pode ser a mesma — declarou Sir Oliver. — A verdadei-ra Julieta morreu jovenzinha, e morreu da maneira mais comovedoraque o senhor possa imaginar.

— Ah! — disse o reverendo padre. — Então deve ser outra. A Julietaque eu conhecia estava casada com o conde Páris, e teve oito filhos dele.Uma esposa exemplar e honrada, meu senhor. Que Deus lhe dê umaigual! É verdade que se dizia dela que antes ela era louca por um jovemlibertino... Mas o senhor sabe, de quem não se falam coisas, não é mes-mo? A juventude é precipitada e aturdida. Mas o senhor deve ficar con-tente por ser jovem. Os ingleses também são jovens, é ?

— Também — suspirou Sir Oliver. — Ah! padre, também nosrói o fogo do jovem Romeu!

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— Romeu?! — disse o padre Hipólito e bebeu um gole. — Esseeu devo ter conhecido. Puxa vida! Não era aquele jovem frívolo, aquelejanota, aquele malandro dos Montecchios? Aquele que feriu o condePáris? Dizia-se que foi por causa da Julieta. Sim, sim. Julieta devia ca-sar-se com o conde Páris — um bom partido, meu senhor, aquele Párisera muito rico e jovem... mas Romeu meteu na cabeça que Julieta se-ria sua... Que bobagem, meu senhor — gritou o padre. — Como seos ricos Capuletos pudessem casar uma filha sua com algum Mon-tecchio fracassado! Ademais, os Montecchios eram partidários dosMântuas, enquanto os Capuletos estavam ao lado do duque de Mi-lão. Não, não. Creio que aquele assalto com tentativa de assassinatocontra o conde Páris foi um vulgar atentado político. Querido filho,a política está em tudo. É claro que, depois daquela história, Romeuprecisou fugir para Mântua e jamais retornou.

— Isto é um equívoco — conseguiu afirmar Sir Oliver. — Perdoe-me, padre, mas a coisa não foi assim. Julieta amava Romeu, mas os paisobrigaram-na a casar-se com o conde Páris.

— Sabiam o que estavam fazendo! — aprovou o velho pároco.— Romeu era um canalha e estava ao lado dos Mântuas.

— Mas antes do casamento com Páris, o padre Lorenzo deu umpó qualquer para Julieta cair numa espécie de sonho letal — continuouSir Oliver.

— Isto é uma mentira! — disse bruscamente o padre Hipólito.— O padre Lorenzo jamais teria feito coisa semelhante. A verdade éque Romeu atacou Páris na rua e fez-lhe alguns cortes. Talvez estives-se embriagado...

— Perdoe-me, reverendo padre, mas foi completamente diferen-te — protestou Sir Oliver. — A verdade é que enterraram Julieta eRomeu atravessou Páris com a espada sobre o túmulo dela.

— Um momento! — disse o pároco. — Primeiro, não foi sobre otúmulo de ninguém, mas na ruazinha perto do monumento a Escalígero;segundo, Romeu não o atravessou com a espada; fez-lhe um pequenocorte no ombro. Com os diabos, não é sempre que se consegue atra-vessar alguém com a espada... Tente o senhor, meu jovem!

— Scusi — objetou Sir Oliver. — Vi a peça no dia da estréia. Oconde Páris foi ferido no duelo e morreu imediatamente. Romeu, acre-ditando que Julieta estava realmente morta, envenenou-se sobre o ca-dáver dela. Foi assim, padre.

— Ora, meu senhor! — grunhiu o padre Hipólito. — Envenenou-

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se coisa alguma! Fugiu para Mântua, meu amigo!— Perdoe-me, padre — insistiu Oliver em seu ponto de vista.

— Vi com meus próprios olhos. Estava sentado na primeira fila! Enaquele momento, Julieta despertou e, ao ter visto o seu queridoRomeu morto, também tomou veneno e morreu junto com ele.

— Que imaginação tem o senhor, hein?! — aborreceu-se o pa-dre Hipólito. — Eu gostaria de saber quem foi que inventou estas fo-focas! A verdade é que Romeu fugiu para Mântua e a pobrezinha daJulieta, lamentando-se por ele, envenenou-se um pouquinho. Mas nãofoi nada sério, cavalheiro. Coisas de criança! Ela estava com apenasquinze aninhos! O padre Lorenzo foi quem me contou, senhor. Na-quele tempo eu era deste tamanhozinho, ragazzo, mostrava o bompadre com um palmo de altura. Levaram Julieta logo para a casa datia, em Besenzana, para que se recompusesse. Ali o conde Páris foi vê-la, com o braço na tipóia. E o senhor já sabe o que costuma acontecernesses casos! Nasceu um amor forte como um tronco. Ao final de trêsmeses, casaram-se. Ecco, signore, é assim que acontece na vida. Euestava no casamento dela com trajes de menino de coro.

