KISHIMOTO, T.M. Cultura Lúdica Como Parte Da Cultura Da Infância

7
25/12/13 Labrimp - laboratório de brinquedos e materiais pedagógicos www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 1/7 "Cultura lúdica como parte da cultura da infância" Cultura lúdica como parte da cultura da infância A cultura é algo peculiar, relativo às atividades humanas, produções, formas de expressão, comportamentos e instituições sociais gerados, processados e formatados por um tempo particular (Mouritzen, 1998). A cultura construída sobre a infância, emerge forte desde o século passado incluindo adultos e crianças. Crianças vivem com adultos e partilham da cultura. Suas atividades e redes de comunicação, são todas culturas infantis no sentido amplo de cultura. Entre as diversidades da cultura infantil, destacam-se a estética, as formas de expressão simbólica, que é a cultura do brincar. A cultura infantil do brincar diferencia-se de outros tipos de cultura da criança (Mouritze 1998): 1 Cultura produzida para crianças por adultos, como literatura infantil, drama, música, TV. vídeo, jogos de computador, brinquedos, doces e propagandas nas formas de produções culturais, de melhor qualidade, e na indústria cultural para criança. 2 Cultura com crianças, onde adultos e crianças, juntos, fazem uso de vários recursos e tecnologias culturais, e 3 Cultura infantil, a cultura, lúdica, que a criança produz com seus pares, como jogos, contos, músicas, rimas, movimentos e sons. A cultura infantil está relacionada com os diversos conceitos de infância construídos pela sociedade em diferentes espaços e tempos: possibilidade; vir-a-ser, algo incompleto, maleável; inferior; que não merece consideração (Becchi, 1998); dependente da família, da mãe(Cambi, 1999) e, desde o século XVIII, o brincar (Brougère, 1995). A cultura do brincar não existe em forma fixa, como um produto, mas como um processo situado. Para se iniciar o brincar, a criança precisa de certas habilidades: um sabe e um estoque de expressões. O brincar requer um espaço cultural supra-individual. Brincar não é tão simples como se pensa. Muitas formas expressivas requerem anos de prática diária, como as músicas acompanhadas de palmas que florescem na cultura de meninas de 6 a 10 anos. Há aspectos de gênero, classe social e etnia na cultura do brincar. Meninos e meninas têm diferentes tradições, lugares e atividades de brincar, que são construídas pelas culturas locais. A eqüidade de gênero, entre meninos e meninas é desejável para que se possa usufruir de todas as modalidades do brincar, sem discriminação. Jogos em diferentes culturas têm somente alguns modos em comum. A cultura do brincar é local e global. Crianças brincam em qualquer lugar e brincam diferentemente em todo lugar. No entanto, a rede de comunicação oral é ampla e rápida. Uma forma de brincadeira divulga-se rapidamente, como ondas, em redes, mas provém de um background comum, passando por diferentes meios, em círculos orais surpreendentemente eficientes. A experiência vivida pelos brincantes permanece como substância social da memória que costura e pontua ( Bosi, 1994) os espaços lúdicos. Definir o brincar não é tarefa fácil. Wittgenstein (1975), Henriot (1989), Brougère (1995) e Kishimoto (1996) mostram a polissemia deste conceito, que varia conforme concepções e usos de cada cultura. Da mesma forma, classificar jogos é tarefa complexa. Talvez por essa razão a falta de uma classificação do folclore brasileiro é registrada por Melo (1979). A classificação de Caillois (1958) mostra a dificuldade que emerge na contraposição de opostos: Agon (competição), Alea ( sorte), Mimicry (simulacro) e Ilinx (vertigem) apresentam dimensões que se organizam em pólos antagônicos vistos como Paidia e Ludus. O entendimento ateniense de Paidia, como Ilinx, vertigem, uso do corpo para o prazer, expressão, diversão, fantasia e improvisação é o oposto de Ludus, entendido como a escola em que se aprende a representar onde se fazem cálculos, combinações, onde se experimentam jogos regrados e competições. O embate no jogo tem longa data, desde a liberdade da Paidia ateniense e o controle do Ludus . Desde tempos remotos a tradição preserva a brincadeira tradicional, que inclui a popular, mas nem toda brincadeira popular é tradicional. A literatura folclórica é totalmente popular, mas produção popular que permanece na contemporaneidade não é folclórica. É pela antigüidade,

Transcript of KISHIMOTO, T.M. Cultura Lúdica Como Parte Da Cultura Da Infância

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 1/7

    "Cultura ldica como parte da cultura da infncia"

