La parte de los crímenes

download La parte de los crímenes

of 101

description

Sobr romance policial na obra de Roberto Bolaño 2666

Transcript of La parte de los crímenes

99

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SYLVIA HELENA DE CARVALHO ARCURI

CNONE, CULTURA DE MASSA E ROMANCE POLICIALNA OBRA 2666 DE ROBERTO BOLAO

RIO DE JANEIROAgosto - 2015Sylvia Helena de Carvalho Arcuri

Cnone, cultura de massa e romance policialna obra 2666 de Roberto Bolao

Qualificao para o Doutorado em Literaturas Hispano-americanas. Programa de Ps-graduao em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da UFRJ.

Orientador: Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus.

Rio de JaneiroAgosto - 2015

RESUMOARCURI, Sylvia Helena de Carvalho. Cnone, cultura de massa e romance policial na obra 2666 de Roberto Bolao. Qualificao para o Doutorado em Literaturas Hispano-americanas. Programa de Ps-graduao em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da UFRJ.

Estudo das relaes entre literatura e cultura de massa na obra de Roberto Bolao, com enfoque na utilizao de uma esttica que se aproxima aos gneros B, principalmente o romance policial, usando como base terica conceitos de cultura, massa e de cultura de massa apresentados por diversos autores de orientao intelectual heterognea entre eles: Theodor Adorno (1985 e 2003), Walter Benjamin (2012), Ortega e Gasset (2007), Elias Canetti (1995), John Carey (1993), Edgard Morin (2011), Peter Buke (2010) e Carlos Monsivis (1996).A cultura de massa ajudara a pensar e a pesquisar como, o romance policial, a novela negra, a reportagem, aparecem, na obra de Roberto Bolao, no caso La parte de los crimines, (captulo do romance 2666) e como esses subgneros, tambm denominados por alguns como: alternativos, bastardos, mrbidos ou marginais, entendendo que todas essas denominaes, mesmo distante do cnone, deveriam ser ou servir como enfrentamento ou resposta ao cnone. Ademais, esse estudo pretende analisar como o autor utiliza, aproveita ou incorpora, na sua obra, a cultura de massa, difundida atravs da televiso, das fotografias, das categorias de filmes menores, tais como: faroeste, gangster, horror, noir, trash, snuff e road movies; dos livros de bolso de faroeste, dos romances de aventura, dos folhetins, das fotonovelas, da msica popular, do thriller, etc. Tudo isso incorporado como cultura de massa que tambm mercadoria, vinculada indstria cultural.

Palavras-chave: Roberto Bolao, literaturas hispnicas; cnone; cultura de massa; romance policial

RESUMENARCURI, Sylvia Helena de Carvalho. Canon, cultura de masa y novela policial en la obra 2666 de Roberto Bolao. Calificacin para Doctorado en Literatura Hispanoamericana. Programa de Posgrado en Letras Neolatinas de la Facultad de Letras de la UFRJ (Universidad Federal de Rio de Janeiro). Estudio de las relaciones entre literatura y cultura de masa en la obra de Roberto Bolao, con enfoque en la utilizacin de una esttica que se aproxima a los gneros B, pincipalmente la novela policial, usando como base conceptos de cultura, masa y de cultura de masa presentados por diversos autores de orientacin intelectual heterognea, entre ellos: Theodor Adorno (1985 y 2003), Walter Benjamin (2012), Ortega y Gasset (2007), Elias Canetti (1995), John Carey (1993), Edgard Morin (2011), Peter Buke (2010) y Carlos Monsivis (1996).La cultura de masa ayudara a pensar y a dilucidar como la imagen, la novela policial, la novela negra, el reportaje; aparecen en la obra de Roberto Bolao en el caso de La parte de los crmenes de la novela 2666 y como esos subgneros, tambin denominados por algunos como gneros B, alternativos, bastardos, mrbidos o marginales (entendiendo todas esas denominaciones, distantes del canon), deberan ser o sirven como enfrentamiento o respuesta al canon. Se analiza la forma en que el autor utiliza, aprovecha o incorpora en su obra la cultura de masa difundida a travs de la televisin, de las fotografas, de las categoras menores de pelculas, tales como: del lejano oeste, de pandillas, de horror, noir, trash y snuff, los road movies (pelculas de movimiento), los libros de bolsillo del lejano oeste, las novelas de aventura, las series, las fotonovelas, la msica popular, el thriller (novela de suspenso), etc. Todo eso incorporado como cultura de masa, que tambin es mercanca vinculada a la industria cultural.