Sir Oliver estava sentado todo deprimido.— Não se aborreça, padre — conseguiu dizer finalmente. — Mas,

em nossa obra teatral inglesa, é mil vezes mais bonito.O padre Hipólito bufou.— Mais bonito!... Eu não consigo entender o que o senhor vê de

bonito no fato de dois jovens se suicidarem! Uma lástima, jovem se-nhor. Digo-lhe uma coisa: é muito mais bonito que Julieta tenha secasado e tenha tido oito filhos. E que filhos, meu senhor! Como saí-dos de um quadro!

Oliver moveu a cabeça.— Isso já não é o mesmo, querido padre. O senhor não sabe o

que é um grande amor.O pequenino padre piscou, pensativo.— Um grande amor? Em minha opinião, um grande amor é quan-

do duas pessoas conseguem aturar-se durante a vida inteira... fiel eabnegadamente... Julieta foi uma senhora extraordinária, querido se-nhor. Educou oito filhos e serviu ao marido até à morte. Então em seupaís chamam Verona de “cidade de Julieta”? É uma coisa muito bo-nita da parte dos senhores, ingleses, cavaliere. A senhora Julieta, defato, era uma mulher magnífica. Que Deus a tenha em sua glória!

O jovem Oliver venceu o encantamento.

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— E o que houve com Romeu?— Romeu? Não sei muito bem... Ouvi falar alguma coisa, mas...

Ah, sim! lembro-me... Enamorou-se em Mântua pela filha de um mar-quês qualquer... como é que se chamava? Monfalcone, Montefalco,alguma coisa assim... Ah, cavaliere, aquilo foi o que o senhor chamade grande amor! Creio que ele a raptou, uma coisa parecida... Umahistória muito romântica, mas esqueci os pormenores. O senhor sabe,isso aconteceu em Mântua. Mas devia ser uma paixão ímpar, uma pai-xão extraordinária, senhor. Pelo menos é o que diziam. Bem, meusenhor, parou de chover.

Sir Oliver levantou-se com toda a sua altura perplexa.— O senhor foi muito amável. Thank you so much. Posso per-

mitir-me deixar algo para a sua... pobre paróquia? — murmurou en-rubescido e escondendo debaixo do prato um punhado de zecchini.

— Bem, bem... — disse o assustado padre Hipólito sacudindo asmãos. Deixe disso, tanto dinheiro por um pouco de salsichão de Verona!

— Algo também pela história que o senhor contou... — acres-ceu o jovem Oliver rapidamente. — Foi... foi muito... muito... nem seicomo dizer-lhe. Very much, indeed.

O sol refletia-se sobre a janela da paróquia.

(1932)

NOTAS

O Autor faz uma paródia da conhecida tragédia de William Shakespeare,Romeu e Julieta. No entanto, a tragédia dos dois amantes é considerada verídica,citando-se mesmo como tendo-se passado nos primeiros anos do século XIV. Apesardisso, o tema é muito antigo. Na peça de Shakespeare, tudo começa em Verona,onde duas poderosas famílias — os Capuletos e os Montecchios — eram inimigasde morte, viviam em constantes guerras. Romeu, filho de Montecchio, vivia abis-mado em seu amor pela jovem Rosalina. Seu parente, Benvolio, aconselha-o a es-quecer o objeto de seus amores e recomenda-lhe que vá ao baile dos Capuletos,disfarçado. Penetra da casa dos inimigos e sente-se logo atraído por uma jovemde extrema formosura, Julieta, filha de Capuleto, que também se sente atraída. Con-seguindo penetrar no jardim dos Capuletos, o apaixonado Romeu ouve a confis-são de Julieta que, não podendo fazê-la pessoalmente ao amado, conta às estrelasa sua paixão. Romeu revela sua presença a Julieta e, dominados pela paixão, re-solvem casar-se. No dia seguinte, o enlace é realizado na cela de frei Lorenzo, porqueo franciscano, amigo de Romeu, acredita poder selar a paz entre as famílias comaquele casamento. Retornando da cerimônia de casamento, Romeu encontra seus