    Cultura ldica como parte da cultura da infncia A cultura algo peculiar, relativo satividades humanas, produes, formas de expresso, comportamentos e instituies sociaisgerados, processados e formatados por um tempo particular (Mouritzen, 1998). A culturaconstruda sobre a infncia, emerge forte desde o sculo passado incluindo adultos ecrianas. Crianas vivem com adultos e partilham da cultura. Suas atividades e redes decomunicao, so todas culturas infantis no sentido amplo de cultura. Entre as diversidades dacultura infantil, destacam-se a esttica, as formas de expresso simblica, que a cultura dobrincar. A cultura infantil do brincar diferencia-se de outros tipos de cultura da criana (Mouritzen1998): 1 Cultura produzida para crianas por adultos, como literatura infantil, drama, msica,TV. vdeo, jogos de computador, brinquedos, doces e propagandas nas formas de produesculturais, de melhor qualidade, e na indstria cultural para criana. 2 Cultura com crianas,onde adultos e crianas, juntos, fazem uso de vrios recursos e tecnologias culturais, e 3Cultura infantil, a cultura, ldica, que a criana produz com seus pares, como jogos, contos,msicas, rimas, movimentos e sons. A cultura infantil est relacionada com os diversosconceitos de infncia construdos pela sociedade em diferentes espaos e tempos:possibilidade; vir-a-ser, algo incompleto, malevel; inferior; que no merece considerao(Becchi, 1998); dependente da famlia, da me(Cambi, 1999) e, desde o sculo XVIII, o brincar(Brougre, 1995). A cultura do brincar no existe em forma fixa, como um produto, mas comoum processo situado. Para se iniciar o brincar, a criana precisa de certas habilidades: um sabere um estoque de expresses. O brincar requer um espao cultural supra-individual. Brincar no to simples como se pensa. Muitas formas expressivas requerem anos de prtica diria, comoas msicas acompanhadas de palmas que florescem na cultura de meninas de 6 a 10 anos.H aspectos de gnero, classe social e etnia na cultura do brincar. Meninos e meninas tmdiferentes tradies, lugares e atividades de brincar, que so construdas pelas culturas locais. Aeqidade de gnero, entre meninos e meninas desejvel para que se possa usufruir de todasas modalidades do brincar, sem discriminao. Jogos em diferentes culturas tm somentealguns modos em comum. A cultura do brincar local e global. Crianas brincam em qualquerlugar e brincam diferentemente em todo lugar. No entanto, a rede de comunicao oral ampla e rpida. Uma forma de brincadeira divulga-se rapidamente, como ondas, em redes, masprovm de um background comum, passando por diferentes meios, em crculos oraissurpreendentemente eficientes. A experincia vivida pelos brincantes permanece comosubstncia social da memria que costura e pontua ( Bosi, 1994) os espaos ldicos. Definir o brincar no tarefa fcil. Wittgenstein (1975), Henriot (1989), Brougre (1995) eKishimoto (1996) mostram a polissemia deste conceito, que varia conforme concepes e usosde cada cultura. Da mesma forma, classificar jogos tarefa complexa. Talvez por essa razo afalta de uma classificao do folclore brasileiro registrada por Melo (1979). A classificao de Caillois (1958) mostra a dificuldade que emerge na contraposio de opostos: Agon (competio), Alea ( sorte), Mimicry (simulacro) e Ilinx (vertigem) apresentam dimenses que seorganizam em plos antagnicos vistos como Paidia e Ludus. O entendimento ateniense dePaidia, como Ilinx, vertigem, uso do corpo para o prazer, expresso, diverso, fantasia eimprovisao o oposto de Ludus, entendido como a escola em que se aprende a representar,onde se fazem clculos, combinaes, onde se experimentam jogos regrados e competies. Oembate no jogo tem longa data, desde a liberdade da Paidia ateniense e o controle do Ludus. Desde tempos remotos a tradio preserva a brincadeira tradicional, que inclui a popular,mas nem toda brincadeira popular tradicional. A literatura folclrica totalmente popular, mas aproduo popular que permanece na contemporaneidade no folclrica. pela antigidade,

