Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

download Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

of 32

description

Ciudad Collage - Aprendiendo de Las Vegas

Transcript of Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    1/32

    COL lN R O W E E FR ED KOETTER C ID AD E -C O L A G EM

    Uma das teorias urbanas norte-americanas de maior influncia no perodo ps-mo-

    derno a que Colin Rowe e Fred Koetter desenvolveram no livro Col/age City

    [Cidade-colagem], escrito em 1973 e publicado em 1978. O excerto includo neste

    captulo foi publicado na revista mensal britnica Architectural Review, em 1975,

    e contm as seguintes sees: Depois do milnio , As crises do objeto: o irn-

    passe da textura , Cidade-coliso e a poltica da bricolagem e Cidade-colagem

    e a reconquista do tempo . Os problemas do urbanismo moderno tratados na pro-

    postados autores foram posteriormente resumidos por Rowe em termos pseudo-psica-

    nalticosnas expresses fixao no objeto, culto do Zeitgeist, inveja da fsica (ou pseudo-

    cincia)e stradaphobia .'

    O diagnstico de Rowe e Koetter baseou-se numa pesquisa que um grupo de alunos

    e professores da Universidade de Cornell realizou em Roma, cidade muito admirada como

    modelodo urbanismo tradicional. A adoo do dualismo figura/fundo como instrumento de

    anlisedo urbano despertou um novo interesse pela planta de Roma feita em 1748 por Nolli.

    Osdesenhos de Nolli ressaltam o papel dos espaos pblico e privado na determinao do

    carterda cidade. A principal descoberta do grupo de pesquisadores de Cornell foi que a

    arquiteturamoderna havia invertido a proporo entre espao livre e espao construdo,

    produzindo resultados desastrosos no nvel da rua. Privilegiando a construo de objetos,

    o modernismo criou reas sem vida no espao urbano, as quais dividiram vizinhanas, iso-

    larampessoas e isolaram as edificaes de seu entorno. Apesar de convenientes para os

    automveis, faltava a essas reas desabitadas as caractersticas de fechamento e de escala

    humanato tpicas dos espaos pblicos da Europa pr-moderna (cap. 9).

    A crtica de Rowe e Koetter prossegue com uma reviso dos modelos de utopia ur-

    banavigentes por volta de 1965, que variavam do nostlgico ao proftico . Esses di-

    ferentes modelos so importantes quando considerados em relao uns aos outros, mas

    vistos separadamente so rejeitados por serem demasiadamente radicais. Em lugar deles,

    Rowee Koetter propem a noo da colagem como uma tcnica e um estado de esprito

    tingido de uma certa ironia. Os autores propem esse mtodo fragmentrio como soluo

    parao problema do novo , sem sacrificar a possibilidade de um pluralismo democrtico:

    acidade-colagem [... J poderia ser um meio de admitir a emancipao e de permitir a todos

    Osparticipantes de uma situao pluralista sua expresso legtima

    Politicamente, a teoria de Rowe e Koetter influenciada pelos escritos pr-democrti-

    cosdo f i l f ' , . .

    so o austnaco do seculo XX Karl Popper, que defendem a necessidade de evitar

    mOdeloscoercitivos e totalizantes. Essa concepo antitotalitria liga os autores a pensa-

    doresp d ..

    s-mo ernos como Jurgen Habermas, Jacques Derrida e Jean-Franois Lyotard.

    O pensamento de Rowe e Koetter de que construir inevitavelmente envolve juzos de

    valore revela o contedo tico da boa sociedade reiterado por Philip Bess e Karsten Har-

    les

    cap

    8). Se Cidade-colagem e o livro de Venturi Complexidade e contradio (cap.1)

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    2/32

    contm argumentos inclusivos (ordem/desordem, acomodao e coexistncia , tant

    como etc.), preciso distinguir o enfoque pluralista de Rowe e Koetter da abordage

    de Venturi.

    A

    forma e a inteno das oposies (resumidas na expresso acornoda

    e coexistncia ) so similares nas duas obras. Rowe, Koetter e Venturi foram igualrne

    nte

    influenciados pela concepo de ambivalncia da teoria da Gestalt, que permite urna rnulti-

    plicidade de leituras.

    Mas as diferenas afloram com mais nitidez no livro poster ior de Venturi, Aprendendo

    com Las Vegas, escrito em parceria com Denise Scott Brown e Steven Izenour (ver um

    fragmento neste captulo). A posio populista destes ltirr;os evita deliberadamente as

    implicaes polticas de sua pesquisa, na medida em que recusa todo juzo de valor sobre

    o cor redor comercial de Las Vegas. J Rowe e Koetter, mais comprometidos com as

    questes ticas, vem com entusiasmo a hiptese de uma sociedade pluralista e d e um

    urbanismo que admite a mudana.

    1.Colin Rowe, The Present Urban Predicament'; Cornel Journal of Architecture 1, 1981, p. 17.

    2. Ib id., pp. 17-18.

    CO LlN R OW E E FR ED K OETTE R

    Cidade-colagem

    D EP OIS D O M IL N IO

    A cidade da arquitetura moderna, que j se tornou uma realidade quase irresistvel

    comeou a a trair mui tas c r ticas e susci tou dois est ilos bem dife rentes de reao, ne-

    nhum deles recente. Em suas origens, pode ser que essa cidade tenha sido uma

    r e :

    posta simblica s rupturas sociais e psicolgicas provocadas pela Primeira Gue .

    Mundia l e pela Revoluo Russa; e um est ilo de reao foi o de declarar a insuficin~

    do gesto inicial. A arqui te tura moderna no foi longe o bastante. Talvez a ruptura seja

    um valor em si; talvez devssemos ter mais rupturas; quem sabe abraando espe

    osamente a tecnologia. Hoje, devemos nos preparar para uma espcie de surfe c~

    putadorizado sobre e por entre as mars do tempo hegeliano em direo a um pOSS1V

    porto supremo de emancipao.

    Esta poderia ser uma inferncia aproximada da imagem do Archigram; mas q

    remos compar-Ia com uma imagem cuja inferncia justo o oposto. Como U

    9 4

    resentao da paisagem urbana, a praa do Harlem uma ten tativa consciente

    cep I A . .. ,. ti d

    lacar e conso ar. pnmelra Imagem e ostensivamente prospec rva, a segun a

    de ap

    I ,. I . d d

    'ntencionalmente nostlgica, e se ambas so totalmente a eatonas, a a eatone a e

    1

    uma pretende sugerir toda a v italidade de um futuro imaginrio sem preconceitos,

    de nto a aleatoriedade da outra pretende alud ir a todas as diferenciaes ocasio-

    enqua . . .

    is ue poder iam ter s ido provocadas pelos acidentes do tempo. A segunda Imagem

    na q d . E dinvia)

    sugere um mercado ingls (que tambm po er.la ser na scan m~vI~ que, apesar

    de atual (aatualidade correspondendo a

    195

    0 mais ou menos), tambem e o produto de

    todas asacumulaes e vicissitudes da histria.

    Com isso, no estam os fazendo uma apreciao da qua lidade de cada uma dessas

    imagens, nem propondo

    qual delas mais necessria,

    mas int roduzindo uma compa-

    caode cer to modo anloga. As duas partes so, em um dos casos, i ta lianas; no outro,

    americanas: o Admirvel Mundo Novo (os temas importunos da emancipao edo amor

    encenadosnum deserto, com uma fants tica montanha ao fundo) eo Admirvel Mundo

    Velho(uma cena forjada que insis te em que as coisas hoje so mui to mais parec idas do

    que jamais o foram). Uma um produ to do Superstudio, recen temente exibido pelo

    Museude Arte Moderna, e a out ra uma maquete para a Main Stree t da Disneylndia.

    E o argumento pode ser mui to s imples . O Supers tudio reconhece publicamente

    que idealiza todas as formas fsicas ar ti ficia is , objetos , edi fcios , como coerci tivos e

    tirnicos , destinados a rest ringir uma provvel l iberdade marcusiana de escolha. Ob-

    jetos,edif cios, formas fsicas so e devem ser considerados dispensveis, e a vida ideal

    deve ser irrestr ita e nmade - tudo o que precisamos de um grupo de coordenadas

    cartesianas ( representantes de uma est rutura e let rnica universal ); depois, estando

    conectados a essa rede de liberdade (ou viajando a lea toriamente a travs dela); a con-

    seqncia natural ser, ipso facto, uma existncia feliz e harmoniosa.

    Pois bem, se isso t raduz razoave lmente a poesia da imagem do Superstudio, no a

    distorce seriamente. Liberdade signi fica l iberdade em relao s coisas - l iberdade re-

    lativamentea toda a desordem de Veneza , Florena , Roma; l iberdade para explora r um

    eterno Arizona imaginrio, estender-se na esperana de tirar sustento do cacto ocasio-

    nal- ea idia de tal absoluta simplicidade s pode ser sedutora. Todos aqueles edifcios

    engraados de Le Corbusier desapareceram, todas aquelas extravagncias tecnolgicas

    dogrupo Archigram foram declaradas obsoletas. Em compensao, aqui estamos ns

    cOmorealmente somos, nus, verdadeiros, sem cu lpas e sem ofensas - tirante, claro, a

    certezade que , a li per tinho, existe um excelente restaurante e um Lamborghini pronto

    para nos levar at l.

    Dados ospressupostos da imagem ita liana, podemos aceitar sua lgica; mas, como

    um cabedal bsico da fico cientf ica, a imagem ainda autoriza a considerao da Dis-

    neylndia como um

    reductio ad absurdum

    da paisagem urbana. Pois este no um Ari-

    Zonade fantas ia , t rgico apesar de tudo, mas uma Main Stree t de comdia musical.

    9 5

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    3/32

    Apare~temente , a privao pode assumir diversas formas, e s eja l o que signifi

    qu~ uma lIb.erdade abstrata (No me confinem ou Por favor, me confinem s um pou

    qumho), a liberdade em Florena talvez no seja a mesma coisa que a liberdade e

    Dubuque. Mas isso mera intuio de que, assim como h um senso de abundnc~

    na Itlia, h um senso de privao em Iowa, po is nos lugares em que h muito tem a

    prepondera a realidade de uma rede per feitamente cartesiana de cidades, de estra:~

    rurais ou de campos, e onde essa rede contm um mnimo de interpolaes, rede e

    interpolaes assumem conseqncias diversas do que poderiam realizar em outros

    lugares. A rede deixa de ser um ideal desejvel, as interpolaes deixam de ser uma

    realidade desagradvel - a primeira se torna um fardo um tanto cansativo da vida, as

    interpolaes uma complicao j esperada. Se esse argumento for admissvel, pode-

    ramos, talvez, chegar a duas concluses:

    1.

    que o sucesso da Walt Disney Enterprises reside em proporcionar interpolaes

    significativas e espec ia is em uma rede abrangente e igualitria; e

    2.

    que o mundo de utopia proposto por uma organizao como o Superstudio so-

    mente pode funcionar como uma espcie de sinal aberto para futuros empres-

    rios do estilo Disney.

    Em outras palavras, a rede fundamental da liberdade - que se assemelha rede

    fundamenta l de Nebrasca ou do Kansas -, quer seja proposta como uma idia ou por

    convenincia, produzir uma reao mais ou menos previsvel, e a proposital elimi-

    nao do detalhe local, de ordem espacial ou psicolgica, provavelmente ser contra-

    balanada por sua simulao. Isso nos sugere que imagens do gnero daquelas duas

    se ligam em seqncia (como uma Universidade Livre de Berlim e um Port Grimaud)

    numa cadeia de causa e efeito.