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amigos Benvolio e Mercúcio em briga com Teobaldo Capuleto, que estava à pro-cura de Romeu para tomar-lhe satisfação por sua ingerência no baile. Teobaldodesafia Romeu, que não responde à provocação, lembrando-se de que estava napresença de um parente da esposa. Mercúcio não compreende a fraqueza de Romeu,aceita o desafio e acaba sendo morto. Assim, Romeu também mata Teobaldo. Opríncipe bane o infrator da lei, que se refugia na cela de frei Lorenzo, onde recebeum anel de Julieta com o aviso de que deveria ir vê-la naquela noite. Romeu assimo faz e, com o nascer do dia, foge para Mântua. Os pais de Julieta, vendo-lhe aaflição, pensam tratar-se de dor pela morte do primo e decidem casá-la com Páris,primo do príncipe Escalo. Desesperada, Julieta procura Lorenzo, que a aconselhaa fingir aceitar o casamento e dá-lhe um remédio que, depois de ingerido, a fariaparecer morta. A família, acreditando que Julieta realmente estivesse morta, iriacolocá-la na tumba dos Capuletos, onde Romeu poderia encontrar-se com ela.Julieta aceita o plano de Lorenzo, toma o remédio, cai em estado de letargia e osCapuletos promovem o enterro da jovem. A carta de frei Lorenzo, relatando o planoa Romeu, não chega a seu destino. Romeu descobre a morte de Julieta através deoutra fonte e decide arriscar a vida. Compra um veneno mortal e volta para Verona.Chegando ao túmulo dos Capuletos, encontra-se com Páris que lá fora colocar floresno túmulo de sua noiva. Romeu mata Páris, bebe o veneno e morre diante do cor-po de Julieta, a quem julga morta. Quando frei Lorenzo chega e acorda Julieta,ela descobre, horrorizada, o esposo morto. Apanhando a espada suja de sangue,que Romeu deixou caída no chão, Julieta suicida-se com a arma do amado. En-tram as duas famílias e frei Lorenzo relata o sacrifício dos dois amantes em fun-ção do ódio entre os Capuletos e os Montecchios. Arrependidos, apertam as mãosjurando esquecer para sempre as diferenças entre as duas Casas. O compositorfrancês Charles François Gounod (1818-1893) compôs uma ópera, em cinco atos,intitulada Roméo et Juliette, com base em Shakespeare; a estréia ocorreu em Pa-ris, em 1867.

albergo (italiano) — hotel, pousada.

Paolo Veronese (1528-1588) — pintor italiano, nascido em Verona; seuverdadeiro nome era Paolo Cagliari.

zecchino (italiano) — moeda de ouro veneziana.

Verona — a cidade dos Scaligeri; a cidade mais antiga do nordeste italiano,às margens do rio Adige; de 1260 a 1397, a família Della Scala governou em Verona.

Scusi (expressão italiana) — perdão, desculpe.

Ragazzo (italiano) — rapaz, jovem.

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O SENHOR HYNEK RAB DE KUFCHTEIN

O senhor Iánek Khval de Iánkov mal conseguia recobrar-se dagrande surpresa. Vejam só, por favor, o genro dele apareceu, assim,sem mais nem menos, e que genro: perneiras alemãs, bigodes à modahúngara, um grande cavalheiro, isso sim; o velho senhor Iánek, ao ladodo genro, ainda estava de mangas arregaçadas depois de ter ajudadouma vaca a parir. Que bela encomenda, pensou o velho, perplexo; porque diabos ele veio?

— Beba, senhor Hynek — oferecia ardoroso. — É apenas um vinholocal; faz cinco anos que um judeu o trouxe de Lítomeritze. Em Praga,naturalmente, os senhores tomam apenas vinho cipriota, não é mesmo?

— Bebemos toda espécie de vinho — respondeu o senhor Hynek.— Mas devo dizer-lhe, meu sogro, nada como um bom vinhozinhotcheco! E uma cervejinha tcheca! As pessoas não têm a mínima idéiade todas as coisas que nós temos, e ficam comprando essas porcariasestrangeiras. O senhor, por acaso, acha que pode vir alguma coisa boado estrangeiro?

O velho meneou a cabeça.— E que malditos preços eles querem!?— Mas isso é natural — disse o senhor Rab, entre dentes. Veja-

mos, por exemplo, os impostos que pagamos. Sua Majestade real en-gorda os bolsos, e nós que os paguemos! — O senhor Hynek pigarrea-va, nervoso. — O importante é que os cofres dele estejam cheios...

