Karú, terra fértil, homem forte.

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Apresentação para qualificação da dissertação: Karú, terra fértil, homem forte - pesquisa desenvolvida pelo mestrando Leonardo Lima da Silva na linha de processos artísticos contemporâneos com orientação da Profa. Dr Nara Beatriz Milioli no programa de pós-graduação em Artes Visuais no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina - PPGAV - CEART -UDESC

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Apresentação para qualificação da dissertação: Karú, terra fértil, homem forte -pesquisa desenvolvida pelo mestrando Leonardo Lima da Silva na linha de

processos artísticos contemporâneos com orientação da Profa. Dr Nara Beatriz Milioli no programa de pós-graduação em Artes Visuais no Centro de Artes da

Universidade do Estado de Santa Catarina - PPGAV - CEART -UDESC

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notas:

> Emancipado politicamente do município de Lages em 1961, a localidade é conhecida popularmente como Carú, (nomenclatura política oficial entre 19431953) Sobre a região de Lages, localizada no planalto catarinense“A colonização da região começou no século XIX com a ocupação e exploração dos campos de Lages pelos Bandeirantes Paulistas. Sua primeira denominação surgiu por volta de 1927 na capela São José, Localidade do Carú, que significa "terra fértil". Apesar da fundação ter ocorrido no local da primeira capela, construída próxima ao Rio Caveiras, foi formada uma comissão distrital para definir a sede. Texto disponibilizado no site da prefeitura:http://www.cerrito.sc.gov.br/municipio/index/codMapaItem/12117 Acessado em 02 de dezembro de 2015.

> De acordo com pesquisa de Locks (1998, pgs.55-56) Karú deriva de: Ka ‘a = mato; Ka ‘aguy = floresta; Ca ‘a = monte, por debaixo de los árboles; para o povo guarani, o que vem da floresta, ou o que está por debaixo das árvores expressa fertilidade, vida; portanto pode-se atribuir ao termo - carú - o significado de “terra fértil”, “terravida”, terra própria para produzir alimento, (cf. Tesouro de la Lengua Gvarani por el Pe. Antônio Ruiz de Montoya. Madrid, ano de 1639, p. 84). Contudo, ao tomar conhecimento de outras fontes, pode-se concluir que o termo Karú, contém inúmeras contrações semânticas, abrindo novas possibilidade de entendimento. (Ainda sobre) “os termos, caboclo e Carú, respectivamente utilizados para referir-se à população e nominar o local, são categorias carregadas de atributos desacreditadores. Elas foram, elaboradas na relação e por oposição estabelecida entre os habitantes nativos e a sociedade abrangente. São, todavia, formas utilizadas no discurso coloquial serrano e servem para classificação social, fazendo de São José do Cerrito o espaço mais estigmatizado da região dos Campos de Lages.” In: LOCKS, Geraldo Augusto. Identidade dos Agricultores Familiares Brasileiros de São José do Cerrito-SC,Antropologia Social na UFSC, 1998.

> Sua pesquisa toca principalmente a questão do envelhecimento tanto por uma perspectiva da pessoalidade, focado nas maneiras com que os idosos percebem e atribuem valores a seu próprio processo de envelhecimento. Bem como toca a perspectiva da vida social e pública, das implicações e particularidades das políticas de assistência e formação em “programas oficiais” voltados aos moradores que vivenciam sua velhice nesta localidade.Sua metodologia se utilizou de cerca de 30 entrevistas realizadas com idosos e pessoas que “lidam com idosos”no município e arredores.

Karú, terra fértil, homem forte, pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais PPGAV/UDESC, linha de processos artísticos contemporâneos, mais que a descrição de um título, oferece um foco de atenção que se desenvolve com a pesquisa e nos convida: Ao Karú, enquanto localidade e ao Karú, enquanto pessoas, que neste e em outros tempos, cultivaram modos de vida que tornam presentes esta expressão, de origem indígena, que designa “terra fértil”, “gente forte” e ou “homem forte”. Expressão recorrente nas falas informais e cotidianas de seus moradores.

Os deslizamentos que favoreceram o atual projeto foram possíveis quando em meados da pesquisa surgiu um convite de minha irmã, atual mestranda no Programa de Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), para participar de suas “saídas de campo” no Karú, onde discorre uma pesquisa voltada aos processos de envelhecimento de sua população. Em outras palavras, este projeto inicia como uma colaboração inicialmente bastante prática e pontual: auxiliar nos registros fotográficos e na captação de áudio referentes ao seu projeto. No entanto, uma vez estando lá, fui movido pela possibilidade de articular questões relacionadas às especificidades do campo da pesquisa que aqui apresento.

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São José do Cerrito (Karú) vista da rodovia 282, saída para Campos Novos, registro de Orival Lopes, agosto de 2015.

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Esta é a terra onde meu avô nasceu, morou e construiu grande parte de sua trajetória de vida; Onde meu pai também nasceu e se “criou” até a sua juventude, antes de ir para “cidade”; Enquanto que meu tio, aqui permaneceu até a sua velhice, como homem amplamente reconhecido por suas atitudes e participações decisivas na vida pública desta localidade. Único irmão de meu pai, construiu aqui uma casa com a minha tia. Desta casa, escrevo agora. Aqui encontro o repouso e o acolhimento necessário nas idas e vindas cada vez mais frequentes. Tia Rosa, a poucos anos viúva, é por muitos reconhecida por seus afazeres, hospitalidade e generosidade àqueles que por aqui tem passagem. “A mãe de todo mundo”nas palavras de Seu Orlando (fotógrafo-taxista que guiou as estradas do dia de hoje) e fora seu vizinho de porta. Uma mulher de 72 anos que ainda costura para fora e gerencia todas as atividades desta casa. Que nas últimas décadas serve de pousada para muitas estudantes e mulheres que aqui trabalham. (Sim, os quartos são alugados especificamente para mulheres, namoros somente fora da casa). Logo na rua da frente temos outras duas casas, uma bastante recente, onde vivem minhas primas e um primo segundo que vivencia sua adolescência marcado pela influência do ambiente em parte marcado pela ruralidade e pelas possibilidades de estar conectado ao mundo-da-rede, dos jogos e comunidades virtuais. Aqui também há disto. Vive-se a terra e vive-se o asfalto. Pelas janelas o horizonte dos campos e montanhas e pelas mãos, as janelas do mundo virtual. Pensando com as palavras de Milton Santos: “(...) não mais se trataria de ‘regiões rurais’, e de cidades. Hoje, as regiões agrícolas (e não rurais) contêm cidades; as regiões urbanas contêm atividades rurais”. Uma das ruas paralelas no centro que registram

estabelecimentos com o antigo nome da cidade (hoje, em 2016, o estabelecimento já se encontra desativado) arquivo pessoal, junho de 2015.1

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Descubro assim, existir outras ruas, lugares, pessoas, histórias, sabedorias, amizades e pessoas enriquecedoras que revelam uma infinidade de modos de ser, viver e compartilhar a vida. Fazem desta terra o seu lar, e deste lar, as suas casas, que não são só materiais, são edificadas por relações de vizinhança e por saberes distintos. Caminhar por ruas até então desconhecidas e compartilhar as horas na casa de algumas pessoas que tive maior contato, já me traz uma espécie de consolação. Pois somos condicionados a aceitar a ruptura (nas relações com os espaços e sobretudo com os outros) com uma naturalidade vazia que nos acompanha e que somos sujeitados e desencorajados a aproximarmos de nossa “origem” (talvez ela não possa ser mapeada e definida, pois é plural e tão polissêmica, aproximamos para que ela nos aproxime). No sentido de buscar, mesmo sem resposta definitiva, onde se perderam os vínculos essenciais, os elos heterogêneos que cultivaram nossa vinda ao mundo, do que de simplesmente evocar um tempo de nostalgia para justificar alguma coisa. Andar aqui é sim revisitar histórias dos tempos de meu avô e descobrir laços em comum que vão além das relações de parentesco, mas também é presenciar realidades emergentes, dissonantes e contrastantes. O que muda é que antes a referência e conhecimento sobre esta localidade, eram centralizados até então, na rua principal onde fica esta casa de meu tio, que frequentei, mesmo que pouco, ainda na infância. No convívio, ainda que breve, com tantas pessoas que nos acolheram, me aproximo da compreensão “lugar de terra fértil” tão falada por aqui. Terra das paisagens de araucárias, não tão abundantes quanto relatam os mais velhos, mas que ainda predominam o quadro do horizonte. Horizonte que descobri (logo na primeira “ida”) ser o sítio de umas maiores concentrações já registradas de casas subterrâneas indígenas e para maior surpresa, somente na última década adquiriu maior atenção por meio de pesquisas e estudos recentes sobretudo no campo da arqueologia.

Qualquer romantismo de quem chega na busca de uma paisagem rural ou da imagem figurativa do que é a vida no campo, poderá se decepcionar. O asfalto, porém, ainda é recente. E por aqui muito se esperou do asfalto. A conclusão da estrada principal, nos fins da primeira década de 2000 (Seu Orlando nos contou de “boca cheia” ter encabeçado os processos políticos-burocráticos de sua implantação), representou um marco para os que aqui vivem. Por ser a via que liga as cidades vizinhas (Lages, Campos Novos), sua planificação melhorou muitos aspectos da vida de seus moradores. Agora sem dúvida é facilitado o acesso aos serviços públicos, comércio, escolas, que antes encontravam, literalmente, muitas pedras na antiga estrada. (ainda lembro da trepidação do carro e poeira esbranquiçada lançada ao ar quando passávamos). O outro lado da moeda é conhecido para quem vive na “cidade”. A diferença talvez resida em presenciar um processo de urbanização que ainda é parcial e que passa por todas as particularidades daqui. A sensação é de caminharmos em uma margem frágil que ainda percorre modos de vida e saberes com a terra, e para a terra, que não foram ainda soterrados por processos de “modernização”. Uma localidade que percebo agora não ser tão pequena quanto parecia. A maioria de sua população, que reduziu significativamente nos últimos anos (hoje com pouco mais de 8 mil habitantes) se encontra sobretudo, nos interiores (o “interiorzão”, chamamos), além do centro há outras 36 localidades. De uma a outra pode chegar a uma distância de 50 Km, e uma destas, está prestes a desaparecer com as obras de uma barragem, conforme nos conta Padre Nivaldo, (com quem conseguimos a lista das localidades).

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notas:

> São José do Cerrito, que tem como principal atividade a agricultura, já foi conhecida como a capital do feijão. Além do feijão, suas terras já viveram as décadas de cultivo intensificado do milho e da soja. Atualmente, a soja voltou a ser a principal atividade de agricultura, porém, com enfoque na monocultura intensificada, com poucos e grandes produtores . Ainda sobre o que a terra oferece, o horizonte desta localidade ainda mantém a forte presença das araucárias, simbolo da região. Em meados das décadas de 50 até 70 do século passado, a cidade [emancipada em 1961] experimentou um ciclo intensivo de exploração desta madeira. Grande parte exportadas para outras localidades do Brasil. Segundo muitos atestam, grande parte destes caminhões cobertos de madeira tinham como destino final, o campo de obras da então futura capital do Brasil. (Texto com base nas conversas com os moradores)

> A passagem do texto referente ao geógrafo brasileiro se encontra em SANTOS, Milton.A urbanização Brasileira, São Paulo: Hucitec, 1993, p.65.Seguindo essa leitura: Durante séculos o Brasil como um todo é um país agrário, um país ‘essencialmente agrícola’, para retomar a célebre expressão de Conde Afonso Celso. ...No dizer de Oliveira Vianna “(...) O urbanismo é condição moderníssima da nossa evolução social. Toda a nossa história é a história de um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. É no campo que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas de nossa civilização. O dinamismo da nossa história, no período colonial, vem do campo. Do campo, as bases em que se assenta a estabilidade admirável da nossa sociedade no período imperial’. Ibid.p.17.

> Por um período (cerca 3 milhares de anos), povos indígenas ligados ao tronco Macro-Jê povoaram a região. Estima-se que tomaram por guerra as terras dos Tupy-Guarani que já habitavam a região ( período que remonta 14 mil anos). Os motivos que os trouxeram a essas terras, do centro-oeste para o sul, ainda é desconhecido, porém, estima-se que por mudanças climáticas seguiram a rota das araucárias ( ou estas foram semeando pelo caminho), visto que delas extraiam uma de suas principais fontes de alimento e, sobretudo as condições de água, pelos rios que cortam os campos do planalto. Estabeleceram então suas moradas, indício de que não eram apenas coletores e caçadores, mas o que indica é que desenvolveram organizações sociais complexas baseadas no cultivo da terra. Essas moradas, chamadas casas subterrâneas pelos pesquisadores, são encontradas também nos estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul e em outros países vizinhos, mas que buscam em comum uma adaptação aos climas frios. Conforme arqueólogos e historiadores argumentam, ofereceram grande resistência ao processo de colonização (por volta do séc XVII) acabaram por se “dissipar” da região. Remanescentes destes povos indígenas são representadas no sul pelos Xoklengs e Kaingangs. Relatos confirmam que estes, durante os últimos séculos, protagonizaram grandes embates com a população "branca" européia, especialmente italianos e alemães vindos do Rio Grande do Sul, "além da disputa por espaço, a população colonizadora não reconhecia os indígenas como gente. (PINHEIRO MACHADO 2004, p. 32).

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Como homos simbolicus, el hombre es un creador de símbolos que intercambia y comunica la forma de percibir el mundo. Símbolo es todo acto humano, cosa, relación o consigna, plenos de interacción y significado; la interacción cohesiona el grupo, reafirma la identidad respecto de la sociedad dominante. En el caso de las culturas populares, la “insurgencia de los símbolos” es necesaria porque ella fortalece el arraigo y da vida a la palabra hablada, la palabra viva, por sus características estéticas, por su riqueza narrativa. Por ello, se plantea el arte en el barrio, en la vida cotidiana, en la calle. p.29ANTO, Florencia Mora; GRAJALES, Diego Agudelo. Grupos de discusión: estéticas y sabidurías emergentes, 1ª edición. Santiago de Cali: Pontificia Universidad Javeriana, Sello Editorial Javeriano, 2014.