    Contudo, isso no elimina uma questo importante, a questo importante da ex-

    clusividade das duas imagens, a presuno de profecia de uma, a suposta nostalgia

    de outra. Tal como as duas imagens inglesas anteriormente observadas, uma quase

    toda antec ipao; a outra, quase toda recordao ; e, a essa altura, no resta dvida so-

    bre a relevncia de aludir ao enorme absurdo dessa diviso, que parece ser muito mais

    uma questo de postura herica do que qualquer outra coisa.

    Trata-se, certamente, de um tipo de c iso, tanto mais flagrante quanto, de cada lado.

    h uma hiptese psicolgica inteiramente falsa - um tipo de ciso que no ajuda em nada.

    Dado que a fantasia da cidade universal de emancipao levou a uma situao abomin-

    vel, permanece o problema do que fazer. Os modelos utpicos reducionistas certamente

    submergiro no relativismo cultural em que, para o bem ou para o mal, estamos mer-

    gulhados, e somente seria razovel abordar esses modelos com muita circunspeco- as

    fragilidades inerentes a qualquer

    status

    quo institucionalizado (mais de Levittown. mais

    de Wimbledom, ainda mais de Urbino e Chipping Campden) tambm parecem indicar

    que nem o m ero dem-lhes o que querem nem a paisagem urbana no modificada tm

    6

    uficiente convico para oferecer mais que respostas parciais. Sendo esta a situao de

    s d os modelos eminentes, necessrio inventar uma estratgia capaz de acomodar -

    ~

    -se que sem calamidades - o ideal e q ue seja capaz de responder, plausivelmente e

    espera .

    desprezo, ao que se p oderia imaginar como a realidade,

    sem [ d ' .

    ]1

    Francis Yates, num livro recente, The Art ofMemory A arte a memona, men-

    . as catedrais gticas como artifcios mnemnicos. Bblias e enciclopdias, para

    cJOno

    u

    ...

    i1etrado

    s

    e para letrados, esses edifcios destinavam-se a slstema:lzar pensamentos, aJ,u-

    dando a lembr-Ios, e, na medida em que operavam como auxiliares de aula de escolas-

    cOI

    possvel trat-los como

    teatros de memria.

    Essa denominao til porque, se

    tIca, 11

    hoie em dia somente conseguimos pensar nos edifcios como necessariamente profti-

    J esse modo alternativo de pensar talvez sirva para corrigir nossa ingenuidade inde-

    co s,

    vidamente preconceituosa. O edifcio como

    teatro deprofecia,

    o edifcio como

    teatro de

    memria - se somos capazes de imagin-lo como uma coisa tambm o somos como a

    outra. E,embora reconhecendo que, sem o apoio da teoria acadmica, so estes os dois

    modos pelos quais habitualmente interpretamos os edifcios, a distino entre teatro de

    profecia e teatro de memria poderia ser transportada para a esfera do urbanismo.

    Essas observaes bastam para evidenciar que os defensores da c idade como tea-

    tro de profecia provavelmente sero considerados radicais, enquanto os expoentes

    da cidade como teatro de memria sero quase sempre vistos como conservadores.

    Mas, se alguma verdade existe nessas suposies, tambm deve ser possvel afirmar

    que esses conceitos, em bloco, no tm realmente muita utilidade. Provavelmente, em

    qualquer poca, a maior parte da humanidade , ao mesmo tempo, conservadora e

    radical, preocupa-se com o familiar e se perturba com o i nesperado, e, sens vivemos

    no passado tanto quanto confiamos no futuro (o presente no passando de um epi-

    sdio no tempo), parece razovel aceitar essa condio. De fato, se no h esperana

    sem profecia, sem memria no pode haver comunicao.

    Por bvio, trivial e lacnico que isso parea, feliz ou infelizmente, foi um aspecto do

    esprito humano negligenciado pelos primeiros proponentes da arquitetura moderna -

    felizmente para eles, infelizmente para ns. Mas, se sem essa distino psicolgica su-

    perficial o novo modo de construir jamais teria surgido, no h mais justificativa

    para no reconhecer a relao complementar, que fundamental para os processos de

    antecipao e retrospeco. No podemos realizar atividades interdependentes sem o

    exerccio de ambas, e nenhuma tentativa de suprimir uma no interesse da outra poder

    dar certo durante muito tempo. Podemos receber a energia da novidade da profecia,

    mas o nvel dessa energia deve ser estritamente referido ao contexto conhecido, qui

    banal e necessariamente carregado de memria do qual emerge.

    Adicotomia memria-profecia, to importante para a arquitetura moderna, pode

    ser considerada, por isso mesmo, totalmente ilusria, til a t cer to ponto, mas acade-

    micamente absurda se bem esmiuada. E, se isso for admissvel e parecer plausvel que

    9 7

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    4/32

    a cidade ideal que temos na cabea se amolde nossa constituio psicolgica, p

    se pensar que a cidade ideal , agora possvel de ser postulada, deve comportar-se a

    s tempo como teat ro de profecia e tea tro de memr ia .

    AS C R IS ES D O O BJE TO : O IM P AS S E D A TEXT U R A

    At aqui, tentamos espec ifica r duas verses da id ia utpica: a utopia como um ob-

    jeto implcito de contemplao e a utopia como instrumento explcito de mudana

    social. Depois , confundimos de propsi to essa dis tino introduzindo as fantasias

    da arquitetura como an tecipao e como retrospeco, mas, de modo sucinto, para

    esquecer essas questes secundr ias : no seria responsvel alimentar especulaes

    no terreno das utopias sem passar os olhos primeiramente nas consideraes de Karl

    Popper. Para esse efeito, h do is ensaios datados de fins da dcada de 1940: Utopia

    and Violence [Utopia e violncia] e Towards a Rational Theory ofTradition [Por

    uma teoria racional da tradio].

    2

    surpreendente que nenhum desses ensaios tenha

    sido at o momento citado por seus comen trios sobre os problemas da arquitetura e

    do urbanismo contemporneos.

    Como era de esperar, Popper severo com a utopia e indulgente com a tradio,

    mas esses ensaios deveriam tambm ser anali sados no contexto de sua contnua crtica

    pesada s vises indut ivas s impl is tas da c incia, a todas as doutrinas do determinismo

    his trico e a todos os teoremas sobre a soc iedade fechada, que comea a ser vista como

    uma das construes menta is mais importantes do pensamento filosfico do sculo xx.

    Popper , um libera l vienense, que residiu na Inglaterra durante muitos anos e que usou

    o que parec ia uma teoria do Estado prpria dos

    Whigs

    [membros do Partido Liberal in-

    g ls] como a ponta de lana de um ataque a Plato , Hegel e, no por acaso, ao Terceiro

    Reich, deve ser entendido como cr t ico da utopia e expoente da utilidade da tradio.

    Para Popper, a tradio indispensvel- a comunicao baseia-se na tradio , que

    est l igada percepo da necessidade de haver um ambiente social estruturado; a tra-

    dio o vecu lo crtico de um aperfeioamento da sociedade; a atmosfera de uma

    sociedade relaciona -se com a t rad io; e a trad io de certa maneira afim com o mito-

    ou, em outras palavras, tradies especf icas so de certa forma teorias incipientes, cujo

    valo r o dea judar a explicar a sociedade, ainda que o faam imperfeitamente.

    Mas essas afirmaes devem tambm ser entendidas paralelamente concepo de

    cincia da qua l provm, um modo de compreender a cincia que no a v tanto corno

    agregao de fatos , mas como cr tica r igorosa de hipteses. As hipteses que revelaJJl

    os fatos e no o inverso. Assim entendida, prossegue a argumentao, o p~pel das .:

    dies na sociedade mais ou menos equivalente ao das hipteses na cincia. Ist~ .

    mesma maneira que a formulao de hipteses ou teorias resulta da crt ica do ml~o.S

    De maneira semelhante, as tradies tm a importante dupla funo de naO

    criar uma determinada ordem ou algo parecido com uma estrutura social, mas tam-

    bm a de nos dar alguma coisa com que possamos trabalhar; algo que possamos criti-

    car e modificar. [E] tal como a inveno do mito ou das teorias no campo da cincia

    natural tem uma funo - a de nos ajudar a pr ordem nos acontecimentos da natu-

    reza -, a criao de tradies faz o mesmo no mbito da sociedade.

    Devem ser essas as razes pelas quais Popper contras ta uma abordagem racio-

    nal da tradio com a tenta tiva rac ionalista de transformar a sociedade pela ao de

    proposies abstratas e utpicas, que ele considera perigosas e perniciosas . A uto-

    pia prope um consenso em torno de objetivos, e impossvel determinar cientifi-

    camente objetivos. No h nenhum modo cientfico de escolher entre dois fins [... ]

    Sendo assim,

    o problema de construir um projeto utpico no pode ser resolvido somente pela cin-

    cia;desde que no podemos determinar cientificamente os f ins lt imos das aes po-

    lticas

    [ 0 0 ]

    elas tero, pelo menos a t certo ponto, o carte r de divergncias religiosas.

    E no pode haver nenhuma tolerncia entre essas diferentes religies utpicas [ 0 0 ] o

    utopista tem de derrotar ou esmagar seus competidores.

    Em outras palavras , se a utop ia prope a realizao de bens abstra tos em vez da erradi-

    cao de males concretos , tende a ser coerci tiva, pois bem mais fc il haver consenso

    sobre osmales concretos do que sobre os b ens abstratos . E se, por outro lado, a utopia se

    apresenta como um projeto para o futuro, duplamente coerc it iva porque ns n o p o-

    de mos

    conhecer o futuro. Mas, alm disso, a utopia especialmente perigosa porque sua

    inveno tende a Ocorrer em perodos de rpida mudana social, e os projetos urbanos

    utpicos provavelmente se tornaro obsoletos antes de serem postos em pr tica . Dessa

    forma,os formuladores de utopias tendero a inibir a mudana por meio da propaganda

    poltica,pela supresso da opinio dissidente e,se preciso for, pela fora fsica.

    O que se pode lamentar em tudo isso que Popper no tenha feito nenhuma

    distino entre a utopia como metfora e a utopia como prescrio. Mas, levando

    isso em conta, o que nos apresentado (apesar da abordagem da tradio ser des-

    necessariamente complexa e o tratamento da u topia, com certeza, um pouco rgido

    e abrupto) , por inferncia, uma das crticas mais devastadoras do arquiteto e do

    plane jador do sculo xx.

    A crtica de uma determinada ortodoxia contempornea tambm bastante co-

    nhecida. A posio popperiana que, em face do cienti ficismo e do his toricismo, ins is te

    na falibilidade de todo conhecimento deveria ser razoavelmente d ifundida' mas se

    , ,

    ~pper est obviamente preocupado com certas at itudes e procedimentos mui to i rra -

    Ciona is ,devido a suas conseqnc ias pr ticas, a condio intelectua l que ele se sentiu

    COmpelidoa rever fcil de demonstrar.

    9 9

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    5/32

    o

    anncio fei to pela Casa Branca, em

    13

    de julho de

    1969,

    da criao do Natio

    n

    als Research Staff declarava o seguinte:

    o

    nmero de instituies pblicas e privadas dedicadas a realizar previses vem

    au

    tando muito, j constituindo um corpo crescente de informaes que servem de;::-

    para a formao dejuzos acerca da provvel evoluo dos fatos no futuro e sobre as

    escolhas disponveis agora.