Palabras clave: Roberto Bolao, literaturas hispnicas; canon; cultura de masa; romance policial

ABSTRACTARCURI, Sylvia Helena de Carvalho. Canon, mass culture and detective story in the literary work 2666 from Roberto Bolao. Qualification for Doctorate on Hispano-amaerican Literature. Program for Graduate on Neo-latin Letters of the Faculty de Letters of the UFRJ (Federal Universtity of Rio de Janeiro). Study regarding the relations between literature and mass culture in the literary work 2666 of Roberto Bolao, focusing on the use of an esthetic that brings near the genres B, mailing detective story, basing on the concepts of culture, mass and mass culture, presented by diverse authors with heterogeneous intellectual orientation, such as: Theodor Adorno (1985 & 2003), Walter Benjamin (2012), Ortega & Gasset (2007), Elias Canetti (1995), John Carey (1993), Edgard Morin (2011), Peter Buke (2010) and Carlos Monsivis (1996).

The mass culture probably helps to think and to illustrate, how the image, the detective story, the black novel (novela negra), the coverage, show up in the work of Roberto Bolao in the case, La parte de los crmenes of the novel 2666 and how these sub-genres, also called alternatives, bastards, morbid, marginal or genres B (understanding far from the canon all these denominations), are used as an answer to canon. It is analyzed, the way the author takes advantage and uses the mass culture, spread by television, photography and on the minor categories of films like: far west, gangster, horror, noir, trash & snuff, the road movies. Moreover the pocket books of diverse topics as: far west, adventure, popular music, the thrillers, series & photo-novels, all of them incorporated in the way of mass culture, that is also a merchandise, linked up to the industrial culture.

Keywords: Roberto Bolao, Hispanic literature; canon, mass culture; detective story

Sumrio

Introduo

1 Espao de disputa

1.1. 2666, um abismo1.2. Cnone: influncia, tradio e ruptura1.3. Dessacralizao do Boom1.4. Narrativa do/no abismo 1.5. Roberto Bolao escreve o seu lugar na tradio - momento histrico e a era do ps-boom

2 Narrativas interditadas

2.1. 2666 La parte de los crmenes2.2. Violncia como denncia2.1.1. A banalidade do mal: o cadver como emblema2.3. Santa Teresa: uma cidade imaginria?2.3.1. A fronteira literria: lugar de fluxo

3 Campo de batalha

3.1. Cultura de massa e o espetculo3.2. Gnero narrativo 3.2.1. O romance policial e suas variaes 3.2.2. Na narrativa de Roberto Bolao, uma nova proposta do gnero

4 Que hay por detrs de la ventana?

4.1. Arte como ato de resistncia 4.2. Arturo Belano/Ulises Lima/CesariaTinajero/Beno von Archimbold4.3. O deserto

El arte tiene alguna funcin?

Muchas creo yo. La primera es generar belleza incluso mostrando lo horrendo, es decir, construir una ficcin, por muy brutal que el contenido de esa ficcin sea, que implica la obligacin de generar belleza. Eso, en si mismo, en mi parecer, puede modificar la forma en que una persona se enfrenta la vida.[footnoteRef:1] [1: Fragmento de entrevista do Programa Sangue Latino/Canal Brasil. Eric Nepomuceno com a dramaturga chilena Soledad Lagos. Disponvel em: http://canalbrasil.globo.com/programas/sangue-latino/videos/3878887.html. Acesso em 07.01.2015.]

