Kosuth com Freud Imagem, psicanálise e arte contemporânea

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O primeiro capítulo de Art Since 1900 trata, curiosamente, de psicanálise, mostrando que ela compartilha com a arte modernista um mesmo contexto histórico e que entre elas se produzem variadas interseções ao longo do século. Os autores identificam uma influência mais ou menos direta da psicanálise sobre a produção artística, embasada em interesses comuns, como o fascínio pelas origens, o primitivo e a loucura, ou ainda, “mais recentemente”, a subjetividade e a sexualidade. 1 Além disso, notam que termos psicanalíticos entraram no vocabulário de base da arte e da crítica do século 20. Os entrelaçamentos dos dois campos parecem-nos, porém, ir além das conexões históricas que desenham um conjunto de temas comuns e de aplicações de conceitos psicanalíticos como instrumentos críticos. Mais amplamente, devemos conceber, em um contexto histórico- cultural expandido, que a psicanálise partilha com a arte do século 20 – e continua hoje compartilhando – questões fundamentais a respeito da própria natureza da imagem. Imagem: manteremos esse termo vago, sem dúvida polissêmico (para não dizer francamente problemático), para designar o campo do visual que envolve o sujeito e se configura no campo mais amplo das representações – entendidas como produtos de determinadas relações entre sujeito e objeto. No terreno que a psicanálise compartilha com a arte, em diálogos múltiplos e cruzados (por vezes até cegos, ou surdos, desencontrados), tais relações são postas em crise, constituindo um campo notavelmente móvel e sujeito a subversões de um ou outro termo, sujeito ou objeto. O discurso que abre tal crise da imagem talvez seja aquele que a põe radicalmente na berlinda, na trilha indicada por Mallarmé: “O moderno desdenha imaginar”. 2 Desde seu ato de fundação com A Interpretação dos Sonhos, a psicanálise trata da imagem, recuperando por via insuspeita um dos COLABORAÇÃO • TÂNIA RIVERA 65 Kosuth com Freud Imagem, psicanálise e arte contemporânea Tânia Rivera Este ensaio busca alargar o terreno de diálogo entre psicanálise e arte, recolocando a questão da imagem e explorando suas relações com a linguagem. As contribuições freudianas são trabalhadas, especialmente no que se refere ao sonho e à lembrança, em um tenso diálogo com algumas obras de Joseph Kosuth. Indica-se brevemente a influência indireta da invenção da fotografia sobre o surgimento da psicanálise e busca-se apontar algumas das elaborações dos principais leitores de Freud em teoria da arte. Psicanálise, arte contemporânea, imagem, Joseph Kosuth. O Sujeito nunca é, o sujeito é apenas o processo de significação. Julia Kristeva apud Joseph Kosuth (À Propos (Reflecteur de Reflecteur) #75, 2004) Eu penso no que sou quando não penso em pensar. Jacques Lacan apud Joseph Kosuth ( À Propos (Reflecteur de Reflecteur) #70, 2004)

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O primeiro capítulo de Art Since 1900 trata,curiosamente, de psicanálise, mostrando que elacompartilha com a arte modernista um mesmocontexto histórico e que entre elas se produzemvariadas interseções ao longo do século. Osautores identificam uma influência mais oumenos direta da psicanálise sobre a produçãoartística, embasada em interesses comuns, comoo fascínio pelas origens, o primitivo e a loucura,ou ainda, “mais recentemente”, a subjetividade ea sexualidade.1 Além disso, notam que termospsicanalíticos entraram no vocabulário de baseda arte e da crítica do século 20. Osentrelaçamentos dos dois campos parecem-nos,porém, ir além das conexões históricas quedesenham um conjunto de temas comuns e deaplicações de conceitos psicanalíticos comoinstrumentos críticos. Mais amplamente,devemos conceber, em um contexto histórico-cultural expandido, que a psicanálise partilhacom a arte do século 20 – e continua hoje

compartilhando – questões fundamentais arespeito da própria natureza da imagem.

Imagem: manteremos esse termo vago, semdúvida polissêmico (para não dizer francamenteproblemático), para designar o campo do visualque envolve o sujeito e se configura no campomais amplo das representações – entendidascomo produtos de determinadas relações entresujeito e objeto. No terreno que a psicanálisecompartilha com a arte, em diálogos múltiplos ecruzados (por vezes até cegos, ou surdos,desencontrados), tais relações são postas emcrise, constituindo um campo notavelmentemóvel e sujeito a subversões de um ou outrotermo, sujeito ou objeto. O discurso que abretal crise da imagem talvez seja aquele que a põeradicalmente na berlinda, na trilha indicada porMallarmé: “O moderno desdenha imaginar”.2

Desde seu ato de fundação com A Interpretaçãodos Sonhos, a psicanálise trata da imagem,recuperando por via insuspeita um dos

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Kosuth com FreudImagem, psicanálise e arte contemporânea

T â n i a R i v e r a

Este ensaio busca alargar o terreno de diálogo entre psicanálise e arte, recolocando aquestão da imagem e explorando suas relações com a linguagem. As contribuições

freudianas são trabalhadas, especialmente no que se refere ao sonho e à lembrança, emum tenso diálogo com algumas obras de Joseph Kosuth. Indica-se brevemente a

influência indireta da invenção da fotografia sobre o surgimento da psicanálise e busca-seapontar algumas das elaborações dos principais leitores de Freud em teoria da arte.

Ps icaná l i se , a r te contemporânea, imagem, Joseph Kosuth .

OO SSuujjeeiittoo nnuunnccaa éé,, oo ssuujjeeiittoo éé aappeennaass oo pprroocceessssoo ddee ssiiggnniiffiiccaaççããoo..

JJuulliiaa KKrriisstteevvaa aappuudd JJoosseepphh KKoossuutthh

((ÀÀ PPrrooppooss ((RReefflleecctteeuurr ddee RReefflleecctteeuurr)) ##7755,, 22000044))

EEuu ppeennssoo nnoo qquuee ssoouu qquuaannddoo nnããoo ppeennssoo eemm ppeennssaarr..

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((ÀÀ PPrrooppooss ((RRee ff ll eecctteeuurr ddee RRee ff ll eecctteeuurr )) ##7700,, 22000044))

significados do eidolon grego, o de imagem dosonho, que coexistia com as conotações deaparição suscitada por um deus e de fantasmade um defunto.3 Por mais que Jacques Lacantenha legitimamente buscado varrer do campoda psicanálise uma prepotência da imagem queobscurecia, nos autores pós-freudianos, aimportância fundamental da linguagem naconstituição do sujeito, a imagem retornarepetidamente e não cessa, até hoje, deassombrar a psicanálise. O imaginário em Lacané o registro do engodo, da ilusão que devemosdesdenhar (como para Mallarmé), pois encobreo sujeito do inconsciente. No entanto, aimagem é, desde Freud, como veremos nesteensaio, simultaneamente encobrimento evislumbre do desejo que move o sujeito. Com ainvenção freudiana do inconsciente, a noção deimagem se reconfigura segundo algumas linhasde força que nos parecem ressoar na produçãoartística do século 20 e preparar uma novaabordagem do campo disperso em quepsicanálise e arte contemporânea se relacionam.

Empregaremos, portanto, o termo imagemporque vemos nele, justamente pelasdificuldades que levanta, no que carrega deproblemático e impreciso – por vezes sendoaproximado da idéia de figuração, no discursocorrente sendo oposto ao campo da esculturaetc. –, uma importante potência crítica. Talvezcom ele seja possível pôr em crise, mais umavez e repetidamente, certas idéias dominantes,como a atual versão de iconoclasmo apontadapor Arlindo Machado,4 para recolocar, nacontracorrente e em companhia da psicanálise ede alguns trabalhos de Joseph Kosuth sobre aobra de Freud, a velha questão da imagem.