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Se quiséssemos fazer um filme reproduzindo nossa vida, tal qual ela foi, sem deixar de lado os detalhes: gastaríamos ainda uma vida inteira para assisti-lo, repetir-se-iam na tela, os anos, os dias, as horas de nossa vida. Ou seja, é impossível assistir ao que se passou, seguindo a continuidade do vivido, dos eventos e das emoções. E o que vale para nossas vidas vale também para o passado de uma forma geral: é impossível reproduzir em todos seus meandros e acontecimentos os mais banais, tal qual realmente aconteceu. (p.13)

A história opera por descontinuidades: selecionamos acontecimentos, conjunturas e modos de viver, para conhecer e explicar o que se passou. (p.14)

Uma entrevista de história oral não é exceção (...) há nela uma vivacidade, um tom especial,característico de documentos pessoais. É da experiência de um sujeito que se trata, sua narrativa acaba colorindo o passado (...) faz do homem um indivíduo único e singular em nossa história, um sujeito que efetivamente viveu as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distantes.

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Esse fascínio do vivido é sem dúvida em grande parte responsável pelo sucesso que a história oral tem alcançado nos últimos anos, "fascinados" pela metodologia, que freqüentam os congressos e seminários de história oral. (p.15)

A entrevista de história oral nos acena com a chance, ou ilusão, de suspendermos a impossibilidade de assistir um filme contínuo do passado. Quando isso acontece é porque nela encontramos a "vivacidade" do passado, a possibilidade de revivê-lo pela experiência do entrevistado.

Concordamos todos que a impossibilidade de restabelecer o vivido é coisa dada. Não existe filme sem cortes, edições, mudanças de cenário. Como em um filme, a entrevista nos revela pedaços do passado, encadeados em um sentido no momento em que são contados e em que perguntamos a respeito. A memória é a presença do passado.

"A principal característica do documento de história oral decorre de toda uma postura com relação à história e às configurações sócio-culturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu". (LÉVI-STRAUSS, 1971) (p.16)

Em: ALBERTI, Verena. Ouvir, contar: textos de história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

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Stills do filme Dreams (1990) do cineasta japonês Akira Kurosawa (1910 - 1998). As cenas correspondem ao último capítulo “A Vila dos Moinhos”

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O que o leitor encontrará nestas páginas são registros e enunciações de um percurso articulado para tomar a forma de um roteiro.

Um roteiro compreendido como uma proposição de caráter experimental que se utilizará de algumas noções de roteiro cinematográfico, porém, pensado não somente como um meio e sim, como uma forma de escrita, que convida o leitor a percorrer um determinado espaço-tempo e formar quadros de horizonte segundo sua própria experiencia. Por estas linhas é compreendido como uma possibilidade de costurar espaços, temporalidades e subjetividades através de relatos, interlocuções textuais e visuais vivenciados no Karú.

Em outras palavras, articular camadas que sobrepõem, realçam, viabilizam e apresentam elos entre o percurso, as leituras, as proposições geradas no contexto e principalmente, entre as relações de convívio experienciada nas idas, eventos, encontros, que produzem trocas diretas, pela presença, que atualiza e reinventa a noção de terra-fértil, homem-forte.

Ressaltamos também que se apresentará para este período da pesquisa um roteiro e não um filme. (Ainda que parte do roteiro seja apresentado em imagem e movimento em fragmentos em exercícios de curta duração).

Desta maneira, as páginas desta apresentação ainda não nos traz os roteiros em si, seguem um fluxo de pesquisa, ora apresentando argumentos aos roteiros, pistas ao leitor, ora relatos do percurso e de convívio, passagens e fragmentos de outros textos e literaturas que nos tocam. São estes alguns dos argumentos que virão a compor os textos-roteiro, os quais serão agrupados em três capítulos : águas de um grande rio, terra fértil, homem fértil. Capítulos que mantém estreitas relações entre si, para ser lidos em sequencia ou um de cada vez, como “contos”.

O ponto de partida para esta escrita partirá de referentes como o “rio”, a “terra”, o “homem” em suas mais diversas concepções (ou mesmo o produto destes que referenciam a localidade, o pinheiro araucária, o milho, as ervas) e não menos; dos relatos, de histórias e saberes locais para criar narrativas ficcionais ou não-ficcionais, que incluem e também apresentam alguns dos projetos desta pesquisa.

águas de um grande rio

terra fértil

homem forte

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Estudo para imagens em caixas de fósforo a partir de fragmentos do filme Dreams, arquivo pessoal, 2016.

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notas:

> um dos projetos em desenvolvimento já partia de um roteiro que pretende articular uma aproximação com o filme Dreams (1990) de Akira Kurosawa, longa-metragem que nos apresenta pequenos contos que remontam lendas e ditos populares no Japão. Estes pequenos contos, são nos apresentados como sonhos, “para ser visto em sequencia” conforme indica o cineasta. Nosso recorte é o último dos “sonhos” chamado a “Vila sem nome” ou a “Vila dos Moinhos” que nos apresenta um viajante que chega em uma cidade e ao cruzar uma ponte se depara com um gesto praticado por algumas crianças (deixar uma flor perto do rio) ao caminhar pela Vila encontra e inicia uma conversação com um senhor de 103 anos que lhe apresenta a Vila e suas concepções e modos de vida praticados por ele e por moradores desta Vila. O velhinho interrompe a conversa e ambos saem para acompanhar uma celebração musical, um “funeral alegre” que acompanha a passagem de uma velhinha moradora da Vila. Ao retornar o viajante antes de deixar a Vila resolve oferecer, como as crianças, uma flor na beira da ponte, que segundo o senhor, surgiu como uma homenagem a um viajante que se afogou e que deste então, é praticada por gerações desta vila naquela data.

Como uma possibilidade, estes roteiros estão sendo pensados sobretudo, como textos para um narrador, que não será único (terá a colaboração de outras vozes, que interpretarão o personagem da narração, alguns que já se disponibilizaram a emprestar voz ao texto do roteiro (aberto para adaptações) incluem minha irmã, meu pai e outros possíveis colaboradores)

Quanto a construção do personagem-narrador (quem apresentará o texto), poderá partir não necessariamente da perspectiva de “alguém”, pode ser a “própria voz do rio”, ou uma araucária centenária ou, seguir os passos de um viajante (como no sonho de Kurosawa) identificado por sua própria voz e relato ou por um narrador que nos conta sobre o viajante. O que este viajante pode nos revelar é um relato de busca.Algo que lhe trouxe à localidade do Karú. A busca por “um senhor que joga balas”, “uma canastra”, “uma semente de milho em extinção”, uma “história”, um“artefato”entre outros.

O que nos interessa é que através do percurso, traçado pela busca do personagem, é que encontraremos possibilidades de articular o texto-roteiro com outros elementos que constituem o projeto.

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> Algumas referências para este processo incluem iniciativas que transitam entre os limites das linguagens (definidas a grosso modo) do vídeo, cinema, vídeo e documentário, como os filmes de Eduardo Coutinho, Gabriel Mascaro ( Um lugar ao Sol (2009)), Cao Guimarães (Andarilho (2006),(Ex)isto (2010), Eliane Caffé (Narradores de Javé (2004). o já citado Akira Kurosawa, Godard, Andrei Tarkovsky, Victor Erice (Alumbramiento em“Ten minutes older”(2002)) Peter Watkins (La Commune (2002),Wang Bing (Tie Xi Qu: West of the Tracks (2003)). No contexto mais específico das “artes”: Francis Alys (Cuando la fe mueve montañas (2002), Pierre Huyghe (Streamside Day (2003), A Journey that wasn’t (2005)) além das noções de roteiro abordadas por Jorge Furtado em Ilhas das Floes (1989), “viajo porque preciso, volto porque te Amo” (2009) de Marcelo Gomes, pra citar alguns.

> Segundo as noções encontradas no cinema, esta intenção se assemelha a noção de“narrador psicológico”, que apresenta as cenas a partir de um ou mais pontos de vista, participando ou não da cena apresentada e utilizando de temporalidades e espacialidades como quem conta uma história, algo que se faz em saltos de tempo e fragmentos espaço. Esta tática visa explorar o texto como leitura que cria relações com a imagem visual do que um roteiro composto para ser representado (pelo menos no momento) por atores.

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Casa de Seu Helmar, onde encontramos um grande açude que cria peixes de água doce. Foi nesta visita que, por semelhança de elementos da paisagem, lembrei das cenas do filme de Akira Kurosawa, arquivo pessoal, agosto de 2015.

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Trecho do livro de literatura infantil de Daniel Munduruku ((1964 - ) - escritor, filosofo e educador brasileiro nascido em Belém (PA), no povoado do Munduruku – Karú Tarú, uma literatura infanto-juvenil que narra a trajetória de um menino que estava sendo preparado para ser um pajé, 1ª ed. EDELBRA, 2009

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Karú, terra fértil,

homem forte.

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Karú;homem forteterra fértil

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João Maria Agostinho, peregrino, que em suas pregações religiosas aos católicos da região, hoje localidade de Capela São José, fez insinuações anunciando que, enquanto não trocassem o nome do Rio Caveiras que ali passa por outro qualquer, o mesmo não deixaria de fazer frequentes vítimas. Os moradores da época passaram a chamá-lo de "Rio Carú". Carú, na sua etimologia é termo de origem indígena que significa "gente forte", "terra fértil', "terra própria para o cultivo", comparando-as com águas de um grande rio".

MACHADO, 2004, p.30

Rio Caveiras sob a ponte no Passo dos Fernandes. Arquivo pessoal, novembro de 2015.

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Em torno ao fogo desejam as noites estreladas

Em torno ao fogo dançam as cinzas ancestrais

Os Lares da mata nos chamam

À civilização desconhecida

Aos povos nômades

Aos coletores

Aos agricultores

Ao alimento sagrado

Aos ritos de passagem

À comunhão dos povos

Mas, que vozes nos trazem aqui?

Na dança do vento,

Na sombra do sol,

No tempo do rio,

No verde escuro,

Nunca estou só.

A noite, sou silêncio.

Me curvo, escrevo, reescrevo

E os pinheiros que sobreviveram

Agora vem a superfície, o pensamento,

Tudo e a todos puderam ver!?

Presente, passado, futuro…

Há um só tempo

Pra quem ouve as águas do grande rio

Nós, filhos da ruptura,

Queremos o retorno a este mesmo fogo

Cantamos nosso espírito ameríndio

Para sorrir em outros tempos

Atravesso as águas de um grande rio

Um rio chamado Karú

Um rio que dá nome a terra

Não qualquer terra

Uma gélida terra de pinheiros

Terra-escura,Terra-fértil

Terra-buraco, Terra-abrigo

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Karú;homem forteterra fértil

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“Casa Subterrânea” que tivemos acesso ( até agora e por acaso). Estávamos na “18. Feira do Terneiro e da Terneira”, evento grande que ocorre na região, onde encontramos pela primeira vez o então Primo Hiago, que nos reconheceu por fotos na rede social. No meio da conversa perguntamos: Sabe onde ficam as “casas subterrâneas indígenas”? Ele respondeu: “Ah! Os buracos dos bugre!? Tem um aqui do lado”.Andamos alguns metros do pátio do evento e depois de uma cerca de arame (numa propriedade privada), avistamos o buraco que ali se encontrava sem grandes sinalizações.Tomamos esse registro. Em outra ocasião, meses depois, fui mostrá-lo para um amigo que fora de viagem conosco. Resolvemos atravessar a cerca. Entramos no“buraco”, que já foi mapeado por pesquisadores, mas encontrava-se abandonado, descemos e encontramos no meio objetos de descarte ali depositados ( um chuveiro elétrico de plástico). A percepção de estar dentro do buraco é muito diferente do que imaginamos pela foto. Este, por exemplo, tem cerca de 4m de profundidade, arquivo pessoal, junho de 2015.

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Do texto Uma língua para conversação que trata de como, quando, pra quê e para quem produzimos

linguagem como diz Bondía: “A nossa língua é mais insegura, mais balbuciante. (...) às vezes usamos palavras

estranhas , não queremos que nos entendam de imediato . Dizem que se você fala essa linguagem , será

compreendido por todos, terá um lugar nessa espécie de comunidade universal de fala na qual as palavras e as

ideias circulam legitimamente e sem problemas. Mas nós temos problemas com essa compreensão e, sobretudo,

com esse todos”p.66

BÓNDIA, Jorge Larrosa. tremores: escritos sobre experiencia. tradução Cristina Antunes, João Wanderley

Geraldi, Autêntica, Belo Horizonte, 2015.

Passagem que liga os fundos da casa de Seu Vanderi até o Rio Passo Fundo. Neste dia, ele estava fazendo ferro-cimento com os pneus para o caminho, fomos até o rio onde ele recolhe pedaços de madeira: “Se vejo alguns tronco ou pedaço de madeira aqui debaixo da ponte no rio dexo aqui embaixo, a água faz o trabalho de esculpir, depois tá pronto pra fazer um lustre, um banco, qualquer coisa que quiser”, arquivo pessoal, 2015

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Estudo para imagens em caixas de fósforo.

