KLEIN, Caio - Vidas Precárias - Performances de Gênero e Violência Na Experiência Do Cárcere

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VIDAS PRECÁRIAS: PERFORMANCES DE GÊNERO E VIOLÊNCIA NA EXPERIÊNCIA DO CÁRCERE KLEIN, Caio Cesar 1 Resumo: O presente projeto de pesquisa pretende realizar uma análise da relação entre violência e performances de gênero no interior de instituições carcerárias. Utilizando como referenciais teóricos os estudos feministas e de gênero, as abordagens da criminologia crítica, feminista e queer, bem como os estudos das intersecionalidades, pretende-se debater com aprofundamento analítico as formas como a violência é experimentada por sujeitos cujas performances de gênero não se coadunam ao sistema de sexo-gênero, nos termos do que Butler definiu enquanto heteronormatividade e hegemonia heterossexual. Vinculada ao Programa de Pós Gradação em Ciências Criminais da PUCRS, a presente pesquisa se encontra em fase de submissão aos comitês científicos responsáveis. Palavras-chave: criminologia; violência; gênero; travesti; transexual. Ao analisar a questão de como certas existências se constituem enquanto vidas precárias, Judith Butler (2006) questiona o modo pelo qual a normatização da noção de corpo e a manutenção de representações culturais do que vem a ser humanamente viável representações culturais que, na análise aqui proposta, dizem respeito ao que a autora define em termos de hegemonia heterossexual origina um âmbito de seres não considerados humanos com base em tal percepção restritiva. A constituição desse âmbito de desumanização, que para Butler (2006, p. 59-60) ocorre através de um processo de desrealização do humano, leva a autora a questionar ¿Qué vidas son reales? ¿Cómo podría reconstruirse la realidad? ¿Aquellos que son irreales ya han sufrido, en algún sentido, la violencia de la desrealización? ¿Cuál es entonces la relación entre la violencia y essas vidas consideradas “irreales”? ¿La violencia produce esa irrealidad? ¿Dicha irrealidad es la condición de la violencia? À construção dessa realidade humana e à consequente desrealização de outras vidas tornadas não-humanas se pode relacionar a constituição de discursos sobre o corpo, o gênero e a sexualidade que definem alguém enquanto culturalmente inteligível ou humanamente viável. A proliferação desses discursos sobre o sexo no início do século XIX, período histórico em que se observava a modificação do poder de “uma tecnologia do poder que expulsa [e] que reprime, a um poder que é enfim um poder 1 Mestrando em Ciências Criminais - PUCRS | [email protected]

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Artigo publicado em anais de evento a respeito das identidades de gênero não dissidentes no cárcere

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  • VIDAS PRECRIAS:

    PERFORMANCES DE GNERO E VIOLNCIA NA EXPERINCIA DO CRCERE

    KLEIN, Caio Cesar1

    Resumo: O presente projeto de pesquisa pretende realizar uma anlise da relao entre

    violncia e performances de gnero no interior de instituies carcerrias. Utilizando

    como referenciais tericos os estudos feministas e de gnero, as abordagens da

    criminologia crtica, feminista e queer, bem como os estudos das intersecionalidades,

    pretende-se debater com aprofundamento analtico as formas como a violncia

    experimentada por sujeitos cujas performances de gnero no se coadunam ao sistema

    de sexo-gnero, nos termos do que Butler definiu enquanto heteronormatividade e

    hegemonia heterossexual. Vinculada ao Programa de Ps Gradao em Cincias

    Criminais da PUCRS, a presente pesquisa se encontra em fase de submisso aos

    comits cientficos responsveis.

    Palavras-chave: criminologia; violncia; gnero; travesti; transexual.

    Ao analisar a questo de como certas existncias se constituem enquanto vidas

    precrias, Judith Butler (2006) questiona o modo pelo qual a normatizao da noo de

    corpo e a manuteno de representaes culturais do que vem a ser humanamente vivel

    representaes culturais que, na anlise aqui proposta, dizem respeito ao que a autora

    define em termos de hegemonia heterossexual origina um mbito de seres no

    considerados humanos com base em tal percepo restritiva. A constituio desse

    mbito de desumanizao, que para Butler (2006, p. 59-60) ocorre atravs de um

    processo de desrealizao do humano, leva a autora a questionar

    Qu vidas son reales? Cmo podra reconstruirse la realidad? Aquellos

    que son irreales ya han sufrido, en algn sentido, la violencia de la

    desrealizacin? Cul es entonces la relacin entre la violencia y essas vidas

    consideradas irreales? La violencia produce esa irrealidad? Dicha irrealidad es la condicin de la violencia?