Introduo

Ingressar em um projeto artstico-literrio de grande magnitude proposto por Roberto Bolao, no nada fcil, mas muito instigante e desafiador, pois d margem para vrias anlises e crticas, como j vem acontecendo, desde alguns anos, por todo mundo. Muito j foi escrito e analisado sobre sua obra, o que gera mais dificuldade de fazer uma anlise ou trazer um estudo original. Talvez por isso, seja instigante descobrir, ou tentar desvendar algo interessante na produo artstico-literria desse autor.Bolao pensou e estruturou esse seu projeto ainda como poeta infrarrealista, antes mesmo da publicao do seu primeiro romance, Consejos de um discpulo de Morrison a um fantico de Joyce. Essa estrutura comea a ser pensada, como poeta, dentro do Movimento. Depois passa a um outro patamar com seus livros de contos, Llamadas telefnicas e Puta Asesinas; com romances curtos, Nocturno de Chile, Amuleto e Estrella distante, chegando at a sua obra pstuma considerada, por muitos crticos, a mais significativa, aquela que parece ser e conter toda sntese do seu projeto artstico-literrio, 2666. Tambm sabido que algumas obras como Estrella distante e Amuleto so narrativas desenvolvidas a partir de episdios apresentados nos livros: La literatura nazi em Amrica e Los detectives salvajes, o que ratifica a construo de um projeto que tambm conta com um personagem emblemtico, Arturo Belano, que aparece em diversas narrativas, como uma espcie alter ego narrativo do escritor. Alm de ser um fenmeno para o qual se tem buscado diversas explicaes, muitas sem nenhum sucesso, Bolao tem a capacidade de conectar-se com muitos leitores, particularmente os mais jovens, mesmo sendo dono de um estilo e de um mundo, marcadamente, muito prprio. (ECHEVARRA, 2013)Apesar de ter alcanando notoriedade pelo conjunto de sua obra, o autor considerava que: La fama es una estupidez, sobre todo referida a la literatura. [] En el momento en que llegamos en la literatura al todo vale, a una especie de democracia meditica en donde todo es bueno, en donde todos podemos tener nuestro quince minutos de fama, pues ah se acaba la literatura y se acaba, en gran medida, porque les estamos dando mierda a los lectores. ((BOLAO apud BRAITHWAITE, 2011, p. 104 105)

Por causa dessas e de outras palavras do autor e logo aps o Mestrado, que foi um estudo prazeroso sobre um dos aspectos da obra de Roberto Bolao, cujo ttulo da dissertao era: Nocturno de Chile: literatura em tempos sombrios, no cessou a vontade de continuar estudando outros aspectos literrios relevantes nas suas obras, aspectos esses, como por exemplo, a ligao da literatura de Bolao com a cultura de massa e os denominados gneros B, que contribuem para compreender a diversidade das manifestaes literrias na contemporaneidade.Com essa ideia de pensar e analisar a literatura de Roberto Bolao e sua ligao com a cultura de massa faz-se necessrio apresentar o incio da carreira do autor como poeta infrarrealista que queria, junto com um pequeno grupo de amigos, questionar e romper com a forma de escrita estabelecida pelo cnone. Uma forma que procura introduzir uma srie de discursos e ferramentas narrativas marginais, onde o sistema binrio centro e periferia se dissemina, abordando temas bastante polmicos, como a violncia extrema, o que faz com que seus textos sejam dinmicos e com uma significativa e rigorosa esttica, no s literria, mas tambm poltica. Em uma das passagens do livro, Os Intelectuais e as massas, de John Carey, o autor apresenta as ideias de Freud sobre a formao das massas:Freud concorda com Le Bon em que o indivduo torna-se, na massa, brbaro e infantil [...] o que ocorre, explica Freud, que o indivduo, ao tornar-se homem da massa, livra-se das represses sobre seus instintos inconscientes [...] De acordo com ela a horda primordial, que era a forma primitiva da sociedade humana. Composta de filhos, perseguida e dominada por seu pai primordial ou lder da matilha, a horda uniu-se contra o pai e o matou [...] (CAREY, 1993, p. 34)

A partir desse fragmento, cabe aqui uma metfora como uma possvel leitura que auxiliar na elaborao dessa tese, a de que Roberto Bolao, os poetas da sua gerao e os poetas pertencentes ao Movimento Infrarrealista, poderiam conformar um grupo de autores viscerais, vidos de sentimentos de destruio e de extermnio contra o pai, (os escritores da dcada de 1970 e 1980, aqueles que escreviam no momento em que o massivo comeava a impregnar o literrio), esse ser superior e intocvel, portanto a horda, como aquela descrita por Freud, se junta e faz de tudo para mat-lo, mesmo que esse pai funcione como uma espcie de espelho. Retomando o incio da carreira de Bolao, o Infrarrealismo nasceu no final do ano de 1976, na Cidade do Mxico, momento em que Luis Echeverra deixava a presidncia do pas, depois de um mandato em que houve uma proliferao de oficinas literrias e de atividades culturais, nas universidades e instituies ligadas arte e as humanidades, como parte do plano de reconciliao com a juventude mexicana. No mesmo momento, Chile vivia o marco de uma nova economia e passava por um processo de desindustrializao, pois muitas indstrias no suportaram as polticas econmicas ocorridas em 1975, quando o pas saia de um modelo econmico marcado pelo pensamento econmico de esquerda (dentro do perodo governado por Salvador Allende) e passava a um modelo produtivista-consumista marcado pelas ideias econmicas de direita (promovidas durante o governo de Augusto Pinochet). Comeava, ento, uma subordinao do trabalho ao capital, pois as fbricas passaram por um processo de reprivatizao, assim como as fazendas que tinham sido incorporadas ao setor pblico antes do golpe. Neste momento, surgiu o Infrarrealismo, um movimento potico, esttico e poltico que queria seguir o pensamento de vanguarda (no sentido de absorver todos os tipos de linguagem e juntar pensamento, crtica e ao, apagando as diferenas), onde a juventude, a loucura, a marginalidade, a irreverncia e a poesia eram elementos fundamentais. Escreveu Jos Vicente Anaya em seu manifesto infrarrealista: [...] nosotros nos negamos seguir el juego institucional de la CUL cul no es un prefijo de origen francs? TURA que implica la teora y prctica de los grupsculos academicistas y sectas reduccionistas que bregan en el poder editorial y que con sus esquemas se vanaglorian de una absoluta correccin sobre lo que la belleza debe ser. (ANAYA, 1975)