— Pódiebrad?— Sim, aquele tampinha — concordou o senhor Hynek. — Pare-

ce o dono de um armazém. Belo reizinho temos nós, hein? É, mas nin-guém perde por esperar, meu sogro. Devem acontecer mudanças até porrazões econômicas. Aqui em Iánkov as coisas também andam mal?

O senhor Iánek ficou sério.— Sim, meu filho, muito mal, muito mal. As vacas estão mor-

rendo, embora estejamos defumando os estábulos. E nem o diabo sabepor que os cereais dos camponeses ficaram queimados. Ano passado,caiu granizo... Vai mal para os camponeses. Pense bem, senhor Hynek,

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eles sequer têm sementes para plantar; eu precisei repartir com eles asminhas sementes...

— Repartir? — estarreceu-se o senhor Rab. — Meu sogro, eu nãofaria uma coisa dessas. Ficar agradando aquela ralé? Quem não con-seguir sobreviver, que morra. Que morra — repetiu o senhor Hynekcom palavras duras. — Hoje em dia, meu sogro, precisamos de mãosde ferro. Nada de esmolas e ajuda! É preciso amolecê-los. Virão ain-da tempos muito piores. É melhor que os mendigos se acostumem aum pouco de miséria. Eles que comam casca de árvores e coisas pare-cidas. Eu não daria coisa alguma a eles, mas diria simplesmente o se-guinte: seu bando de mendigos, camponeses fedorentos, e assim pordiante. Será que vocês acham que não temos nada mais importante queas tripas de vocês? Hoje vocês todos devem estar preparados para ter-ríveis sacrifícios. Devemos pensar em defender o nosso reino e nadamais. Diria sim, meu bom sogro. Vivemos tempos difíceis, e quem nãoestiver pronto para dar a vida pela pátria deve morrer. É isso. — Osenhor Hynek tomou outro gole. — Enquanto eles forem capazes demanter-se em pé, devem exercitar-se em armas, e bico fechado!

O velhote de Iánkov esbugalhou os olhos ao fitar o genro.— Mas... mas... — gaguejava — não me vá dizer que, Deus nos

livre e guarde! que teremos guerra!?O senhor Hynek sorriu.— Claro que sim! É preciso que tenhamos guerra! Vai me dizer

que teremos paz em vão? Sim, meu senhor, quando se tem paz, sabe-se que alguma coisa está sendo preparada. Faça-me um favor, dissecom desprezo, isso até o nosso rei sabe! Rei pacífico, riu-se o senhorRab. Claro, ele tem medo pelo trono. Não seria estranho se levassetrês travesseiros para sentar-se sobre o trono.

— Quer dizer, Pódiebrad? — indagou confuso o senhor Iánek.— E quem mais? Meu senhor, temos um governante e tanto, que

coisa! Ele é todo paz! Cheio de missões e coisas parecidas. Claro, issorepresenta dinheiro! Agora foi se arrastar até o rei polaco, em Khlák-hovetz, para firmar aliança contra os turcos. Anda léguas para encon-trar-se com o rei polaco, faça-me um favor! E o que o senhor me diz?

— Bem... — dizia o senhor Iánek, temeroso —, fala-se muito hojeem dia sobre os turcos.

— Bobagens — protestou, enérgico, o senhor Hynek Rab. — Vaime dizer que o rei tcheco precisa fazer vênia ao rei polaco? Uma ver-gonha! — gritou o senhor Hynek. — Deveria ter esperado que o rei

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polonês viesse encontrá-lo! Foi a isso que chegamos, meu senhor. Oque diriam a esse respeito o finado rei Karel ou o rei Sigismundo? Na-queles tempos, tínhamos um pouco de prestígio internacional... — Osenhor Rab cuspiu. — Fico admirado que nós, tchecos, admitamos umahumilhação destas.

Notícias desagradáveis, aborreceu-se o senhor Iánek Khval. E,afinal de contas, por que ele conta isso tudo para mim? Como se eu jánão tivesse os meus problemas...

— Ou então essa outra coisa — continuava a discursar o senhorRab —: ele manda uma delegação a Roma, para que o papa o reco-nheça, e assim por diante. E manda recados, todo submisso, entendeu?Diz que é para haver paz entre as nações cristãs, e assim por diante. Éde parar o cérebro da gente! — O senhor Rab deu um tremendo mur-ro na mesa e quase derrubou a taça. — O velho Sigismundo deve es-tar dando pulos dentro do túmulo! Pelo amor de Deus, quem é que jáviu uma coisa dessas? Negociar com o papa? Será que foi por isso quederramamos o nosso sangue, nós, hussitas, hein? Para vender-nos aopreço das sandálias do papa?