SSoonnhhoo,, mmeemmóórriiaa ee ppaallaavvrraa

Já em 1899, no precoce texto “LembrançasEncobridoras”, Freud pôs vigorosamente emquestão o estatuto da recordação e, com ela, oda imagem. Ele mostra que nossas lembrançasmais vívidas podem não ser mais do quefantasias, apesar de seu caráter ultranítido. Taisimagens fixam uma recordação que não ocorreuna realidade, ou privilegiam um eventototalmente banal. Em seu âmago, porém, háuma terrível verdade que elas escondem,encobrem: um acontecimento traumático. Assimé para o nascimento da irmãzinha de Freud,acontecimento de que ele não se recorda em

absoluto, guardando em contrapartida a nítidarecordação de um incidente banal ocorridodurante a viagem de trem que fez com a famílianessa ocasião5. De maneira deslocada,disfarçada, na lembrança encobridora encontra-se condensado o essencial do conflito queconstitui o sujeito. A lembrança encobridora éuma espécie de fotografia deslocada do infantil.

Acentuando a distância entre vivência erepresentação, Freud faz da reproduçãomnêmica uma construção que encobre averdade, mas de alguma maneira a deixaentrever, podendo, portanto, ser perscrutadaem uma tentativa de reconstruí-la. A imagem éobstáculo, véu sobre o trauma, e podemoschamá-la, nessa vertente, de imagem-muro. Maspor entre sua trama, em suas lacunas, encontra-se, in-visível, um acontecimento terrível – emsua vertente, digamos, de imagem-furo.

As lembranças são o material privilegiado doinconsciente – chamado por Freud de OutraCena –; elas se exprimem “em imagens visuais”(in visuelle Bilder) e são ávidas por revivescência,levando à alucinação que é o sonho:pensamento tornado imagem.6 O sonho étambém uma cena – a cena por excelência, viareal do inconsciente –, que Freud considerasubstituir uma “cena infantil”, modificando-a.

A tal imagem originária, alucinação que constituio sonho em si, porém, não se pode ter acesso.O sonho que se interpreta é o texto do sonho,aquele que Freud recomenda que seja escritoassim que acordamos e dele nos lembramos,ainda que seja de madrugada – é melhor ter umcaderninho na mesa-de-cabeceira, como faz eleem sua “auto-análise”. Ou é o texto-discurso dosonho contado e recontado em análise, nãoimportam tanto as inúmeras alterações que elepossa sofrer, o fundamental é que elas levemaos pensamentos oníricos – graças àsassociações que refazem, no sentido inverso, otrabalho figurativo do sonho, nesta espécie detrabalho de linguagem chamado associação livre.

Isso que a obra freudiana opera como umdesdobramento da imagem, essedespregamento de si mesma que lhe confereoutra espessura, é herdeiro de uma verdadeirarevolução ocorrida nas relações entre sujeito eimagem, várias décadas mais cedo: a invençãoda fotografia.7 Ao cumprir a pauta realista com

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precisão quase absoluta, a fotografia acaba porabrir uma crise sem precedentes na história damímesis. Entre a representação e seu referentenão há mais a distância segura que a pinturatentava ultrapassar. De um só golpe, é a própriarealidade que é posta em questão: seria elaapenas imagem? O real se distancia até tornar-seinatingível, enquanto a imagem assume a dupla eparadoxal função de mostrá-lo e escondê-lo, aomesmo tempo. Não é abusiva a concepção deWalter Benjamin de um “inconsciente ótico”,marcado pelo surgimento da fotografia ecomparável ao inconsciente “pulsional”freudiano8. A fotografia inaugura uma analíticado visual que a cronofotografia, por exemplo,mostra com Muybridge: haveria ou não ummomento na corrida de cavalos em quenenhuma das patas do animal se encontrariaapoiada no chão? A psicanálise opera nosujeito aquilo que a fotografia realiza noâmbito do objeto: torna-o problemático,opaco, sujeito a análise.

O inconsciente é “pulsional”, como o caracterizaBenjamin, apenas no sentido em que as pulsões,que Freud localiza na fronteira com a biologia, aíse fazem representar. O material do psiquismosão as representações, acompanhadas de formamais ou menos errante por afetos. Para tratardo sujeito desencontrado, descentrado peloinconsciente, é curioso que Freud lance mãopor sua vez, repetidamente, do modelo deaparelhos óticos, que lhe permitem conceber, apartir da premissa de uma espessura eopacidade fundamentais à construção darealidade, uma estratificação em que refrataçõesdiversas na representação correspondem aosdiferentes sistemas psíquicos: consciente, pré-consciente e inconsciente.

((......)) PPrrooppoonnhhoo ssiimmpplleessmmeennttee sseegguuiirr aassuuggeessttããoo ddee vviissuuaalliizzaarrmmooss oo iinnssttrruummeennttooqquuee eexxeeccuuttaa nnoossssaass ffuunnççõõeess aanníímmiiccaass ccoommoosseemmeellhhaannttee aa uumm mmiiccrroossccóóppiioo ccoommppoossttoo,,uumm aappaarreellhhoo ffoottooggrrááffiiccoo oouu aallggoo ddeessssee ttiippoo..CCoomm bbaassee nniissssoo,, aa llooccaalliizzaaççããoo ppssííqquuiiccaaccoorrrreessppoonnddeerráá aa uumm ppoonnttoo nnoo iinntteerriioorr ddooaappaarreellhhoo eemm qquuee ssee pprroodduuzz uumm ddooss eessttáággiioosspprreelliimmiinnaarreess ddaa iimmaaggeemm..9

Não se trata apenas de fazer dalocalização psíquica um lugar virtual que secontraponha às porções do cérebro – com asquais, na época de Freud como hoje, alguns

cientistas teimam em reduzir a questão dosujeito. O que Freud persistirá em chamar de“aparelho” psíquico produz imagem, no sonhoprioritariamente, e também na lembrançaencobridora, borrando as fronteiras entre sonhoe recordação. Tal aparelho também produzpiadas, lapsos e sintomas, fazendo da linguagem,sintoma. A imagem também é sintoma: elacristaliza um conflito entre o que se pode e oque não se pode mostrar, entre o sexualenigmático e o eu, entre a imagem-muro e aimagem-furo. Longe de ser um material inerteque constituiria o inconsciente, a imagem éincerta, cambiante e disfarçada, distorcida pelacensura. Os processos pelos quais ela se formasão figuras de linguagem: condensação edeslocamento (que Lacan faz equivaler àmetáfora e a metonímia, respectivamente), poisa imagem está de saída entrelaçada à palavra. Osonho é rébus, enigma em imagens que devemser (re)transformadas em palavras, ou melhor:palavras que desenham imagens a seremretraduzidas. O sonho é “linguagem (ou língua,Sprache) pictórica”, nos termos de Freud.10 Aspalavras são plásticas, podem-se com elas fazerimagens – aliás, pode-se com elas fazer todotipo de coisas, como diz Freud em seu livrosobre as piadas.11 Os pensamentos quecompõem o sonho são abstratos, são palavras,mas devem ser representados visualmente.

NNããoo hháá ddiiffiiccuullddaaddee eemm eexxpplliiccaarr ooccoonnssttrraannggiimmeennttoo iimmppoossttoo àà ffoorrmmaa ppeellaa qquuaallooss ppeennssaammeennttooss oonníírriiccooss ssee eexxpprreessssaamm.. OOccoonntteeúúddoo ddooss ssoonnhhooss ccoonnssiissttee,, eemm ssuuaammaaiioorr ppaarrttee,, eemm ssiittuuaaççõõeess vviissuuaaiiss[[aannsscchhaauulliicchheenn SSiittuuaattiioonneenn]],, ee oossppeennssaammeennttooss oonníírriiccooss,, ppoorr ccoonnsseegguuiinnttee,,ddeevveemm sseerr ssuubbmmeettiiddooss,, eemm pprriimmeeiirroo lluuggaarr,,aa uumm ttrraattaammeennttoo qquuee ooss ttoorrnnee aaddeeqquuaaddoossaa eessssee ttiippoo ddee rreepprreesseennttaaççããoo[[aapprreesseennttaaççããoo,, DDaarrsstteelllluunngg]]..12

É nesse sentido que Freud afirma que “aspalavras são freqüentemente tratadas, nossonhos, como se fossem coisas”13 – comocoisas visíveis.