    construo dessa realidade humana e consequente desrealizao de outras

    vidas tornadas no-humanas se pode relacionar a constituio de discursos sobre o

    corpo, o gnero e a sexualidade que definem algum enquanto culturalmente inteligvel

    ou humanamente vivel. A proliferao desses discursos sobre o sexo no incio do

    sculo XIX, perodo histrico em que se observava a modificao do poder de uma

    tecnologia do poder que expulsa [e] que reprime, a um poder que enfim um poder

    1 Mestrando em Cincias Criminais - PUCRS | [email protected]

  • positivo, um poder que fabrica (FOUCAULT, 2002, p. 59), revela a busca da

    normalidade enquanto efeito da agncia do poder normativo que, ao intervir e qualificar

    repetidamente os indivduos, pretende produzir um sujeito plenamente integrado ao

    corpo social.

    A produo desses domnios de verdade sobre corpo-sexo-gnero pode ser

    relacionada questo da construo da irrealidade mbito que foi excludo do real, do

    humanamente vivel descrita anteriormente. Para Butler (2006, p. 183), a questo no

    reside especificamente na produo de discursos desumanizadores, mas sim nos limites

    estabelecidos pelos discursos que prescrevem as fronteiras da inteligibilidade humana,

    sendo necessrio pensar os

    esquemas normativos de inteligibilidad que estabelecen lo que va ser y no va

    a ser humano, lo que es una vida vivible y una muerte lamentable. Estos

    esquemas normativos funcionan no slo produciendo ideales que distinguen

    entre quines son ms o menos humanos. A veces, producen imgenes de lo

    que es menos que humano [...] amenazando com engaar a todos aquellos

    que sean capaces de creer que all, en esa cara, hay outro humano.

    Enquanto esquemas de inteligibilidade do corpo, o gnero e sexo seriam, nesse

    sentido, mbitos discursivos nos quais uma vida pode ser tida como precria? Scott

    (1995, p. 86) prope que a noo de gnero perpassa duas questes conexas: o gnero

    uma elemento constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas percebidas

    entre os sexos e [...] o gnero uma forma primria de dar significado s relaes de

    poder. Como elemento integrante das relaes sociais, a ideia de fixidez das categorias

    de sexo e gnero estaria relacionada existncia de smbolos culturalmente disponveis

    e de conceitos normativos que subtraem ou limitam as interpretaes possveis desses

    smbolos. No processo histrico de luta e resistncia, a interpretao dominante passa a

    ser reproduzida como a verdadeira e nica possvel, como se outras possibilidades

    interpretativas nunca houvessem existido, o que confere a noo de fixidez

    interpretao vencedora, de modo que a incluso da dimenso poltica e social nesse

    debate o meio de desmistificar a qualidade atemporal que aquela significao

    adquiriu. A significao dada mulher e ao feminino, por exemplo, nas relaes sociais

    , nessa viso, a estruturao da percepo simblica e concreta da vida social

    implicada na construo do prprio poder poltico, pois a mesma estrutura que nega

  • outras formas de significao da mulher e constri a oposio binria homem/mulher

    estabelece outras ordens de certeza e fixidez, necessrias manuteno do poder, como

    se fossem alheias construo humana. Nesse sentido, o conceito de gnero passou a

    ser utilizado entre feministas anglo-saxnicas a partir da dcada de 1960 a fim de

    enfatizar o carter fundamentalmente social das distines baseadas no sexo [e indicar]

    uma rejeio do determinismo biolgico implcito no uso de termos como sexo ou

    diferena sexual (SCOTT, 1995, p. 72).

    Os estudos de gnero pretendem, portanto, incluir no debate social a anlise das

    relaes entre mulheres e homens, buscando as justificativas para as desigualdades a

    partir do estudo dos arranjos e a papeis sociais, da histria e das formas de

    representao do masculino e do feminino. A noo de gnero contrape a viso

    biologista na medida em que afirma que

    [...] no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a forma como

    essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou

    pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que feminino ou

    masculino em dada sociedade e em um dado momento histrico (LOURO,

    1997, p. 21).