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Gostaria que os leitores deste texto pudessem seguir as palavras como quem caminha de pés descalços. Pois assim, em ritmos sabiamente desacelerados, sem perder o contato dos pés no chão, foram traçados os passos de tantos nas terras do Karú, caminhos por vezes “sacrificiosos”, de muita “peleia”, de muito “custo”, como dizem os mais velhos, mas que certamente inspiram e nos revelam um retorno imensurável nos saberes e relações com a vida e para a vida na sua mais alta expressão.Incapazes de serem transpostas em temperatura às percepções da experiência, as palavras aqui se aglutinam como um convite aberto a outras tantas experiências e leituras que possa montar o leitor.

Enquanto texto que também se apresenta enquanto pesquisa, para fins de dissertação acadêmica, procura escapar a noção de um saber imediato, fundado na relação dominante pesquisador/objeto para constituir-se enquanto uma pesquisa/percurso.Desta maneira, as palavras aqui indicam somente uma passagem que certamente seria outra se fosse dada outra ocasião. Mesmo nas decisões que cabem àquele que traz as vivências e interlocuções para superfície inteligível das palavras , as quais denotam a pessoalidade desta pesquisa, esta se faz, em tantas outras dimensões, coletiva e plural em essência. Pois sem as colaborações, presente em tantos níveis, a experiência aqui relatada estaria ceifada de sentido e incluso o próprio ponto de vista, haveria de ser refeito.

INSTRUMENTOS AO LEITOR

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notas:

“A experiencia seria o modo de habitar o mundo”p.43 (...) “Deixar que a palavra experiencia nos venha à boca (que tutele nossa voz, nossa escrita) não é usar um instrumento, e sim se colocar no caminho, ou melhor, no espaço que ela abre. Um espaço para o pensamento, para a linguagem, para a sensibilidade e para a ação (e, sobretudo, para a paixão). Porque as palavras, algumas palavras antes que se desgastem ou se fossilizem para nós, antes de permanecerem capturadas, também elas, pelas normas do saber e pelas disciplinas do pensar, antes , antes que nos convertam, ou as convertamos, em parte de uma doutrina ou de uma metodologia, ainda podem conter um gesto de rebeldia, um não, e ainda podem ser aberturas, inícios, modos de continuar vivos, de prosseguir, caminhos de vida, possibilidades do que não se sabe, talvez.” (nota de contra-capa) para BÓNDIA, Jorge Larrosa. tremores: escritos sobre experiencia. tradução Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi, Autêntica, Belo Horizonte, 2015.

Sobre esta linguagem, queremos aqui ser capazes de gerar conversações, pois compreendemos que toda palavra, toda forma de visibilidade , todo pensamento, que são as bases das práticas artísticas que pretendemos tocar tem como aspiração produzir sentidos:

Para o artista, cada vez mais entendido como um propositor, facilitador ou mediador de realidades em construção do que um ser isolado, detentor de saber específico e extraordinário.

Para aquilo que se produz, o “trabalho” de arte que busca ainda superar a noção de autoria e obra associada às “grandes obras de arte”para um exercício ético-estético que busca tocar processos criativos como oportunidades de aprendizagem coletiva, gerando vínculos entre pessoas e contextos.

Para o público, que necessita ser reinventando nas relações e vínculos mais próximos da experiência, do que permanecer sob distanciamento e chamado de quanto em vez à recepção estritamente fenomenológica, reflexiva e crítica.

Seguindo este pensamento, o público (assim como o “artista” e “obra”) é uma noção temporária que floresce com a luz de cada tempo, do que uma entidade universal e homogênea que supomos existir e que nos dirigimos apenas para medir a temperatura.

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Artefatos indígenas encontrados com certa frequência no Karú, (estes pertencem ao Primo Hiago), arquivo pessoal, 2015.

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Karú;homem forteterra fértil

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Taipa (como se chama os muros de pedra encaixada) que antigamente demarcavam (e ainda demarcam)as terras encontrados por toda região do planalto catarinense.

Não há, então, um sujeito que coordena o jogo, mas um personagem que se faz no próprio jogo, ele mesmo é aquilo que se efetiva no jogado e no jogador. O nós é uma manifestação do jogar, como um epifenômeno do jogo. Aí, a linguagem já não exerce mais o seu papel de nominar ou definir regras, mas ocorre pela vida do inaudito ou do incompreendido. Contudo, no jogo ao qual o nós se submete, a linguagem vivifica o que é vivido como jogo e se abre para a plenitude de sentido que não cabe na palavra. (...) O que Nietzsche explicita, pela vida do nós, portanto, é o ambiente de factibilidade de relações que não ocorrem mais pela via de um sujeito pensante que emite regras sobre a vida (ou para a vida). Trata-se agora de recorrer, hermeneuticamente, ao não dito que permanece.

Em: OLIVEIRA, Jelson Roberto. A AMIZADE PARA NIETZSCHE: UMA ARENA DE MAL ENTENDIDOS, publicado em PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.16, N. 2, P. 315-342, JUL./DEZ. 2011. p.339

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¿Por qué utilizar la noción de dispositivo en lugar de la de obra? No se trata de un capricho terminológico sino de la capacidad múltiple que tiene la primera para enfocar las características liminares antes que las estables. Al usar el término obra se piensa en lo cerrado, en lo definitivo —aunque sepamos que no siempre es así—, en algo que ha sido producido por alguien que decide darle forma y otorgarle una estabilidad como objeto;dispositivo, por su lado, remite no a lo cerrado sino a lo poroso, puede tratarse de un objeto, pero también de lo que este objeto produce, de los procesos que lo delimitan o de los sujetos que crea mediante ellos. El término tiene una genealogía diversa en la filosofía que va principalmente a los usos que le dan Deleuze, Foucault y, posteriormente,Agamben, como la red que se tiende entre elementos heterogéneos con una función estratégica en relación con el poder y que es resultado del cruzamiento de las relaciones entre poder y saber (2011: 250); por mi parte, retomo el uso de Holmes, quien denomina dispositivos artísticos de enunciación colectiva a las piezas de arte que conjuntan experiencias colectivas de participación con investigaciones estéticas y sociales amplias pero cuyo circuito de producción y recepción se ubica dentro de los espacios institucionales de los museos. En sus palabras, Lo que emerge de este tipo de práctica es una nueva definición de arte como laboratorio móvil […]. Puede que en el curso de este tipo de prácticas se produzcan obras en un sentido tradicional, incluso, en efecto, obras excelentes […]. No obstante, la mejor manera de comprender estas obras singulares es analizarlas no aisladamente sino en el contexto de un agenciamiento en el sentido que dieron a este término Deleuze y Guattari. Se convierten en elementos de lo que aquí llamaré un dispositivo para la articulación de una enunciación colectiva. (Holmes 2007: 146). Texto publicado por Roberto Cruz Arzabal. Disponível em: http://humanidadesdigitales.net/blog/2014/04/18/dispositivos-artisticos-post-digitales-escrituras-de-ida-y-vuelta/Acessado em 26 de fevereiro de 2016.

Dado este horizonte, compreendemos os textos-roteiro, como dispositivos, à medida em que produz sentido ao costurar relações entre os desdobramentos, percepções e elementos heterogêneos da pesquisa, os quais, como hipótese, nos aproximarão de uma compreensão singular sobre a noção que queremos nos aproximar com o Karú, sobretudo nas:

a) questões de origem: expressa nas relações de parentesco, as quais se estendem aos laços consanguíneos para um conjunto de relações que são reinventadas e cultivadas no estar juntos em formas de convívio que buscam amizade. Tais questões de origem também trazem `à superfície a própria formação geográfica, histórica, social, política e cultural da localidade, que nos remete à ancestralidade tanto do espaço/local como de seus moradores; no qual seria impossível deixar passar, a historicidade não oficial dos povoamentos indígenas que mantém, mesmo sem ser amplamente reconhecidos , forte influência nos saberes locais (conhecimentos sobre ervas e seus usos, hábitos alimentares, modos de cultivo e partilha da terra, entre outros).

b) diferentes percepções ao longo do percurso da pesquisa, que compreendemos aqui como uma experiência que se faz tanto no campo ético quanto estético. Nas relações com o ambiente natural e social e concepções singulares sobre a “terra”, “tempo”, “vida”, “natureza”, “família”, “casa” que nutrem e desencadeiam processos criativos intimamente atrelados aos modos de viver o cotidiano nesta localidade. Aspectos estes que se distanciam, tencionam, justapõem e às vezes se aproximam das percepções e noções abordadas no meio acadêmico.

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Planta nascendo entre pedras próximo do cemitério que se encontra no alto da cidade, arquivo pessoal, abril de 2015.

c) aos exercícios de visibilidade e síntese audiovisual, compreendidos aqui não como um fim e sim como um exercício da pesquisa que manterá relações com os textos-roteiro, mas deles poderá se desassociar e criar suas próprias relações em situações não escritas.

Desta maneira, os capítulos apresentados com um conjunto de roteiros pretendem articular de modo criativo os referentes e saberes que foram nutridos em encontros com Seu Maurício, Dona Beth Seu Orlando, Seu Leonel, Dona Zena, Tia Rosa, Primo Hiago, Seu Toninho, Seu Vanderi, Prof. Diego, entre tantos outros, que nos seus modos de vivenciar o espaço-tempo no Karú, constroem, partilham e reinventam suas próprias concepções de homem-forte e terra-fértil. Estes, não são personagens e sim pessoas reais. Compreendemos assim, como coautores deste texto e de seus desdobramentos. Serão conservados seus nomes apenas com esta descrição (“Seu”, “Dona”) e seus primeiros nomes, por considerar desnecessários uma exposição maior de suas identidades.

Com base nestas relações, com cada uma destas pessoas, em sua singularidade e pluralidade, que tampouco se homogenizam, que traço os percursos desta pesquisa e construo novas relações com esta localidade. É com elas e a partir delas que outros horizontes se mostram possíveis, alguns, certamente, para além do espaço-tempo previstos para esta pesquisa.

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Os passos para que este envolvimento fosse possível, foram dosados em visitas espaçadas nesta localidade. Geralmente de 3 dias a uma semana. Esta aproximação mesmo limitada, ao menos no início, foi conduzida muito mais no sentido de absorver as histórias e os modos de vida compartilhados nas conversas informais (entre um café e outro), do que propriamente levar questões e propostas que me interessavam tocar a pesquisa enquanto prática em arte. (Contudo, no decorrer desta pesquisa pude convidar outros amigos e colaboradores à cidade para participar e trazerem outras propostas. Assim a continuidade das idas se dará em articular encontros que promovam este troca com mais pessoas, de outros contextos para a localidade).

No entanto, aos poucos era indagado sobre o motivo de minha presença em meios às conversas. Na medida do possível, tentava ser breve e com o tempo lhes apresentava uma parte do que estava disposto a fazer: estou fazendo um projeto de arte aqui na cidade e estou interessado nos modos de vida e nos saberes das pessoas daqui, nos fazeres criativos, nas relações com a terra (...). Percebi que era mais compreendido quando falava de coisas “palpáveis”: “Seu Helmar você disse que tem barro por aqui, eu me interesso por cerâmica e tenho amigos que ficariam curiosos em conhecer! Com essa cabaça dá pra fazer instrumentos, nós conhecemos um senhor que fazia um instrumento chamado Orocongo”;

Ou mesmo: “Faço parte de um grupo de arte que pode compartilhar alguma coisa , gostamos de aprender coisas novas,...ultimamente temos muito interesse em música, vídeo, sobre construção alternativas, como plantar e conhecer plantas, produzir a própria terra. Seria possível fazer um encontro para virmos aqui aprender e ensinar outras coisas?Já ouviu falar em hortas verticais com pneu?” Ou ainda: “Estou pensando em realizar um evento que começa com a procura de um lugar para cavar um buraco tal como os indígenas faziam, sabe quem possa ajudar?”

À medida em que ia me apresentando, outras questões me interessavam mais do que as que tinha inicialmente. Como na última ida, levei como “presente” sementes crioulas (da Colômbia) para que pudessem plantar (ou em outra ocasião plantar juntos) para ver se ali “vingam” ou não. Com este lado prático, ia aos poucos dissolvendo minha imagem, (primeiramente associada a de fotógrafo, por andar com máquina) nas relações que cultivava e introduzindo um pouco aspectos da pesquisa, que nada mais era, do que estar atento a coisas que me despertavam interesse, curiosidade e possibilidade de explorar enquanto processo criativo. Isso demonstrou ser essencial que facilitasse, talvez não um entendimento sobre todos os detalhes e pormenores, mas pelo menos, produzir uma empatia com o que lhes apresentava.

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A contradição sujeito-objeto assume outra posição nas relações entre o homem e a obra. Essa relação tende a superar o diálogo contemplativo entre espectador e obra, diálogo em que ela se constituía numa dualidade: o espectador buscava na "forma ideal", fora de si, o quelhe emprestasse coerência interior, pela sua própria "idealidade". A forma era então buscada e burilada numa ânsia de encontrar o eterno, infinito e imóvel, no mundo dos fenômenos, finito e cambiante. O espectador situava-se então num ponto estático de receptividade, para poder iniciar o estabelecimento de um diálogo, pela contemplação das formas expressivasideais, com a obra de arte, cujo universo sintético e coerente lhe provia a tão buscada ânsia de infinito. O "quadro" seria, pois, o suporte de expressão contemplativa onde o espectador, o homem, realiza a sua vontade de síntese entre o que é indeterminado e mutável (o mundo dosobjetos) e a sua aspiração de infinito, através da transposição imagética desses mesmos objetos para o plano das formas ideais. Seria então o quadro, a sua concepção e a sua englobação do mundo dos objetos, mundo este que, construindo-se no elemento de polaridade em relação ao sujeito, ao se transpor para o campo da expressão através de imagens, liga-se às formas ideais intuídas pelo próprio sujeito, logrando assim, pela acentuação da dualidade sujeito-objeto, a sua resolução (alternância). Nesse século, a revolução que se verificou no campo da arte está intimamente ligada às transformações que acontecem nessa relação fundamental daexistência humana.