E você, por que fica se aborrecendo, pensou o velho, enquantopiscava distraído. Onde foi que você derramou o seu sangue, homem?O seu finado pai veio para o país com Sigismundo... Foi, sim; depoiscasou-se em Praga. Ele assinava o nome como Joachim Khanes Rab.Um homem correto, sem dúvida; conheci-o bem; um alemão sensato.

— E ele ainda pensa — prosseguiu o senhor Hynek Rab — que estáfazendo sei lá que grande politicagem! Da última vez, ele mandou os seuspalhaços para a França, diante do rei francês. E agora fica dizendo quese torna necessário agregar todos os reis cristãos para uma reunião pan-européia ou coisa que o valha. Para que resolvam as suas disputas empaz, e assim por diante. E para que se unam contra os turcos, para quefirmem uma paz duradoura entre si, e outras bobagens. Diga-me, meusogro: o senhor já ouviu tantas bobagens? Por favor, quem seria tão obtu-so a ponto de solucionar pacificamente as suas disputas, se elas podemser resolvidas com a guerra? E ainda permitir que algum país se meta emseus assuntos, se pretende declarar guerra? Digo-lhe: bobagens! O mundointeiro ri-se dele. Agora, imagine só, meu sogro, o quanto um passo tãomal dado nos compromete diante do mundo! Parece que estamos commedo, pelo amor de Deus, medo de que uma guerra nos venha atingir...

— Bem, mas haverá guerra? — indagou preocupado o senhorIánek. O senhor Hynek Rab de Kufchtein assentia com a cabeça.

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— O senhor pode apostar que sim! Veja só, meu sogro: estãocontra nós os húngaros, os alemães, o papa e a Áustria. Se eles estãocontra nós, não há problema algum; é preciso atacá-los antes que elesse unam. Começar a guerra já, e pronto. É assim que se faz! — de-clarou o senhor Rab e, com um movimento decidido, arrumou oscabelos.

— Então é tempo de fazer preparativos — resmungou, sisudo, osenhor Iánek Khval. — É bom ter reservas.

O senhor Hynek Rab aproximou-se dele, confidente, sobre amesa.

— Eu teria, meu senhor, um plano muito melhor: associar-se aosturcos e aos tártaros! Isso é política, não? Entregar a Polônia e a Ale-manha aos tártaros; eles que destruam tudo e queimem tudo. Melhorassim, entendeu? E presentear a Hungria, a Áustria e o papa aos turcos.

— Mas dizem que os turcos são piores que os animais — rosnouo velho.

— Mas é disto que nós precisamos — concordou o senhor Hynek.— Isso colocaria a todos eles nos eixos. Nada de rodeios e, como éque se diz, mesmo? nada de sentimentos cristãos! Trata-se de uma sim-ples questão de poder. E a nossa nação, meu senhor... Vou dizer-lheuma coisa: o nosso país não se assusta com sacrifício algum; mas épreciso que outros se sacrifiquem, entende? Não é preciso sustentarninguém, como dizia o nosso Sigismundo. É preciso voltar-se contratodos, e assim por diante. Se tivéssemos um daqueles verdadeiros nos-sos! Bastaria agitar os nossos velhos porretes tchecos!

O senhor Iánek Khval de Iánkov acenava com a cabeça. Precisofazer alguns preparativos, pensava. Quem sabe o que vai acontecer?O velho senhor Rab era um homem inteligente, embora os alemães se-jam um pouco apalermados. Ele veio do Tirol. Quem sabe, o Hynektenha conservado ainda um pouco de juízo, pensou o velho; em Pra-ga, as pessoas sabem de muitas coisas... O mais importante agora ésecar forragem. Na guerra, eles precisam de forragem.

O senhor Hynek Rab de Kufchtein balançava, contente, a mesa.— Meu sogro, o senhor verá, viveremos até lá! À sua saúde! Ei,

rapaz, venha cá com esse jarro! Mais vinho! Não está vendo que o meucopo está vazio? Ao sucesso de nossos negócios!

— À sua saúde — disse o velho Iánek, educadamente.

(1933)

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NOTAS

Hynek — Inácio.