    Mas se o sexo no apenas biologia, tampouco o apenas cultura. Para Butler

    (2001, p. 153), a materialidade do sexo se revela por ser esse uma categoria normativa,

    aquilo que Foucault chamou de 'ideal regulatrio'. Nesse sentido, pois, o 'sexo' no

    apenas funciona como uma norma, mas parte de uma prtica regulatria que produz os

    corpos que governa. Ou seja, o ideal regulatrio do sexo, sua norma, na verdade

    poder produtivo que nomeia, demarca, diferencia e d lugar ao corpo. Sexo e gnero,

    assim, fazem parte de uma tecnologia cultural que pretende a regularidade dos corpos.

    Tal normatizao se dar em relao s variantes sexo-gnero-sexualidade, na qual um

    sexo aqui biolgico determinaria um gnero que, por sua vez, definiria uma

    sexualidade, relao imediata que manteria a harmonia da norma heterossexual. A

    norma opera na nomeao do corpo enquanto macho ou fmea a constituio do sexo

    e uma vez feita esta distino, que este sujeito assuma um dos dois gneros

    masculino ou feminino e experimente o desejo por algum do sexo/gnero oposto

    (LOURO, 2010, p. 146). Deste modo, gnero pode ser pensando enquanto

  • un sistema de reglas, convenciones, normas sociales y prcticas

    institucionales que producen performativamente el sujeto que pretenden

    describir. [...] no como una esencia o una verdad psicolgica, sino como una

    prctica discursiva y corporal performativa a travs de la cual el sujeto

    adquiere inteligibilidade social y reconocimiento poltico (PRECIADO,

    2008, p. 86).

    Para Butler (2012), se o gnero diz respeito produo da relao binria

    homem/mulher, seu estudo deve buscar a compreenso de como tal relao tornada

    real, consolidada e usada como argumento para a hegemonia e auto-naturalizao em

    certas configuraes culturais. O gnero enquanto ato performtico est relacionado,

    portanto, ao carter de repetio e reproduo de enunciados que dizem respeito a um

    sistema de regras que produzem a inteligibilidade cultural do masculino e do feminino.

    Atuando a partir da diferenciao, um enunciado performativo como isso coisa de

    homem institui um domnio do masculino a partir do qual so identificados os sujeitos

    no-homens, os que no se coadunam s prticas estabelecidas como coisa de homem.

    Elabora-se um conceito de identidade por essncia e representao de um indivduo

    indivisvel e universal. Esse conceito de identidade normatiza sujeitos atravs do ato

    que se prope a descrev-los, controlando, pela excluso e pr-definio,

    comportamentos lingusticos e sociais em geral (PINTO, 2007, p. 15).

    Se o gnero diz respeito a uma forma de inteligibilidade do sujeito em

    determinado contexto cultural, nas descontinuidades dessa norma reguladora estaro os

    corpos tidos por ininteligveis, um domnio de seres abjetos, aqueles que ainda no so

    sujeitos, mas que formam o interior constitutivo relativamente ao domnio do sujeito

    (BUTLER, 2001, p. 155). Ou seja, a abjeo ou ininteligibilidade desses corpos

    constituda no interior da prpria matriz reguladora do gnero: travestis, assexuais,

    andrginos, queers. A existncia de um ideal regulador do gnero pressupe a formao

    desse mbito de sujeitos tidos como desviantes e cujos corpos, no interior da norma,

    sero considerados abjetos. Para Butler, se a construo de um ideal regulatrio

    pressupe certo grau de normatividade, seu efeito ser a produo de sujeitos fora de

    ordem. A abjeo, nesse sentido, se relacionaria a todo tipo de corpos cujas vidas no

    so consideradas vidas e cuja materialidade entendida como no importante

    (PRINS; MEIJER, 2002, p. 161). O corpo abjeto, por ser ininteligvel a partir da matriz

    cultural que define o humanamente vivel, o corpo cuja existncia tem menor

  • importncia. No obstante, precisam estar l, ainda que numa higinica distncia, para

    demarcar as fronteiras da normalidade (PELCIO, 2009, p. 47), ou seja, reforar a

    norma atuando enquanto referncia daquilo que no normal ou desejvel.