Hélio Oiticica ( 1937 -1980) no texto: A transição da cor do quadro parao espaço e o sentido de construtividade p.93 FERREIRA; COTRIM [org.]. Escritos de artistas - anos 60-70, Rio de Janeiro, Zahar, 2006

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Vista do Karú aproximada desde a rodovia 282 próximo a entrada da cidade, arquivo pessoal, 2015.

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Os comentários e propostas que aos poucos pude introduzir nas conversações que lá se davam, pareciam (e ainda parecem) ter uma boa recepção pelo simples fato de estar dando atenção ao lugar, (compreendido como lugar praticado. De fato, não era o lugar em si que a minha atenção se concentrava, mas sim às pessoas, ao convívio e as trocas que poderíamos alimentar. Esta abordagem ajudou a moldar um projeto que, mesmo partindo de proposições específicas alimentadas em uma leitura pessoal, procura se desprender deste centro que dá as cartas, para ganhar outras cores que surgiam na medida em que as colaborações se nutriam, se não de maneira espontânea -desconfio da fugidez desta palavra - eram (e continuam sendo) os diálogos informais, os quais me interessavam mais do que impor uma vontade. Desta maneira, vi aos poucos outros desejos entrelaçados aos meus. Assim, coloco isto porque no início e para os menos conhecidos, o ato de me apresentar, em si, já gerava um certo desconforto, preferia me apresentar como estudante, pois de alguma maneira, talvez até sobrevalorizaria de minha parte, apresentar-me como artista. Parecia me elevar a um ponto em que perderia o contato com o chão que estava tocando. Talvez não pela definição em si (que já é movediça) , mas visto que o entendimento sobre o que é um artista ainda está atrelado a deter habilidades manuais específicas que pouco me interessava despertar.

Em algumas ocasiões, por mal hábito, me apresentava como estudante de mestrado, o que desenhava uma franzida no rosto (“o que é mestrado?” “mestrado em artes do quê?”). Como solução, comecei então a ressaltar que fazia parte de um grupo de artistas que tinha diversos interesses para além da arte como conhecemos: interessado em aprender e compartilhar com as pessoas, saberes como construção alternativa, plantar, cozinhar etc. Projetos com outras pessoas e outras áreas do conhecimento. Ressaltando o interesse da arte hoje em aproximar-se das coisas da vida, retomar aspectos aparentemente simples mas que se encontram desvalorizados no cotidiano.

Sobre os processos criativos priorizados à realização do documentário ficcional “La Comunne (Paris, 1871) (2000) proposto por Peter Witkins presente livro “Estética da Emergencia”, LADDAGA (2006)

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Queria com isso “aquecer” a palavra arte, trazer dos limites frios,(individuais, distantes e quase místicos) para a arte enquanto processo criativo mais diluído na vida.

Neste sentido, quando falamos sobre a construção de vínculos por meio do campo da arte, de forma mais solidária e colaborativa com o outro, seria impossível não tomar a presença do professor e amigo José Luiz Kinceler, a quem dedico cada um dos parágrafos deste projeto e desta pesquisa. Quem tive a oportunidade de frequentar suas aulas e colaborar no desenvolvimento de inúmeros projetos que gerou, enquanto processo colaborativo, tanto dentro da universidade, nas ações de pesquisa, extensão, ou mesmo fora dela, em projetos pessoais no convívio pessoal dos últimos sete anos.

Kinceler enquanto professor e artista, nos alertava para o emergir de práticas que se dedicam a integrar outras realidades [para além da realidade bastante específica do mundo da arte] nos mundos de vida e saberes que se encontram nas fissuras da vida cotidiana. Ou seja, reintegrar pessoas, espaços e lugares por meio de outras relações mais profundas e perenes do que as que nos são oferecidas em nossas sociedades, sobretudo ocidentais, cristalizadas nas relações de consumo e de espetacularização da vida.

Anotações do professor José Kinceler durante uma conversa sobre publicação de artigo em 2013, arquivo pessoal.

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Desta maneira, o texto, as discussões e os possíveis dispositivos gerados no percurso desta pesquisa, buscam se colocar em proximidade e constante diálogo com o contexto e com estas questões essenciais.

Reinventar-se a partir da contingência da experiência, enquanto produção de subjetividade com o outro, consigo e com objetos mais do que apresentar formas ou processos artísticos autônomos, será a noção aqui que nos alimentará.

notas:

Repassadas por Kinceler em suas aulas e nos projetos que ele deu início, será tratada com devida profundidade em outro momento da pesquisa, bem como uma apresentação sobre alguns projetos como a Hortal Vertical Saber.

Com o devido cuidado, enfatizamos a palavra experiência, talvez porque ela nos ofereça um abrigo de resistência rara ao nosso tempo. A experiência nos indica um processo de atenção e formação que nos perpassa, toca e transforma, ao invés de apenas acumular informações sobre o que se passa conosco e com o mundo. Buscar o conhecimento pela experiência nos leva a tramar relações que escapam ao que estipulamos como ideal, pois põe em xeque o nosso entendimento sobre o que temos cristalizado enquanto sujeito e isto especialmente nos interessa, pois é justamente neste ínterim de instabilidade, mas que sugere e possibilita outros movimentos, que desencadeiam processos de criação, marcados pela materialização de uma falta, no sentido lacaniano, que era bastante enfatizado pelo professor Kinceler em suas aulas.

Relações as quais acreditava, possíveis de serem ativadas (outras) e reinventadas pelo uso da criatividade, como um processo que integra uma autocompreensão de si e do entorno social, político e cultural (noções em constante transformação que se alteram segundo as configurações específicas de saber e poder, nas linhas de Foucault). Atuando nesses interstícios, a produção de gestos no campo da arte cria possibilidades nos limites ético-estéticos de nosso tempo.

Abrir mão de registrar tudo sob a marca de nossa pessoalidade para nos ligarmos a uma coletividade, sob ligações afetivas e criativas nos leva a um caminho menos penoso e no mínimo, mais divertido (é necessário, conforme nos diria Kinceler, compreender o jogo da arte como uma prática lúdica, a seriedade é para quem dá “nomes”).

Devo ao Professor e amigo Kinceler esta noção bastante filosófica, de que quando empreendemos nossos esforços criativos enquanto pensamento e ação em nossas realidades, podemos vislumbrar uma maneira de viver a vida com maior plenitude. Por mais simples, e ao mesmo tempo difícil, de colocar no papel, compreender a vida como um processo de constante reinvenção pela criatividade talvez tenha sido, das suas lições, a mais profunda, ao menos para mim. ( talvez não pela “originalidade”, pois era fruto de suas leituras, mas pela interpretação e forma como nos apresentava)

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“O terreno comum é um terreno que tem bastante donos, várias famílias usavam o mesmo pedaço de terra. Cada canto tinha um dono, uns numa ponta outros noutra. Tudo em aberto, sem fechar. Não era medido, cada um ‘redimunhava ’ (redemoinhava) na sua área. Era livre. Os animais, como o cavalo, a mula, o gado, a vaca de leite, o porco solto ou no chiqueiro, andavam por todos os cantos da terra comum. Usava-se o cincerro para localizar os animais. Só o rocio [roça] era fechado com cerca de varão, com a sobra da madeira queimada, cerca de raxa ou rachão; cada família fazia o seu rocio dentro da terra comum”

Descrição sobre “divisão de terras”por morador do Karú,encontrada em Locks (1998).

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Viemos dessa vez eu e meu pai. Saímos pela manhã e almoçamos num restaurante beira de estrada com comida caseira. Havia neste restaurante, lugares reservados para um grupo de terceira idade que chegaram logo depois de nós bastante dispostos e com “camisetas padrão”. Pelo que li da situação, estavam indo visitar hotéis fazenda na serra. Os demais que ali se serviam pareciam ser trabalhadores locais, comerciantes, agricultores ou que trabalham na construção civil. Em lugares como este ainda me surpreende a quantidade de refrigerante sendo consumida junto com almoço. A comida era boa, embora tenha ficado enjoado com o excesso de vinagre que colocam em tudo. Continuando com a estrada, nossa próxima parada foi num pequeno estabelecimento de madeira chamado “Casa do Mel”. Como se espera, levamos um pote de mel para a Tia Rosa (que ela ainda guardou meses depois, por não ter hábito de consumir e por achar que era para mim) e uma erva de chimarrão para tomar nas manhãs, mesmo em novembro, são frias (hábito que adquiri com a Tati Rosa no período que ficamos em Cali, pretendia assim diminuir o café). A menina que nos atendeu, tinha esse semblante bastante familiar quando se começa a subir a serra:entre o traço indígena e a figura cabocla de pele morena.Falou que o vidro que empunha nas minhas mãos, era mel de uma florada de uva japão, mais suave e doce, perfeito para adoçar. O outro, presente na bancada de madeira envernizada, era de florada silvestre e escuro, que disse ser mais forte.

Quando me explicava, um senhor entrou apressado e pediu um vidro de mel, pouco interessado pela explicação, deu às costas para a atendente. Escolhi o primeiro, da florada de uvas. Saindo, encontrei uma cuia (que mais tarde iria acabar por presentear um dos amigos lá do Aviário das Artes em Dionísio Cerqueira/SC) nos passos para o Caixa, passei os olhos por uma bancada com Cd´s. Me chamou atenção uma capa chamada“Brasil Caboclo: somente sucessos”, com a bandeira do Brasil na capa, mesmo sem muitas expectativas me levei pelo título. Logo que retomamos a estrada ao colocar para tocar o cd, me surpreendi com a audição, pela qualidade do registro e das músicas. Eram canções “típicas” da região centro-oeste e sudeste do Brasil e como diria Seu Mauricio, que com o seu violão antigo nas mãos me explicou outra vez, “o meu tipo de música são as que contam histórias, histórias bonitas, não qualquer coisa que hoje se canta por aí”.Com este disco fazendo a trilha da viagem me incentivei a puxar alguns assuntos com meu pai, que habitualmente fala pouco, mas como sempre, se faz um grande parceiro de viagem, algo que se acentua agora que aposentado resolveu se dedicar à fotografia. Em nossas idas ao Karú, minha irmã, primeiramente, com sua pesquisa em Sociologia Política, que passei a acompanhar e fazer daqui o meu “campo”, meu pai foi o próximo, além de nos acompanhar em auxílio, o interesse pela fotografia lhe trouxe, após muitos anos morando fora, à sua terra de origem. Antes, as visitas suas e por consequente, as nossas, eram espaçadas e pontuais. Principalmente depois que meu avô faleceu em 2010, quando já morava conosco há 5 anos em Florianópolis, e 3 anos depois, com o falecimento de meu Tio Lourival, seu único irmão, era cada vez mais raro subirmos a Serra para visitar os demais parentes. 32

Portão de entrada e cerca característicos da região.

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Ainda sobre as fotografias de meu pai, foi por elas que pude conhecer Seu Vanderi de quem logo falaremos. É interessante ver que nessa situação, conversamos sobre coisas que no convívio em casa parece não ter espaço. A conversa toma outros rumos quando a paisagem é outra. Em um desses rumos, travamos um diálogo justamente sobre o termo “caboclo”, algo recorrente na região, meu pai comentou que pelo que sabia e ouvia, era quem levava “um tipo de vida do campo”, mas que tinha esse lado pejorativo do “jeca”, “ignorante” ou “ingênuo”, associado por vezes com outro termo, bugre, como se chama àqueles que vivem no mato, que não por menos, é associado aos povos indígenas.Me lembrei do que falava com convicção, em outra ocasião, no seu táxi, Seu Orlando: “bugre e índio não é a mesma coisa, é completamente diferente, bugre são os que vive no mato, são gente boa, simples, os índio, índio mesmo , cá entre nóis, são tudo safado!” Na época rimos contidamente (eu e minha irmã) e ficamos sem jeito de perguntar mais detalhes sobre sua má impressão. Ainda no caminho da viagem com meu pai, trazia em mãos o livro “Condição Humana” da Hannah Arendt e quando seguia uns minutos de leitura no banco da frente resolvi ler em voz alta algumas passagens. Meu pai, que sempre foi mais voltado para números, parecia ouvir atento e pelos gestos parecia se identificar, comentou algo que agora não recordo. Em seguida, aproveitando as noções sobre a vida ativa do homem que Arendt discorre, comentei sobre a decisão de chamar a dissertação com o título “Karú, terra-fértil, homem -fote.”

broto de pinheiro do Karú que nasceu espontaneamente no minhocário de minha casa. Este registro é singular pois nele se encontram diferentes referentes importantes para esta pesquisa. O pinhão foi dado pelo Primo Hiago em uma das idas; as minhocas (que rapidamente se multiplicam) foram uma doação do amigo e colega Pablo Paniagua, que em outro momento tinha recebido do Prof. Kinceler durante as aulas do mestrado. E na terra, temos o pó de rocha, um rico adubo mineral, cuja pesquisa nos foi passada pelo Claúdio, um senhor que cultivava orgânicos no RS e que conhecemos em um dos encontros no espaço da Casa Redonda, também no RS. em 2013, arquivoo pessoal, 2015.

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Esboços, anotações e desenhos em torno da terra fértil homem forte, arquivo pessoal, 2015.