Jorge Pódiebrad (1458-1471) — rei tcheco, continuador da tradição hussitaem seu país, um dos vultos mais importantes da História tcheca; sua política eramuito semelhante à do rei húngaro, contemporâneo, Mátyás Hunyadi, cuja filha,Katalina, Podebrad acabou desposando.

Sigismundo Korybutóvitch — escolhido, em 1436, para rei tcheco; gover-nou até o ano seguinte.

Karel IV (rei tcheco que governou entre 1346 e 1378) — fundou, em 1347,o Mosteiro de Emaús, em Praga; desempenhou papel importante nas tentativasempreendidas pelo papa Clemente VI para que o imperador da Sérvia, Stefan Du-chan, o Forte, fizesse a Igreja Ortodoxa da Sérvia unir-se à Igreja Romana para,assim, consolidar uma aliança de nações cristãs contra o crescente avanço dos turcosno sudeste europeu; as conquistas turcas começaram nas possessões bizantinas daÁsia Menor e, devido a uma disputa pelo trono de Constantinopla, após a mortedo imperador Andrônico III, João Cantacuzeno proclamou-se imperador (1341),recorrendo ao auxílio de mercenários turcos.

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NAPOLEÃO

Mademoiselle Claire (da Comédie Française) estava quieta; sabiaque o imperador, às vezes, ficava pensativo e não apreciava que o per-turbassem. Além do mais, cá entre nós: conversar com ele a respeito dequê? Afinal, ele é um imperador, e a gente não se sente muito à vonta-de, não é mesmo? (E, apesar de tudo, ele é um estrangeiro, pensava Ma-demoiselle Claire; pas très Parisien.) Assim, ao lado da lareira, ele pa-rece bastante atraente. (Claro, se não fosse tão atarracado.) (Là, là, elenão tem pescoço; c’est drôle.) (Sabem, bem que ele poderia ser maiseducado!)

O pesado relógio de mármore trabalhava sobre a lareira. Amanhã,pensava o imperador, devo receber os emissários das cidades — umabobagem; mas o que fazer? certamente virão reclamar dos impostos.Depois, virá o embaixador austríaco — com aquelas velhas histórias!Depois, deverão apresentar-se os novos presidentes das cortes — devoler, antes, onde cada um servia; as pessoas gostam que a gente saiba algoa respeito delas. O imperador contava nos dedos. Algo mais? Sim, oConde Ventura, fofocar sobre o papa... Napoleão reprimiu um bocejo.Meu Deus, que chatice! Deveria mandar chamar aquele... como é quese chama? aquele homem esperto que retornou agora da Inglaterra? Afi-nal, como é que o sujeito se chama? porco! ele é o meu melhor espião!

— Sacrebleu! — gritou o imperador. — Como é que o sujeito sechama?

Mademoiselle Claire sentou-se, e permaneceu calada.Tanto faz como ele se chama, pensou o imperador. Mas as notí-

cias que ele me traz são excelentes. Um homem útil aquele... aquele...maledetto! Que coisa boba! a gente não se lembrar de um nome... Eeu, que tenho boa memória para nomes! admirou-se o imperador.Quantos milhares de nomes eu tenho guardados em minha cabeça?quantos dos soldados eu conheço pelo nome? Aposto a minha cabeçaque consigo lembrar-me do nome dos meus colegas de classe, daque-les que cursaram a Escola de Cadetes comigo, e até do nome dos meusamigos de infância. Espere um pouco! Era o Tonio, conhecido como

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Biglia, Francio aliás Riccintello, Tonio Zufolo, Mario Barbabietola,Luca conhecido como Peto (o imperador sorriu), Andrea conhecidocomo Puzzo ou Tirone. Lembro-me de todos, pelos nomes, repetia oimperador, e agora, nem por um acaso eu... tonnerre!

— Madame — disse o imperador, pensativo —, a senhora tam-bém possui uma memória tão estranha? A gente consegue lembrarexatamente dos colegas de infância, mas não consegue descobrir onome do sujeito com que falou há um mês.

— É exatamente assim, sire. É estranho, não? — MademoiselleClaire tentou rememorar o nome de algum conhecido de sua infân-cia; não conseguiu lembrar-se de ninguém. Lembrou-se apenas do pri-meiro amante. Um certo Henry. Sim, o seu nome era Henry.

— É estranho — resmungou o imperador enquanto fitava o fogoda lareira. — É como se tivesse cada um deles diante de mim: Gamba,Zufolo, Briccone, Barbabietola, o pequeno Puzzo, Biglia, Muttaccio,Mazzasette, Beccajo, Ciondolone, Panciuto... Éramos uns doze, unsrapazes levados, Madame. Chamavam-me de Polio, il Capitano.