Naquele perodo, no Mxico, a cultura entendida como oficial e que tinha o aval do PRI (Partido Revolucionrio Institucional) era o que mais incomodava aos infrarrealistas. Entre os intelectuais da cultura oficial figuravam Octvio Paz e Carlos Monsivis, que tinham seus discpulos e contavam com a proteo do regime poltico. Para Bolao e seus pares, Octvio Paz, mais que Monsivis, era um cacique, dono da cultura oficial mexicana, o grande guru e a figura mais destacada entre os intelectuais. O prprio manifesto escrito por Bolao ilustra:La verdadera imaginacin es aquella que dinamita, elucida, inyecta microbios esmeraldas en otras imaginaciones. En poesa y en lo que sea, la entrada en materia tiene que ser ya la entrada en aventura. Crear las herramientas para la subversin cotidiana. Las estaciones subjetivas del ser humano, con sus bellos rboles gigantescos y obscenos, como laboratorios de experimentacin. Fijar, entrever situaciones paralelas y tan desgarradoras como un gran araazo en el pecho, en el rostro. Analoga sin fin de los gestos. Son tantos que cuando aparecen los nuevos ni nos damos cuenta, aunque los estamos haciendo / mirando frente a un espejo. Noches de tormenta. La percepcin se abre mediante una tica-esttica llevada hasta lo ltimo. (2013, p. 59)[footnoteRef:2] [2: Trecho retirado de uma compilao dos Manifestos infrarrealista, realizada por Tsunun, 2013, p.59. Disponvel em https://tsunun.files.wordpress.com/2013/05/nada-utc3b3pico-nos-es-ajeno-manifiestos-infrarrealistas1.pdf. Acesso em 20.06.2015]