OO RReeaaddyy--mmaaddee ee oo ssoonnhhoo

Em 1989, Joseph Kosuth instalou seu Zero &Notna Bergasse 19, casa e consultório de Freuddurante décadas, até sua fuga dos nazistas em1938. O artista cobriu as paredes com umacuidadosa reprodução de trechos da obra dopsicanalista Psicopatologia da Vida Cotidiana

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(1901) e, em seguida, cobriu-os com fita negra,barrando-os de modo a impedir quasetotalmente sua leitura – de maneira semelhanteao que Freud caracteriza como o trabalho dacensura sobre o material inconsciente. Zero &Not foi o primeiro passo para transformar emum espaço de arte contemporânea o imóvelesvaziado dos principais pertences de Freud,que seguiram com ele para Londres e hojecompõem o Museu Freud nessa cidade. Kosuthconvenceu artistas como John Baldessari, JennyHolzer e Ilya Kabakov, entre outros, a doaremobras suas para o museu, formando a base dacoleção da Fundação para as Artes, MuseuSigmund Freud em Viena. Em 1997, a exibiçãoda coleção é reaberta com novos trabalhos deartistas como Sherrie Levine, Marc Goethals eJessica Diamond. Kosuth apresenta aí um novotrabalho, intitulado O.&A./F!D! (to I.K. and J. F.),que se encontra em 2006 em mostra noAustrian Cultural Forum New York.

Nesta última obra, Kosuth se apropria de umtrecho de Os Chistes e sua Relação com oInconsciente14 reproduzido sobre uma parede.O texto de Freud trata dos sonhos e, maisespecificamente, da transformação doconceito em imagem, dos pensamentos em“quadro onírico”:

OO ttrraabbaallhhoo ddoo ssoonnhhoo –– aaoo qquuaall rreettoorrnnoo aappóósseessssaa ddiiggrreessssããoo –– ssuubbmmeettee oo mmaatteerriiaall ddoossppeennssaammeennttooss,, aapprreesseennttaaddooss nnoo mmooddooooppttaattiivvoo,, àà mmaaiiss eessttrraannhhaa ddaass rreevviissõõeess..PPrriimmeeiirroo,, ppaassssaa ddoo ooppttaattiivvoo aaoo pprreesseennttee ddooiinnddiiccaattiivvoo;; ssuubbssttiittuuii oo ““OOhh!! SSee aaoo mmeennooss......””ppeelloo ““ÉÉ””.. CCoonnffeerree--ssee eennttããoo aaoo ““ÉÉ”” uummaarreepprreesseennttaaççããoo aalluucciinnaattóórriiaa;; aaqquuiilloo qquueecchhaammeeii ddee ‘‘rreeggrreessssããoo’’ nnoo ttrraabbaallhhoo ddoo ssoonnhhoo–– oo ttrraajjeettoo qquuee lleevvaa ddooss ppeennssaammeennttooss ààssiimmaaggeennss ppeerrcceeppttiivvaass[[WWaahhrrnneehhmmuunnggssbbiillddeerrnn]],, oouu,, ppaarraa uussaarr aatteerrmmiinnoollooggiiaa ddaa aaiinnddaa ddeessccoonnhheecciiddaattooppooggrraaffiiaa ddoo aappaarraattoo mmeennttaall ((nnããooeenntteennddiiddoo aannaattoommiiccaammeennttee)),, ddaa rreeggiiããoo ddaasseessttrruuttuurraass ddooss ppeennssaammeennttooss[[DDeennkkbbiilldduunnggeenn]] ààss ppeerrcceeppççõõeess sseennssoorriiaaiiss..NNeessttee ccaammiinnhhoo,, iinnvveerrssoo aaoo ccuurrssoo ttoommaaddooppeelloo ddeesseennvvoollvviimmeennttoo ddaass ddiirreeççõõeess ddaassccoommpplliiccaaççõõeess mmeennttaaiiss,, ooss ppeennssaammeennttoossoonníírriiccooss ggaannhhaamm ppiiccttoorriiaalliiddaaddee[[AAnnsscchhaauulliicchhkkeeiitt]];; eevveennttuuaallmmeennttee,, cchheeggaa--sseeaa uummaa ssiittuuaaççããoo pplláássttiiccaa qquuee éé oo nnúúcclleeoo ddoommaanniiffeessttoo ““qquuaaddrroo oonníírriiccoo”” [[TTrraauummbbiillddeess]]..15

Parte do texto citado, que prossegue ainda emalgumas frases, é coberto por uma grandefotografia emoldurada, sua leitura tornando-sefragmentária (lê-se integralmente o trecho quevai até “não entendido anatomicamente”). Aimagem (o “pictórico”) é aí decomposta em suarelação com o desejo. O sonho transforma odesejo (“would it were”, na versão em inglêsempregada por Kosuth) em imagem (“it is”).Essa obra sublinha e revela o sentido em que osonho, na fórmula de Freud, é uma “realizaçãode desejo”:16 ele realiza, torna cena, quadro,isso que desliza incessantemente na linguagem,nas cadeias do significante, o desejo. O trabalhode Kosuth faz do próprio texto de Freud, porsua vez, um it is, mostrando-o como umaimagem que escapa em parte à significação, jáque uma fotografia – justamente! – vela parte dotexto (como um “quadro onírico” velaria o textodo sonho, ao mesmo tempo em que o faz ver),mostrando uma porta de entrada (de umconsultório? Do Museu Freud? Do inconsciente?Seja como for, ela está fechada). Por sua vez,essa imagem é recortada por um breve texto deKosuth, uma espécie de slogan que ocupa quaseum quarto de sua superfície, cobrindo todo ocanto inferior direito: “Uma fronteira aqui seencontra entre uma “coisa” independente e suaseleção e substituição”.

A referência a uma coisa e sua seleção evoca oprocedimento de Marcel Duchamp e nos fazperceber que Kosuth faz uma espécie de

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ready-made com o texto freudiano. “Ainicialmente brilhante mudança de paradigmade Duchamp com o ready-made estava,compreensivelmente, situada no mundo deobjetos: ela parecia insistir em uma maiorflexibilidade formal, mas ainda assim formal”,nota Kosuth. O pai da arte conceitual realizaentão uma torção na noção de ready-madeque dá o tom de toda sua obra, na intenção delevar o “conceito de ready-made ao seu nívelestrutural mais profundo no que diz respeitoao processo de significação na arte”.17 Elechegará a rebatizá-lo made-ready.

O “processo de significação na arte” aíconcebido por Kosuth, em companhia de Freud,parece portanto jogar com imagem e linguagem,estabelecendo relações e descontinuidadesentre eles, marcando zonas de invisibilidade e,por assim dizer, ‘dessignificação’. As “coisas” (os“it is” que formam o “quadro onírico”), nosonho, são selecionadas e substituídas àexaustão, levadas a remeter sempre a outras“coisas”, e assim se coloca em jogo,repetidamente, a “fronteira” entre “uma coisa” e“sua seleção ou substituição”. Uma “coisa”qualquer, inócua em si mesma, é tornada opacapor sua “seleção” pelo sonho, abrindo infinitaspossibilidades de substituição associativa. Opróprio sonho, tal como Freud o concebe epropõe lê-lo, implicando uma espécie desubversão da representação, talvez se aparentea um ready-made: selecionadas e substituídas demaneira múltipla, suas imagens são retomadasnos fios da linguagem do desejo, para sedescolar de referentes concretos em prol deuma opacidade e uma incerteza interpretativaprenhe de sentidos.

O uso da “cosmografia” (ressalte-se aí a grafia)freudiana interessa a Kosuth por prover “umaestrutura de significação mais ampla que podesituar proposições artísticas específicas” econsistir em um “contexto teórico que é nãoassertivo (uma presença teórica negada) mais doque uma falta “a ser” interpretada”.18 Ele pareceaí referir-se especialmente a Zero & Not, queescreve o texto freudiano nas paredes paracancelá-lo ou negá-lo, ao barrá-lo, construindouma relação complexa entre o trabalho artísticoe a teoria. Tal relação duplica e reflete a questãoda própria natureza da significação, entre palavrae imagem. A teoria, tornada imagem, torna-se

opaca e problemática, tanto quanto a arte: elanão interpreta, mas recoloca, com a arte, aquestão da significação e de seu sujeito.