— Simpático — declarou Mademoiselle Claire. — Éreis o capi-tão deles, sire?

— Claro que sim! — respondeu o imperador ainda envolto emseus pensamentos. — Capitão dos bandidos ou dos gendarmes, con-forme as circunstâncias. Eu os chefiava, sabia? Certa feita, mandei en-forcar o Mattaccio, por desobediência. O velho guarda Zoppo foi quemcortou a corda, no último momento. Naquele tempo, governávamosde outro modo, Madame. Um capitão como eu era senhor absolutodos homens... Tínhamos um grupo inimigo, cujo chefe era um tal Zani.Mais tarde, realmente tornou-se chefe de um bando, na Córsega. Man-dei fuzilá-lo, faz três anos.

— Percebe-se — observou Mademoiselle Claire — que VossaMajestade já nasceu para ser líder.

O imperador sacudiu a cabeça.— A senhora pensa assim? Naquele tempo, como capitão, sen-

tia o meu poder de forma muito mais sólida. Governar, Madame, nãoé o mesmo que comandar. Comandar sem hesitar ou sem questionar,sem levar em conta as conseqüências possíveis... Madame, a partesoberana naquilo tudo era o fato de que era apenas um jogo, de queeu sabia que era tudo apenas um jogo...

Mademoiselle Claire adivinhou que agora seria melhor manter-se calada; um dia isso ser-lhe-ia creditado.

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— Mas hoje, hoje ainda — prosseguiu o imperador, falando maisou menos para si próprio — muitas vezes lembro-me: Polio, é claroque tudo é um jogo! Chamam-me de sire, chamam-me de Vossa Ma-jestade, porque agora é este o jogo que nós estamos jogando. Os sol-dados em posição de sentido, os ministros e embaixadores que se cur-vam até o chão — tudo isso é um jogo. E ninguém cutuca o seu vizi-nho, ninguém se põe a rir... Quando éramos crianças, também brin-cávamos assim, seriamente. Isso faz parte do jogo, Madame: fazer deconta que tudo é verdade...

O relógio de mármore batia as horas sobre a lareira. O impera-dor é um homem singular, pensava Mademoiselle Claire insegura.

— Talvez eles pisquem uns para os outros, atrás das portas fe-chadas — disse ele, absorto. — E talvez sussurrem uns aos outros: essePolio é um gozador; finge ser o imperador como nenhum outro; nãofranze sequer as sobrancelhas... não fosse um jogo, você juraria queisso tudo é sério! — O imperador bufou como se estivesse rindo sozi-nho. — É engraçado, não é, Madame? E eu fico observando a todoseles para rir antes deles, se se cutucarem. Mas eles nem se movem. Àsvezes, tenho a impressão de que eles estão todos combinados, que de-sejam enganar-me. Sabe por quê? para que eu possa acreditar que nadadisso é um jogo e para que, assim, eles possam rir-se de mim: Polio,Polio, agora te apanhamos! — O imperador ria silencioso. — Não, essanão! A mim, eles não apanham! Eu sei aquilo que eu sei...

Polio, repetia para si Mademoiselle Claire. Se ele for delicado,vou chamá-lo assim. Polio. Mon petit Polio.

— Perdão? — indagou o imperador incisivo.— Nada, sire — escusava-se Mademoiselle Claire.— É porque tive a impressão de que a senhora teria dito algo.

— O imperador inclinou-se em direção do fogo. — É estranho, nãoobservei ainda entre as mulheres, embora com os homens seja fre-qüente. No fundo de suas almas, permanecem uns meninos. Realizamtantas coisas ao longo de suas vidas, porque, em verdade, continuambrincando. É por isso que fazem as coisas com uma concentração tãoapaixonada, porque, afinal de contas, tudo é um jogo. A senhora nãoacha? Pode, afinal, alguém ser imperador seriamente, pode? Eu sei quetudo não passa de comédia.

Silêncio.— Não, não, não — resmungava o imperador. — Não acredite

nisso. Às vezes, a gente não tem certeza, sabe? Às vezes, a gente se

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assusta: afinal, eu continuo sendo o pequeno Polio, e tudo isso é as-sim mesmo, não é isto? Mon Dieu, se um dia isso estourar! É essa acoisa toda, que a gente não pode ter certeza jamais... — O imperadorlevantou os olhos e fitou Mademoiselle Claire. — É somente em rela-ção a uma mulher, Madame, somente no amor é que se pode ter cer-teza de que... que... que não se é mais criança, porque então é possí-vel saber que se é um homem, com os diabos! — O imperador levan-tou-se de um salto. — Allons, Madame!