    Haveria, assim, relao entre a abjeo de um corpo e a ideia de vida precria

    defendida por Judith Butler? Sobre sua noo de vida precria, Butler inicialmente

    reflete sobre quais so as mortes que ensejam o luto na cena pblica. Fazendo referncia

    a como na mdia norte-americana no existe, nos obiturios, referncias s mortes de

    guerras infligidas pelos Estados Unidos atribuindo ao obiturio a funo de

    distribuio pblica do luto a autora denuncia que nunca tendran de haber sido

    vidas, vidas dignas de atencin, vidas que valiera la pena preservar, vidas que

    merecieran reconocimiento (BUTLER, 2006, p. 61). Portanto, a abjeo e a

    precarizao da vida enquanto efeito da desrealizao ou desqualificao do corpo

    abjeto no particular aos corpos que subvertem a matriz de inteligibilidade cultural

    de sexo e gnero, podendo se referir a processos discursivos que se instituem em relao

    pobreza, psiquiatrizao de certas vidas, ou marginalizao de identidades

    nacionais ou culturais (como no caso da crescente averso norte-americana a pessoas de

    origem rabe e da deportao de ciganos da Frana). Para Butler, possvel verificar

    essas vidas precrias enquanto corpos que no importam

    [...] na imprensa alem quando refugiados turcos so mortos ou mutilados.

    Seguidamente podemos obter os nomes dos alemes que cometem o crime e

    suas complexas histrias familiares e psicolgicas, mas nenhum turco tem

    uma histria familiar ou psicolgica complexa que o Die Zeit alguma vez

    mencione [...]. Assim, recebemos uma produo diferenciada, ou uma

    materializao diferenciada, do humano. E tambm recebemos, acho eu, uma

    produo do abjeto (PRINS; MEIJER, 2002, p. 162).

    Questo semelhante levantada por Jos de Souza Martins acerca da

    considerao de certas vidas como menos importantes, de modo que a investigao

    sobre esse fenmeno deve ter em conta as formas de diferenciao que imputam a

    determinadas pessoas lugares sociais no participativos, excludentes, como se elas no

    pertencessem ao mesmo gnero humano das demais (MARTINS, 2002, p. 15). Nesse

    ponto, embora o escopo deste projeto de pesquisa seja a relao entre a subverso das

    normas de gnero e a violncia, ser produtiva a incluso dos debates acerca das

  • intersecionalidades enquanto categoria que alude multiplicidade de diferenciaes

    que, articulando-se a gnero, permeiam o social (PISCITELLI, 2012, p. 199), como

    raa/etnia, classe social, sexualidade, enfim, outras determinaes que, enquanto formas

    excludentes de diferenciao e em combinaes de processos diferenciadores,

    aprofundam as desigualdades de gnero e constroem experincias sociais distintas.

    No caso brasileiro, as travestis2 so vtimas notrias da violncia impulsionada

    pelo apagamento de suas condies humanas. Segundo a Secretaria de Direitos

    Humanos da Presidncia da Repblica, as travestis representam 50,5% das cerca de 300

    vtimas de homicdios cometidos contra a populao de lsbicas, gays, bissexuais,

    travestis e transexuais (LGBT) no Brasil em 2011 (GLOBAL RIGHTS, 2013).

    Enquanto sujeitos que subvertem a norma sexo-gnero ao produzirem performances

    femininas em corpos que so socialmente interpretados enquanto masculinos, no so

    inteligveis (um argumento epistemolgico) e no tm uma existncia legtima (um

    argumento poltico ou normativo) (PRINS; MEIJER, 2002, p. 160). Paralela abjeo

    de seus corpos sexuados, a pobreza marca de suas experincias ao se constatar que a

    grande maioria das travestis [] proveniente das classes populares e mdia baixa

    (PELCIO, 2006, p. 94) e que muitas continuam pobres por toda a vida, levando uma

    existncia miservel, morrendo antes dos 50 anos em virtude da violncia, do uso de

    drogas, de problemas de sade relacionados s aplicaes de silicone (KULICK, 2008,

    p. 24). Entre as travestis brasileiras se percebe tambm que h predominncia de

    negros e pardos, indicativo de seu pertencimento aos extratos mais pobres da sociedade

    brasileira (CARRARA; VIANNA, 2006, p. 235). Essas interseces entre identidade

    de gnero, classe social e raa/etnia indicam os nveis de desigualdade social,

    econmica e cultural experimentados pelas travestis brasileiras, o que pode explicar o

    quanto o projeto do corpo travesti est relacionado, em termos de padres

    socioeconmicos mais abrangentes de desigualdade (KULICK, 2008, p. 61), com o

    2 Travesti um termo que sobreviveu at a poca contempornea e utilizado na Amrica Latina para descrever as pessoas que transitam entre gneros, sexos e vestimentas. As travestis vieram de uma dessas

    identidades reprimidas. O prprio conceito de travesti (literalmente vestir-se com roupas do outro sexo)

    nasceu da fixao dos colonizadores com os binrios de gnero, incluindo o imperativo de vestir de

    acordo com seu lugar numa rgida dicotomia de gnero [...]. (CAMPUZANO, 2008. p. 82).