    H uma necessidade urgente de estabelecer uma conexo mais direta entre a

    spre_

    vises cada vez mais complexas que hoje so feitas e o processo de tomada de decises.

    A importncia prtica de criar essas conexes acentuada pelo fato de que pratica_

    mente todos os grandes problemas nacionais de hoje poderiam ter sido antecipados

    bem antes de atingirem propores crticas.

    Uma extraordinria quantidade de ins trumentos e t cnicas foi desenvolvida, pos-

    sibilitando a realizao de projees de tendncias e p ermitindo com isso fazer o t ipo

    de escolhas bem fundadas de que necessitamos para dominar o processo de mudana.

    Esses instrumentos e tcnicas vm sendo crescentemente utilizados nas cincias so-

    ciais e naturais, mas no foram aplicados de modo sistemtico na cincia do governo.

    Chegou o momento, em que podemos e devemos us-Ios.?

    ncia do governo , instrumentos e tcnicas que d e v em ser usados , previses

    lexas , o tipo de escolhas bem fundadas de que necessitamos para dominar o

    rocesso de mudana : isto [Claude-Henri] Saint-Simon e Hegel, os mi tos da so-

    iedade potencialmente racional e da histria inerentemente lgica instalados no

    is improvvel dos centros de poder. Com esse tom ingenuamente conservador e

    o mesmo tempo neofuturista, uma traduo popular do que hoje j folclore, esse

    iscurso poderi a ter sido criado sob medida para servi r de alvo s estratgias crticas

    Popper. De fato, se dominar o processo de mudana parece grandioso, a rigorosa

    l ta de sent ido dessa idia s pode ser acentuada, porque para haver domnio sobre

    processo de mudana preciso eliminar toda mudana, salvo as de menor impor-

    ncia e menos essenciais. Esta a idia central de Popper. Na medida em que a forma

    o futuro depende de futuras idias, tal forma no pode ser antecipada; port anto, as

    uit as fuses futuristas do utopismo com o historicismo (o curso atual da histria

    uj eito a um controle da razo) somente podem resultar numa restrio de toda evo-

    o progressista, toda verdadeira emancipao. Talvez seja este o ponto que nos

    rmite efetivamente dist inguir a essncia de Popper, o crtico partidrio da liberta-

    o do determinismo histrico e das concepes estritamente indutivas do mtodo

    ent f ico, o qual, mais que qualquer outro , esquadrinhou e discriminou o complexO

    fantasias histrico-cientficas que, para o bem ou para o mal, foi um elemento mo-

    i lizador do sculo xx.

    declarao da Casa Branca de 1969 (que foi to ironicamente falsificada pelos

    )

    t longe de ser mero absurdo. o tipo de declarao que po ena ser leito por

    fatOS eS b ., . )

    d

    s os governos atuais (d para imaginar suas verses francesa e ntamca.

    uase to o . .

    q

    decisionismo uma afirmao

    muito prxima,

    por seus pressupostos

    ~~re~' .

    , . do esprito geral da arquitetura moderna e, portanto, das atitudes correspon-

    baslcos,

    dentes dos planejadores. ...

    Os caminhos para o futuro estaro, enfim, bem pavimentados e livres de

    aciden-

    _ . tiro mais quebra-molas escondidos nem ziguezagues errt icos : averdade

    tes , nao exis . _ ' . ,

    final foi divulgada. Livres de pressuposioes dogmticas nos agora consultamos, do

    onto de vista lgico , apenas os fatos , e consul tando-os, estam~s , fi~a~mente, ap~os

    p . t a soluo fundamental universalmente abrangente e Jamais interrompida

    a proJe ar '. .. ..

    do d es ig n t ot al. Algo um pouco parecido com ISSO fOIe contmu~ a ser o =r:da

    arquitetura moderna; e se tudo o que o liga sociedade for obviamente emgmatlC~,

    podemos, mesmo assim, continuar meditando sobre os laos de parentesco da poli-

    t icatot al

    com

    a a rq ui te tu ra t ot al.

    bem provvel que, quando a explicao for enfim apresentada, se descubra que

    elasesto na mesma situao e que algo da poltica total e da arquitetura total est ine-

    vitavelmente presente em todas as projees utpicas. A utopia nunca oferece opes.

    Insisto: os cidados da

    Utopia

    de Thomas Morus

    no pod iam no se r fe lizes , po rque

    no pod iam escolh er outra c ois a s en o s er b on s.

    A idia de habitar na bondade, sem ca-

    pacidade de fazer uma escolha moral, tende a estar presente na maioria das fantasias,

    metafricas ou literais, sobre a s ociedade ideal.

    Endossar a utopia da sociedade ideal uma coisa, fazer-lhe a crtica outra, mas,

    para o arquiteto, o contedo tico da boa sociedade sempre foi algo que a construo de-

    viatornar evidente. A bem dizer, muito provvel que essa tenha sempre sido a referncia

    primordial do arqui te to , pois , a despei to de outras fantasias de controle que porventura

    tenham se misturado para socorr-lo - antiguidade, tradio, tecnologia -, estas foram

    invariavelmente concebidas como ajuda e estmulo a uma ordem social considerada de

    certa forma salutar ou decente.

    Assim, para no termos de recuar at Plato, mas pegando um trampolim bem

    mais recente, no

    Quattrocento,

    a Sforzinda, de [Antonio Averlino] Filarete, contm

    todas as premonies de uma situao pensada como inteiramente suscetvel ao con-

    trole. Lh uma hierarquia de edificaes religiosas, a

    regia

    principesca, o palcio da

    aristocracia, o estabelecimento mercant il , a res idncia part icular. Nos termos dessa

    gradao _ uma ordenao absoluta de

    status

    e de funes - que a cidade bem go-

    vernada setornou imaginvel.

    No entanto, ela continuou a ser uma idia e no se ps em questo sua aplicao

    imediata e literal. que a cidade medieval representava um ncleo no suscetvel ao

    hbito e ao interesse, e que no podia de maneira alguma ser diretamente transgre-

    3

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    6/32

    o

    o

    diagrama do projeto de

    Filarete para a cidade de

    Sforzinda (do Codex Maglia

    Beccianus) um antigo

    smbolo da ordem humanista,

    cujo suposto que todas

    as si tuaes humanas eram

    suscetveis a regras que

    asseguravam uma cidade

    hierrquica e bem organizada.

    \

    \

    \

    \

    ,

    I

    (

    Enquanto Versalhes a v erso construda de uma idia, aV illa Adriana, em Tvoli, o acmul

    o

    vrias idias . A Vill a Adriana ao mesmo tempo expe as exigncias do ideal e as necessidades d

    ad hoc. Nisso est o comeo da colagem.

    dido. Dessa fo rma, o problema do novo passou a ser uma inter je io subvers iva no

    interior da cidade - o Palazzo Massimo, o Campidoglio etc. - , ou manifes taes pol-

    micas fora da cidade - o j ardim revela o que a cidade dever ia ser.

    O jardim como uma crtica da cidade - cr t ica que a c idade mais tarde reconhe-

    ceu com fartura - ainda no recebeu suficiente ateno; mas se, fo ra de Flo rena, por

    exemplo, esse tema profusamente representado, sua afirmao mais extrema s

    ode encontrar-se em Versalhes, essa crtica seiscenti sta da Paris medieval que [Eu-

    zne Georges] Haussmann e Napoleo

    III

    levaram to a srio muitos anos depois.

    g Viso proftica da cidade, uma verso em tamanho grande da utopia moda de

    Filarete, com as rvores no lugar dos edifcios, num exagero literal do decoro ut-

    pico, Versalhes nos serve agora como uma espcie de caixa de cmbio para dar incio

    a uma nova fase da argumentao. Temos ento a Versalhes impassvel, destituda

    de ambigidades. O padro t ico se anuncia ao mundo, e o annc io evidentemente

    no refutado. Isto controle total e sua brilhante ilustrao.

    a vitria da gene-

    ralidade, a prevalncia da idia irresistvel, o cancelamento da exceo, e a analogia

    bvia com que cotej-Ia, para nossos fins, a Villa Adriana, em Tvoli. Se Versalhes

    pode ser vista como um esboo para o design total num contexto de pol tica total, a

    Villa Adriana tenta dissimular toda referncia a uma idia de controle. Uma toda

    unidade e convergncia; a out ra toda dispar idade e divergncia. Uma se apresenta

    como organismo inteiro e completo; a outra, como dialtica viva dos elementos que a

    compem: comparado com a obstinao de propsito de Lus XIV, Adr iano, que pro-

    pe o oposto de qualquer total idade , s parece precisar de um acmulo dos mais

    variados fragmentos.

    Ambas so evidentemente aberraes, produtos do poder absoluto, mas so os

    produtos - quase ilustraes clnicas - de psicologias completamente diferentes. O

    confronto entre Lus

    XIV

    e Adriano poderia ser mais bem interp retado por uma cita-

    o de Isaiah Berlin. Em seu famoso ensaio, Berlin distingue duas personalidades: o

    ourio e a raposa. A raposa conhece muitas coisas, mas o ourio conhece uma grande

    coisa.

    Eis o texto que foi escolhido para ser trabalhado e servir de pretexto para a con-

    tinuao do argumento:

    h um grande abismo entre, de um lado, aqueles que relacionam todas as coisas a

    uma s noo fundamental, um sistema mais ou menos coerente ou articulado, em

    cujos te rmos e les compreendem, pensam e sentem - um s princpio universal de

    organizao em funo do qual tudo o que elesso e dizem tem significao; do outro

    lado, existem aqueles que perseguem muitos fins, no raro desvinculados e at contra-

    ditrios; se alguma conexo existe, apenas

    de facto,

    por conta de alguma causa psi-

    colgica ou fisiolgica. Desvinculados de qualquer princpio moral ou esttico, estes

    ltimos vivem, realizam aes e alimentam idias mais centrfugas do que centr petas;

    3 3

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    7/32

    seu pensamento disperso ou difuso, move-se entre muitos nveis, apreendendo a

    essncia de grande var iedade de experincias e objetos pelo que so em si, sem buscar,

    consciente ou inconscientemente, ajustar-se a eles ou exclu-Ias de qualquer noo

    interior unitria, imutvel e, svezes, at fantica.

    O

    primeiro tipo de personalidade

    intelectual e artstica pertence ca tegor ia dos ourios; o segundo, das raposas.'

    Entre essas duas categorias, as grandes personalidades do mundo se distribuem de modo

    mais ou menos eqitat ivo: Plato, Dante,

    [Fi dor ]

    Dostoivski, [Mareei] Proust so, no

    precisa dizer, ourios; Aristteles, [William] Shakespeare, [Aleksandr] Pushkin, [James]

    Ioyce so raposas. Essa dis tino elementar ; mas podemos estender o jogo a outras

    reas, se o que nos interessa so os representantes da li teratura e da filosofia. [Pablo]

    Picasso uma raposa; [Piet] Mondrian, um ourio, as figuras comeam a tomar seu lugar

    e, quando nos voltamos para a arquitetura , as respostas so quase inteiramente previs-

    veis. Palladio um ourio; Giulio Romano, uma raposa; [Nicholas] Hawksmoor, [Iohn]

    Soane, Philip Webb provavelmente so ourios.

    quase cer to que [Christopher] Wren,

    [John] Nash e Norman Shaw so raposas; mais recentemente, se [Frank Lloyd] Wright,

    sem sombra de dvida, um ourio, [Edwin] Lutyens com certeza uma raposa.