É em tal contexto de reflexão sobre o processode significação na arte que o artista “usa” Freudpor nove anos, a partir de 1981. Kosuth seapropria e reflete, em seu trabalho, sobre aobra de outros autores, como Kafka, Musil,Joyce e Italo Svevo – além de Walter Benjamine Wittgenstein, sua influência seminal e maismarcante –, interessado no “amplo campo depensamento que afetou as ‘margens’ intelectuaisdo século 20”.19 Kosuth põe então em ato um“serviço filosófico”20 ou “uma atividade pós-filosófica”21 que visa reciclar a filosofia, com aarte, visto que “de alguma forma, a arte herdoumuito do programa da filosofia, sem os riscos dealguns dos aspectos especulativos quetrouxeram problemas para esta”.22 Não ésurpreendente que ele avance nessa direçãojusto com Freud, apesar do anti-subjetivismoprofessado pelo artista. A psicanálise rompe coma filosofia ao se embasar em uma práxis clínica –que herda da tragédia grega sua primeiradenominação como “método catártico”23 – epor ela se livra de um certo risco especulativo,sem contudo deixar de retornar a alguma“especulação” na elaboração de sua teoria, quetem como núcleo, diga-se de passagem, aindaoutro empréstimo à tragédia grega, o complexode Édipo.24 A psicanálise apela para o sujeito,visa nele operar efeitos, assim como Kosuthpretende engajar seu olhador/leitor no processode significação posto em marcha por suas obras.De fato, o artista parece extasiado ao contar queseu Zero & Not, originalmente realizado noconsultório de um psicanalista na cidade belgade Ghent, teria segundo este profissional setornado “parte da terapia”.25

RReeppeettiiççããoo,, ffeerriiddaa ee iimmaaggeemm

Dizíamos, com Freud, que recordações devivências marcantes, que costumam ser visuais,exercem um papel central para qualquerprodução de imagem. Elas são uma parteimportante dos pensamentos oníricos, sobre aqual o psicanalista afirma:

SSeemmpprree qquuee ssuurrggee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee,, eessssaappaarrttee ddooss ppeennssaammeennttooss oonníírriiccooss eexxeerrccee uummaaiinnfflluuêênncciiaa ddeecciissiivvaa ssoobbrree aa ffoorrmmaa aassssuummiiddaappeelloo ccoonntteeúúddoo ddoo ssoonnhhoo;; ccoonnssttiittuuii,, ppoorr

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aassssiimm ddiizzeerr,, uumm nnúúcclleeoo ddee ccrriissttaalliizzaaççããooqquuee aattrraaii ppaarraa ssii oo mmaatteerriiaall ddoossppeennssaammeennttooss oonníírriiccooss ee,, ddeessssee mmooddoo,, aaffeettaassuuaa ddiissttrriibbuuiiççããoo.. AA ssiittuuaaççããoo ddoo ssoonnhhoo nnããoo éé,,ccoomm ffrreeqqüüêênncciiaa,, oouuttrraa ccooiissaa sseennããoo uummaarreeppeettiiççããoo mmooddiiffiiccaaddaa,, ee ccoommpplliiccaaddaa ppoorriinntteerrppoollaaççõõeess,, ddee uummaa ddeessssaass vviivvêênncciiaassmmaarrccaanntteess;; ppoorr oouuttrroo llaaddoo,, aass rreepprroodduuççõõeessffiiééiiss ee ddiirreettaass ddee cceennaass rreeaaiiss rraarraammeenntteeaappaarreecceemm nnooss ssoonnhhooss..26

A “seleção” e a “substituição” da “coisa” quevimos Kosuth sublinhar não é portanto aleatória,mas se pauta por um insuspeitado – e in-visível– ponto de atração. É surpreendente que jáapareça aqui como verdadeiro motivo dacriação onírica a repetição, que só 20 anos maistarde terá, na obra de Freud, reconhecido seulugar central no funcionamento anímico, com aintrodução da pulsão de morte. A “cristalização”é uma questão de “forma” e implica – levando-se em conta a enorme complexidade lógica detodo esse material a que Freud chama“pensamentos oníricos” – um trabalho do sonhoque fragmenta, desloca e condensa, seleciona omaterial adequado para se construírem“situações” e enfim cria, nas surpreendentespalavras de Freud, “novas superfícies”.27

As vivências infantis deixam literalmente marcas,mas não são em si cenas reprodutíveis – arecordação já foi conformada pela cena dafantasia e com ela já se tornou cobertura,imagem-muro ou véu sobre essa cena perdidaque se tratará, em análise, de construir (e nãorecuperar ou descobrir, pois ela só se podeconstituir ficcional e retrospectivamente28). Avivência em si não é propriamente imagem,pelo contrário: é seu oposto (imagem-furo, ofuro na imagem), e no entanto incita à suaformação (criando “novas superfícies”). Ooriginário é cena Outra, obscena, por assimdizer, porque põe em xeque a própriapossibilidade de encenação, de representação.Sua potência é anticênica, informal, pulsante –figural, se quisermos empregar o termo de Jean-François Lyotard.29 Mas ele só toma lugar deoriginário como tal, nuclear para a constituiçãodo sujeito, ao se organizar como cena – umacena que, paradoxalmente, é cena ausente (enão apenas escondida), ferida na imagem e nocorpo. A palavra grega traûma designa ferida.Cena ausente que convoca para o campo dovisual os pensamentos, criando, com o sonho,

imagens capazes de tornar realidade odesejo ou, ainda, de pôr em xeque opróprio desejo e trair sua escondida eproblemática origem, no pesadelo.

Trata-se, portanto, de produção de imagem,prioritariamente, no aparelho anímico, ainda quede linguagem se entreteça seu trabalho. Anatureza da imagem é compósita, comosustenta de forma brilhante Jacques Rancièrepensando no cinema, mas não apenas nele: asimagens “são em primeiro lugar operações,relações entre o dizível e o visível”.30 O que apsicanálise vem marcar fortemente, porém, éque a imagem, ao articular o dizível e o visível,delineia também um campo de invisibilidade (eindizibilidade) que lhe é também essencial, e nãodeixa de através dela se apresentar, de formamais ou menos escondida.

Tal campo deixa-se entrever no sonho-modeloapresentado por Freud para introduzir seumétodo interpretativo, conhecido como “sonhoda injeção de Irma”. Trata-se de um sonho dopróprio Freud em que ele vê, em um grandesalão onde estaria recebendo amigos, umaantiga analisanda a quem dá o nome de Irma.Ela não lhe parece nada bem, e ele a leva até ajanela para examinar-lhe a garganta. Irma resiste,mas logo abre “a boca como devia”, e Freud vê,de um lado, uma grande placa branca e, dooutro, “extensas crostas cinza-esbranquiçadassobre algumas notáveis estruturas recurvadas,que tinham evidentemente por modelo os ossosturbinados do nariz”.31 O psicanalista chamaentão alguns colegas médicos que tambémexaminam a paciente. Um deles profere overedicto absurdo de que se trataria de umainfecção sem importância, pois logo viria umadisenteria e a toxina seria eliminada.Prontamente se percebe então que a origem dainfecção estaria em uma injeção aplicada poroutro médico. Tratava-se de uma injeção, dizFreud, de “um preparado de propil, propilos...ácido propiônico... trimetilamina (e eu via diantede mim a fórmula desse preparado, impressaem grossos caracteres)...”.32

As abundantes associações do sonhador levam àsua interpretação como desejo de serinocentado de possíveis críticas em relação à suaresponsabilidade médica no tratamentopsicanalítico de Irma. Esta não se acharia

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totalmente curada de sua histeria, na opinião deseu analista naquele momento, por não ter“aberto a boca como deveria”, ou seja, por nãoter aceito falar tanto quanto seria necessáriopara ir adiante em seu tratamento. Mas sobre aboca aberta da figura de Irma, que Freud associaa outras mulheres, entre as quais sua esposa, elese recusa a associar mais longamente. A bocaaberta onde se vê algo, manchas, e não sepode ver nada, boca-abismo que éantiimagem, mancha sobre a imagem, dá entãolugar ao que Freud curiosamente chama“umbigo do sonho”, ponto em que se tornainsondável, resistente à interpretação.