  • estigma da prostituio e do crime, tornando-as especialmente selecionveis pelo

    sistema penal.

    Enquanto elemento estruturante do exerccio do poder punitivo nos sistemas

    penais contemporneos, a seletividade penal pode ser entendida enquanto tecnologia

    social atravs da qual os comportamentos e identidades de grupos subalternos

    considerados lesivos ou indesejveis so criminalizados a fim de proteger interesses de

    um grupo ou classe dominante (ZAFFARONI, 1999). Essa orientao seletiva, que para

    Zaffaroni et al (2003) ocorre no interior do processo de criminalizao secundria3,

    balizada por determinantes de cunho social, econmico, poltico e cultural, cumpriria

    funo de conservao e de reproduo social: a punio de determinados

    comportamentos e sujeitos contribuiria para manter a escala social vertical e serviria de

    cobertura ideolgica a comportamentos e sujeitos socialmente imunizados

    (BARATTA, 2002, p. 15). No caso das travestis, por serem reconhecidas socialmente

    enquanto pessoas desvaloradas, possvel associar-lhes todas as cargas negativas

    existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma

    imagem pblica do delinquente com componentes de classe social, tnicos, etrios, de

    gnero e estticos (ZAFFARONI et al, 2003, p. 46).

    Ao passo em que as travestis experimentam determinadas formas de violncia e

    preconceito ao transformar seus corpos e neles realizar uma performance de gnero

    feminina, as lsbicas e, sobretudo, as mulheres masculinizadas ou butch4, possuem

    experincias sociais algumas vezes semelhantes na medida em que subvertem o

    comportamento feminino considerado ideal ou normal no interior das normas de gnero.

    Socialmente invisibilizadas, as identidades lsbicas compreendem culturalmente uma

    maneira de classificar as mulheres [que] faz aluso direta atividade e passividade

    que, por sua vez, remetem tanto a prticas sexuais quanto a atributos estticos, corporais

    e gestuais (AGUIO, 2008, p. 301). Sapato, butch, caminhoneira, ativa, sargenta e

    fancha so tipologias da cultura lsbica usualmente empregados para designar mulheres,

    3 Nessa perspectiva [...] a criminalizao secundria a ao punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agncias policias detectam uma pessoa que supe-se tenha praticado certo ato

    criminalizado primariamente (ZAFFARONI et al, 2003. p. 43). 4 O termo utilizado no possui um correspondente adequado em lngua portuguesa. Refere-se lsbica

    masculinizada, em posio femme.

  • no necessariamente homossexuais, que performatizam o masculino em seus corpos.

    Realizar a performance de gnero masculina em corpos tidos enquanto femininos

    ressaltando-se a impossibilidade de determinar, muitas vezes, a fronteira entre as

    identidades femininas masculinizadas e/ou lsbicas e identidades transgnero (homem

    transexual, trans-homem, entre outras designaes) perpassa a assuno de signos e

    prticas culturalmente identificadas como masculinas. Nesse sentido, uma das hipteses

    da pesquisa proposta a da possvel reproduo, por mulheres masculinizadas, de

    discursos masculinistas como o machismo, inclusive atravs de prticas de

    subordinao e violncia contra a mulher.

    Essa hiptese compe uma anlise comparativa entre a possvel violncia

    impingida por mulheres masculinizadas em contraposio notria violncia sofrida

    por travestis, no em uma lgica de culpabilizao de uns e vitimizao de outros, mas

    como reflexo acerca do masculino como lugar da violncia a partir da reproduo

    social de uma lgica binria de gnero na qual a virilidade sempre foi entendida como

    um atributo dos homens, pois atravs de sua fora fsica, atividade, [...] o macho foi

    sendo associado a imagens de sexo forte e racional, e a fmea associada a imagens de

    fragilidade, passividade e sensibilidade (CARVALHAES, 2001, p. 96).