As primeiras opções de título soavam ao tom “acadêmico”. Depois de considerações valiosas sobre o título e sobre o projeto, no esboço do relatório de qualificação pela Profa. Raquel Stolf, foi após a primeira apresentação do projeto junto com a Profa. Nara e com os demais orientandos, que me foi sugerido pensar em um título mais conciso. Sem muitos “rodeios”. De fato Karú, terra-fértil, homem-forte já estava presente nos esboços desta apresentação e foi a amiga, Bruna, que chamou atenção para o proto-esquema“homem-forte terra-fértil”. No entanto, fiquei maturando umas semanas e a partir das leituras com Hannah Arendt, este título começou a ganhar ainda mais força e sentido para o que estava procurando apresentar com a pesquisa. Era mais do que um título. Uma noção que eu estava disposto a ir atrás. Meu pai quando me ouviu soletrar no movimento do carro, prontamente se manifestou com gosto pelo título. Surpreendeu-se quando disse que Karú fora inicialmente o nome dado ao Rio Caveiras para depois ser o nome a ser utilizado para a localidade, que na época ainda fazia parte do distrito de Lages. Segundo constam os dados da prefeitura, a cidade, na época ainda pertencente ao distrito de Lages, adotou “Carú” como nomenclatura oficial entre 1943-1953.Falando sobre rios, meu pai contou que os três rios, Canoas, Caveiras e Pelotas nascem próximos ao alto da serra geral e tomam rumos diferentes para depois se encontrar. O Caveiras junta-se ao Canoas perto de Abdon Baptista/SC e na altura da divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, Canoas e Pelotas formam o Rio Uruguai.

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Meu pai lembrou com nitidez, ainda no caminho da estrada,de seus passos entre os pinheiros cortados, os troncos, dizia,passavam sua altura. “Da raiz até o corte, contava mais de um metro e meio”. Lembrou também que da árvore era aproveitado somente o cerne, a parte mais espessa,“as que davam largas tábuas”e que toda a parte de nós, cerca da metade da madeira, era deixada ali mesmo ao solo, pois não tinha valor comercial na época. Segunda mudança. Meu avós se mudaram para Lages em 1966 para que meu pai pudesse continuar os estudos (a escola local na época só tinha as séries iniciais e meu pai andava quilômetros a pé para ir a aula, como lembra Dona Beth, sua professora na época e Seu Maurício, que substituía sua esposa nas aulas quando ela estava gravida. Sempre que visitamos, Seu Maurício conta com entusiasmo a facilidade de meu pai em lidar com os números). Meu pai só teve um irmão, o Tio Lourival que em 1966 já era casado. Chegamos com chuva no Vanderi. Esta é a primeira vez que a viagem não faz sol como das outras vezes que subimos a estrada para a Serra. Estacionamos e abrimos o portão como quem é de casa. “Tobi”, o cachorro, vem nos receber. Vanderi estava no gramado aproveitando a água da chuva para lavar um jogo de armário antigo de cozinha. “Tava lavando aqui na mangueira, veio a chuva e aproveitei pra limpar e não gastar água “(...) .(enquanto eu olhava para o armário) Ta judiado, mas depois vo desmontar, lixar e montar de novo, tu vai ver como vai ficar.” Entoava com a disposição que lhe é característica. (...)

Seguimos a conversa. Meu pai seguiu contando detalhes de sua infância que passou no Karú, onde viveu até os 14 anos. Naquele tempo, seguindo os passos de meus avós, se mudou de casa duas vezes. A primeira, de uma casa na localidade de Itararé, onde lembra meu avô dizer que a lavoura não vingava o suficiente por alguma deficiência do solo e assim,tomou a decisão de vender a casa e a terra para mudar-se para outra localidade que pertencera ao meu bisavô paterno, Pedro Pereira, recém falecido em 1958.“Nesta casa aí sim,era um lugar de terra fértil”, contou meu pai fazendo graça com o título, “além de maior, tinha pinheiros”.Neste novo lar, construíram a casa aproveitando os pilares de uma antiga serraria que já estava desativada. Na época coexistiam mais de 30 serrarias que depois condensaram e passaram a servir uma ou duas que se destacaram, pois tinham conseguido uma clientela forte (muitos desses pinheiros cortaram as recentes rodovias federais que seguiram aos caminhões rumo à construção de Brasília). Dessa maneira, muitas serrarias fecharam e outras passaram a servir as maiores, que já investiam em maquinário pesado, contam os antigos. Este período coincide com o ciclo de exploração da madeira que ocorreu de forma intensa entre 1940 até 1960, continuando ainda nas décadas seguintes, embora em menor intensidade. Coincide também com a construção, em meados de 1957, da hidroelétrica do Salto do Caveiras que por décadas teria abastecido a região de Lages, contava meu pai enquanto dirigia.Meu avô fora cortar, juntamente com outros tantos homens do Karú, justamente os pinheiros que estavam enraizados nas áreas que seriam submersas pelas águas desviadas com a barragem.

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SOBRE O TEXTO NA FORMA DE UM ROTEIRO

A Diva (esposa dele) ao se referir as casinhas no quintal diz: A favela do Vanderi! que Vanderi rebate: “É uma comunidade!”, registro de Orival Lopes, dezembro de 2015.

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Vista topográfica por satélite de São José do Cerrito, extraída do google maps, dezembro de 2015.

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“Terra é sobrevivência. Quem não tem um pedaço de terra não tem segurança de nada. Hoje tá aqui, amanhã tá lá. Terra não é da gente. A gente morre e a terra fica. Tendo terra, tem um lugar pra morar, senão vive no ar. Se adquire terra pra viver e criar os filhos. Quando se compra terra é pra deixar pros filhos ”. “A terra é garantia de vida. Na terra se passa fome se houver contratempo da natureza. A terra dá de comer. É sobrevivência, moradia. É independência. Eu larguei a mão de ser empregado por ser mandado. Aqui a gente se governa. O trabalho é sacrificoso, mas a gente tem liberdade. Se não quiser ir não se vai. A gente tem relógio, mas se guia pelo interesse da gente” “A terra? Eu tenho dois alqueires e meio.Precisaria mais uns três alqueires. Eu deveria chamar a terra de mãe. É donde eu tiro nosso sustento. Terra é tudo. Temos pouca terra, mas eu páro e penso, quantas vezes eu não teria que me mudar, se não tivesse esse pedacinho de terra! Agora ela tá se recuperando. Esteve acabada. O brasileiro é livre na terra. Não é mandado. Não vê salário, mas tem os produtos ”

“A terra é tudo. Da terra sai a água, o alimento, a madeira, a beleza, o ferro; terra é vida; é das melhores coisas do mundo” “A terra é a nossa mãe. Ela está sendo maltrada pelo trator, a queima, o veneno...” “A terra é o conforto para nós. Se não tiver a terra, não temos nada. Da terra nós tiramos tudo. Não gosto de trabalhar para outros, mas para mim. Com meu trabalho não vejo muito dinheiro na hora, mas depois é o dobro. Trabalhando para outros o dinheiro some. Eu sou agarrado na planta e em árvores. Minha mão é boa. Abaixo de Deus, a terra é nosso chefe. É como o chefe de família que vive para os da casa. A gente planta nela e dá o resultado. Tiramos tudo da terra.”

Moradores (em maioria, agricultores) do Karú falam sobre as suas concepções de terra, fragmentos presentes na dissertação de Locks (1998).

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AGUSTIN BESAVE DEL VALLE, Filosofa do Homem, trad.Hugo Di Primio Paz, ed.CONVÍVIO, São Paulo, 1975.

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Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma dos homens.Na superfície são muito vivazes e claros,mas nas profundezas são

tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens.

Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios:sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.

Guimarães Rosa

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Margem do Rio Caveiras avistada sob a ponte de madeira no Passo dos Fernandes, arquivo Pessoal, novembro de 2015.

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(Ou)vir o rio

Acordamos cedo. Fazia frio e da janela do quarto dava pra acompanhar a serração se diluindo nas ruas ainda vazias. Descemos as escadas e tomamos o café com Tia Rosa que ao ver que já estávamos na mesa se desculpava por ter acordado tarde (08h30). Por causa da insônia e medicamentos que toma, costumou dormir tarde, geralmente fazendo pães, biscoitos ou vendo TV. Pela janela, logo ao levantar o tempo se fazia nublado, no dia anterior a chuva fora forte, mas resolvemos arriscar e tomar a estrada que percorre cerca de 15km até o Passo dos Fernandes. Esse é o nome do lugar que era o ponto onde o rio dava altura para o caminho das tropas que traziam gado, o nome, provavelmente se refere a uma família que ali viveu por gerações. Nesta margem do rio uma ponte de madeira se estende sob as águas do Rio Caveiras. Por ser também um dos pontos onde o Caveiras cai em cascatas, é um lugar com valor turístico atribuído. Nosso trajeto fora pelo sul da Anacleto para 282 e depois tomamos a estrada de chão e cascalho que leva até o Passo. É a mesma estrada que seguindo poucos metros, ao lado esquerdo, se avista a casa de Dona Beth e de Seu Maurício. Comentamos no carro que na volta faríamos a eles uma visita.

Seguimos com a estrada de chão que sobe e desce entre de campos de plantações até que em certa altura é cercada de árvores e vegetações nativas e alguns pinheiros. Em menos de meia hora estávamos estacionando próximo ao inicio da ponte. Meu pai levara sua câmera, como de costume, e eu começava a juntar equipamentos que trazia especialmente para a ocasião:

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Ou como sugerem em nota, o rio reflete o fluxo incessante da vida, se no trecho Guimarães Rosa nos chama para a eternidade do rio, podemos pensar que sua força se conserva justamente no fluxo do movimento que ele se faz. Uma transformação contínua que mantém viva sua permanência e vividez. Ocorreu que logo depois que chegamos quando já estava na ponte registrando os primeiros minutos do Rio, o dia se abriu com forte sol, que logo nos obrigou a tirar as camadas de roupas que protegiam do frio da manhã.

O sol não apenas abriu as luzes do dia e nos dava sinal verde para que continuássemos ali, com a gravação e com as fotos, como também, convidou os moradores do outro lado a fazerem passagem. Como havia chovido forte nos últimos dias, a abertura do sol em pouco tempo fez muitos trechos de estrada secar, e assim a travessia era mais segura na ponte. E assim foi, em cerca de meia hora, uns 4 carros surgiam do outro lado para fazer a travessia. Como a ponte era pequena, suficiente para um carro por vez, quando o carro tocava na ponte me agarrava aos pedestais e dava uns passos até a extremidade da ponte, para que assim os carros passassem. Fazia muito calor e já se aproximava do meio-dia.

Um dos carros, uma caminhonete quase me obrigou a ter que sair, mas consegui ficar por um triz na beira da ponte e ele conseguiu passar. Estes que passavam, ao perceber a situação diminuíam a velocidade, já era de costume devida as condições da ponte.

Um gravador portátil, um tripé, um microfone de cápsula grande, um pedestal e uma bolsa com dois fones de ouvido e outros acessórios. Caminhei com cuidado até chegar ao meio da ponte. A ponte, apesar de não ter nenhuma proteção lateral e pelos cortes das longas tábuas pode se ver a água correr, parecia oferecer estabilidade, embora algumas madeiras já estivessem nitidamente desgastadas pela ação do tempo.

Meu pai me lembrava que era uma ponte bem antiga e que não fora uma ou duas vezes que carros ali se perdiam ou outras histórias do tipo. Daquele tempo até sua condição atual, ainda em madeira de largas tábuas e troncos, fora reforçada segundo contam, apenas algumas poucas vezes, com reforços para a passagem de carro e madeiras substituídas.

Semanas antes me ocorreu que seria importante registrar as águas do Rio Caveiras em áudio, um registro bastante simbólico, dado a importância e referência deste Rio para a cidade e todos os moradores. Na época, pesquisando sobre uma das ações do grupo Descarrilados[1] chamada Canomade que encontrei[2], uma escritura/relato sobre Rios que gostaria de compartilhar: Desde tiempos inmemoriais, el rio há sido escenario de poblamiento. Se ya proyectado como hecho cultural, pleno de leyendas, costumbres e mitos. Quienes viven “de cara al rio”, mantienen uma relacion estrecha con su cauce y orillas. El rio facilita la prolongacion de la vida, y al tiempo permite avizorar al propria muerte.

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Karú;homem forteterra fértil

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Registro sonoro do Rio Caveiras no Passo dos Fernandes, registro de Orival Lopes, novembro de 2015.

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Alguns acenavam ou cumprimentavam com um bom dia, outros permaneciam com seu rumo, certamente intrigados com o que estava acontecendo por ali. Num desses movimentos, um motoqueiro ao fazer a travessia, cumprimentou e ao invés de continuar parou com a motocicleta ligada e comentou bem humorado: “Vai sair uma reportagem para construir uma ponte nova então?” Rimos juntos e disse que estava apenas gravando o rio. “A bom...”, respondeu e continuou: “Conhece a agropecuária na frente da Igreja no centro? Trabalho lá, passa lá qualquer dia pra tomar um chimarrão.” E saiu acenando.

Continuei a gravação e escuta, fiquei um tempo ouvindo pelo fone para testar outros ajustes. Ouvir em tempo real uma gravação com fone de ouvido fechado e microfone é como ter ampliado as capacidades auditivas em um nível de sensibilidade bastante aguçado. Passei os fones para meu pai ouvir e ele ficou alguns minutos acompanhando o fluxo do rio pelos fones. Como qualquer barulho interferia na gravação, recomendei que não falássemos enquanto estivéssemos na ponte. Segui por mais de uma hora com as gravações para compensar as “interrupções” dos carros, tomamos o caminho de volta e passamos na casa de Seu Maurício e Dona Beth, que nos recebeu e chamou para dentro da casa onde vivem os dois. Logo Seu Maurício aparece, diz que aproveitou a saída do sol para cuidar da horta e da limpeza do galpão. Nos convidaram e insistiram para que ficássemos para o almoço, mas já tínhamos prometido almoçar na casa de minha prima, e uma vez combinado, melhor não fazer desfeita. Acima, detalhe do microfone direcionado ao Rio e abaixo um dos

carros passando pela ponte.P asso dos Fernandes, novembro de 2015, arquivo pessoal.

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AGUSTIN BESAVE DEL VALLE, Filosofa do Homem, trad.Hugo Di Primio Paz, ed.CONVÍVIO, São Paulo, 1975.