MMeessmmoo nnoo ssoonnhhoo mmaaiiss mmiinnuucciioossaammeenntteeiinntteerrpprreettaaddoo,, éé ffrreeqqüüeennttee hhaavveerr uumm ttrreecchhooqquuee tteemm ddee sseerr ddeeiixxaaddoo nnaa oobbssccuurriiddaaddee;; ééqquuee,, dduurraannttee oo ttrraabbaallhhoo ddee iinntteerrpprreettaaççããoo,,aappeerrcceebbeemmoo--nnooss ddee qquuee hháá nneessssee ppoonnttoo uummeemmaarraannhhaaddoo ddee ppeennssaammeennttooss oonníírriiccooss qquueennããoo ssee ddeeiixxaa ddeesseennrreeddaarr ee qquuee,, aalléémm ddiissssoo,,nnaaddaa aaccrreesscceennttaa aa nnoossssoo ccoonnhheecciimmeennttoo ddooccoonntteeúúddoo ddoo ssoonnhhoo.. EEssssee éé oo uummbbiiggoo ddoossoonnhhoo,, oo ppoonnttoo oonnddee eellee mmeerrgguullhhaa nnooddeessccoonnhheecciiddoo..OOss ppeennssaammeennttooss oonníírriiccooss aaqquuee ssoommooss lleevvaaddooss ppeellaa iinntteerrpprreettaaççããoo nnããooppooddeemm,, ppeellaa nnaattuurreezzaa ddaass ccooiissaass,, tteerr uummffiimm ddeeffiinniiddoo;; eessttããoo ffaaddaaddooss aa rraammiiffiiccaarr--sseeeemm ttooddaass aass ddiirreeççõõeess ddeennttrroo ddaa iinnttrriiccaaddaarreeddee ddee nnoossssoo mmuunnddoo ddoo ppeennssaammeennttoo.. ÉÉ ddeeaallgguumm ppoonnttoo eemm qquuee eessssaa ttrraammaa ééppaarrttiiccuullaarrmmeennttee ffeecchhaaddaa qquuee bbrroottaa oo ddeesseejjooddoo ssoonnhhoo,, ttaall ccoommoo uumm ccoogguummeelloo ddee sseeuummiiccéélliioo..33

Nesse sentido, Georges Didi-Hubermannpropõe que se pense a imagem, com Freud,como rasgo, rasgo que é um trabalho, umprocesso que “abre” a representação.34 O autorlembra que a mímesis é, já na Poética, deAristóteles, múltipla, podendo seguir meiosvariados. No sonho abre-se a questão dasemelhança, a mímesis dá-se por meioscuriosos, que mais deformam do queconstroem imitações. Pois o sonho mostra algo– mais do que isso, acrescentaríamos, ele fazalgo: realiza um desejo, ou seja, torna-oimagem (e texto) –, mas não pode mostraralgo, deve esconder, disfarçar para tornarimagem o que não pode ser visto/dito comotal. Mesmo a condensação, que agrupaconteúdos ou substitui um conteúdo poroutro, a partir de alguma semelhança entreeles, tende a deformá-los ao uni-los.

AA mímesis ee oo rreeaall

Não é à toa que Freud ilustra sua concepção dacondensação com os retratos compósitos deFrancis Galton (1822-1911), pesquisador inglêsde interesses múltiplos que fundou a teoria daeugenia aplicando as teorias de seu primoChales Darwin ao estudo da hereditariedade,além de ser considerado o pai da psicometria,da psicologia diferencial e da técnica de uso dedigitais para identificação. Galton trabalha, apartir de 1877, com superposição de fotografiasde indivíduos de um determinado grupo,gerando retratos compósitos, imagens um tantoembaçadas nas quais se ressaltam os traçosfisionômicos comuns. Assim ele chega, porexemplo, ao retrato do “tipo judeu”.35

Deixaremos de lado as funestas implicações desuas pesquisas para notar que sua técnica põeem relevo algo fundamental à fotografia (e àimagem segundo a psicanálise): unindo traços depessoas diferentes, constrói-se uma imagem deninguém, o retrato de um conceito, fosse eleimaginado como traço de personalidade ou defamília. Mais uma vez, não é aleatório o uso dafotografia como ilustração do mecanismo. Oinconsciente incide sobre a questão da imagemde maneira a retirar dela a possibilidade decorrespondência direta a um referente, e comisso problematiza fortemente seu carátermimético, o põe em crise e situa a psicanálisecomo uma verdadeira crítica da imagem.

Uma vez afastada a correspondência diretaentre imagem e referente, a montagem tomaentão o primeiro plano, lembrando acontemporaneidade estrita da psicanálise com oprincipal rebento da fotografia, o cinema. Osprocedimentos de representação que Freudidentifica no sonho e refaz em sua interpretaçãoabrem uma multiplicidade de relações, uma fugade associações em que imagem e linguagem seenodam e contrapõem de maneira imprevisível,segundo recortes meramente contingentes. Emlugar de uma relação mais ou menos estávelentre o que é representado e suarepresentação, a linguagem estabelece aí umavariedade de pontos (e contrapontos) decontato e de distância, fazendo da imagem umrébus, uma imagem-texto espessa, que revelaao mesmo tempo em que vela o querepresenta, e que portanto deve ser vista ou“lida” também de formas infinitas, interpretada

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sempre de forma limitada e em movimento, jáque falta o código capaz de tornar possível umatradução direta da imagem à palavra. Nostermos de Didi-Hubermann, a imagem está“em processo”.

EEnnttããoo,, aasssseemmeellhhaarr nnããoo ddiizz mmaaiiss ddee uummeessttaaddoo ddee ffaattoo,, mmaass ddee uumm pprroocceessssoo,, uummaaffiigguurraaççããoo eemm aattoo qquuee vveemm,, ppoouuccoo aa ppoouuccoooouu ddee rreeppeennttee,, ffaazzeerr ttooccaarreemm--ssee ddooiisseelleemmeennttooss aattéé eennttããoo sseeppaarraaddooss ((oouusseeppaarraaddooss sseegguunnddoo aa oorrddeemm ddoo ddiissccuurrssoo))..36

É necessário salientar, na pertinente defesa queDidi-Hubermann faz do lugar do “não-saber”,do desconhecido, no processo de produção deimagens, algo que esse autor deixa de lado:trata-se aí do Sexual enigmático, do Real, comopropõe Lacan, que é insondável, resiste àsimbolização e insiste em pôr em risco – emrasgo – a representação. Jean-François Lyotard,ao longo de seu clássico Discours, Figure, ressaltado “figural” a natureza pulsional, energética,dessa força capaz de transgredir e mesmoviolentar a ordem do discurso.37 O Real é o que“não cessa de não se escrever”, no bordãoincessantemente repetido por Lacan. O Real dáà representação seus limites e a obriga a umarepetição, tornando-a um processo infinito quecoincide com sua própria interpretação. Aimagem em Freud, é importante notar, pedeinterpretação, e o processo de sua formação érefeito apenas à rebours, retroativamente emrelação à interpretação. Mas isso não é tudo. Édesse ponto mesmo, desse umbigo pelo qual aimagem se comunica com a mãe (a metáfora éloquaz) e toca no Real, que se origina o élanpara essa criação, o desejo a buscar na imagemsua realização, boca aberta de Irma a mostrarcoisas terríveis que devem ser inscritas, rápido,graças à intervenção de um significante: nemque seja a fórmula da Trimetilamina. Como umaespécie de apelo último de Freud à química, àciência bem formalizada, na borda do abismoonde o coloca o inconsciente.