    A escolha do crcere enquanto cenrio desta proposta de pesquisa no ocorre por

    acaso, mas porque as prises so instituies cujas dinmicas esto permanentemente

    associadas sustentao da moralidade e da sexualidade viril (COLARES; CHIES,

    2010, p. 421), bem como um mundo parte [no qual] a segurana e disciplina

    demarcam justificativas racionais para prticas que expressam apenas autoridade e

    descumprimento de direitos (WOLFF, 2005, p. 114). Igualmente, tomada a

    seletividade penal enquanto instrumento de criminalizao de pessoas fora da norma, no

    crcere as questes de raa/etnia e pobreza sero responsveis pela potencializao da

    violncia impingida nas e pelas agncias punitivas, sobretudo por se tratar de uma

    instituio que, ao exercer fora poltica, atua colocando distncia entre a ordem e a

    desordem, entre a pureza e o perigo, com a tentativa de eliminao do estranho, do

    desigual e impedindo que ele se torne um perigo ameaador da homogeneidade

    (GAUER, 2011, p. 80).

  • Embora intersecional, a anlise dos tipos de violncia abordados privilegiar o

    gnero enquanto questo fundante da desumanizao dos corpos dissidentes da norma

    heterossexual. Para tanto, os recentes estudos sobre criminologia queer (queer

    criminology) ou uma abordagem queer da criminologia (queering criminology)

    proporcionaro uma anlise mais atenta s trs formas de violncia homofbica

    descritas por Carvalho (2012a) considerada em seu sentindo ampliado ao contemplar a

    homo-lesbo-transfobia quais sejam: (i) a violncia homofbica interpessoal, referente

    violncia fsica e sexual praticada contra sujeitos femininos e de masculinidades no

    hegemnicas; (ii) a violncia homofbica simblica, a partir dos processos de

    reproduo social da heteronormatividade; e (iii) a violncia homofbica institucional,

    ou homofobia de Estado, de especial importncia para este trabalho pois

    se traduz, por um lado, na construo, interpretao e aplicao sexista

    (misgina e homofbica) da lei penal em situaes que invariavelmente

    reproduzem e potencializam as violncias interpessoais (revitimizao) e, por

    outro, na construo de prticas sexistas nas, e atravs das, agncias punitivas

    (violncia policial, carcerria e manicomial) (CARVALHO, 2012a, p. 161).

    Aliada criminologia crtica e com agenda semelhante criminologia

    feminista5, a abordagem criminolgica queer pretende no apenas a desconstruo dos

    padres de violncia sexistas e misginos, mas a desconstruo do prprio sentido

    dicotmico dado a partir de um ideal de masculinidades hegemnicas social e

    institucionalmente hierarquizadas [que subordinam] as feminilidades e masculinidades

    no-hegemnicas (CARVALHO, 2012b, p. 161), bem como os sujeitos que

    experimentam a transgeneridade.

    Consideraes Finais

    Valendo-se das perspectivas tericas apresentadas, e retomando as categorias de

    vida precria e abjeo construdas por Butler a partir da ideia de desrealizao do

    5 A pauta criminolgica feminista no apenas evidencia o processo de objetificao da mulher que a torna vulnervel violncia no espao privado, mas denuncia o sexismo institucional que reproduz

    distintas formas de violncia contra a mulher na elaborao, na interpretao, na aplicao e na execuo

    da lei (penal). Correto, pois, o diagnstico de a mulher ser duplamente violentada pelo sistema penal,

    independentemente do papel que represente no episdio delitivo, seja atravs da invisibilizao ou

    subvalorizao da violncia sofrida, seja pela hiper ou sobrepunio de suas condutas quando autora de

    crime (CARVALHO, 2012b, p. 159).

  • humano, pretende-se investigar, nos limites propostos, se a violncia direcionada a esses

    sujeitos fora da norma produz a sua irrealidade abjeo e precarizao da vida ou se

    essa irrealidade a prvia condio da violncia a eles impingida. A partir de dados

    empricos prvios acerca da violncia direcionada a travestis e mulheres trans no

    interior das instituies prisionais masculinas, a pesquisa prev um aprofundamento da

    anlise desse fenmeno para, em uma perspectiva intersecional, verificar a existncia e

    as formas de violncia que envolvem as performances de gnero masculinas em corpos

    socialmente tomados como femininos, por ser essa uma temtica abordada com menor

    intensidade no campo dos estudos de gnero e de sexualidades. A pesquisa tambm

    pretende aprofundar a incurso das temticas de gnero nos estudos de criminologia e

    segurana pblica devido escassez dessa abordagem nessas reas do conhecimento.

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