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Na casa de tia Rosa (ao lado), a cozinha é um lugar de encontros onde recebe visitas quase diariamente, para comprar queijos (que ela “cura” e revende de um parente) ou a visita de vizinhos, amigos ou pessoas de longe que já moraram ali e estão de passagem pela cidade. Aqui é também onde começamos o dia e onde acontece muitas conversações e trocas sobre a cidade e seus contornos políticos.

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Montagem com arquivo pessoal,novembro de 2015.

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Elaine - Seu Leonel e o que o senhor costuma fazer geralmente assim, durante o seu dia?Seu Leonel - agora, é só mais deitar na rede(risos)Dona Zena - mas ele pega a enxadinha e ainda vai lá carpi ...Seu Leonel - vou carpi....Elaine - vai carpi ainda!Seu Leonel - cortar os matinhos do rio ...de primeiro eu tomava conta de tudo, lavrava a terra e tudo ...agora não …Elaine - gosta de ver TV ou não?Dona Zena - gosta!Seu Leonel - a televisão quase não…Dona Zena - só costuma ver a missa …Elaine - ah! o senhor costuma ir na missa?Seu Leonel - assistir a missa, o padre na Rede VidaElaine - ah! na Rede Vida …Dona Zena - por causa que tem muita coisa…Elaine - E o senhor participou de algum movimento, tem o grupo de idosos né, acho que o senhor me falou ontem que era do sindicato...

Seu Leonel - tive dois mandatos.Elaine - e outros grupos o senhor participou?Seu Leonel - ah, eu participava quase em tudo…Dona Zena - é mas assim de …Elaine - ... de trabalhador rural …Dona Zena - mais coisa do sindicato mesmo …Elaine - aham ... você viu né ... eu vi também em outros grupos que tem mais mulheres néSeu Leonel - toda vida …Elaine - por que que o senhor acha que tem mais mulheres nesses grupos?Seu Leonel - é, porque tem uma parte de gente, uma parte é gente que trabalha, e outros, até como nós estava falando, são meio machista, não quer saber dessas coisa e tem muitos companheiros meu que ficam na rua lá e não vai. Agora é como te falei, nós começamo ... fundei o nosso (grupo) idosos e toda vida acompanhei …Dona Zena - eu acho que...

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Elaine - então o Grupo de Idosos começou com vocês então?Seu Leonel - isso mesmo!Elaine - quantos anos tem ali o Grupo?Dona Zena - o Leonel ia e eu não tinha idade, eu ficava! eu fiquei 5 ano ele indo ..Elaine - ah! o senhor começou ir primeiro?Dona Zena - é! porque eu não tinha idade! e agora já fiz 80 e lá só vai com 60Elaine - olha, isso é uma coisa diferente, porque geralmente quem vai primeiro é a mulher e ela puxa o homem …Dona Zena - é ... e agora ele ia e eu não ia, porque não podia!Elaine - mas o senhor era um dos únicos homens né?Dona Zena - era …Seu Leonel - toda vida sempre era assim…Elaine - e por que o senhor começou a ir, por que achou importante?Seu Leonel - peguei a gostar e a gente ali pegava muita amizade, coisa que eu tive mais na vida, era isso aí …Dona Zena - ... a coisa melhor da vida é os amigos né…Seu Leonel - ... a gente trabalhava sempre junto com o povo, que é como eu te falei, trabalhei com a carreta 3 anos direto aí na Praça ...

Elaine - entregando leite …Seu Leonel - ...entregando leite e puxando lenha e fazendo mudança e coisa ... 3 anos…Dona Zena - ele trabalhou muito …Seu Leonel - tive 2 mandatos de tesoureiro, 2 mandatos, então ali também trabalha muito junto com o povo, então eu sempre digo graças a Deus, toda vida tive muita amizade…Dona Zena - ... amizade muito grande que nós temo…Seu Leonel - nunca tive... então toda vida a gente tem essa amizade…Elaine - eu sempre vejo assim que o Cerrito, eu sempre soube, mas agora eu to conhecendo mais né ... que o Cerrito é um povo um pouco diferente né. E o que que o senhor acha assim dos homens idosos do Cerrito, se fosse pra definir, o que o senhor diria deles?Seu Leonel - eu acho que tudo é pessoa que tem amizade e gosta do pessoal que frequenta ali...

Trecho de conversação com Seu Leonel e Dona Zena, ambos na faixa de 80 anos. Roteiro de perguntas por Elaine Lima.

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Registros da primeira “ida ao Karú”nos encontros com o grupo de terceira idade, arquivo pessoal, 2015.

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mãos que se unem

Todas as terças o grupo de terceira idade (Grupo Conviver) se reúne

geralmente no espaço Centro de Convivência localizado no centro da

cidade. Segundo me contou Seu Leonel, que hoje vive na casa dos 80,

este grupo começou com ele e com alguns amigos que gostavam de ouvir

música, dançar e confraternizar entre si. O encontro, que começa logo

no início da tarde, é dividido entre alguns momentos: depois que todos

chegam, temos um momento de reza seguido de atividades específicas

(alongamento com instrutora e/ou exercícios de grupo), um segundo,

que é musical, onde a maioria dança e finaliza com o café da tarde

seguido, como pude participar, de um bingo.

Estas terças são organizadas sob a orientação do CRAS (Centro de

Referência em Assistência Social) instituição responsável por toda a

logística, desde atividades que ocorrem antes da dança, como a própria

alimentação e transporte para os que necessitam. Bem como organizam

saídas para outros salões e centros de convivência, como aconteceu na

primeira terça que participei.

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Embora não mais a fotografia tem sido lida como “verdade”, e embora o photoshop tenha criado mentiras com facilidade, a fotografia permanece como sendo uma experiência de primeira mão sem comparação com outro meio, trabalhando num espaço entre arte e vida onde eu me sinto à vontade [...] Desde que eu comecei a escrever sobre fotografias anos atrás, eu comecei a vê-las em todo lugar, não tiradas, mas seqüenciadas nos olhos da minha mente. Como Dorothea Lange uma vez disse: “Uma câmera é uma ferramenta para aprender como ver sem uma câmera.” (LIPPARD, Lucy 2000, p.168), (tradução livre concedida pela amiga e colega do PPGAV, Tati Rosa)

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Embarcamos com os idosos em um micro-ônibus até o salão paroquial

de Santo Antônio dos Pinhos (uma das 36 localidades de São José do

Cerrito), há alguns quilômetros do centro. No caminho, com o micro-

ônibus da prefeitura, passamos para pegar outros idosos que moravam

em lugares mais afastados. Seguindo os passos de minha irmã que

acompanhava o desenvolver das atividades com o grupo de terceira idade

e representantes do CRAS. Como combinado, fiquei responsável de

realizar alguns registros fotográficos (e no processo algumas tomadas em

vídeo). Além do lado prático, registrar imagens que serviriam a pesquisa

de minha irmã, o ato de disparar a câmera me fez olhar atento para a

situação geral que ali ocorria.

A dança, sem dúvidas era o momento do encontro preferido para muitos.

Me chamava atenção o fato de que na dança os gestos entre as pessoas se

dava com maior leveza do que fora dela. Alguns, chegavam no espaço do

encontro retraídos e com poucas palavras, mas quando chegava o

momento da dança se abriam para o momento.

Comecei a seguir o movimento dos passos ritmados com a câmera e após

algumas dezenas de disparos, resolvi mudar o enquadramento para entrar

em um ângulo que não evidenciasse os rostos. O foco me chamou para o

enquadramento das mãos, que traziam além dos adereços (anéis,

pulseiras, esmaltes e lenços) gestos de cumplicidade e amizade com o

parceiro da dança e com os demais presentes.

Mais tarde, ao organizar as fotos, ainda na condição de dados, pensamos

que seria importante dar visibilidade a elas, imprimindo em papel para da

próxima vez levar de volta ao Karú. Assim surgiu a ideia de uma

apresentação articulada em algum espaço público da cidade. Quando

estávamos decidindo revelar em formato maior as fotos, o amigo e

professor Paulo Damé comentou em uma ocasião sobre uma fala da

artista, Georgia O`Keef que quando pintava flores em tamanho ampliado

dizia que era pra chamar atenção pra algo que guardava a beleza na

sutileza, mas que pode nos passar desapercebido, como uma relação de

amizade. Assim, queríamos mostrar com esse registro o movimento de

mãos que se unem na dança.

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Fotos selecionadas para compor apresentação para a ocasião da Festa de São Pedro, arquivo pessoal, 2015.

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Conseguimos chegar somente na sexta no fim da tarde e logo nos dirigimos ao local da festa, em frente à Igreja Paroquial. Lá, já estavam armadas as barracas de pastéis, espetinhos doces e salgados, entrevero*, meias, luvas, gorros e apetrechos de inverno, chaveiros e bugigangas vendidas na maioria das festas públicas. Também um mini-parque para as crianças que, apesar do frio não se importavam em brincar.

Fomos até um dos festeiros responsáveis, o policial Donizete, com quem tratamos antes para exposição das fotos tiradas no Grupo de Idosos do Centro de Convivência. Seis fotos de tamanho 40 por 60 ficaram expostas na barraca de venda dos tickets das bebidas, juntamente com algumas informações: nome e breve histórico do artista, vinculação ao Programa de Mestrado em Artes Visuais na UDESC, pequena descrição sobre as fotos e uma breve homenagem ao José Luiz Kinceler.

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Montagem da apresentação, registro de

Elaine Lima, 2015.

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Caixa do bar onde foram expostos os registros fotográficos durante festa de São Pedro. Seu Donizete sugeriu que colocássemos as fotos num varal ao lado do palco, na parte de trás, porém, ao caminharmos vimos a barraca de venda de bebidas... perguntei se seria possível colarmos as fotos ali, ele disse que sim, se não nos importássemos caso rasurassem as fotos por ser um lugar de movimento, dissemos que sem problemas e quando ficou pronto percebemos que melhor lugar não haveria, arquivo pessoal, junho de 2015.

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O local de exposição das fotos ficou bem no centro da festa, onde se

vendiam tickets de bebidas. De um lado estava o palco e de outro a

barraca com venda dos tickets das comidas.

Esta ação se fez curiosa aos nossos conterrâneos, pois a Festa de São

Pedro faz parte das comemorações juninas e julinas que acontecem

todo ano vinculadas aos santos da Igreja Católica, como São João.

Desta forma, muitas bandeirinhas compunham a decoração,

especialmente de cores azul e vermelho, cores representativas de São

Pedro. Fora isso, as barracas coloridas das guloseimas e os

brinquedos das crianças, não havia nenhum espaço para outro tipo

de exposição artística, de modo que as fotos cumpriram o papel de

uma certa descontinuidade no evento, causando impacto, não só

pelo ato em si, mas por sermos "de fora" e estarmos expondo fotos

"deles". As imagens não expunham os rostos das pessoas idosas, mas

suas mãos, sua dança.

No momento de colocação das fotos, praticamente estavam

presentes pessoas mais jovens. Mais a noite, a programação

contava com alguns shows e, em sua maioria, o público era

jovem, embora algumas pessoas idosas surgissem vez ou outra.

Sr. "Arcides", o vendedor de latinhas que faz suas refeições

durante a semana no Centro de Convivência e a sua ex-

companheira que chama a todos de "priminho" e "priminha",

também estavam lá, mais sujos do que das outras vezes,

parecendo estar com as mesmas roupas de quando os vimos,

apesar do frio da região nesta época.

Trecho do diário de campo de Elaine Lima da Silva, junho de 2015, arquivo pessoal.

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Festa de São Pedro durante o bingo de domingo que reúne cerca de 10 mil pessoas, arquivo pessoal, 2015

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Seu Maurício nos acompanha a cavalo até o seu sítio onde iria, com o genro mais novo, entrar no mato para colher uma pinha madura de uma araucária antiga. No caminho adiante visitaríamos o local onde fora a escola de meu pai, que segundo ele disse, algumas coisas não mudaram, mas outras estavam completamente diferente. se referia sobretudo ao pasto limpo que antes era mato. Registro por Orival Lopes da Silva, 2015.

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Elaine: Seu Maurício, o que o senhor costuma fazer durante o dia?Seu Maurício: ah, eu levanto cedo,primeira coisa vou tirar o leite, tiro um leitinho pro gasto, depois quando tem qualquer serviço pra fazer eu faço, faço cerca, planto, fico ali na lavoura, tenho trator ali, faço qualquer serviço com trator, roço o campo com trator, cuido da criação, tenho um gadinho lá no sítio (outro sítio uns 2 km dali onde estávamos). Todo dia quase tem que ir lá atender.Elaine - E o senhor vai como de ônibus, táxi?Seu Maurício: - não! vou de a cavalo, eu tenho um animal aqui, ali é perto é 2km, então eu monto a cavalo aqui, eu tenho uma égua baia muito bonita e sempre gostei da baia né, a piazada tudo são doida com as baia.Elaine - Qual a diferença da baia...

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Seu Maurício: - não, é porque eu acho bonito! aquela uma outra que tá lá no sítio é mais trotada, essa aqui é trote burro, mas também é égua boa. Daí eu planto as minha roça, pessoal todo mundo usa veneno né, põe aqueles banho de veneno pra passar o pasto e vir a planta. Eu não! meu terreno enquanto eu for vivo, não vai ter veneno, porque eu não vou comer algo contaminado,nem meus filhos, nem meus netos, aí depois que eu morrer, aí não sei ... o caso desse que mora lá em Curitiba, que é doutor, é contra sempre, ele acha que eu ... ele não disse pra mim, mas eu acho que ele acha que eu sou muito atrasado ... por exemplo, o equitare de terra que eu vou plantar milho, se for passar veneno, 2h vai lá com o trator e banha tudo, mata mata e eu vou limpando com aquela carpindeirinha que eu tenho ali com o cavalo né, 10, 15 dias, uma semana pra limpar. O cara acha que eu to muito atrasado, mas...