Esses seres dissonantes, que no conseguiam apreciar o poderio dos intelectuais mencionados dentro da cultura oficial mexicana, mesmo diante do espelho, partiram para o projeto de formar um grupo que pensasse e estivesse contra eles, contra ao que j estava estabelecido; isto era o que desafiava aquela juventude vista como marginal, pelos que j tinham notoriedade literria e intelectual. Esse grupo de jovens pretendia estabelecer um novo tipo de sociedade, pois naquele momento estava envolvido por uma aura contestadora da cultura undergound, das revistas em quadrinhos e da literatura beat. Naquela ocasio, surgiu esse movimento de contracultura em oposio s velhas estruturas, que s davam chance aos intelectuais e artistas consagrados. Esta neovanguardia un punto gamberra y sacada de quicio proporciono a Bolao un sentido irracional y ldico de la literatura, que se hizo posible mantenerse tan alejado de la delicatessen de Octavio Paz (CALVO, 2010, p.18-19)Todos os poetas infrarrealistas entrevistados por Montserrat Madariaga Caro para o seu livro, Bolao infra 1975-1977: los aos que inspiraron Los detectives Salvajes, concordaram que os beatniks serviram-lhes como fonte de inspirao. Tanto que Jos Vicente Anaya traduziu para espanhol o livro Aullido y outros poemas de Allen Ginsberg, para UNAM, em 1983 (CARO, 201, p. 25,37 e 44)O Infrarreealismo foi um movimento neovanguardista influenciado pelos anos de resistncia, da dcada de 1960, do amor livre, dos Rolling Stones, de Carlos Santana, da poesia e outras literaturas marginais, da maconha, das drogas psicodlicas, das viagens interiores, do esoterismo, da alimentao vegetariana, das filosofias orientais, do repudio ao autoritarismo. Naquele momento, vendiam a ideia de quem no estava debaixo do manto do Estado, paternalista, priista, onde a moral crist da grande famlia mexicana era uma bandeira imposta, fazia parte da repulsiva juventude de esquerda acobertada pela imagem de Che Guevara que trazia de memria os manuais da chilena Martha Harnecker, mas lgico que essas relaes no eram to orgnicas assim, passavam por mediaes. Roberto Bolao, alm de se sentir tocado e querer verbalizar sobre alguns fatos, (o que fez alguns anos mais tarde, quando escreveu as obras que abordam o momento poltico mais delicado do Chile, Amuleto, Estrella Distante e Nocturno de Chile a ditadura cvico-militar) tambm estava empenhado em criar um caminho para sua escrita, pois tinha uma necessidade enorme de escrever, de mostrar suas ideias revolucionrias, de ser original e comeou a procurar os seus amigos poetas, msicos, pintores e narradores. Encontrou em Mario Santiago Papasquiaro a possibilidade de um dilogo parecido, tinham e viviam as mesmas inquietaes e logo viraram amigos inseparveis e aos dois se juntaram: Ramn e Cuauhtmoc Mndez Estrada, Rubn Medina, Jos Peguero, Jos Vicente Anaya, Jos Rosas Ribeyro e Guadalupe Ochoa, Juan Esteban Harrington, Jorge Hernndez, Lisa Johnson, Mara e Vera Larrosa, Gelles Lebrija, Pedro Damin, Vctor Monjars-Ruiz, Bruno Montan, Estela Ramrez e Lorena de la Rocha. Todos esses poetas compartilhavam de um mesmo ideal, fazer uma poesia viva, apresentar ideias extraordinrias e no usar apenas a imagem como recurso literrio, fazer de sua prpria vivncia cotidiana e andarilha, poesia. Bolao se inspirou em muitos desses escritores e deu visibilidade ao grupo, que nem era to conhecido, quando escreveu e publicou o seu romance, Los detectives salvajes. O escritor falou sobre que poeta influenciou sua gerao:Para mi generacin, o para algunos poetas de mi generacin, la disyuntiva estaba entre una poesa comprometida con la lucha social, que nos llevaba directos a la afasia, a la catatonia, como era la poesa de Neruda, de la que realmente abominbamos, o la de Octavio Paz, que era una poesa o una actitud con la que tampoco comulgbamos, como de torre de marfil, o torre de algo, por la que no sentamos el menor inters. Y lo que buscbamos era una tercera va esttica, algo que no fuera ni realismo socialista al que nos abocaba Neruda ni la otredad paciana. Y, de hecho, la encontramos en Nicanor Parra, el poeta que ms nos influy. Sobre todo, lo que tena, y en grades dosis, era sentido de humor, algo que Paz no tena, o al menos nosotros ramos incapaces de vrselo. En Neruda tambin faltaba. Y en Parra haba muchsimo. Y el mejor sentido del humor de mundo, que es el humor negro. (BOLAO apud BRAITHWAITE, 2011, p. 49)

Este pequeno grupo de escritores se diferenciava daqueles que frequentavam os crculos acadmicos, as oficinas literrias, ou os organismos oficiais, pois sua escrita e criao eram elaboradas na rua, se inspiravam nas relaes vitais. Alguns dos poetas infrarrelistas - Ramn Mndez Estrada, Rubn Medina e Jos Vicente Anaya - tinham participado de movimentos polticos importantes, o movimento estudantil de 1968, El Halconazo de 1971 (tambm conhecido como o Massacre de Corpus Christi), golpe cvico-militar chileno de 1973 e as guerrilhas instauradas na Amrica Latina, durante esse perodo. Juan Villoro, quando questionado em uma entrevista para Noticias Culturales Iberoamericanas (2009), sobre a existncia atual de alguma vanguarda e quem poderia represent-la, respondeu:Una de las novelas ms conocidas de mi generacin es Los detectives salvajes de Roberto Bolao que se trata precisamente de una vanguardia, esta vanguardia existi, es una vanguardia de mi generacin que eran los infrarrealistas, en la novela de Bolao se convierten en los viceralrealistas y la idea era, como siempre con las vanguardias, cambiar el mundo a travs de la palabra, vivir de otro modo, para poder escribir de otro modo, cambiar la vida para cambiar el arte.