“Há um trabalho do negativo na imagem”, notaDidi-Huberman em sua leitura de Freud, “umaeficácia “sombria” que, por assim dizer, cava ovisível (o ordenamento dos aspectosrepresentados) e mortifica o legível (oordenamento dos dispositivos de significação)”.38

Tal trabalho do negativo será teorizado por

Freud mais detidamente na parte final de suaobra, com o conceito de pulsão de morte. Se oumbigo do sonho já designa esse ponto de fugaque marca um esvaziamento da imagem eaponta in extremis para uma destruição dequalquer possibilidade de representação, é eletambém que faz apelo à linguagem e incita aseu entrelaçamento com o visível para aprodução de imagens – que vêm contornaresse ponto cego.

Não se trata propriamente de algo que, visível,não se possa mostrar – porque recalcado –mas, mais radicalmente, da existência de umamatéria bruta da imagem que é informe,excrescência terrível, abismo onde nada se vê, eo sujeito vacila, quase caindo. Não apenasinforme, para aludir ao termo proposto porGeorges Bataille para nomear uma indistinçãoentre figura e fundo, eu e outro, trata-se aí dealgo obsceno no sentido que Hal Fosteremprega, ligando-o à noção de abjeçãoelaborada por Julia Kristeva. Referindo-se a umaobra de Cindy Sherman (Untitled # 153), Fosterafirma que “o objeto-olhar é apresentado comose não houvesse cena para representá-lo, nãohouvesse moldura de representação para contê-lo, não houvesse tela”.39

EEssqquueelleettooss ddee iimmaaggeennss

Como vimos no sonho de Irma, nesse pontoirrepresentável que Lacan nomeia como Realvemos surgir um significante, letra quase “pura”,suporte material da linguagem que apoiará umasimbolização: representação deslocada, nasimagens, no(s) texto(s) do sonho ou, ainda, emsuas interpretações, que não são mais do que(re)produções de textos e imagens. Kosuth, nainstalação Zeno nas margens do mundo conhecidoapresentada na XLV Bienal de Veneza, apropria-se de um trecho de texto literário, A consciênciade Zeno, de Italo Svevo, recortando-o em frasesapresentadas em três línguas. Não por acaso, oromance, de 1923, é o primeiro escrito literárioa narrar um tratamento analítico, de forma umtanto irônica. Zeno encarna um dândi queapresenta sintomas em profusão, confirmandode forma simplista algumas idéias de Freud. Seuanalista sugere, como parte do tratamento, queeste escreva sua autobiografia, o que poderiadar mostras de um provável desconhecimentodo autor a respeito de como se dá umtratamento analítico. Mas a própria construção

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do romance duplica a sua temática, aautobiografia em que consiste o romance,confirmando noções fundamentais da psicanálisede forma mais profunda que seu discursoaparentemente cético. Svevo indica que aliteratura é mais “psicanalítica” do que otratamento a que os médicos restringiriam apsicanálise – ao menos de acordo com a visãofrancamente caricatural que o romancistaapresenta do que seja um tratamento analítico.“Grande homem é nosso Freud”, diz ele emuma de suas cartas, “porém mais para osromancistas do que para os doentes”.40 ParaKosuth, esse livro aborda vários conceitos quese tornaram depois básicos “para nosso discursono resto do século”.41

O artista ressalta como chave dessa novela arepetição. De fato, o narrador afirma: “(...) Otempo para mim não é essa coisa insensata quenunca pára. Para mim, só para mim, eleretorna”.42 O tratamento analítico é umaautobiografia na medida em que obriga a umretorno e a uma construção (ficcional) dopassado. Porém, ao contrário de Freud, oanalista de Zeno assegura-lhe que sua“lembrança seria nítida e completa”.43 Zenoretorque de modo eloqüente a respeito daquestão da imagem e sua relação com apalavra, no trecho reproduzido por Kosuthem sua instalação:

QQuuaannddoo aattiinnggii oo ttoorrppoorr qquuee ddeevveerriiaa ffaacciilliittaarraa iilluussããoo ee qquuee mmee ppaarreecciiaa nnããoo sseerr mmaaiiss qquueeaa aassssoocciiaaççããoo ddee uumm ggrraannddee eessffoorrççoo aa uummaaggrraannddee iinnéérrcciiaa,, aaccrreeddiitteeii qquuee aass iimmaaggeennssffoosssseemm vveerrddaaddeeiirraass rreepprroodduuççõõeess ddooss ddiiaasslloonnggíínnqquuooss.. TTeerriiaa ppooddiiddoo ssuussppeeiittaarr llooggoo ddeeqquuee nnããoo eerraamm aassssiimm,, ppooiiss,, mmaallddeessvvaanneecciiaamm,, eeuu aass rreeccoorrddaavvaa,, ssóó qquuee sseemmnneennhhuummaa eexxcciittaaççããoo oouu ccoommooççããoo..RReeccoorrddaavvaa--aass ccoommoo nnooss rreeccoorrddaammooss ddoossffaattooss qquuee nnooss ssããoo ccoonnttaaddooss ppoorr aallgguuéémm qquueennããoo ooss tteennhhaa pprreesseenncciiaaddoo.. SSee ffoosssseemmvveerrddaaddeeiirraass rreepprroodduuççõõeess,, tteerriiaa ccoonnttiinnuuaaddoo aarriirr ddeellaass ee aa cchhoorráá--llaass,, ccoommoo nnoo iinnssttaanntteeeemm qquuee aass ttiivveerraa.. EE oo ddoouuttoorr rreeggiissttrraavvaa..DDiizziiaa:: ““CCoonnsseegguuiimmooss iissttoo,, ccoonnsseegguuiimmoossaaqquuiilloo..”” NNaa vveerrddaaddee,, nnããoo hhaavvííaammooss oobbttiiddoommaaiiss ddoo qquuee ssiiggnnooss ggrrááffiiccooss,, eessqquueelleettooss ddeeiimmaaggeennss.. FFuuii lleevvaaddoo aa ccrreerr ......44

A última frase abre, no livro de Svevo, um novo

parágrafo, e prossegue além das reticênciasintroduzidas por Kosuth: “Fui levado a crer quese tratava de uma reevocação de minhainfância...”. Vem então o relato de um sonhomostrando o sofrimento de Zeno criança, ao irà escola enquanto seu irmão mais novo tinhapermissão para ficar em casa. O protagonistadesacredita de seu analista e interrompe suaanálise, ao perceber a perturbadora natureza delinguagem que possuem essas imagens edecretá-las “inventadas”. Ele resiste areconhecer nelas o que, por contraste, deliciaKosuth (e Freud): sua natureza de “signosgráficos, esqueletos de imagens” recusando umavisibilidade plena e segura e desenhando um ‘in-visível’, perfilando um horizonte incerto.

Em uma versão anterior dessa obra, Kosuthfizera um mesmo trecho do livro ser repetido etraduzido, em alemão e inglês. Já em Veneza, otexto contínuo citado acima aparece parte emitaliano, parte em húngaro e inglês. Essaapropriação de Kosuth impede desse trechouma tradução única, e apenas as pessoas queconhecem as três línguas poderiam, para oartista, “ver” a instalação inteira. Em uma finaanálise do romance de Svevo, Kosuth nota queo ponto de vista de Zeno é outside, e é nessaposição que o “olhador/leitor” – como ele gostachamá-lo – será também engajado no trabalho.O olhador está “fora” de parte do visível, diantede um visível que não é completamente legível.O mais importante, porém, é que Kosuth afirmafazer, desse texto híbrido e estranhado porrecortes e transladações, tornado opaco einacessível a uma leitura discursiva, um“horizonte”.45 Esse horizonte desenhado porpalavras nas paredes dessa instalação éacompanhado ainda de reproduções de recortesde jornais, tornando-se polifônico, múltiplo.

“(...) Eu uso imagens linguisticamente. Alinguagem está sempre lá, quer eu use ou nãopalavras”, nota Kosuth.46 Poderíamos afirmarque ele também faz o inverso: usa a linguagemvisualmente, imageticamente, quer use ou nãoimagens. De fato, Kosuth diz querer nessa obra“fazer um trabalho que seja contemplativo”,47 oque teria até então evitado. Olhar tal horizontecoincide com estar envolvido no problemáticoprocesso de significação a que a obra convida.