    Mas, aprofundando um pouco mais a lgica dessas categorias, medida que nos

    aproximamos da arquitetura moderna comeamos a reconhecer a impossibilidade de

    chegar a uma dis tribuio simtrica . Pois se [Walter] Gropius, Mies, Hannes Meyer,

    Buckminster Fuller so obviamente ourios, onde esto as raposas para completar o

    rol? A preferncia evidentemente uma s.

    A viso central prevalece.

    H uma predo-

    minncia de ourios, mas, se s vezes temos a impresso de que os temperamentos do

    tipo raposa so marcados pela dubiedade e, portanto, no tendem a se revelar, ainda

    assim resta a tarefa de atr ibuir um lugar a Le C orbusier, quer seja ele um monista ou

    um pluralista, quer sua viso tenda ao um ou a muitos, quer ele tenha uma s substn-

    cia ou uma mistura de elementos heterogneos P

    Berlin faz essas mesmas perguntas a respeito de [Liev] Tolsti - perguntas que ele

    mesmo afirma no serem de todo relevantes; e, e m seguida, arrisca sua hiptese:

    que Tols ti - uma raposa por natureza, mas que acreditava ser um ourio; porque

    seus dons e realizaes so uma coisa, enquanto suas crenas e, por conseqncia, sua

    interpretao das prprias realizaes, so outra; e que, conseqentemente, seus ideais

    induziram-no, bem como aqueles que foram levados por seu talento para a persuaso,

    a um sistemtico mal-entendido acerca do que ele e os outros estavam fazendo ou

    deviam estar fazendo.

    Como tantas out ras teses da cr tica literria transpostas para o contexto da arquitetura,

    a tipologia parece dar certo e, mesmo sem forar muito a barra, ela nos fornece uma

    3 4

    explicao parcial. De um lado, temos o Le Corbusier arquiteto, com sua intelign-

    cia arguta e contraditria , como o definiu William [ordy.? a pessoa que constri

    com requinte supostas estruturas platnicas s para ench-Ias com uma igualmente

    caprichada simulao de detalhe emprico, o Le Corbusier das mltiplas digresses,

    referncias cerebrais e complicados

    scherzi.

    De outro lado, temos o Le Corbusier ur-

    banista, o protagonista enfadonho de estratgias completamente diferentes das pri-

    rneiras, que, num espao pblico amplo, usa minimamente os truques dialticos e as

    involues espaciais que normalmente considerava serem adornos adequados a uma

    situao privada. O mundo pblico simples, o mundo privado complexo. E, se o

    rnundo privado aparenta uma preocupao com a contingncia, a possvel persona-

    lidade pblica sustentou por muito tempo um desdm quase arrogante por qualquer

    laivo do especfico.

    Mas, se a combinao de casa complexa e cidade s imples parece estranha (o inverso

    seria mais lgico) e se para explicar a discrepncia entre a arquitetura e o urbanismo de

    LeCorbusier podemos sugerir que ele fosse uma raposa fingindo-se de ourio para fins

    pblicos , o que fizemos foi construir uma digresso dentro da digresso. J observamos

    anteriormente a relativa ausncia de raposas na atualidade; voltaremos a essa segunda

    digresso mais adiante. Por ora, cabe lembrar que o desvio para a questo da raposa

    ver-

    sus

    ourio teve outros propsitos: o de definir Adriano e Lus XIV como representantes

    mais ou menos autrquicos desses dois tipos psicolgicos, possuidores de poderes auto-

    crticos para cultivarem suas propenses inatas e depois indagarem dos seus produtos:

    qual deles poder ia se r visto como o melhor modelo para os dias de hoje - a acumulao

    disparatada de fragmentos ideais ou a exibio de um todo coordenado?

    A Villa Adriana uma Roma em miniatura. Ela reproduz de maneira plausvel to-

    dos conf litos entre peas ideais disparatadas e todos os acontecimentos empricos ale-

    atrios que Roma exibia em profuso. um endosso conservador de Roma, enquanto

    Versalhes u ma crtica radical de Paris. Em Versalhes , tudo projeto, total e comple-

    tamente, mas em Tvoli, assim como na Roma de Adriano, o projetado e o no-proje-

    tado modificam e amplificam suas respectivas mensagens. Adriano um dos cultu-

    ralistas de Franoise Choay, preocupado com o emocional e o usvel; mas, para Lus

    XIV, o progressivista (com a ajuda de [Jean-Baptiste] Colbert), a exigncia que

    presente e futuro sejam explicveis pela razo. Idiossincrasias aleatrias, diversidade

    local tm . fl A d d ..

    _' pouca m uencia nessa a titu e, e quan o as racionalizaes de um Colbert

    sao transmit idas por intermdio de [Anne-Robert-Jacques] Turgot a Saint-Simon e

    Auguste Com te, que se comea a perceber a enormidade proft ica de Versalhes.

    .No h dvida de que ali, em Versalhes, esto prefigurados todos os mitos da

    SOCiedaderacionalmente organizada e c ientf ica , a sociedade em que no h lugar

    para o acidental, a sociedade governada pelo conhecimento e pela informao, na

    qual todo debate se tornou suprfluo. Se em seguida saturamos esse mito de fanta-

    3 5

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    8/32

    sias sobre a evoluo histrica e, ainda mais, da ameaa da condenao eterna ou do

    culto da crise, podemos chegar perto de um estado de espr ito no muito distante do

    que norteou os primrdios da arquitetura moderna. Mas, se ca~a .vez mais difcil

    conter o riso ante a velha histria de que, para evitar o desastre iminente, a huma_

    nidade deve conduzir-se em estreita sintonia com as foras inelutveis do destino,

    ento, se nos emancipamos por nosso riso, talvez seja o caso de (a sugesto feita

    com a devida hesitao) consultar o que fomenta, em primeiro lugar, o gosto e,em

    segundo lugar, o senso comum. .

    O gosto no mais - e talvez nunca tenha sido - uma questo sna ou substancial,

    e falar em senso comum deve inspirar igualmente certa reserva. Apesar de toscos, es-

    ses conce itos podem ser teis como instrumentos rudimentares para ~ma outra abor-

    dagem da Villa Adriana. Dada a igualdade de condies no qu~ re~pelta, ~o tamanh~

    e perenidade em Versalhes e T voli, quase certo que a ~referenCl~ e~tetlca .espo~ta-

    nea dos dias de hoje recai nas descontinuidades estruturais e nas mltiplas vibraes

    sincopadas que a Villa Adriana apresenta. Da mesma forma, a despeito da e~c~upu-

    losa preocupao contempornea com

    um pr incpio centra l,

    c~m uma cO~~lao .de

    total, holstica e original continuidade, evidente que as multlfacetadas.

    di sjun e s

    da Villa Adriana, a inferncia admitida de que ela foi construda por muitas pessoas

    (ou regimes polticos) em diferentes pocas histricas, seu aspecto de c~mbinao ~~

    contrad itrio com o racional, poderia recomend-Ia ateno das sOCledades

    po lti-

    cas em que o poder muda de mos com freqncia e tolerncia. .

    Levando em conta a controversa atitude antiutpica de Karl Popper e, basica-

    mente , a ins inuao antiourio de Isaiah Berlin, o favoritismo do argumento j de~e

    ter se tornado claro: melhor pensar numa acumulao de pequenas peas formais,

    ainda que contraditrias (como produtos de diferentes regimes) do que alimenta~

    fantasias sobre solues totalizadoras e sem falhas , que a estrutura poltica acabara

    , . d odelo

    abortando . Is so implica estabelecer a Villa Adriana como uma

    especie

    em. .

    q

    ue demonstra as exigncias do ideal e as necessidades do a d h oc ; uma outra Impli-

    , . d ponto

    cao que esse tipo de instalao es t comeando a se tornar necessana o

    de vis ta poltico. 'te-

    Mas a Villa Adriana no se reduz, decerto, a mera coliso fs ica de obras arqut

    b enta uma

    tnicas. Ela no uma simples reproduo de Roma, porque tam em apres .

    . c

    E' t al iparece

    iconografia to complexa quanto sua planta. Aqui uma rererencia ao gl o,

    . . b fi' m en te

    a

    q

    ue es tamos na Sria, e mais adiante podena ser Atenas. Assim, em ora

    si ca

    . . I

    b

    t como uma

    vi lla

    se apresente como uma verso da metrpole impena ,tam em a ua , 'e

    . . I I como uma sen

    ilustrao ecumnica da mistura promovida pe o mpeno e, quase, S

    . V'U Ad . fora o

    de recordaes das viagens de Adriano. Isso quer dizer que, na I a riana, a e

    d . d na pr

    conflitos fsicos (ainda que dependendo deles) estamos, antes e mais na a, . o

    c .. b li EIsS

    sena de uma condio extremamente condensada de relerenClas sim o icas.

    3 6

    nos leva a introduzir um outro argumento cujo desenvolvimento temos de postergar

    um pouco: que na Villa Adriana estamos na presena de algo parecido com que o hoje

    se costuma chamar de

    co lag em .

    CI DAD E-COLIS O E A P OLTIC A DA BR IC OL AGEM

    o

    culto da crise no perodo entre as duas guerras mundiais: antes que seja tarde a

    sociedade deve livrar-se de sentimentos, pensamentos e tcnicas obsoletas; e se, no

    intuito de sepreparar para sua iminente libertao, ela es tiver pronta para fazer

    tbula

    rasa, o arquiteto, figura-chave dessa transformao, deve estar pronto para as sumir a

    liderana histrica. Porque o mundo construdo da habitao e dos empreendimen-

    tos humanos o bero da nova ordem, e se o arquiteto h de acalent-lo como deve,

    precisa es ta r preparado para secolocar na linha de frente da batalha a favor da huma-

    nidade. Embora o arquiteto alegue ser um cientista, possvel que nunca tenha traba-

    lhado antes em circunstnc ias psicolgicas e polticas to fantsticas. Mas, se tudo'isso

    so digresses, vemos as razes - razes do corao, como diz Pascal - que fizeram a

    cidade ser pensada como mero resultado de descobertas cientficas e de uma cola-

    borao humana absolutamente ditosa. Eis em que se transformou a utopia ativista

    do design total. Talvez seja uma viso irrealizvel; para aqueles que esto esperando

    hcinqenta ou sessenta anos (muitos j devem ter morrido) o estabelecimento dessa

    cidadeutpica, j deve te r se tornado claro que a p romessa - tal como foi formulada - no

    pode ser mantida. Ou, ento, poder-se-ia pensar que, se a mensagem do design total

    teve uma trajet ria um tanto suspeita e muitas vezes provocou ceticismo, ela continua

    a ser, quem sabe at hoje, o substrato psicolgico da teoria urbana e de sua aplicao

    prtica . A verdade que essa mensagem tem sido to pouco reprimvel que, nos l-

    timos anos, surgiu uma verso renovada e literal dela na forma de interpre taes da

    abordagem sistmica e outros achados metodolgicos .