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 2/7

    persistncia, anonimato e oralidade que se caracterizam as brincadeiras da tradio infantil(Humbert, 1983; Kishimoto, 1993). a memria coletiva, annima e contnua que preserva opopular e garante sua sobrevivncia. A brincadeira tradicional resulta de prticas antigas deconstruo de brinquedos com materiais naturais e de uso domstico, trechos de poemas, queacompanham brincadeiras de pular corda, movimentar pernas, ps e mos ou jogar pedrinhas,de personagens da Histria que a simpatia popular divulgou, de partes de canes, que, pelamemria coletiva, descaracterizam-se, recebendo elementos da cultura local, que fundamentalpara sua preservao. O parentesco entre as brincadeiras resulta em variantes que podemtrazer as cores locais, algum modismo verbal, um hbito, uma frase, denunciando, no espao,uma regio e, no tempo, uma poca, como diz Medeiros (1958, p. 34). brincando que seaprende o brincar. jogando que se aprendem as regras do jogo. Enquanto o popularcaracteriza-se pela geografia, diversidade espacial, que influencia a forma de objetos, materiaise artesanato, o tradicional, pela temporalidade, incluindo partes de canes, poemas, contos,prticas em desuso de adultos, que se tornam continua e persistentemente objetos do brincarinfantil. O esprito do brincar visvel desde os antigos gregos e em muitas culturas tribais.Contemplar os deuses brincando, constri a viso de que o brincar faz parte da vida divinaassim como os embates em que se envolvem. O esprito do brincar pode enfatizar dualidades,como o conflito e a paz, a ordem e a desordem, a racionalidade e a irracionalidade e aespontaneidade e o controle. O esprito do brincar que predomina no Brasil do incio do sculoXX, descrito por Gilberto Freire, revela preconceitos de gnero e o poder do grupo hegemnico,no brincar de meninos brancos, de ser dono de engenho de acar, de sinhs, pelas meninas,como amas. H registros da violncia do sistema escravocrata como reproduo de valores nascompeties de pipas com uso de vidros e cerol e outros similares nas brincadeiras de beliscar. Mas essa forma de anlise contradiz o brincar que sempre uma situao imaginria em quese constroem significaes que no se relacionam diretamente com a realidade externa(Kishimoto, 1993). O estatuto do imaginrio liga-se mais ao poder do brincante de criarrealidades mentais e no a realidades externas, vividas pela comunidade. Brincar de sermocinho ou bandido no torna ningum mocinho ou bandido. Da mesma forma, brincar de sermdico ou piloto, no define a profisso do futuro brincante. O modo de vida daspopulaes, fruto da industrializao, do avano tecnolgico e das cincias e ocupao urbana,modificam o espao e o tempo do brincar. J no se pode imaginar a agitao do brincar, emespaos pblicos, integrando crianas de idades diversas com adultos, como se v na tela deBruegel (1560). As crianas saem da rua, ocupam espaos nas casas, dispem de brinquedose o brincar e os brinquedos viram coisas de criana. Essa a nova viso que a sociedadeconstri a partir do sculo XVIII. O brincar, confinado e supervisionado, visa eliminao deelementos indesejveis. Historicamente, o brincar, pouco importante no incio, torna-se idealizadocomo conduta de criana, crescentemente controlado por instituies, como escolas, esporte,brinquedos e TV. As teorias do brincar se basearam na disjuno criana adulto. Sutton-Smith(1986) alerta para o controle do brincar, ao longo da histria, seu uso para outros fins, como oreligioso, pedaggico e poltico, viso que nega a possibilidade de o brincar enfrentar o poder.As caractersticas apontadas por Huizinga (1951), Caillois (1958 ) e Sutton-Smith (1986) comotomada de deciso, ato voluntrio e poder do brincante esto ausentes. O conceito do brincarcomo uma experincia tima, em profundidade, como um fluxo que o prprio sujeito controla,quando entra e sai do brincar, que gera o envolvimento, caracterizado por uma atitude deconcentrao, foco, reao imediata, controle de suas aes, autoconfiana, energia, percepoda durao alterada, parece coadunar-se com os novos tempos. O conceito de fluxo, de MihahyCikszentmihayi (apud Brougre, 2005, p.99), por representar no s uma vivncia, mas umaexperincia otimizada, coloca o sujeito em nvel de envolvimento profundo, dando-lhe ocontrole. Basta, para isso dispor de um acervo de brincadeiras, flexibilidade e comunicar-se. esse novo esprito dos tempos que se quer criar. Sutton-Smith (1986) mostra que o brincar,fruto de construo social, assume caracterstica principal de ser ato binrio, paradoxal, queope, por exemplo a liberdade e o controle, mas admite que importante deixar a criana