Trecho de conversação com Seu Maurício (81 anos),morador do Karú. Roteiro de perguntas por Elaine Lima.

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Numa das visitas à casa de Seu Vanderi ele me viu rabiscar um desenho e perguntou: “você desenha, olha se tem uma coisa que eu não sei é desenhar!” Assim me entregou este nó de madeira e outros menores para fazer alguns desenhos, arquivo pessoal, 2015.

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Páginas de uma pequena coleção “Ervas que Curam” que me foi emprestado pela Dona Beth, arquivo pessoal, 2016. 64

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Milhos nativos para o trato dos animais (galinhas, patos) na casa de Seu Helmar. Registro de Orival Lopes, abril de 2015.

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Estávamos sentados junto à mesa na primeira aula da disciplina ministrada pelo Prof. José Luiz Kinceler no segundo semestre de 2014, quando o professor, após apresentar o conteúdo inicial, tira de sua mochila uma espiga de milho, coloca no meio da mesa e pergunta: quem pode debulhar esta espiga de milho? Como nenhum dos presentes no momento se manifestou, o amigo e professor Paulo Damé se prontificou e deu a dica de como começar: tirando uma primeira linha da espiga com os dedos para depois torcer com os dedos e palma da mão. O primeiro passo facilita o segundo, disse. Em seguida, o professor Kinceler disse que naquele semestre iríamos trabalhar com o referente milho, dentro da noção de “sustentabilidade radical” que estava pesquisando e queria compartilhar naquele momento com a classe. Explicou um pouco sobre o significado deste grão para muitas civilizações, principalmente as latino-americanas e disse que a presença do milho, como base da alimentação deu lugar a outros grãos não originários, como o trigo. O milho que estava ali na mesa, segundo me contou em ocasião deste ano o Prof. Paulo Damé, era um milho crioulo que o Professor tinha “raptado” no final de uma cerimônia indígena que participara . O primeiro exercício proposto: distribuir estas sementes debulhadas de milho entre a turma. Cada um ficaria responsável por encontrar um local para plantar e cuidar do crescimento da planta para que num segundo momento realizássemos um encontro para degustar e trocar receitas elaboradas com base no milho. (...)

Maízes

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Pra cá do amola faca

Como nos contava vô João Maria:

"Diz que ali pra cá um poquinho do mola-faca (rio), sabe onde fica não é? tinha um tesouro embaixo de uma árvore grande. Vão, porque inda capaz de tá lá! Naquela época contavam que o pessoal costumava pegar algum bugre ou negrinho pra carregar as canastra cheio de ouro e enterrar bem longe da casa. Eles prometiam uma gorjeta praqueles que carregavam a canastra, mas depois que eles enterravam, matavam os coitado... pra ninguém mais saber onde tava o ouro. Aí, quando os donos morriam, ninguém mais sabia onde tava ... coitado..."

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Seu Leonel - Capão Alto. Até tinha um tal que era bisavô, vovô do meu pai, Eliziário Figueredo, coitado era pobrezinho! você ia lá visitar ele, que meu pai que contava, porque eu não conheci, ele tinha duas canastras, você acho que não sabe o que que é uma canastra…Elaine - eu esqueci... mas é tipo um baú?Seu Leonel - Isso!Dona Zena - ...tinha embaixo da cama dele…Seu Leonel- então ele... dizia: " você puxa essa canastra pertinho pra nós prosear, eu to meio surdo"... nem mexia, no tempo de .. jagunços…Elaine - ContestadoSeu Leonel - ...é que cuidava das fazendas…Elaine - sim, sim, os jagunços…Seu Leonel - Justamente!Dona Zena - ele tinha um rapaz que cuidava…Seu Leonel - ... quando foi... ele tinha... a metade do Cerrito era dele, a metade do Capão Alto também era dele ... tinha gado e tudo, aí o falecido meu pai sempre ia nos rodeios aqui em São José, ainda existe ... "é estão dizendo que o Elizeu tá quebrado", "tá devendo umas vaquinha pro senhor aqui", "mas eu não quero ser mais homem no mundo se eu não der conta de 1.500 contos em prata e ouro!" Ele pegou com os negro dele ... ele lidava com tropa... e ponhou…

Elaine - ... o seu bisavô?Seu Leonel - bisavô. Pegou aquela canastra e ponhava numa mula, mula acostumava…Dona Zena - ...com o peso...Seu Leonel - ...depois varava... ele morava no Capão Alto e varava pro Cerrito ... aí lá não sei como que a mula deu uma derrapada, quebrou a mula ... aí tiveram que mandar os negros de volta, pegar outra mula e ponhar o dinheiro ... porque naquele tempo não tinha banco, não tinha nada…Dona Zena - é... era enterradoSeu Leonel - era enterrado... pegaram aquele…Elaine - sabe o que que meu vô disse, agora que eu lembrei! cismou que era pra eu não sei quando... que pra cá do amola a faca, em algum lugar aqui, ele sonhava, ele sabia, disseram pra ele que tinha uma canastra cheia de dinheiro..Seu Leonel - então é aqui no São José…Elaine - ele vivia dizendo, ele fez eu prometer, mas como é que eu vou fazer isso?(risos)Dona Zena - (risos) ... tem que procurar a canastra!Seu Leonel - ... eles tem uma máquina, acho que tem até agora…Dona Zena - tem!Seu Leonel - de ver onde é que tem ouro..

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Elaine - porque deve ter né!Seu Leonel - tem! só porque não dá certo, que aquilo pega muita pedra, ferro ...Elaine - ah! pega muita pedra ...Seu Leonel - então desapareceu ...Dona Zena - as canastras ...Seu Leonel - não, desapareceu o negro ...Dona Zena - daí eles mataram o negro pra ficar cuidando do dinheiro ... daí por isso que era segredo né, daí pra você tirar, daí a pessoa às vezes achavam, mas via isso, via aquilo ...Elaine - Ah! mataram o negro porque ele sabia!Dona Zena - sim!Seu Leonel - pra você ver como é que era, não tinha banco, não tinha nada, tinha que esconder pra ninguém tirar...Dona Zena - matavam ... daí eles morriam né e ficavam lá ...Seu Leonel - meu pai herdou o terreno, daí que foi vendido aquele terreno e eu comprei aquiDona Zena - a herança da canastra …Seu Leonel - aí quando comprei aqui, muita gente dizia: "mas barbaridade ... "tem um irmão meu que faleceu ..., "mas o senhor foi vender 15 arqueires pra comprar um pedacinho ...", quando fez um ano que nós tava morando aqui, mas daí ainda foi o seguinte: larguemo naquele tempo …

Dona Zena - ah é! porque eu queria saber que não lembro mais...Seu Leonel - 150 mil réis que era...Dona Zena - 150 mil réis!Elaine - é quanto hoje?Seu Leonel - nem tenho ideia ...Elaine - mudou tanto o dinheiro né...Seu Leonel - Meu Deus!Elaine - mas acho que deve dá uns 50 mil reais será ...Seu Leonel - eu acho que mais ou menos... daí quando fez um ano... deu rolo e coisarada… era tão pouca coisa, que o João Pedro deu 130 mil réis e ficou 20 mil réis em haver pra ir pagando juroDona Zena - ... pagando juro! (risos)Elaine - Gente...Seu Leonel - então daí muita gente se apavorou ...Elaine - e o senhor não se arrependeu?Seu Leonel/Z - não!Seu Leonel - coisa melhor que fiz na minha vida!

Trecho de conversação com Seu Leonel e Dona Zena, a partir do roteiro de Elaine Lima, 23 de março de 2015, arquivo pessoal.

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Passagem do livro “Viaje a la Costa da Morte”, de Cesar Antonio Molina, Huerga y Fierro Editores, 2003.

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Avô João na janela de seu quarto. data aproximada do registro, 2001.

arquivo pessoal, 2015

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A partir da década de 1990, quando ficara viúvo, nosso avô, o "véinho das balas", como é conhecido até hoje, jogou balas e, algumas vezes bananas, pela janela do quarto que fica no segundo andar da casa de seu filho mais velho em São José do Cerrito SC, o Karú. As balas eram destinadas especialmente para as crianças que passavam por lá, geralmente indo ou voltando da escola. Poderíamos supor que tal atitude derivava de um velhinho sozinho no seu quarto, talvez privado de suas capacidades mentais, arremessando à esmo balas pela janela. Mas não. O ato em si, compreendemos como uma face do seu modo de vida, ao que Locks (1998) denominou de 'campesinidade', modos que os moradores do Cerrito, especialmente os agricultores - como nosso avô - vivenciaram suas relações sociais, permeadas pelo ethos do "puxirão", observa ainda Locks, é uma troca que ocorre entre as pessoas, entre seus trabalhos (...) ela aparece como uma ajuda, como prestação de serviço, como prestação comunitária. O puxirão certamente tem sua origem vinculada ao uso comum da terra e à economia de subsistência, onde inexistia o trabalho mercantilizado. (LOCKS, 1998, p.115). Para este autor, é possível que este ethos tenha influenciado, dentre outros fatores, a solidariedade entre os agricultores que vai além da cooperação no trabalho:

Cabelos brancos como a neve

Criamos sempre ao nosso redor espaços expressivos sendo o processo de valorização dos interiores crescente na medida em que a cidade exibe uma face estranha e adversa para seus moradores. São tentativas de criar um mundo acolhedor entre as paredes que o isolam do mundo alienado e hostil de fora. (BOSI, 2003, p.25)

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Afinal, de acordo com Oiticica (1986, p.20): "Habitar um recinto é mais do que estar nele, é crescer com ele, é dar significado à casca-ovo; é a volta à proposição da casa-total (...)". Consideramos aqui casa-total, a casa que anteriormente meu avô residia com minha avó, ampla, com vários quartos, cozinha, sala de estar, banheiro, sacada, "paiol"[1]. Conforme nos lembramos, o paiol da casa de nossos avós era um espaço para guardar ferramentas diversas, palha para cigarro, roupas de trabalho e outros apetrechos. Não havia janelas, somente uma porta e ficava numa casinha do lado de fora da casa principal. À "casca-ovo" atribuímos aos quartos em que residiu após sair da "casa-total", nele havia todos os elementos simbólicos necessários à continuidade de suas atividades diárias, pelo menos as principais, as que garantissem dar sentido à sua vida. Seu objetivo parece muito ao que Marandola Jr. (2012) destaca no prefácio de Topofilia, ao se referir o sentido do autor Yi-Fu Tuan a este conceito: "(...) seu objetivo era destacar de fato, o ‘amor ao lugar’, o laço afetivo que nos envolve com o ambiente, em busca daquela esperança e força necessárias para superar momentos de crise (...)". (MARANDOLA JR. prefácio, p.11).

Ela existe também na forma de empréstimo ou da troca de bens. "Quando não se produziu nada, ou muito pouco, que não é possível a família passar o ano, o vizinho empresta o feijão para vender ou para comer. Quando é carente se faz coleta e se dá, nunca se empresta. Cresceu a solidariedade, hoje, por causa da pobreza ” (Antônia R. Rodrigues, 44 anos in LOCKS, 1998, p.115). A hospitalidade nos Campos de Lages é considerada um cartão postal deste povo.Em sua pesquisa de campo, Locks (1998) relata, por exemplo, que o bolinho frito (que pode ser feito de farinha de milho ou trigo), ritualiza a vida diária da família. Quando chega uma visita, é muito comum ouvir: “vem lá em casa comer um bolinho frito”. Além de um ingrediente na dieta brasileira, simboliza amizade, acolhida, ou querer bem.(LOCKS, 1998, nota de rodapé, p.108)

Em nossas lembranças de neto e neta e das suas memórias contadas, na casa de nossos avós sempre fora um espaço de hospitalidade e de troca com a vizinhança, “compadres” e “comadres”. O bolinho frito, a polenta feita no fogão à lenha, o feijão "mexido", os biscoitos caseiros eram dispostos sempre à mesa quando uma visita chegava. E, a predileção de meu avô pelas crianças, faziam-no ter sempre ao seu alcance balas e bolachas para distribuir. Primeiramente em sua casa na cidade de Lages e depois, com a morte de sua esposa, a atitude continuou no seu quarto - no Karú e depois em minha casa na Ilha - o quarto, fora sua casa por inteiro.

paiol pai.ol sm (lat paniolu) 1 Depósito de pólvora, munições e outros petrechos de guerra.2 Armazém em que se depositam produtos da lavoura. 3 Tulha de milho ou de outros cereais. 4 Náut Compartimento grande, em navios, para arrecadação de bagagens, mercadorias etc. 5 Reg (Bahia) Monte de cascalho. 6 pop Barriga, estômago. P. de bater palhas: cômodo todo fechado, sem janelas, onde se rasgam e batem as palhas da carnaúba para extração do pó que dá a cera.

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Registro com as balas Vô João Maria,registro por Ágata Tomaselli, 2015.

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Desse modo, não era sempre preciso descer até o convívio com os demais da casa, já que estava-lhe sendo "muito custoso" descer as escadas do segundo andar daquele quarto. Tinha tudo que precisava ali e o banheiro ficava a alguns passos do quarto.

Esses móveis e objetos tiveram uma conotação no sentido de Bosi (2003, p.26): "Quanto mais voltados ao uso cotidiano mais expressivos são os objetos, os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda.” (BOSI, 2003, p.26).