Dizíamos acima que a psicanálise concebe a

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imagem como um certo híbrido entre imagens epalavras, em um regime um tanto caótico doqual é possível se inferir certa retórica, dadapelo deslocamento (metonímia) e pelacondensação (metáfora), mas que interdita oestabelecimento de uma simbologia estável,uma iconografia. O referente perdeu suapresença tangível, com a concepção doinconsciente como locus do trauma, e o tecidoda representação se esgarça e expande,tomando lugar ao mesmo tempo do que setrata de representar e do que se representa, emato. Os meios de representação coincidem como objeto de representação – a linguagem, naobra de Kosuth, é o próprio horizonte –, e põe-se ao avesso a afirmação de Aristóteles segundoa qual os homens “se comprazem no imitado”graças ao fato de nele reconhecerem o original.“(...) Se suceder que alguém não tenha visto ooriginal, nenhum prazer [hédones, em grego] lheadvirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer outracausa da mesma espécie”.48

A mímesis não é apenas semelhança, mas incluiuma dessemelhança, uma distância em relaçãoao “original” que, como lembra JacquesRancière com a expressão “alteração dasemelhança”, é a condição mesma da arte. Aliás,é no sentido de tal alteração, que pode tomarmil formas, “que a arte é feita de imagens, querseja ou não figurativa”.49 Do original passamos,com Freud, ao originário que não se pode vermas que constitui o fulcro do visível, sendo ooriginal perdido que se tratará de(re)construir, com imagens, palavras, compalavras tornadas imagens. “Como a palavrasabe atravessar o tempo!”, exclama Zeno.“Ela própria é um acontecimento que seinterliga aos acontecimentos!”5

FFoorrtt!! DDaa!!

Talvez estejamos frente a um novo regime daimagem, uma redistribuição de suas relaçõescom o visível e com a linguagem. A opacidade,o movimento, a montagem tomam na produçãoda imagem a dianteira sobre o“reconhecimento” de que falava Aristóteles nacitação acima. Uma vez retirado o “original” daimagem, seria ela capaz de produzir, nos termosde Aristóteles, algum prazer? Algum “prazer”poderá vir dos elementos inerentes à própriaobra (da “execução”, da “cor” etc.), como atesta

– e disso faz profissão de fé – parte da artemodernista. Ou pode-se pensar que, uma vezsubvertida a mímesis pelo desaparecimento doreferente, a própria noção de prazer deve porsua vez se transformar?

É justo de uma tal transformação do prazer quetrata todo o texto freudiano “Além do princípiode prazer”. O pesadelo, por exemplo, mostrauma primazia do desprazer contradizendo asatisfação que, supõe-se, acompanharia arealização de desejo. No domínio da arte, emespecial, o prazer encontra-se francamenteproblematizado, como nota o próprio Freud.

((......)) NNooss aadduullttooss,, aa aattiivviiddaaddee aarrttííssttiiccaa ddeejjooggoo ee iimmiittaaççããoo qquuee,, ddiiffeerreenntteemmeennttee ddooccoommppoorrttaammeennttoo ddaa ccrriiaannççaa,, vviissaa aa ppeessssooaaddoo eessppeeccttaaddoorr,, nnããoo ppoouuppaa aa eessttee,, ppoorreexxeemmpplloo nnaa ttrraaggééddiiaa,, aass mmaaiiss ddoolloorroossaasseexxppeerriiêênncciiaass,, ee,, nnoo eennttaannttoo,, ppooddee sseerr ppoorreelleess sseennttiiddaa ccoommoo uumm pprraazzeerr ssuuppeerriioorr[[hhoohheerr GGeennuussss]]..51

Inscrevendo-se de maneira inconteste natradição estética, Freud revê nesse momento opostulado, vigente desde o início de sua obra,de que o funcionamento do aparelho psíquicobusca obter prazer e evitar o desprazer(segundo o chamado “princípio de prazer”). Elepropõe então a repetição do trauma comoregime primordial da psique. A oposiçãoprazer/desprazer é revista em função do gozo(como Lacan propõe chamá-lo) que mesclaambos em uma angústia cheia de volúpia, emum prazer “superior”, porque um tanto terrível.Prazer transformado em angústia, desprazertornado volúpia: o gozo está ligado à repetiçãodo que não se encena, não se escreve. Mas sejoga, aderindo-se à compulsão à repetição, oque é capaz de levar a alguma encenação.

É justamente um jogo, uma brincadeira infantilque é evocada por Freud a este respeito. Seuneto de um ano e meio gostava muito de jogarpara longe de si todo tipo de objeto. Um dia,esse comportamento se tornou claro como um“jogo completo”. O menino segurava por umbarbante um carretel, e se pôs a arremessá-lopara dentro de sua caminha, onde eledesaparecia sob o cortinado. A criança emitiaentão o som “oooo”, reconhecido por seusfamiliares como o advérbio fort, longe. Ao puxarde volta o carretel para si, trazendo-o de volta à

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visão, o menino dizia “aaaa”, que os outrossignificavam como da, algo como “aí está!”. Parao psicanalista, trata-se aí de uma granderealização da criança, uma renúncia pulsionalque representa uma grande conquista. Elabrincaria, com o carretel, de fazer sua mãepartir, repetindo portanto essa vivênciadolorosa, e teria com o jogo, graças àsubstituição da mãe pelo objeto-carretel,inventado um modo de trazê-la simbolicamentede volta, renunciando assim à posse total desseseu objeto primeiro e fundamental.

Os slogans e neons de Kosuth não deixam deser um modo de compulsivamente retomaresse momento inaugural de significação que étambém aquele em que surge um sujeito – quea princípio não é mais do que a oposição entreos fonemas “a”/“o” –, mas ao tomar o barbantee, repetidamente, fazer algo desaparecer de suavista, cria um mundo de opacidade que põe àprova, todo o tempo, a possibilidade designificá-lo. Como formula Lyotard em Discours,Figure, “há uma compulsão de opacidade que faz

que isso de que se fala seja dado comoperdido”.52 A partir daí o visual, ou o“inconsciente ótico”, como Rosalind Kraussprefere chamá-lo, com Benjamin, “reclamapara si essa dimensão de opacidade, derepetição, de tempo”.53

Em 1985, Kosuth apresenta na Galeria LeoCastelli sua exposição Fort! Da!. Ele usa aímarcas de X, já empregadas na série Cathexis(1981), no chão da galeria e em uma fotografiade grandes dimensões onde se lê a seguinteinscrição: “Há um texto perdido e umatradução, há uma ordem, uma lista, há umquadro [picture] e um lugar de onde lê-lo”. OsX marcados no chão do espaço expositivo e nochão que o reproduz, idêntico, na fotografia,fazem um jogo entre o que está fora e dentroda obra, pondo em questão o próprio lugar deseu olhador/leitor. O texto estáirremediavelmente perdido (Fort!), o que seapresenta é sempre uma tradução, no Da! queanuncia seu aparecimento como imagem.

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Lyotard põe em relevo o gesto de Kosuth (seusX, suas palavras) como aquele do homem quedesenha alguns traços em um suporte,anteriormente à definição de seu produto comopintura ou escrita: “Ele apela, por meio dovisível-legível, a uma ‘presença’ que é mais doque o calmo ato de ver e ler”.54 Tal presença é,contudo, marcada por uma opacidade, ou umjogo de esconde-esconde entre imagem esujeito. Não se trata apenas, como notavaKosuth a respeito de Zero & Not, de apresentara ausência, mas da “linguagem reduzida apalavras, fazendo da própria textura do leruma ‘chegada’ na linguagem, uma chegadaque constrói outras ordens, as quais cegam aose fazer visíveis”.55

A imagem posta à prova de sua opacidade geraentão, em um extremo, o apelo à materialidadeda letra. Em outro extremo, ela é capaz degerar uma busca pelo real além da imagem,realizando o desafio de tornar visível a zona de‘dessignificação’, realçar suas cores, por assimdizer, de forma a tirar da opacidade algunselementos. Para Hal Foster, em seu famosoensaio “The Return of the Real”, algumas obrascontemporâneas querem que “o real exista, emtoda a glória (ou o horror) de seu desejo pulsátil(...)”.56 Para esse fim, elas não só atacam aimagem, mas tentam romper a tela, a cena quetorna imagem essa opacidade, buscando refazerseu encontro traumático ou materializar o quevimos Freud chamar de “umbigo do sonho”.