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 3/7

    expressar seus desejos e no control-la. Quando se decide compartilhar a cultura com outros,aprendem-se e ensinam-se brincadeiras nas quais se utilizam habilidades, cooperao,interao. A interao entre os brincantes de culturas distintas no pretende a apropriao e aintegrao das brincadeiras, com a perda das especificidades culturais. Divulgar variantes evitaprticas de dominao. Conhecer as diferentes formas de brincar e especificar as regras de usopara cada cultura respeitar o outro, a cultura original. a interculturalidade (Kincheloe, 1999)que se busca. A bola como objeto ldico desde tempos remotos mostra a diversidade deusos e significaes que permanecem at os dias atuais. Rasmussen (2003) investiga as razesda preferncia por esse brinquedo, examinando o movimento da bola, suas funes na mitologiae contos de fadas para revelar seus mistrios. Na mitologia antiga, a bola aparece como smbolodo poder dos deuses e controle sobre o homem e nos contos, como meio de aproximaramantes. Nos tempos modernos, a forma de mover, subida e queda so smbolos da existnciahumana. O fascnio da bola tem a ver com sua forma redonda, o que levou Froebel (1897) aeleg-la como o centro de sua teoria pedaggica. A bola tem o mgico poder de colocar ocorpo em movimento. Ao rolar, voar ou pular, uma imagem arquetpica do brincarprofundamente enraizado no corpo humano (Rasmussen, 2003). A ontologia do jogar explicitada por Gadamer, em Wahrheitt und Methode (1965, apud Rasmussen, 2003, p. 157):Todo jogador um ser jogado. O dinamismo com que o jogador se envolve com a bola cria umprocesso cclico contnuo, que dificulta o posicionamento de ambos. O jogar, neste caso, temdois plos: o homem e a bola. No possvel diferenciar sujeito e objeto. Jogar sempre jogarcom algum ou com alguma coisa, que tambm joga com o jogador, diz Buytendjk (1922, p. 118,apud Rasmussen, 2003, p. 158). Para Rasmussen ( 2003), na dialtica entre o mover e sermovido est o fascnio e o mistrio da bola, razo pela qual a mitologia clssica considera a bolabrinquedo dos deuses. Para Rilke, no sculo XX, a bola, com seu movimento imprevisvel, torna-se o smbolo do homem moderno na sociedade sem deuses. Nos tempos pr-colombianos, no Mxico, deuses definiam a geometria da cidade, a agricultura e as oferendashumanas. Nas terras ridas de Sinaloa, povos sedentrios dependiam das chuvas para asplantaes. As semeaduras e colheitas eram presididas pelos calendrios e rituais rigorosos.Pedia-se gua aos deuses e, para obt-la, os guerreiros empenhavam suas vidas no jogo, ondeos vencedores talvez fossem sacrificados. Seu sangue fertilizava o solo e o jogo ritual culminavacom o prmio aos eleitos (Uriarte, 1982). Jogar a bola, semelhana dos povos pr-colombianos, conforme prticas milenares, com os braos, coxas, antebrao ou mocaracterizam os diferentes pertencimentos culturais. Nas terras fronteirias de Beira Alta eTrs-os-Montes, de nossos irmos portugueses, a pelota, do latim pilota ou pila, significa pla,pequena bola. A origem da pelota remonta Idade Mdia e est relacionada com o jogo da pla(jeu de paume) praticado na Frana, com duas variantes: pla comprida e curta. A comprida, deorigem rural, com razes no culto solar, era jogada ao ar livre. A bola era golpeada mo nua,depois com raquete. A pla curta jogava-se em espaos cobertos, nas paredes, como naEspanha, na regio basca, nas paredes das igrejas (Serra, Camera e Veiga, Pires, 1989). Osjogos de bola eram praticados na Frana, em festividades da Igreja, desde o sculo V, e, naInglaterra, aps o sculo XII, no perodo carnavalesco, em batizados e casamentos. No final dosculo XIV, comea na Frana a construo de salas para o jogo da pla. O jogo tradicional participa da cultura popular pelo processo coletivo de criao e recriao, baseado na heranaacumulada. O jogo de bola exemplo desse dinamismo, comunicado de um grupo social aoutro. Despojado do sentido mtico-religioso do passado, responde necessidade coletiva darecreao. A transmisso desse jogo entre as famlias e as crianas cria o processo deresistncia da cultura popular, que se transforma em tradio. Muitos pases continuam a manteressa tradio como na Noruega e Dinamarca, do uso do jogo da bola contra a parede: peg-lacom uma ou duas mos, bater palmas, deixar repicar no cho, passar por baixo da perna, ficarde costas e jogar por cima da cabea, regras similares s prticas nos muros de igrejas .Brincadeiras de acertar a bola em crianas do time adversrio, queimada, no Brasil, kannonball/doedbold, na Noruega e Dinamarca, dodge ball, no Reino Unido, e dochiball, no