Repentinamente ele estava muito arrebatado e desapiedado.— Ah, sire — suspirou Mademoiselle Claire —, comme vous êtes

grand!

(1933)

NOTAS

Comédie Française — teatro nacional francês, em Paris, fundado em 1600.

Pas très Parisien (expressão francesa) — não muito parisiense.

C’est drôle (expressão francesa) — isso é muito engraçado.

Maledetto (expressão italiana) — maldito, desgraçado.

Sire (expressão francesa) — Majestade.

Tonnerre (expressão francesa) — raios!

Comme vous êtes grand! (expressão francesa) — como sois grande!

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COLEÇÃO LESTEdireção de Nelson Ascher

Europa Oriental? Europa Centro-Oriental? Europa??? Para Metternich,arquiteto do Império dos Habsburgos no século passado, a Ásia começava naLandstrasse, ou seja, a Europa terminava em Viena. Não é diferente a opinião,150 anos depois, do poeta russo Joseph Brodsky que chama essa região de ÁsiaOcidental. Phillip Roth, olhando-a, nos EUA, de uma distância considerável,prefere a expressão “Outra Europa”. Na curiosa terminologia de seus habi-tantes, “europeu” é um elogio, e “asiático”, a pior das ofensas. Mas não é aúnica, pois, dependendo de sua localização geográfica, cada país, povo, etnia,grupo lingüístico, aldeia, vilarejo ou quarteirão vê seu vizinho, a oeste, comoum bárbaro teutão, a leste, como um selvagem ou, na melhor das hipóteses,um bizantino, ao norte, como um eslavo, ou pior, um balto ou, pior ainda,um fino-ugriano que fede a peixe, e, ao sul, como um incurável balcânico.

Se desgraças, catástrofes, hecatombes, holocaustos (no sentido antigo emoderno), massacres, sofrimento e todos os outros termos passíveis de inclu-são nesse paradigma formam matéria-prima privilegiada da literatura, as ri-quezas, por assim dizer, poéticas da referida região são absolutamente ines-gotáveis. O fim do comunismo pode ter condenado à obsolescência a melhormetade de todas as piadas, aquelas que diziam respeito ao Império Soviético,mas cabe lembrar pelo menos uma delas. Num congresso da Academia deCiências da URSS surge uma questão difícil: saber se Lênin havia se compor-tado como um político ou como um autêntico cientista; o debate prosseguesem solução até que o camarada Rabinovitch (o judeu arquetípico desse tipode humor) aparece com a resposta correta, ou seja, a de que Lênin era de fatoum político, pois se tivesse sido um cientista teria experimentado antes comratinhos brancos.

A Europa Centro-Oriental foi conspicuamente a cobaia de um experi-mento social que hoje podemos seguramente qualificar de insano segundoqualquer critério, mas sua vocação laboratorial não é exatamente nova e tal-vez tenha começado bem antes, digamos, da devastação tártara do século XIII.Isso impôs à sua literatura uma amplitude nada invejável de interesses huma-nos ou, mais propriamente, desumanos, bem como a perícia necessária paratransformá-los em arte, fosse pró, contra ou muito pelo contrário. Volta e meiaa região volta a ser não apenas o coração da Europa (como Norman Davieschamou a Polônia) ou seu umbigo (como George Konrád denominou a Hun-gria), mas o verdadeiro centro do mundo: basta lembrar que, ao menos geo-graficamente, nem Sarajevo mudou de lugar desde 1914, nem Danzig/Gdásko fez depois de 1939. As respostas que autores estranhos de nomes impro-nunciáveis forneceram para essas questões podem servir para repensarmos asnossas próprias.

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COLEÇÃO LESTE

István ÖrkényA exposição das rosas

Karel TchápekHistórias apócrifas

A sair:

Dezsö KosztolányiO tradutor cleptomaníaco

Sigismund KrzyzanowskiO marcador de páginas

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ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM SABON PELA

SCRITTA OFICINA EDITORIAL E IMPRESSO PELA

EDITORA PARMA EM PAPEL PÓLEN 70 G/M 2

DA CIA. SUZANO DE PAPEL E CELULOSE PARA

A EDITORA 34, EM NOVEMBRO DE 1994.