    Introduzimos as id ias de Karl Popper principalmente para re ferendar um argu-

    mento ant iutpico com o qual absolutamente no concordamos; no en tanto , a d vida

    q.uetemos com Popper deve ter ficado patente em nossa interpretao da utop ia ati-

    Vista.De fato, dif cil escapar do ponto de vista de Popper, principalmente quando

    extensamente desenvolvido como em

    Th e Lo gi c o f S ci en ti fi c D is covery

    (1934) e

    The

    Pove rty ofHistoricism

    (1957). 11

    Poderia ter nos ocorrido que a idia da arquitetura mo-

    ~erna como cincia, integrada a uma cincia total e unificada, cujo modelo ideal a

    ~Islca(a melhor de todas asc inc ias), dificilmente sobreviver ia num mundo que inclui

    Justament ti . C

    e a cn ica poppenana a essas rantasias. Mas pensar assim no leva em conta

    adequadamente quanto o debate na arquitetu ra hermtico e atrasado. Nas reas em

    que a c

    ti .

    d hecid '

    n ica poppenana parece ser escon eci a e onde tambem se presume que a

    clencia d di da arcui d I

    s pnmor IOS a arqurtetura mo erna amentavelmente deficiente, nem

    3 7

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    9/32

    preciso dizer que os mtodos propostos para a soluo de problemas so complica_

    dssimos e demorados.

    Basta observar a tentamente a minuc iosa exa tido do processo descri to em Notes

    on the S yn th es is o f F or m ? para ter uma idia disso. Trata-se evidentemente de Ulll

    processo limpo , que lida com dados limpos , atomizados, purificados e nova_

    mente purificados; tudo obviamente salutar e h iginico . Mas, por resultarem das

    caracte r st icas inibidoras do compromisso, sobretudo do compromisso com a fsica,

    o resul tado nunca parece to impor tante quanto o processo. E algo semelhante pode

    ser dito sobre a produo correlata de ramos, redes , diagramas e colmias que, em fins

    dos anos 1960, se tornaram procedimentos to consp cuos. Ambos so tentativas de

    evitar qualquer imputao de desvio tendencioso ; e se, no primeiro caso, existe a s u-

    posio de que os fatos so veri ficveis e isentos devalor, no segundo, atribui-se igual

    imparcialidade s coordenadas de um diagrama. como se houvesse a crena deque,

    tal como os paralelos de longitude e latitude, as coordenadas do diagrama eliminaro

    toda e qualquer tendenciosidade, ou mesmo responsabilidade, na especificao do

    detalhe de preenchimento.

    Se o observador neutro ideal sem dvida uma fico ; se, entre a multiplicidade

    dos fenmenos que nos cercam, ns observamos o que queremos observar; s enos sos

    julgamentos so inerentemente selet ivos , porque impossve l ass imilar toda a quan-

    t idade de informaes factua is; e se todo uso literal de um diagrama neutro tem

    E NT IR E V IL LAGE

    A 8 C D

    ~~~~

    AI A2A3 8 82 B3 B4 CI C2 DI D2D3

    A1

    contm os requisitos

    7 , 5 3 , 5 7 , 5 9, 6 0, 7 2, 1 25 , 1 26, 128 .

    A2

    contm os requisitos

    3 1, 3 4, 3 6, 5 2, 5 4, 8 0, 9 4, 1 06 , 1 36 .

    A3 contm os requisitos 3 7, 3 8, 5 0, 5 5, 77 . 91 . 103.

    81

    contm os requisitos

    3 9, 4 0, 4 1, 4 4, 5 1. 1 18 , 1 27 , 1 31, 138 .

    82

    contm os requisitos

    3D , 3 5, 4 6, 4 7, 6 1, 9 7, 9 8.

    Diagrama publicado em Notes on the Synthesis of Form, de Chr is topher Alexander.

    dificuldades para dar conta de problemas semelhantes, o mito do arquiteto como fi-

    lsofo natural do sculo

    XVIII -

    com suas pequenas varetas de medir, suas balanas e

    reto

    rtas

    , ao mesmo tempo Messias e cientista, Moiss e [Isaac] Newton (um mito que

    ficoUainda mais ridculo depois de sua anexao pelo primo pobre do arquiteto, o

    planejador) - deve agora ser confrontado com O

    p en sa m e nt o s e lv ag e m

    e com tudo

    o que a bricolagem representa.

    Subsiste entre ns , escreveu Claude Lvi-Strauss,

    umaforma deatividade que, no plano tcnico, nos permite compreender muito bem o que,

    no plano da especulao, podia ter sido uma cincia que preferimos chamar de primeira ,

    em vezde primitiva .

    o que secostuma chamar, em francs, de bricolagern .

    Lvi-Strauss p ros segue fazendo uma minuciosa anlise dos diferen tes objetivos da

    bricolagem e da c inc ia, dos dife rentes papis do bricoleur e do engenheiro.

    Em seu sentido antigo, o verbo

    brico ler

    seaplicava ao jogo de bola e d o b ilhar, caa

    e

    equi tao, mas sempre para evocar um movimento inc idental : o da bola que ri -

    coche teia, do co que corre ao acaso, do cava lo que sedesvia da l inha re ta para evi ta r

    um obstculo. E ,em nosso tempo, o bricoleur ainda uma pessoa que trabalha com as

    mos, usando meios divergentes em comparao com os do

    arteso.

    No nosso props ito apo iar toda argumen tao que se segue nas observaes de

    Lvi-Strauss. O que pretendemos to-somente incentivar uma identificao que se

    most re de cer ta forma ti l, de modo que, se nos incl inarmos a reconhecer Le Corbu-

    siercomo uma raposa disfara da de ourio, tambm podemos imaginar uma tentativa

    anloga de camuflagem: o

    bricoleur

    disfarado de engenheiro.

    Os engenheiros fabricam as fe rramentas do seu tempo. Nossos engenheiros so sau-

    dveis e vir is, ativos e teis, equi librados e fel izes no seu t rabalho [ .. . ]nossos enge-

    nhei ros fazem arqui te tura porque empregam um clculo matemt ico que deriva da

    lei natural.

    Eis uma afirmao quase cabal do mais consp cuo preconceito dos p rimrdios da ar-

    quitetu ra moderna. Comparemos com o que diz Lv i-Strauss:

    O bricoleur capaz de executa r grande nmero de tarefas diversificadas, mas, ao con-

    trrio do engenheiro, ele no subordina cada uma delas obteno de matrias-primas

    e ferramentas concebidas e arranjadas sob medida de seu projeto. Seu universo de ins-

    t rumentos fechado e asregras do seu jogo sempre implicam arranjar -se com o que

    309

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    10/32

    estiver

    mo , is to ,com um conjunto de ferramentas emateriais que s empre finito

    e tambm heterogneo, porque a composio do conjunto no tem nenhuma relao

    com o proje to do momento, nem sequer com qualquer projeto em especial, mas o

    resultado contingente de todas as ocasies que seapresentaram para renovar ou enri-

    quecer o estoque, ou para conservar-lhe osres duos deconstrues ou de destruies

    anteriores. Portanto, o conjunto de meios do bricoleur no pode ser definido por um

    projeto (oque pressuporia, ademais, como no caso do engenheiro, que houvesse tantos

    conjuntos instrumentais quantos fossem os tipos de projetos, pelo menos em tese). S

    podemos defini-Ia por sua instrumentalidade [...] porque oselementos so colhidos ou

    guardados devido aoprincpio de que sempre podem servir para alguma coisa. Esses

    elementos so de certo modo especializados, apenas o suficiente para que o bricoleur

    no necessite do equipamento e do conhecimento de todos osofcios e profisses, mas

    no o suficiente para que cada um deles se restrinja a um uso definido e predetermi-

    nado. Cada e lemento representa um conjunto de re laes concre tas e possveis; so

    operadores , mas utilizveis em quaisquer operaes do mesmo tipo.

    Infelizmente para ns, Lvi-Strauss no se presta a citaes razoavelmente lacnicas. Pois

    o brico/eur, que certamente encontra um representante no homem de sete instrumen-

    tos , muito mais que isso. Todo mundo sabe que o art is ta tem alguma coisa de cientista

    e de

    bricoleur?

    Mas, sea criao artstica est a meio caminho da cincia eda bricolagem,

    isso no quer dizer que o bricoleur seja atrasado . Pode-se dizer que o engenheiro ques-

    tiona o universo , enquan to o bricoleur foca liza uma coleo de sobras produzidas pela

    atividade humana . Mas tambm preciso repetir que no h nisso nenhuma questo

    de primazia. O cientista e o

    brico/eur

    simplesmente devem ser distinguidos

    . .' t t a como

    pelas funes inversas que eles atnbuem aos acon teCimentos e a es ru ura, .

    ... . ] . d t s e o

    brlco

    meios e fins, o Cientista cnando aconteCimentos [ ... po r meio e estru ura

    . d . t 19

    leur crindo estruturas por meio osaconteClmen os.

    ., . . 1

    cada vez mais

    J nos afastamos muito da noo de uma

    cincia

    exponenCla,

    b

    . . 0como es-

    exata (uma lancha de corrida que a arquitetura e o ur anismo segUlra _

    uma co

    n

    q

    uiadores muito mexpenentes). Mas, em compensaao , temos nao s

    d meS

    frontao entre o pensamento selvagem do

    bricoleur

    e o pensamento. o

    do s

    ticado do engenheiro, mas tambm uma til indicao de que esses dOIS ~o tra

    . ,. ( engenheiro Ilus

    de pensar no representam uma progressao em sene em que o .

    ,.. dic neces

    sar1

    um aperfeioamento do bricoleur etc.). Ao contrano, sao con loes al

    mente coexistentes e complementares do pensamento. Em outras palavr~s, t

    . . do I ique au ntvea

    u

    estejamos prestes a alcanar uma aproxlmaao o pensee agI

    sensible ,

    de que fala Lvi-Strauss.

    Se pudermos nos despojar das iluses do

    am our p ro pr e

    profiss ional e da teoria

    acadmica estabelecida, a descrio do bricoleu r muito mais prxima da real idade do

    que fazo arquiteto-urbanis ta que qualquer fantasia sistrnica e metodolgica . Na

    verdade, o impas se da arquitetura que, por estar sempre, de uma fo rma ou de outra,

    preocupada em melhorar, em fazer melhor as coisas segundo a lgum cri t rio, mesmo

    que impreciso, em como as coisas devem ser, ela est sempre i rremediavelmente en-

    volvida com juzos de valor e nunca alcana uma resoluo cientfica - pelo menos

    nos termos de uma teoria emprica simples dos fatos . Se as sim na arquitetu ra, no

    urbanismo (que nem ao menos se preocupa em fazer as coisas resistirem) a ques-

    to de uma so luo cientfica dos problemas s pode pio rar. Afinal de contas, se a

    noo de soluo final mediante uma acumulao definitiva da totalidade dos da-

    dos ,evidentemente , uma quimera epistemolgica; se certos aspectos da informao

    nunca sero discriminados ou revelados, e seo inventrio dos fatos no pode nunca

    estar completo devido s taxas de mudana e obsolescnc ia, ento, aqui e agora, de-

    veriaser possve l af irmar que os horizontes do p lanejamen to cientfico da cidade s

    podem ser entendidos como equivalentes aos horizontes da poltica cientfica.

    Considerando que o planejamento no pode ser mais cientfico do que a so-

    ciedade poltica da qual uma instncia, nem na poltica nem no planejamento

    possvel adquirir informaes suficientes antes que uma ao se torne necessria.