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 4/7

    Japo, so muito semelhantes, mostrando aspectos da universalidade dos jogos. O docciball nada mais que a pronncia recriada de dodge-ball do Reino Unido. Toshiro Hanzawa (1980),na obra History of Culture in Childrens Play Activities, menciona o dodge-ball como brincadeiratpica do perodo de 1950 a 1970 no Japo. Segundo o folclorista japons Kunio Yanagida (inSato, Kobayashi, Nakamura, Ogawa,Tada, s/d/), as crianas no brincam exatamente da mesmamaneira que seus antepassados, porque modificam regras, para dar prazer, acomodarparticipantes ou atender a objetivos do momento. A maioria das brincadeiras tradicionaisjaponeses foram popularizadas na era Edo ( sculos XVII e XVIII). Algumas provm da era Nara( sculos VIII a XIX a. C, e era Heian, sculos XIX a XI). O Janken ( tesoura, papel e pedra) oexemplo mais claro de preservao: a frmula de seleo dos jogadores veio com a imigraojaponesa no Brasil, em 1908. Muitas brincadeiras tradicionais que envolvem bater palmas,janken, origmi fazem parte das brincadeiras familiares e da rotina de atividades nos jardins deinfncia japoneses, que tm como proposta o brincar livre (Kishimoto, 1997). A frmula deseleo conhecida como Joquem P, embora originria do Japo, foi divulgada, no Projeto, por um no nikei do nosso pas, o que mostra a forte penetrao da cultura japonesa, divulgadapor 1% de sua populao. A reconstruo, no processo da oralidade, visvel na diversidade de registros : Joo quem ps, Jonquem P, Joquem P , Janquem P, nomes que definem opegador em jogos que envolvem aes de correr. A tradio da brincadeira de correr Darumasan ga koronda incorporada na rotina dos jardins de infncia em Oginaka, paracrianas de 5 anos de idade, e o origmi, para as de 3 e 4 anos, aparece na programao em1978. O calendrio de festas e eventos anuais estimula a preservao das brincadeirastradicionais. O origmi, desde tempos antigos, faz parte dos rituais xintostas e budistas como oferenda e ornamentao, prtica que se prolonga at os dias atuais e muito comum nos jardinsde infncia froebelianos ( Early Childhood Education and Care in Japan, 1978). Dobrar o tsuru, adobradura mais representativa da cultura japonesa, fcil, quando se aprende desde pequeno adobrar papis. Muitas brincadeiras de movimento so acompanhadas de cantigas. Darumasan ga koronda (Japo) utiliza a parlenda do Daruma, monge indiano, o fundador doZen-Budismo, que veio da China em 520 a.C (Baten,1995). Nos tempos atuais, o bonecoDaruma, com um dos olhos sem pintura, presenteado a quem quer uma graa e, quando aconsegue, deve pintar o outro olho. Entre as brincadeiras divulgadas pelo Brasil encontra-se ojogo pr-histrico conhecido como cinco marias, trs marias, jogo do osso, onente, bato, arris,telhos, chocos ncara, etc. Na Antigidade, os reis o praticavam com pepitas de ouro, pedraspreciosas, marfim ou mbar. As cinco marias, no Cariri, regio nordestina do pas, sochamadas de jogo do xibiu. Os tentos com que as meninas jogam no so pedrinhas, como emFortaleza e outros lugares, mas de coco de macaba, palmeira da regio. O fruto, com cascadura e quebradia, recoberto de polpa amarela, cheirosa e pegajosa, de sabor muitoapreciado pela meninada. Quando a macaba seca ao sol ou quando ruminada e expelida pelogado, forma o xibiu, que serve para os bilros das almofadas de rendas e como tento. Conforme aquantidade dos tentos que se pegam na mo empalmada ou outras manobras com a mo, asdenominaes variam: bota-mo ( todos os tentos), pinga ( pegar todos, um a um); ouvinho(curvar a mo antes de jogar), paia ( curvar a mo e passar o tento); chuveiro ( juntar os 12 tentosna mo), dedinho ( pedras entre os dedos da mo (Figueiredo Filho, 1966). O brincar com xibiumostra o vigor da cultura caririrense. Brincar com pedra ou saquinhos recheados com feijo,arroz ou pedrinhas acompanhado de versinhos prtica de vrios pases. Crianas, filhos deimigrantes japoneses, brincavam de saquinhos, acompanhadas de cantigas infantis. No Brasil, acantiga Escravos de J, variante do Distrito Federal (Castro, 1958), acompanha o passar dapedrinha, ao ritmo da parlenda. Variaes de partes da cantiga evidenciam aspectos da culturalocal. Nota-se a circularidade das experincias ldicas, fruto da hibridao de culturas, nasimilaridade dos jogos de movimentos, em que os participantes se colocam em fila, como obrobrobrille, brincado na Noruega e Dinamarca, conhecido no Brasil como bomboquinha.Denominaes locais marcam a especificidade, mas a universalidade continua presente nasregras do brincar. A literatura oral abrange uma diversidade de produes literrias para os