De fato, a cabeceira de madeira da cama "brilhava" pelo uso contínuo em se apoiar nela para virar-se de um lado para o outro, sentar quando um visitante chegava - ele recebia-nos tal qual em sua "casa-total" com a mesma hospitalidade antes oferecida por uma cadeira, agora pela beira da cama - ou simplesmente se apoiar para ir até a janela. De todos os elementos dispostos, era a janela que dava para a rua principal da cidade, a que mais sentido fizera naqueles dias dos anos que se passaram. Como era de seu costume, as balas jamais saíram do bidê e, agora também ocupavam o guarda-roupa, pois sua quantidade aumentara.

Na "casca-ovo" do nosso avô sempre estivera ao lado de sua cama, um bidê, o mesmo que ganhara de presente de casamento, de cor clara, madeira rústica que se decompunha cada vez que suas gavetas eram abertas. Dentro delas, um retrato de São João Maria e da primeira Igreja do bairro Frei Rogério, onde morou em Lages. Uma carteira antiga com cartas e fotos diversas dos filhos e netos, documentos de identidade e de lavrador, orações de santos de sua preferência. Sacos plásticos amarrados com barbante contendo outros tantos papéis e, por vezes, quando isto passava batido de nossos olhos, pedaços de salame que "lambiscava" durante a noite, para não esquecer a reza. Alguns comprimidos para dor e claro, balas. Quando estava no Karú, fazia parte do seu quarto um guarda-roupa que fazia jogo com o bidê. Em seu interior, tão deteriorado quanto o outro, suas roupas surradas de anos de uso, alguns vestidos de sua senhora, santos e até uma foto de Adeodato, o último dos líderes da Guerra do Contestado. Esses móveis lhe acompanharam pela vida afora e "se a mobilidade e a contingência acompanham nossas relações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam". (BOSI, 2003, p.25). Uma mesinha de madeira mais escura nos pés da cama, parecia lembrar seu armário na "casa-total", estava quase sempre cheia de bananas, um bule de café, uma xícara, dúzia de ovos, caixas de leite.

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Na falta da esposa e de todos àqueles de sua geração que já haviam morrido antes dele, bem como da falta dos dias em que podia trabalhar na lavoura, fato que muito se lamentava, eram quase memórias bloqueadas, uma sombra que dava lugar agora para novas percepções sociais, mais do que isso, era ainda no sentido de Tuan (2012, p.18), "uma atitude, que é uma postura cultural, uma posição que se toma frente ao mundo. Ela tem maior estabilidade do que a percepção e é formada de uma longa sucessão de percepções, isto é, de experiências”.

Os modos de sociabilidade ou a campesinidade, atribuída por Locks (1998) permeou a vida de nosso avô, suas percepções e atitudes frente ao mundo, ao seu mundo, ao seu lugar-espaço, onde a vida acontecia.

Além dos netos, bisnetos e, porventura, uma ou outra criança - como eu - que subia até o seu quarto, as crianças da rua logo acostumaram com o "véinho das balas" de bigode e cabelos muito brancos e um chapéu anos 50 que ficava na janela à espera. Em uma das gravações que fizemos com meu avô sobre os motivos que o levaram a tal ato, uma delas nos chamou a atenção.Dizia ele: "

Cada pessoa desde pequena já tem uma ideinha. Veja, eu joguei balas para as crianças durante 14 anos e ficava observando ... as meninas distribuíam entre si, já os meninos não! os maiores ainda pegava as que podiam e saíam correndo sem dividir com os outros".

Essa observação e outras tantas que ele projetou nesta teia de relações possíveis, perpassa pelo caminho da percepção de Tuan (2012): “Percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas na cultura.” (TUAN, 2012, p.18)

Texto escrito em colaboração com Elaine Lima.

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(ao lado) estudo para embalagem e materiais para confecção das balas medicinais; (acima) segundo teste de receita com melado, coco, amendoim, alecrim e sementes de cardamomo (colaboração de Lucas Kinceler e Isabela Sielski com a cozinha e Ágata Tomaselli com os registros e preparos).

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Seu Toninho - Eu digo pra você que a velhice é uma coisa triste, porque eu cuidei da minha mãe na velhice. Ela faleceu com 91 anos. A minha mãe foi muito bem de vida, de saúde até 85 e depois ... foi terrível ... na verdade o povo tá envelhecendo né.Elaine - E São José do Cerrito também né ...Seu Toninho - O povo novo tá indo pra cidade né ...quem tá hoje numa zona rural? tá eu, velho com 57 anos, os novos quase não tem mais.Elaine- É verdade... vem pras festas (na ocasião era festa de São Pedro )Seu Toninho- Vem pras festas...Elaine - Onde o sr. nasceu?Seu Toninho - Nasci e me criei aqui, só saí pra fora pra fazer curso, mas a minha localidade é aqui mesmo. Então se o cara diz que eu nunca mudei, não! Eu fiz mudança de onze meses, onze meses não é mudança, fui pra Mato Grosso estudar homeopatia né, mas dá o que... é um mês que eu ficava lá, então na verdade morei sempre aqui né. Aonde eu morei mais fora, foi onze meses só. Isso foi em 1991.Elaine - E sempre aqui no sítio?Seu Toninho - Sempre aqui no sítio.Elaine - E gosta?Seu Toninho - Olha ... na verdade se fosse pra ir pra uma cidade barulhenta, eu digo pra você que não, eu gosto do sítio. Claro que a vida na cidade as coisas são mais acessíveis né, mas aqui no caso se dormir com uma porta destrancada , mas é claro, a gente não deixa né, quando a gente sai pra uma festa ou outra coisa, fica sem caseiro, eu digo que a vida é mais sossegada aqui né…Elaine - E não tem problemas de assaltos? assim, porque a gente sabe que agora tá começando ...

Seu Toninho - Não, é o seguinte, corre risco quando é aposentado, esse corre risco, vamos supor uma pessoa aposentada sozinha, corre muito o risco.Elaine - Eu sei que o senhor é homeopata, mas a sua profissão é essa?Seu Toninho - Não, não, eu sou mesmo, sou pequeno produtor rural orgânico. Homeopatia, eu faço esse serviço mais por ... porque esse negócio de viver com homeopatia ou de massagem, eu tenho que trabalhar pra sobreviver, hoje eu to guardando dia santo né que é o Dia de São Pedro né, senão tava na roça.Elaine - O senhor planta o que?Seu Toninho - Planto milho, feijão, amendoim, essas coisa pro gasto né...Elaine - Mais pra subsistência …Seu Toninho - É, mas eu produzo ... pra venda é muito pouco, claro que eu não vou consumir tudo, esse ano eu colhi já 8 sacas de feijão, então é assim. Daí a gente dá uns quilos, quando sobrar vende, é assim. Eu vendo leite de vez quando, coisa assim e vivo também , vamos supor, de alguma doaçãozinha, mas essa é pequena néElaine - Não é do dia-a-dia ...Seu Toninho- Não! se fosse viver disso aí, morria de fome. Claro, eu cuidava da minha mãe, hoje não, eu aguento mais as despesas, porque água aqui a gente não paga,dá pra se manter, mas não tem uma sobra grande néElaine - E o senhor sempre foi produtor rural autônomo?Seu Toninho - A vida inteira, eu nunca trabalhei assim por dia, vamos supor,de bóia fria ou diarista, agora trabalhei muito pra fora tocando no dia, hoje se acabou, mas eu fui um cara que toquei muito no dia com a vizinhança…

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Elaine - Entendi. E o trabalho de homeopatia começou quando?Seu Toninho - Boa pergunta. Vamos dizer que nasceu do vento né que senti por Deus. Vou contar primeiro minha história, depois falo da saúde. Agosto de 85 ... não sei se você quer saber essa base aí ...Elaine - Quero!Seu Toninho - Agosto de 1985 eu entrei na Pastoral da Saúde, eu era fitoterápico, tendência vamos supor ... mas entendia muito de botânica. Então seria isso aí. E se você não tá com muita pressa, eu começo desde a história que começou. Um cara entregou um livro pra mim, um ferreiro, ele hoje já morreu. Ele disse: "esses livros é pra vocês que estão na roça, pra nós não adianta". E eu peguei aquele livro e comecei a pesquisar, ler aquilo ali, gostei. E daí entrei na Pastoral da Saúde e eles já me pediram pra ajudar a dar curso né, assessorar a parte de fitoterapia, mas eu nem falava isso aí,nem sabia o que era. Daí eu entrei nessa parte, daí a gente foi pra Morro das Pedras (ARARANGUÁ) fazer curso e foi fazendo curso, na verdade não tem um grande colégio, mas sempre fazendo curso. Daí a gente ficou, daí quando foi o ex- Padre Angelo que inventou a homeopatia ali ele disse assim pra mim: "não, você vai ser homeopata" e eu em 1991, eu não entendia de homeopatia, eu pedi pro Padre Edson assim: "passa homeopatia pra aquela pessoa, ele tá com doença, tal patologia" ele pegava e passava, mas eu nunca pensava que eu ia naquele Nilo Cairo1, daí o Padre Angelo: "não, você vai e vai", aí daí fiz um curso meio de sondagem, coisa assim, pra depois ir pro Mato Grosso néElaine - Entendi …Seu Toninho - Aí trouxe uma professora, acho que deve ser morta já , doutora Nelci ... de Santa Rosa aqui do Rio Grande, daí ela deu um curso aqui, mas daí eles não quiseram né e me puxaram, fui em 95, 96, 97, 1998 me formei. Daí agora em agosto eu vou pro Congresso de Homeopata né...

Elaine - Se empenhou mesmoSeu Toninho - Não, daí eu comecei a ver resultado, mas quando eu fui, eu acreditava, eu tinha na minha ideia que não funcionava né, imagina umas gotinhas ... depois a gente começou a ver quem usa mais, vamos supor... Allan Kardec já usava anos isso aí né, se for pra pensar usava bem antes de tudo, e hoje eu defendo a tese que funciona né. E funciona mesmo! eu tenho dó, hoje atendi um senhor que eu disse: "ó, o senhor tá se envenenando" mas eu não tiro nenhum remédio de farmácia ... "ah, mas foi a médica ..." - "eu não vou dizer pro senhor parar de tomar nem nada, mas eu digo, o senhor aí com 70 anos com esse monte de remédio, 15 medicamentos...Elaine - Nossa...Seu Toninho - Muito né…Elaine - E o senhor atende aqui também? (Estávamos na casa dele)T - Não, é porque eles apareceram aí e a gente fica com dó, mas aqui eu não tenho nenhum remédio, mas a gente conversou tempo, ele tava depressivo e saiu melhor né. Conversou tempo, mas aqui eu não atendo, só claro, eu atendi hoje, eu não vou ser desumano e dizer: "não atendo hoje". E se eu to na roça e daí?Elaine - Pois é ...Seu Toninho - Aí ele disse: "achei que o senhor não ia receber nós". Disse: "não! recebo que isso, to na casa, não vou receber por quê?"

Trecho de conversação registrada com Seu Toninho (57 anos) em 9 de Junho de 2015, arquivo pessoal.

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Como últimas palavras desta apresentação gostaríamos de salientar este espaço com um espaço em construção, aberto e em vias de transformações inerentes ao desenvolvimento da pesquisa. Certamente ficaram de fora para esta ocasião parte da pesquisa, em registros bem como projetos que ainda não tiveram algum de seus desdobramentos mais importantes apresentados aqui nestas páginas como material de pesquisa, ainda sem o “contato” com as pessoas, como o dispositivo das “Balas Vô João Maria” que tem como uma das propostas gerar encontros e trocas com as pessoas que participaram desta história em comum com meu avô.

Sobre a maneira de trazer visibilidade a estes dispositivos, a última ida às terras altas do Karú nos aproximaram de uma Rádio Comunitária (Coração da Serra), onde realizamos um sorteio de um quadro com fotos de meu pai nas andanças pela cidade que ficaram expostas em dezembro de 2015 na prefeitura com as molduras “rústicas” feitas em parceria com Seu Vanderi (registros ao lado)). Sendo assim, a partir deste contato com a rádio serão articuladas ações com as propostas aqui relatadas, seja como veiculação ou como meio. (No caso das balas, uma das propostas é trocar balas por histórias e relatos veiculados na rádio)

(Ainda nas considerações, para o próximo feriado de Tiradentes será realizado um encontro imersivo de 4 dias na casa de Primo Hiago (foto ao lado) que tem como mote realizar um acampamento proposto a amigos e colegas de pesquisa como: “convite para cavar um buraco” que pretende aproximar pessoas de contextos e grupos diferentes com algumas das pessoas do Karú que aqui foram apresentadas, como uma forma de experienciar este “buraco” através do convívio e trocas de saberes e também como uma aproximação do modo de vida indígena do tempos das casas subterrâneas).

CONSIDERAÇÕES E OUTRAS NOTAS

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“Gostaria de começar com a célebre afirmação de Hannah Arendt, de que a essência da educação é o nascimento, o fato de que no mundo tenham nascido seres humanos. Agregando também que o nascimento está relacionado, para Hannah Arendt, à capacidade humana de começar. O novo começo, inerente ao nascimento, deixa-se sentir no mundo apenas porque o recém-chegado possui a capacidade de começar algo novo. Ou, como mencionou Hannah Arendt em outro lugar, os homens, mesmo que tenham que morrer, não vieram ao mundo para isso, mas para começar algo novo.”

Texto transcrito de apresentação de Jorge Larrosa Bóndia disponível em: https://educacaoeparticipacao.org.br/acontece/educacao-integral-crer-e-fazer/

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Vista do quarto da avó do Primo Hiago que ele está reformando para ser sua casa. Durante esta visita nos mostrou

suas plantações de cebola, morangos orgânicos e as roseiras que recém plantou para afastar “maus olhados” do cercado onde

plantou árvores frutíferas. Ainda nesta ocasião colheu ali mesmo e nos presenteou com um repolho que levamos para

Florianópolis, além de mostrar uma casa na árvore que pretende fazer uma biblioteca, arquivo pessoal, agosto de 2015.