    ~m ~enhum dos casos, a ao pode esperar a definio do problema num futuro

    idealizado para ser afinal resolvido; e se a causa disso que a possibilidade mesma

    desse. futuro. , onde afina l se pusesse fazer tal definio, depende de uma ao im-

    perfeita realizada no presente, ento tudo isso anuncia, mais uma vez, o papel da

    bncolagem l .

    com que a po t ica tanto se assemelha e o planejamento urbano cer ta-

    mente dever ia parecer- se .

    .Mas ser que a alternativa entre o design total progressista (estimulado pelos

    ounosi') e a bri 1 1 1 (. .

    .. ICOagem eu tura ista impulsionada pelas raposas?) , em ltima

    anaItse s o q t lheri N .

    uenos res a para esco er? Nos achamos que SIm, e , na nos sa opinio, as

    conse ..,. , . .

    quenc ias pol t icas do design total so realmente devastadoras. No a condio

    atual de compro . ., . d

    1

    mISSOe converuencia, e vo iao e arbtrio , mas uma combinao

    sumamente irresi t 1 d

    - ; .

    d .

    . IS Ive e ClenCla e estmo - este o mito no confesso da utopia

    ahVIstaou

    hi

    t .. E ' . . .

    ISo ricista. e nesse sentido que o design total foi e uma mistificao. No

    mundo prat desi 1

    lCO, esign to t a nao pode significar outra coisa seno con trole to tal e um

    Controle btid - - '

    m o

    ti

    o nao por abst raoes acerca do valor absoluto da c incia ou da his tria ,

    as pelos go . d 1

    m vemos cna os pe o homem. Esse argumen to no precisa ser enfatizado

    as nunca ' d . di _. )

    se e ernais izer que a execuao do design total (por mais amado que seja)

    c mpre pressupe algum nvel de centralizao do con trole poltico e econmico

    Ontrole e tI'

    m s e que, evando em conta os poderes ora existentes em qualquer lugar do

    Undo,nos parece totalmente inaceitvel.

    l

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    11/32

    Ogoverno mais t ir nico de todos , o governo de ningum, o total itari smo da tc_

    nica - essa imagem do horror , de Hannah Arendt, nos vem mente nesse momento

    e, nesse contexto, o que dizer da bricolagem culturalista ?

    possvel antecipar seUs

    perigos, mas na qualidade de um reconhecimento deliberado da tortuosidade da his_

    tria e da mudana, da inevitabilidade de um futuro de profundas cesuras temporais

    ,

    dos vr ios mat izes da expresso soc ie t ria , uma concepo da cidade como intrnseca

    e idealmen te obra de bricolagem comea a merecer uma sria ateno. Se o design

    total parece representar uma capitulao do empirismo lgico a um mito nada emp_

    rico, e se parece imag inar o fu turo (onde tudo ser conhecido ) como uma espcie de

    dialtica do no-debate, p orque o bricoleur ( como a raposa) no pode a limentar tais

    expectativas de sntese conclusiva, j que sua ao se realiza no s num mundo infi-

    nitamente extenso, embora sujeito s mesmas generalizaes, mas implica uma dispo-

    s io e uma capacidade de lidar com uma pluralidade de sistemas fechados finitos

    a

    coleo de sobras deixadas pela atividade humana)

    da qual, pelo menos por enquanto,

    seu comportamento oferece um impor tante modelo.

    Seest ivermos dispostos a reconhecer osmtodos da c incia e da bricolagem como

    propenses concomitantes, se nos d ispusermos a reconhecer que ambas so formas

    de tratar os prob lemas, se quisermos (e no nada fcil) aceitar a igualdade entre o

    pensamento civi lizado (com seus pressupostos de seriao lgica) e o pensamento

    selvagem (com seus saltos analgicos) , ento, restituindo bricolagem um lugar ao

    lado da cincia, talvez se torne possvel imaginar a possibilidade de preparar uma dia-

    ltica futura verdadeiramente til.

    Dialt ica verdadei ramente ti l? A id ia to-s a do conflito entre poderes con-

    cor rentes , o confl ito quase fundamental ent re interesses claramente definidos , a leg -

    tima suspeio acerca dos interesses dos outros, da qual provm o processo demo-

    crtico, tal como ; e ento o corolrio dessa idia meramente trivial: se for esseo

    caso, i sto , se a democracia secompe de entusiasmo libertrio e dvida legalista, se

    inerente a ela uma coliso de pontos de vista e aceitvel como tal, en to por que no

    admiti r que uma teoria dos poderes concorrentes (todos e les vis veis) fosse capaz de

    defini r uma cidade ideal mais completa do que as inventadas a t hoje?

    Recordando a Villa Adriana, essa proposio nos induz automaticamente (com

    os ces de Pav lov) situao da cidade de Roma no sculo XVII, aquela inextricvel

    so de imposio e acomodao, aquele congestionamento flexvel e resistente, mo i

    bem-sucedido de intenes, uma antologia de composies fechadas e objetos inte

    ticiais

    ad hoc,

    que , ao mesmo tempo, uma dialtica de tipos ideais, somada a u

    dialt ica ent re t ipos-ideais e contexto empr ico. E a considerao da Roma do sc

    XVII (a cidade completa com a iden tidade assertiva de suas subdiv ises: Traste\'

    Sant'Eustacchio, Borgo, Campo Marzo, Campitelli . .. ) instiga-nos a uma interpreta

    equivalente da cidade que a precedeu, onde os prdios do frum e das termas

    31 2

    A Romado sculo XVII exempl if ica a d ia ltica de tipos ideais urbanos.

    uma cidade completa, onde as par tes integradas afirmam sua identidade.

    viviam numa relao de interdependncia, independncia e mltiplas possibilidades

    de interpretao. A Roma imperial , de longe, uma afirmao ainda mais dram-

    tica. Porque , com suas colises mais abruptas , dis junes mais agudas, edificaes

    formais ainda mais expansivas, com sua matriz discriminada de modo mais radical e

    uma ausncia geral de in ibio sensvel , a Roma imperial, muito mais que a cidade

    do alto barroco, a melhor ilustrao do esprito do

    bricoleur

    em toda sua generosi-

    dade - um obel isco daqui , uma coluna dal i, uma fi le ira de est tuas de outro lugar , a t

    ~o detalhe, esse esprito se revela inteiramente. A esse respei to , divert ido lembrar a

    lllfiunc ia de toda uma escola de his toriadores que , em certa poca, seempenhou com

    afinco em apresenta r os antigos romanos como engenhei ros do sculo XIX, precurso-

    res de Gustave Eiffel , que por alguma razo haviam infel izmente perdido o rumo.

    Assim, propomos aqui pensar a Roma, imperial ou papal, hard ou soft, como

    ~ma espcie de modelo alternativo ao desas troso urbanismo da engenharia social e

    o design total. Apesar de reconhecermos que o que temos aqui so produtos de uma

    tOPografia espec fica e de duas cul turas par ticula res, a inda que no completamente

    separve is , estamos tambm supondo estar diante de um est ilo de argumento que no

    carecede universalidade. Isto :embora a estrutura fsica e poltica de Roma mostrem

    31 3

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    12/32

    CIDADE-CO LAG EM E A RECO NQU ISTA DO TEMPO

    o que talvez seja o exemplo mais explcito de campos colidentes e runas intersticia

    existem verses mais tranqilas.

    Por exemplo, Roma - se voc quiser v-Ia assim - uma verso implodida de Lo

    dres, e o modelo Roma-Londres pode inclusive ser ampliado a outras comparaes, Co

    Houston ou Los Angeles. Mas acrescentar detalhes poderia alongar indevidamente a

    gumentao. Spara concluir o assunto: mais que um elo [hegeliano] indestrutvel entr

    beleza e verdade , mais que as idias sobre uma unidade futura permanente, preferim

    pensar nas possibilidades complementares da conscincia e do conflito sublimado.

    E

    precisamos urgentemente tanto da raposa como do

    bricoleur,

    tambm pode ser que, e~

    face do cientificismo prevalecente e do laissez allerque salta vista, as atividades de ambot

    bem poderiam proporcionar a verdadeira e constante Sobrevivncia pelo Design.

    A tradio da arquitetura moderna - que sempre professou uma averso pela

    art

    - entendeu a sociedade e a cidade de modo muito convencional, mediante conceito

    de unidade, continuidade, sistema. Mas h um mtodo alternativo e aparentement

    bem mais favorvel arte que, a t onde se sabe, nunca teve necessidade de aderir

    modo to literal a princpios bsicos . Essa outra tradio de modernidade - estam

    pensando em Picasso, [Igor] Stravinsky, [T. S. ]Eliot , Joyce - est a lguas de distnci

    do

    ethos

    da arquitetura moderna. Fazendo da ambigidade e da ironia uma virtu

    no se julga em absoluto dona de um canal de comunicao seja com as verdades

    cincia, seja com os padres da histria.

    Nunca f iz ensaios ou experincias ; No consigo entender a importncia que a

    buem palavra pesquisa ; A arte a mentira que nos permite compreender a y,

    dade, pelo menos a verdade que nos dada compreender ; O art ista deve conhecer

    maneira de convencer os outros da veracidade de suas mentiras . Declaraes co

    essas de Picasso nos fazem lembrar a definio de [Samuel Taylor] Coleridge para

    obra dear te bem-sucedida ( tambm poderia serv ir para definir um feito poltico)

    co

    aquela que estimula

    uma suspenso voluntria da descrena .

    Talvez Coleridge use

    tom mais ingls , mais o timista, menos impregnado da ironia espanhola, mas a idi

    a mesma, fruto de uma percepo da realidade como algo difcil de lidar. claro q

    logo que comeamos a pensar nas coisas dessa maneira, todos ns, a no ser o

    rn

    empedernido pragmtico , comeamos a nos afas tar do estado de esprito alardeado

    das afortunadas certezas do que s vezes se define como o mainstream da arquite

    moderna, pois este um terr itr io do qual a maior parte dos arquitetos e urbanistaS

    excluram. O estado de espr ito muda completamente: continuamos no sculo

    xX ,

    a ofuscante crena morali sta na unidade foi, enfim, posta ao lado de uma apre

    en

    mais trgica da alucinante multiformidade das experincias, que dificilmente se des

    3 4

    Estamos assim em condies de caracterizar, em parte, as duas formulaes de

    Jllodernidade, e, admitindo que existem dois modos contrastantes de seriedade , po-

    demos agora pensar no Bicycle Seat [Cabea de touro] (1944) , de Picasso , segundo as

    palavras do prprio artista:

    Voc se lembra daquela cabea de touro que eu expus recentemente? Com o guido

    e o assento de uma bicicleta eu fiz uma cabea de touro que todo mundo reconheceu

    como uma cabea de touro. Isso completou uma metamorfose, e agora eu gostaria de

    outra metamorfose na direo oposta. Suponhamos que a cabea de touro fosse joga-

    da no ferro-velho. Talvez, um dia, um operrio se aproxime e diga: Olha s, tem uma

    coisa ali que serve bem para guidon de minha bicicleta [...] e assim, teria ocorrido

    uma dupla metamorfose.

    Lembrana da funo e do valor anteriores (bicicletas e minotauros); mudana de

    contexto; uma atitude que estimula o compsito; explorao e reciclagem do sen-

    tido (j se fez disso o bastante?); desuso da funo com a correspondente concreo

    de referncias; memria; antecipao; elo entre memria e esprito - eis a uma

    lista de possveis reaes proposta de Picasso. Levando em conta que a proposta

    sedirige obviamente ao povo, em palavras desse tipo, em termos que falam de

    prazeres lembrados e v alores desejados, de uma dialca entre passado e futuro, do

    impacto de um contedo iconogrfico, de um conflito simultaneamente temporal

    e espacial, que, para resumir um argumento anterior, se poderia comear a definir

    uma cidade ideal do esprito.