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 5/7

    que ainda no lem, desde histria, canto popular e tradicional, danas de roda, ronda e jogosinfantis, cantigas de embalar, entre outras. As cantigas de roda tm verses diferentes, conformeas regies ou locais. Fui Espanha, utilizada pelos jovens brasileiros, incorpora versos deoutras cantigas. Corre, corre, cavaleiro, Vai na casa do el-rei Vai buscar o meuchapu Que eu vim e l deixei. (Alvarenga, 1946, p.126) O castelo pegou fogo SoFrancisco deu sinal Acode, acode, acode A bandeira nacional. (Alvarenga, (1946,p.127): A prtica de substituir versos, palavras ou frases aparece na cantiga Atirei o pauno gato, em que o berro se transforma no miado do gato ( Castro, 1958, p. 11), em Fortaleza.Brincar de rodar o pio, prtica antiga e universal, aparece nas pinturas de vasos gregos de 2500anos. No Brasil ,tal prtica ocorre em todos os Estados. Em muitas localidades joga-se opio, acompanhado de pequenos versos. Quando a fieira d um n e o pio fica prisioneiro noprprio cordo, surge o amarra o bode ou mata-cobra. A prtica do racha com o pio comum em vrias partes do Brasil. No Pio Nica-do-Racha, as nicadas so as bicadas. Hpies feito de brejava, porongos ou cabaas, na tribo Taulipango. No incio do sculo XX, eramfeitos de tatami redondo e oco com um furo em um dos lados. Em ngulo reto, a bola atravessada com um pauzinho duro e vermelho, fixado com cera preta (Kishimoto, 1992). A cantiga Twinkle, twinkle, little star, baseada em poema das irms Jane e Ann Taylor, 1806 , deColchester, Inglaterra, um poema antigo que faz parte do repertrio das crianas inglesas. EmAlice no pas das maravilhas, de Lewis Carroll (1865), o personagem Chapeleiro, parodiandoa primeira estrofe do poema, substitui Pisca , pisca, estrelinha, por Pisca, pisca, morcego,um jogo de palavras, to ao gosto das crianas. A pardia parece ter relao com fato ocorridona universidade, de um morcego voador de brinquedo que saiu voando e caiu na bandeja dech, o que reitera o ato ldico como situado no contexto (Carroll,2002, p. 71,72). FrreJacques, cantada em vrios pases, conforme informante da Frana, datada do sculo XVII,evoca a preguia dos monges, que despertam ao soar dos sinos. O nome Jacques vem dosreligiosos jacobinos que davam suporte aos peregrinos. Na Inglaterra, Brother John e, naColmbia, Seor Jacob. A substituio dos personagens locais que d identidade cultural brincadeira. Esse poder tpico dos brincantes de fazer modificaes e criar verses desenvolve aatitude ldica, a experincia profunda de tomar deciso e fazer valer suas intenes. Outrasbrincadeiras interativas entre a me e a criana pequena envolvem movimentos de dedos emos, acompanhados de cantigas, como Litte Peter Edderkop, que encanta as crianasdinamarquesas .Aranhas que sobem pelas paredes ou pelo corpo das crianas,acompanhadas pela cantiga A Dona Aranha, fazem parte do repertrio brasileiro semelhanade Incy Wincy Spider, na Noruega. A poesia e o jogo destinam-se a estabelecer formas deimaginao e de expresso, por meio de palavras e gestos, evidenciando a tenso da emooexpressa em atos comunicativos ( Huizinga, 1951). A antigidade dessa modalidade debrincar atestada por Susan Blow (1897), divulgadora das brincadeiras interativas dos temposfroebelianos, do sculo XIX , que mostra como os versos cantados acompanhavam osmovimentos ritmados das crianas e suas mes, bastante similares s descritas pelos jovens doProjeto. Entre as brincadeiras conhecidas universalmente, a amarelinha tem inmerasvariantes, conhecidas no Brasil como mar, sapata, avio, academia, macaca, na Dinamarca,hinke, na Frana, marelle e, na Gr-Bretanha, hopscotc, uma forma do antigo jogo romano dosodres, em que os jogadores, untados com azeite, saltam, num p s, sobre sacos feitos de peledo bode. Brincadeiras de movimentos, como corrida, pular corda, pular o elstico, fazer fila,brincar com pernas, ps e mos, pega-pega, esconde-esconde, comuns em todas as partes domundo, carregam elementos simblicos. O esconde-esconde tem associaes simblicas comDionsio, o menino deus. Conhecido no Brasil, como picol, manja, manjar, mancha, pilha emoamb, sua regra bsica a perseguio: um pegador e outros devem correr ou esconder-separa no ser pegos. O confronto, tpico deste jogo, leva a imaginao infantil a buscarpersonagens em sua cultura: na Inglaterra, a perseguio de animais, como baleias e golfinhos,na Dinamarca, a disputa entre mulheres casadas e vivas. No Brasil, nos tempos da escravido,a brincadeira Capito do Mato agarra a negra ou Nego fugido configura o jogo de