Por mais que pareçam opostas, essas duasvertentes se situam em um mesmo terreno dejogo entre sujeito e objeto, submetidas a esseestranho funcionamento que Freud denomina“compulsão à repetição”, no regime da ditapulsão de morte. A linguagem, materializada,apresentada como imagem problemática,distante mil léguas de qualquer subjetivismo,não deixa de recolocar subterraneamente emjogo o sujeito em sua complexa articulaçãocom a representação, e o faz talvez de formamais potente do que ao tomá-lo diretamentecomo tema. Recoloca-se em jogo também,nesse contexto, o diálogo entre produçãoartística e psicanálise, de forma insuspeita emais íntima do que normalmente se supõe.Como afirma Kosuth,

AA uubbííqquuaa iinnfflluuêênncciiaa ddee FFrreeuudd ccoonnttiinnuuaaggeerraannddoo uumm eeffeeiittoo eemm nnoossssaa lleeiittuurraa ddeennuummeerroossooss ccóóddiiggooss ccuullttuurraaiiss.. NNóóss ssaabbeemmoossoonnddee eellaa ssee ssiittuuaa,, nnããoo ssaabbeemmooss ddiizzeerr oonnddeeeellaa nnããoo ssee ssiittuuaa.. ‘‘BBuussccaarr ssiiggnniiffiiccaaddooss’’ eemmuumm ccoonntteexxttoo ffrreeuuddiiaannoo,, ffoorraa ddoo ccoonntteexxttoo,,pprroovvêê uummaa cceerrttaa aauuttoo--rreefflleexxiivviiddaaddee eemm uummccoonntteexxttoo ddee aarrttee ssoobbrree eessssee pprróópprriioopprroocceessssoo..57

Tânia Rivera é psicanalista e professora da Universidade de Brasília. Épesquisadora do CNPq e realiza estágio pós-doutoral no Programa deArtes Visuais da Universidade do Rio de Janeiro, sob a supervisão daProfa. Dra. Glória Ferreira. É autora de Arte e Psicanálise e GuimarãesRosa e a Psicanálise (ambos por Jorge Zahar Editor) e co-organizadorade Sobre Arte e Psicanálise (Escuta). Agradece a Glória Ferreira agenerosa colaboração e a Pablo Bergami, Ana Vicentini, Daniela Mattos eRicardo Basbaum contribuições diversas para a investigação que compõeo presente artigo.

NNoottaass

1 Foster, H.; Krauss, R.; Bois, Y-A. e Buchloh, A. D.Psychoanalysis in Modernism and as Method. In Art Since1900. Londres: Thames and Hudson, 2004: 1. Atradução dessa e das demais citações presentes nesteensaio foi feita pela autora.

2 Apud Rancière, J. Le Destin des Images. Paris: La Fabrique,2003, contracapa.

3 Cf. Ddebray, R. Vie et Mort de L’Image. Paris: Gallimard,1992: 28-29.

4 Cf. Machado, A. O Quarto Iconoclasmo e Outros EnsaiosHereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

5 Cf. Freud, S. Lembranças Encobridoras (1899). In EdiçãoStandard Brasileira das Obras Psicológicas Completas deSigmund Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1987, vol.III: 269-287.

6 Freud, S. A Interpretação de Sonhos (1900). In ESB, vol. V:500. Modificado de acordo com o original (DieTraumdeutung. In: Gesammelte Werke, Londres: Imago,vol. II/III, 1942: 551).

7 Para exame mais detido dessa relação e sua ligação aocinema, ver Rivera, T. Vertigens da Imagem. Sujeito,Cinema e Arte. In: Rivera, T. & Safatle, V. (orgs.) SobreArte e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2006: 137-162.

8 Benjamin, W. Pequena História da Fotografia (1931). InObras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. SãoPaulo: Brasiliense, 1994: 94.

9 Freud, 1900, op. cit.: 491.

10 Bildliche Sprache. Die Traumdeutung. In: Gesammelte Werke,Londres: Imago, vol. II/III, 1942: 323.

11 Cf. Freud, S. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente(1905). In: ESB, op. cit., vol. VIII.

12 Freud, S. Sobre os Sonhos. In: ESB, op. cit., vol. V: 590.

13 Freud, 1900, op. cit.: 286.

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14 E não um trecho de A Interpretação de Sonhos, como afirmaequivocadamente o catálogo da exposição Freud andContemporary Art. The Collection of The SigmundFreud Museum Vienna. Nova York: Austrian CulturalForum, 2006: 26.

15 Freud, 1905, op. cit.: 186-187. Revisto de acordocom a edição original Der Witz und SeineBeziehung zum Unbewussten. In: GesammelteWerke, op. cit., vol. VI: 185.

16 Freud, 1900, op. cit., passim.

17 Kosuth, J. Zeno at the Edge of the Known World, Bienal deVeneza XLV Exposição Internacional de Arte, Pavilhão daHungria, 1993: 104.

18 Kosuth, J. Art After Philosophy and After. Collected Writings,1966-1990. Cambridge/Londres: MIT Press, 1991: 233.

19 Kosuth, 1993, op. cit.: 104.

20 Id., ibid.

21 Id., ibid.: 151.

22 Id., ibid.: 104.

23 Cf. Freud, S. Estudos sobre a Histeria (1895). In: ESB, op.cit., vol. II.

24 Cf. Freud, 1900, op. cit.: 256-259.

25 Kosuth, 1993, op. cit.: 159.

26 Freud, S. “Sobre os Sonhos”, op. cit.: 591, grifo nosso.

27 Idem. No original, Über den Traum. In: Gesammelte Werke,Londres: Imago, vol. II/III, 1942: 673

28 Cf. Construções em Análise (1937). In: ESB, vol. XXIII.

29 Lyotard, J.-F. Discours, Figure. S/l.: Klinksieck, 2002.

30 Rancière, op. cit.: 14.

31 Freud, 1900, op. cit.: 128.

32 Id., ibid.: 129.

33 Id., ibid.: 482.

34 Didi-Huberman, G. Devant l’Image. Paris: Les Éditions deMinuit, 1990.

35 Cf. www.medienkunstnetz.de/works/composite-fotografie.Consultado em abril de 2006.

36 Didi-Huberman, op. cit.: 182.

37 Cf. Lyotard, op. cit.: 271 e passim.

38 Didi-Huberman, op. cit.: 174.

39 Foster, H. The Return of the Real. Cambridge/Londres, TheMIT Press, 1996, p. 149.

40 Apud Bosi, A. “Posfácio. Uma Cultura Doente?”, in: Svevo,I. A consciência de Zeno. São Paulo: Nova Fronteira,2001.: 409.

41 Kosuth, 1993, op. cit.: 153.

42 Svevo, op. cit.: 17.

43 Id., ibid.: 373.

44 Id., ibid.: 373-374.

45 Kosuth, 1993, op. cit.: 152.

46 Id., ibid.: 156.

47 Id., ibid.

48 Aristóteles. Poética. S/l.: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,s/d (tradução de Eudoro de Sousa): 107 (§ 1448b: 8;16-19). Agradeço a Ana Vicentini a consulta do original.

49 Rancière, op. cit.: 15.

50 Svevo, op. cit.: 318.

51 Freud, S. Além do Princípio do Prazer. In: ESB, vol. XVIII:29. No original alemão, op. cit.: 15.

52 Lyotard, op. cit.: 104.

53 Krauss, R. The Optical Unconscious. Cambridge/Londres:MIT Press, 1998: 24.

54 Lyotard, J.-F. Foreword: After the Words. In: Kosuth, 1991,op. cit.: xviii.

55 Kosuth, 1991, op. cit.: 221-222.

56 Foster, op. cit.: 140.

57 Kosuth, 1991, op. cit.: 232. Grifo nosso.

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