    Partindo da imagem de Picasso, nos perguntamos: o que falso e o que ver-

    dadeiro, o que antigo e o que d e hoje? E por causa da impossibilidade de dar

    uma resposta conciliatria a essa agradvel dificuldade que nos vemos obrigados,

    por.fim, a identificar o problema da presena do compsito (j prefigurado na Villa

    Adnana) em termos de colagem. A colagem e a conscincia do arquiteto, colagem

    ~omotcnica e colagem como estado de esprito: Lvi-Strauss nos diz que a moda

    lIltermitente di'. as co agens, que surgIU quando o artesanato estava morrendo, no

    :de deIXar de ser [... ] outra coisa seno a transposio da bricolagem para a es fera

    co

    nt

    emplao .22

    A

    reCUsados

    it

    t d .

    1 . .

    li

    arqui e os o secu o xx a pensar em SImesmos como

    bricoleurs

    ex-

    P ca

    SUaindif das mai .

    faJ. erena a uma as mais Importantes descobertas do sculo xx; pareceu

    tar slllcerid d' 1

    ul _ a e a co agem, como se fosse um atentado aos princpios morais, uma

    teraao d 1 B

    , e es. asta pensar na Natureza morta com cadeira depalha (1911-l2), de

    casso su .

    A '. a pnmeIra colagem, para comear a entender por qu.

    nahsando essa obra, Alf red Barr diz o seguinte:

    3 5

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    13/32

    [...) o fragmento da palha do assento da cadeira no nem real nem pintado m

    , as UllJ .

    p~dao ~e lona colada ~a tela e depois ~arcialm~nte p.intado. Numa nica pintura,

    Pcasso Joga com a realidade e a abstraao em dois meIOSe quatro diferentes ' .

    _ nlvelS

    ou proporoes. [E) se paramos para pensar no que mais real, nos fiagramos d

    I

    d . es-

    ~zan ~ entre a

    esttica

    e a cont~m~lao metafs~ca, pois o que nos parece mais real

    e o mais falso eo que parece mais distante da realidade cotidiana o mais real

    . . 23 '

    Ja que

    menos irmtatrvo. .

    o fac-smile em lona da palha da cadeira, um objet trouv apanhado no submundo da

    baixa cultura e alado ao ~u~do superior da :'alta arte, ilustra o dilema do arqui_

    teto, uma vez que a colagem e Simultaneamente mocente e astuciosa.

    De ~ato,entre os arqu~tetos,.somente Le Corbusier, um grande indeciso, ora raposa,

    ora ouno, demonstrou simpatia por esse tipo de trabalho. Seus edifcios, embora no

    os projetos urbanos, seguem um processo mais ou menos equivalente ao da colage

    m

    Objetos e episdios so obviamente importados e, apesar de conservarem os indcios

    de suas origens e fontes, adquirem um efeito inteiramente novo devido mudana de

    contexto. No ateli Ozenfant, por exemplo, encontramos um grande nmero de alu-

    ses e referncias que parecem ser basicamente agregadas pelo sentido de colagem.

    Objetos dspares reunidos por meios variados,

    fs icos, ticos, psicolgicos ,

    a lona, com o detalhe em fac-smile muito evidente e a superfcie que parece spera,

    mas na realidade lisa; [...) parcialmente absorvida na superfcie pintada e nas formas

    pintadas por deix-Ias sobrepostas [...

    ] 24

    . :. com pequenssimas modificaes ( substituindo-se o fac-smile de lona pela tinta in-

    dustrial, a superfcie pintada pela parede), as observaes de Alfred Barr podiam ser

    usadas para inte rpre ta r o a teli Ozenfant. No difcil encontrar outros exemplos de

    Le Corbusier como colagista: a bvia cobertura De Beistgui; as paisagens vistas dos

    telhados - navios e montanhas - de Poissy e Marselha, pedregulhos espalhados na

    Porte Molitor e no Pavilho Suo; um interior em Bordeaux-Pessac; e, especialmente.

    o pavilho da exposio Nestl de 1928.

    Entretanto, evidente que, exceo de Le Corbusier, indicaes desse estado

    de esprito so esparsas e raras vezes foram bem recebidas. Penso em [Berthol

    d

    Lubtetkin, em Hightpoint

    2,

    com suas caritides

    Erectheion

    e pretensas imitaes

    pintura imitando madeira; penso em Moretti, na Casa del Girasole e seus frag

    ment

    de falsos antigos no piano rstico; e lembro ainda de [F~anco J Albini, no seu pal

    Rosso. Pode-se pensar tambm em Charles Moore. Mas a lista no muito longa.

    sua curta extenso um admirvel testemunho, um comentrio sobre a exclus

    i

    dade. A colagem, f reqentem ente um mtodo de dar ateno s sobras do mundo,

    6

    o

    terrao da cober tura De Beistgui do colagista Le Corbusier.

    preservar sua integridade e conferir-lhes dignidade, de combinar o informal com o

    cerebral, a conveno e a quebra da conveno, opera necessariamente de modo ines-

    perado. Um mtodo rudimentar, uma espcie de

    discordia concors,

    uma combina-

    o de imagens dessemelhantes, ou uma descoberta de semelhanas ocultas em coisas

    aparentemente dspares - esses comentrios de Samuel Iohnson sobre a poesia de

    [ohn Donne, que seriam igualmente aplicveis a Stravinsky, Eliot, Ioyce, a boa parte

    do programa do cubismo sinttico, indicam at que ponto a colagem se baseia num

    jogo de normas e recordaes, num olhar retrospectivo que, na opinio dos que pen-

    sam a histria e o futuro como uma progresso exponencial para uma simplicidade

    cada yez mais per fei ta, somente inspira a concluso de que a colagem, apesar de todo

    seuvirtuosismo psicolgico (Anna Livia, toda aluvial), um entrave deliberadamente

    interposto ao rgido curso da evoluo.

    Evidentemente, a argumentao lida com duas concepes de tempo. Por um

    lado, o tempo se torna o metr no mo do progresso, atribuindo-se aos seus aspectos

    seqenciais um carter dinmico e cumulativo; por outro lado, embora a seqncia

    e a cronologia sejam reconhecidas pelo que so, admite-se que o tempo, privado de

    alguns de seus imperativos lineares, se reorganize em funo de esquemas experimen-

    tais. De um lado, a perpetrao de um anacronismo o maior de todos os pecados. De

    Outro,aidia de data de somenos importncia. As palavras de [Filippo

    J

    Marinetti no

    M

    C

    anltesto Futurista de 1909:

    Quando vidas tm de ser sacrificadas, no nos entristecemos se brilha diante de ns a

    colheita magnificente de uma vida superior que sobrevir

    nossa morte [...) Estamos

    31 7

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    14/32

    E suas frases posteriores:

    no promontrio extremo dos sculos De que valeolhar para t rs [...] ns j vivemos

    absoluto, pois j criamos a eterna velocidade onipresente. Cantaremos asgrandes m

    tides agitadas pelo trabalho; a ressaca multicolorida e polifnica da revoluo.

    25

    Avitr ia deVit torio Vene to e a ascenso ao poder do fascismo so uma realizao

    programa mnimo do futurismo [...]

    O futurismo estritamente artstico e ideolgico [...] Profetas e pioneiros da

    de Itlia de hoje, ns, futuristas, temos a satisfao de saudar em nosso primeiro-

    nistro, que ainda no completou quarenta anos, um maravilhoso carter futurista.

    poderiam ser uma re d uct io ad absurdum do primeiro argumento. J a frase de Pi

    Para mim, no existe nem passado nem futuro na arte [ .. .] As diversas maneiras q~

    usei em minha ar te no devem ser vistas como uma evoluo ou como passos em .

    o

    a um ideal desconhecido de pintura [...] Tudo o que eu fiz foi para o presente e na

    t

    26

    esperana de que permanea sempre no presen e.

    pode ser interpretada como uma afirmao radical do segundo. Do ponto de vista teo

    gico, um argumento escatolgico, o outro remete encarnao, mas, apesar de am

    serem necessrios, o segundo, mais frio e abrangente, ainda chama a ateno. O segu

    a r gum e n to p o d er ia inc lu ir o pr imeiro, m as o inve rso jam ai s s er verdade iro.

    Dito isso,

    tamos agora em condies de abordar a colagem como um instrumento srio.

    Considerando a cronolatria de Marinetti e a atemporalidade de Picasso; ten

    em vista a crtica de Popper ao historicismo (que tambm Futurismo/futurismo

    as dificuldades da utopia e da tradio, os problemas da violncia e da atrofia, o

    posto impulso libertrio e a alegada necessidade da segurana proporci~nada

    . , . d d

    ti

    dos arqUitetos e

    ordem; levando em conta a es treiteza sectana a arma ura e ica

    . - . ,. d l' . t - expanso - pergunto-me qvisoes mais razoveis o cato icismo, a con raao e

    .. - . . c d l'mitaes da colag

    outras solues dos problemas SOCIaISsao vive is rora as I

    Limi taes que dever iam ser bvias o bastante, mas que prescrevem e asseguram

    territrio aberto.

    . bi t os retira de seu

    Pensamos que a tcnica de colagem, que recruta o Je os ou .

    texto, - nos dias de hoje - a nica forma de abordar os prob lemas funda~ent3lS

    . bi . A insendos na

    utopia e/ou da tradio, e que a ongem dos o jetos arqmtetolllcoS

    A

    El 1 - o com o gosto

    lagem social no precisa ter grandes consequenClas. a tem re aa

    . ., . C I 1 cadmico

    s

    ou

    convico. Os objetos podem ser aristocrticos ou 10 c oncos , a .

    A A d P' d D de Detrolt

    O

    pulares. No tem importncia se provem e ergamo ou o aome.

    ubrovnik, que tenham a ver com o sculo xx ou o com o sculo xv. Associedades e as

    p oas se renem de acordo com suas interpretaes pessoais da referncia absoluta

    pes

    s

    u do valor tradicional; e, em certa medida, a colagem se acomoda simultaneamente

    ~bridaO e aos requisi tos da autodeterminao.

    Mas apenas em certa medida, porque, se a cidade da colagem pode ser mais aco-

    lhedora que a cidade da arquitetura moderna, se ela talvez seja um meio de conciliar

    a emancipao e ao mesmo tempo permitir a expresso legtima de todas opinies

    numa situao pluralista, ela no pode ser mais hospitaleira que qualquer outra insti-

    tuio humana. A cidade aberta ideal , tal como a soc iedade aberta ideal, to f ic tcia

    quanto a situao oposta. A sociedade aberta e a sociedade fechada , como possibili-

    dades prticas, so caricaturas de ideais contraditrios, e ao domnio da caricatura

    que devamos relegar todas as fantasias radicais de emancipao ou controle. Assim,

    preciso admitir o grosso dos argumentos de Popper a favor da emancipao e da

    sociedade aberta. No entanto, apesar da evidente necessidade de reconstruir uma teo-

    ria crtica eficiente, que foi por tanto tempo negada pelo cientificismo, historicismo,

    psicologismo, se quisermos construir uma cidade aberta para uma sociedade aberta,

    teremos de reconhecer que h um desequilbrio na tese geral de Popper comparvel

    que existe em suas crticas da trad io e da utopia. Isso parece dever-se a u m foco ex-

    clusivo em processos empricos, que, afinal de contas, s o ex tremamen te idealizados,

    e auma m-vontade para tentar construir tipos ideais positivos.