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 6/7

    perseguio. Hoje, as crianas brincam com personagens do mundo fantstico ou de traficante epolcia ( Kishimoto, 1993). Ainda h variaes em que o pegador indica uma cor para serprocurada, como elefante colorido, no Brasil, e Strega comanda colore, na Itlia. Osjogadores geralmente desconhecem o motivo que, no passado, originou o jogo. No obstante,persiste a recordao de como jogar, baseado na vida cotidiana, memria coletiva que se tornaindividual. Ao conservar uma tradio, cria-se a possibilidade de projetar o jogo para o futuro.Muitos povos mantm suas tradies pela oralidade. Os relatos, mitos, lendas, contos e crnicasno escritas constituem a memria histrica de coletividades humanas e a substncia social damemria de cada brincante ( Bosi, 2003). A perenidade das brincadeiras similar narrativaque tece o fio da memria e da vida, de gerao em gerao, como a dos galos que tecem asmanhs de Joo Cabral de Melo Neto, o nascimento do neto que tece o fio das brincadeiras dainfncia de Portinari, dos tempos de Brodsqui, dos pies, pipas, pula-sela. difcil explicar como as brincadeiras foram tecidas e tornaram-se tradicionais, devido ausncia dedocumentao, mas a tessitura, continua oferecendo aos jovens e s crianas a oportunidade dedar seqncia ao processo, tecendo o brincar, como Rapumzel fez com suas tranas. Se oscontos de fada criam os primeiros narradores, a cultura infantil de annimos brincantes perpetuaa cultura ldica. Essa tarefa requer elementos, como mitos, rituais religiosos, romances, contose prticas diversas, abandonadas por adultos, que se transformam em expresses ldicas, masque s se tornam fato social pelo contato entre brincantes (Brougre , 1995). O contar e obrincar so da esfera da pacincia e da preguia. Lafarge (2000) reivindica o direito preguiae bordadeiras mineiras representam a cultura ldica, bordando pacientemente os pontos quefazem a trama do brincar. O tempo do brincar outro, no se olha o tempo passar. Numasociedade em que tempo dinheiro, o tempo da narrativa e do brincar o no-tempo, queenvolve o cio ( Puig, Trilha, 2004). Como no fio da histria, a cultura ldica faz a tessitura com a imaginao, caracterstica universal do brincar. O ldico s existe, quando brincantesassumem significados simblicos em situaes comunicativas. Para Bateson (1998), isso jogo, o sinal para a entrada no mundo imaginrio. Com qualquer coisa, elementos danatureza, restos da construo, complementa Benjamin (1985). Hoje, reivindica-se o brincarcomo direito de toda criana, sem limitaes de etnia, classe social ou gnero, pois o brincar notem sexo, no tem hierarquia social nem barreiras culturais. Quando crianas e jovens divulgamsuas formas de brincar , comunicam-se e divertem-se, ampliam sua cultura e contribuem paratecer o fio dessa cadeia, prtica que gera um registro da memria, que, pela transmisso daoralidade , projeta o jogo para o futuro. Referncias Bibliogrficas ALVARENGA,Oneyda de ( org.) Melodias registradas por meios no-mecnicos. So Paulo: Departamento deCultura, 1946 ( Arquivo Folclrico da Discoteca Pblica Municipal, 1 volume). BATESON,Gregory. Pasos. hacia uma ecologia de la mente. Buenos Aires,Lohl-Lumen, 1998. BATEN,La. Playthings and Pastimes in Japanese Prints. Shufunotomo Co., Ltd, Japan:1995.BECCHI, Egle; JULIA, Dominique. Histoire de l enfance en Occident. Paris: Seuil, 1998.BENJAMIN, Walter. Magia, tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense,1985. BOSI, Ecla.Memria e Sociedade. Lembranas de velhos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.BLOW, S. The songs and music of Friedrich Froebel s mother play. In: HARRIS, W.T. ( ed.).International education series. New York/London: D. Appleton and /Company, 1897, v. 32BROUGRE, Gilles. Jeu et education. Paris: Retz, 1995. BROUGRE, Gilles.Jouer/Apprendre. Paris:Economica/Anthropos, 2005. CAILLOIS, Roger. Les Jeux et lesHommes. Paris: Gallimard, 1958. CAMBI, Franco. Histria da pedagogia, traduo de lvaroLorencini, So Paulo: Ed. da Unesp, 1999. CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no Pas dasMaravilhas. Atravs do Espelho. Ilustraes originais de John Tenniel e Introduo e notas deMartin Garner. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Zahar, 2002. CASCUDO,Cmara. Literatura Oral no Brasil. So Paulo: Ed. Itatiaia, 3. ed., 1984. CASTRO, Zaide,Maciel de . Jogos e Rondas Infantis. Belo Horizonte: SESI, 1958, 2. ed. FERRARA, MariaAmorin. Como brincam as crianas mineiras. Minas Gerais: Centro de Pesquisa Educacionais daUniversidade de Minas Gerais, 1962 FIGUEIREDO FILHO, J. de. Folguedos Infantis

  • 25/12/13 Labrimp - laboratrio de brinquedos e materiais pedaggicos

    www.labrimp.fe.usp.br/index.php?action=artigo&id=5 7/7

    Caririrenses. Fortaleza: Imprensa Universitria do Cear, 1966. FROEBEL, F. Education ofman. Harris, W. T.; (ed.) The International series. New York/London: D. Appleton and Companhy,1897, v. 5. GARCIA CANCLINI, Nstor. Culturas Hbridas: Estratgias para Entrar e Sair daModernidade. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006. HENRIOT, Jacques.Sous le couleur de Jouer: la metaphore ludique. Paris: Jos Corti, 1989. HUBERT, Raymond.Les jouets populaires. Paris: Temps Actuels,1983. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: Essai surla Fonction Sociale du Jeu. Paris: Gallimard, 1951. EARLY CHILDHOOD EDUCATIONASSOCIATION OF JAPAN. Japan: 1978. KINCHELOE, Joe et al. Repensar elmulticulturalismo. Barcelona: Editora Octaedro, 1999. KISHIMOTO, T.M. Jogos TradicionaisInfantis do Brasil. So Paulo:1992. ______________. Jogos infantis. O jogo, a criana e aeducao. Petrpolis: Editora Vozes, 1993. ______________. Jogo, brinquedo, brincadeira ea educao. So Paulo: Cortez, 1996. ______________. Brinquedo e brincadeira naeducao japonesa: proposta curricular dos anos 90. Educao & Sociedade. Campinas: , v.60,p.64 - 88, 1997. LAFARGUE, Paul. O direito preguia. So Paulo: Editora UNESP, 2000.MEDEIROS, Ethel Bauzer. Importncia e necessidade da recreao. So Paulo: Boletim doCentro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1958. MELO, Verssimo de. Folclore Infantil.Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1979. (Biblioteca de Estudos Brasileiros, vol. 20).MOURITSEN, Fleming. Child Culture Play Culture. Denmark: Department of ContemporaryCultural Studies, 1998. PUIG, Josep M; TRILLA, Jaume. A pedagogia do cio. Porto Alegre:Artmed, 2004. RASMUSSEN, Torben Hangaard. The ball toy of gods and man. In: BERG,Lars Erik; NELSON, Anders, SVENSSON, Krister ( Eds.). Toys in educational and socio-culturalcontexts. Toy research in the late tgwentieth century. Part I. Stockholm: Stockholm International toyResearch Centre, 2003, p. 155-170. SATO, Sadao, KOBAYASHi, Keiko, KOBAYASHI, Yuriko;NAKAMURA, Etsuko, OGAWA, Kiyomi, TADA, Chizuru. A Study on the Traditional childrens Playin Japan. The Japanese National Committee of OMEP. Tokyo, Japan, s/d. SERRA, Cameira,VEIGA, Pires. A pelota. Contributo para a sua recuperao. Guarda: Associao de JogosTradicionais da Guarda, 1989 (Cadernos Jogo Tradio Cultura, n. 1). SUTTON-SMITH, Brian.The spirit of play. In: Review of research, volume 4. Greta Frein, Mary Rivkin, 1986, p.3-15.URIARTE, Maria Teresa ( coord.) El Juego de Pelota em Meso Amrica. Races y Supervivencia.Madrid: Siglo Veinteuno ,1992. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes filosficas. Trad. Bruni,Jos Carlos, So Paulo: Abril Cultural, 1975. Palavras-Chave Cultura , Criana, Ldica Autor Tizuko Morchida Kishimoto