    As exuberantes perspectivas do tempo cultural, os abismos e profundidades hist-

    ricas da Europa (ou onde quer que se julgue estar localizada a cultura) , em confronto

    com a insignificncia extica do resto do mundo, abasteceram as pocas anteriores

    da arquitetura, e a condio oposta que vem dis tinguindo a n ossa era - o desejo de

    abolir quase todos os tabus da distncia f sica , as barreiras do espao e, com isso, uma

    determinao anloga para erigir as mais impenetrveis f ronte iras tempora is . Pensa-

    mosnaquela cort ina de fe rro cronolgica que na mente dos devotos ps a arqui te tura

    moderna em quarentena contra os males da l ivre e desembaraada assoc iao tempo-

    ral.Mas, se possvel admitir as antigas justificativas (identidade, incubao, es tufa ), as

    razespara man ter artificialmente o calor do entusiasmo comeam agora a nos parecer

    estranhas. No en tan to , quando se reconhece que a limitao do livre comrcio, no es-

    pao ou no tempo, no pode sus tentar-se indefinidamen te sem perda de lucros , que

    rn~l ivre comrcio a dieta f ica mui to res tritiva e provinciana, que a sobrevivncia da

    a~lOaocorre perigo, e que, no fim, ocorrer sempre alguma forma de rebelio dos

    nhdos, tudo isso nos leva a ident ificar um aspecto da situao - um aspecto provvel,

    aspecto que poder ia ter s ido imaginado por Popper, e do qua l as pessoas razoave l-

    en~esensveis poder iam mui to bem seesquivar. Ser que aceitao do livre comrcio

    phca uma absoluta dependncia dele? Os benefcios do livre comrcio devem ser

    ompanhados to-somente por um desenfreamento da libido?

    31 9

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    15/32

    De certa fo rma, a filosofia social de Popper compassiva. uma questo de ata,

    que e

    dtente,

    ataque a atitudes que no contribuem para a

    dtente.

    Mas uma pOstura

    intelectual como esta, que, ao mesmo tempo, concebe a indstria pesada e Wall Street

    como tradies a serem criticadas

    e

    postula a existncia de uma arena ideal de debates

    (uma verso rousseauniana do canto suo completada pelo Tagesatzung orgnico?),

    tambm pode inspirar ceticismo.

    A verso de [Iean- Iaques] Rousseau do canto suo (de pouca utilidade para ele),

    as reunies de uma cidade da Nova Ingla terra (tinta branca e cabana da feiticeira?), a

    Cmara dos Comuns do sculo

    XVIII

    (no exatamente representativa), a reunio deum

    departamento universitrio ideal: tudo isso - e mais uma miscelnea de sovietes,

    kibutz

    e outras referncias soc iedade tribal- faz parte das poucas arenas de discurso lgicoe

    igualitrio planejados ou edif icados a t nossos dias. E se obviamente precisamos de

    mui to mais arenas , enquanto especulamos sobre suas arquiteturas, somos levados a

    pensar se es tas seriam constructos meramente tradicionais. Isso introduz, primeira-

    mente, o problema da dimenso ideal dessas d iversas arenas, e, em seguida, indaga se

    possvel conceber certas tradies especficas ( espera da crtica) sem aquele grande

    corpo de tradio antropolgica que inclui a magia, o ritual e a centralidade do tipo

    ideal , e que supe a presena inc ipiente da mandala da utopia.

    Visto que estamos falando de uma condio de equ ilbrio efetivo, embora no de

    todo evidente, o canto suo ideal da imaginao e a comunidade da Nova Inglaterra do

    carto-postal reclamam agora pelo menos uma breve ateno. Consta que o canto suo

    ideal da imaginao, isolado mas aberto ao mercado, e a cidadezinha da Nova Inglaterra

    do carto-postal, fechada mas acessvel a todas as transaes comerciais, sempre preser-

    varam um obstinado e calculado equilbrio entre identidade e benefcios. Dito de outra

    forma, para sobreviver, o canto e a pequena cidade tiveram de mostrar duas faces. Nesse

    ponto, porque preciso impor ressalvas s id ias de l ivre comrcio e de sociedade aberta,

    lembramos o precrio equilbrio ent re estrutura e acontecimento, necessidade e cont in-

    gncia, inte rno e externo , de que nos fa la Lvi-Strauss.

    Ora , a tcnica da colagem, por inteno se no por definio, insiste exatamente

    na centralidade desse ato de pr em equilbrio. Um ato de pr em equilbrio] Mas:

    o

    humor, como sesabe, a inesperada copulao de idias, a descober ta dea lguma

    relao oculta entre imagens que parecem ser muito dis tantes umas das outras. urna

    efuso humorstica pressupe, ento, um acmulo de conhecimentos, uma mem-

    ria abastecida de noes que a imaginao seleciona para formar novas combinaeS-

    . bi

    es co JJl

    Seja qual for ov igor do pensamento, ele nunca pode formar muitas com ma

    poucas idias, assim como no possvel tocar mui tas variaes de tons com p~uCOS

    carrilhes.

    verdade que o acaso pode s vezes produzir uma felizcomparaao o

    um excelente contraste, mas esses lances da sorte no so freqentes, e aquele que

    possui recursos prprios e, apesar disso, secondena a despesas desnecessrias, haver

    de viver custa de emprstimos ou do roubo.

    ComO sempre, Samuel Iohnson nos proporciona uma definio muito melhor de

    algo parecido com a colagem do que somos capazes de formular. Suas observaes

    propem um intercmbio em que todos os componentes retm uma identidade en-

    riquecida pela ao recproca, em que os respectivos papis podem ser continua-

    mente transpostos, em que o foco da iluso est em constante fluxo com o eixo da

    realidade, e, sem dvida, alguns desses estados mentais devem instruir todas as

    abordagens da utopia e da tradio.

    Isso me faz lembrar novamente de Adriano, me faz pensar no cenrio distinto e

    privado de Tvol i. Ao mesmo tempo, penso no Mausolu (Castel Sant'Angelo) e no

    Panteo em suas localizaes metropolitanas.

    E

    penso, sobretudo, no Panteo e em

    seu culo. O que pode suscitar a meditao sobre a publicidade das intenes, neces-

    sariamente s ingula res (mantenedora do Impr io) e a privacidade dos interesses int ri-

    cados, uma situao que no se parece em nada com a Ville Radieuse

    versus

    Garches.

    A utopia, platnica ou marxista, foi geralmente concebida como um axis mundi ou

    um

    axis istoriae.

    Mas, se ela atuou como uma agregao totmica, tradicionalista e a cr-

    tica de idias, seteve uma existncia poeticamente necessria epoli ticamente deplorvel,

    isso apenas confirma a tese de que uma metodologia de colagem, que acomoda toda

    uma gama de

    axis mundi

    (todos utopias de algibeira - o canto suo, a cidadezinha da

    Nova Inglaterra, o Dome ofthe Rocks, a Place Vendme, o Campidoglio, e s emelhan-

    tes), bem poderia ser um meio de nos permitir desfrutar a potica da utopia sem nos

    obrigar a passar pelo const rangimento da pol t ica da utopia. Isso o mesmo que dizer

    que, como agrande virtude do mtodo da colagem est em sua ironia, no fato de parecer

    uma tcnica de usar coisas e de, ao mesmo tempo, no acreditar nelas, tambm uma

    estratgia que nos permite l idar com a utopia como imagem, trabalhar com

    fragmentos

    dela, sem nos obrigar a aceit-Ia

    in tato.

    E isso nos sugere que a colagem, mesmo sendo

    um supor te de i luses utpicas de imutabilidade e finalidade, poderia alimentar uma

    realidade feita de mudanas, movimentos, aes e histria.

    [Collage City , fragmento extrado de Collage City , Architectural Review 158, n. 94

    2

    (ago. 1975): pp. 66-90. Cortesia do autor e do editor.]

    --

    . France Y t Th

    s a es ,

    e Art of Memory.

    Londres e Chicago:

    1966,

    p.

    79.

    2 ,

    KarlPo C

    3 pper, onjectures and Refutations. NovaYork, 1962.

    , StanfordAnde A h' d T

    di

    h '

    rson, rc itecture an ra ItIOnT at Isn t Trad Dad, Architectural Association

    JOurnal 8 .

    , v. o, n. 892, 1956, uma Importante exceo.

    32 1

  • 7/17/2019 Kate Nesbitt (Org.). Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

    16/32

    4. Popper, op.cit ., p.

    13l.

    5. Ibid., pp. 358-60.

    6. Public Papers of the Presidents of the United States, Richard Nixon 1969, n.

    26

    5. Declarao sob

    r e a l

    criao do National Goals Research Staff

    7. Isaiah Berlin,

    The Hedgehog and the Fox.

    Nova York:

    1957,

    p.

    7

    8. Ibid., p. 10.

    9. Ibid., p. 14

    10. William J ordy , The Symbolic Essence of Modern European Architec tu re of the Twenties and its

    Continuing Influence , [ournal of the Society ofArchitectural Historians, v. XXII, n. 3, 1963.

    11.

    Karl Popper,

    The

    Logic

    ofScient if ic Discovery,

    Nova York:

    1959,

    originalmente publicado como

    ttulo de

    Logik der Forschung,

    Viena,

    1934; The Poverty ofHistoricism.

    Londres,

    1957.

    12.Christopher Alexander, Notes on the Synthesis ofForm. Cambridge: 1964.

    13.Claude Lvi-Strauss, The Savage Mind. Chicago: 1969, p. 16.

    14.Lvi-Strauss, op. cit., p.

    16.

    15.Le Corbusier, Towards a New Architecture. Londres: 1927, pp. 18-19. [Por uma nova arquitetura,

    trad. Ubirajara Rebouas. So Paulo, Perspectiva, 1989].

    16.Lvi-Strauss, op. cit ,pp.

    18-19.

    17.Ibid., p.

    22.

    18.Ibid., p. 19.

    19.Ibid., p.

    22.

    20.Alfred Barr, Picasso: Fifty Years ofHis Art. Nova York: 1946, p. 27l.

    21.Barr, op. cit., p.

    24l.

    22.Lvi -Strauss, op. cito

    23.Barr, op. cit., p. 79.

    24.Ibid., p. 79.

    25.F. T. Marinetti, textos do Manifesto Futurista de 1909 e d o apndice de A. Beltramelli, L uom o Nuo vo ,

    Milo: 1923. Asduas citaes esto em [ames [oll, Three Intellectuals inPolitics.Nova York: 1960.

    26.Barr, op. cit., pp. 79-90.

    27.Lvi-Strauss, op. cit., p. 30.

    28.Samuel [ohnson, The Rambler n. 194, 25 jan. 1752.

    THO M AS L. S C H U M AC HE R C O N TEXTU ALIS M O : ID EAI S U R BAN O S E

    D EF OR M A ES

    Este manifesto apresenta as novas idias (cerca de 1970) de Colin Rowe e seus

    alunos do Ate li de Desenho Urbano da Cornell University sobre os problemas da

    construo no contexto da cidade. Como resultado de um balano do urbanismo

    . a

    na-

    moderno, o grupo de Rowe, de quem Schumacher foi aluno, preconizoU

    cess idade de dar fim