A poesia infrarrealista nasceu da necessidade desses jovens andarilhos vivenciarem a liberdade e romperem com as convenes e com os limites sociais, econmicos, polticos e religiosos, que a sociedade impunha. Sua atitude era escrever uma poesia direta, sem opresso, o que inclua uma confrontao clara contra o status quo, por isso declararam guerra aos poetas acomodados, sossegados, pacficos e se inspiraram nos poetas Jos Revueltas e Efran Huerta por pura afinidade ideolgica e forma de pensar coincidente. O escritor e jornalista mexicano, Heriberto Ypez, em seu artigo, Historia de algunos infrarrealismo (2006), definiu o movimento como sendo uma corrente potica que, por falta de publicaes sistemticas, apoio contextual e deciso prpria, no influiu diretamente na literatura mexicana tida como oficial, pela qual nutriam um sentimento mtuo de repulsa; mas foi um movimento potico-existencial que marcou seus participantes e converteu alguns como: Bolao, Mario Santiago e Anaya, (os trs principais) em autores de culto. Por mais que o movimento tenha tido algum peso ou tenha sido negado pelos crticos, ainda presos ao paradigma, onde o humor, o visionrio, o neovanguardista, o popular ou meditico, o andarilho, o delirante ou poltico era visto como sem valor, o infrarrealismo fez parte tanto da tradio de uma poesia abismal internacional, como do esprito da antipoesia latino-americana. Nesse sentido, o infrarrealismo foi fundamentalmente, uma catlise e uma sinergia espao-temporal de poetas que aconteceu entre 1974-1978, uma coincidncia de exilados, parias e outsiders. Definindo o movimento como sendo uma catalises e no um grupo fixo, Ypez (2006) continua dizendo que, o infrarrealismo foi entendido como um processo de emergncia potica, uma acelerao de diferentes processos individuais, a partir do qual cada um construiu sua prpria viso sobre escrita e existncia. A catlise infrarrealista explica a situao nmade de boa parte dos seus membros e tambm explica sua imediata dissoluo. O infrarrealismo, essencialmente, catlise e sinergia, se converteu em uma dispora e foi, acima de tudo, uma unio de atitudes, uma postura perante a vida, mais do que uma forma de fazer poesia.Roberto Bolao, que estava preocupado em obter reconhecimento literrio, enquanto os outros optavam pelo trabalho coletivo, declarou a morte do movimento infrarrealista no ano de 1979, ano em que ele e Bruno Montan partiram para Espanha, Mario Santiago para Israel e Harrington para o Chile, embora, quando j na Espanha, tenha procurado resgatar o movimento, pretendendo publicar uma antologia com os textos dos poetas infras. No romance, Los detetives salvajes, ele tentou condensar e resumir o fim de uma poca. Mario Santiago Papasquiaro[footnoteRef:3] voltou para o Mxico e para o movimento infra, continuou escrevendo poemas que ningum queria publicar e possivelmente esto entre os melhores da poesia mexicana do final do sculo XX, sofreu acidentes, viajou, se apaixonou, teve filhos e viveu uma vida fora dos crculos do poder mexicano, enquanto Roberto Bolao abandonou o sonho da contrarrevoluo, foi viver sua prpria vida e mudou da poesia para a narrativa. Este foi o comeo de destinos muito diferentes. (CARO, 2010, p.135-140) [3: Ver Poema de Mario Santiago Anexo I]

Aps esse preambulo, com a finalidade de localizar o ponto de partida do projeto artstico-literrio de Roberto Bolao, julga-se ser pertinente um estudo da sua obra com o objetivo de mostrar, como o autor apresenta os gneros B, especificamente, nesta tese, o romance policial e como pode-se perceber a aproximao de sua literatura com os aspectos da cultura de massa. Diz-se obra, pois o prprio autor afirma, em entrevista concedida Anglica RiveradeLas ltimas Noticias,em julho de 1998, que para entender seu projeto deve-se ler toda sua obra:Estoy condenado, afortunadamente, a tener pocos lectores, pero fieles. Son lectores interesados en entrar en el juego metaliterario y en el juego de toda mi obra, porque si alguien lee un libro mo no est mal, pero para entenderlo hay que leerlos todos, porque todos se refieren a todos. Y ah entra el problema. (BOLAO apud BRAITHWAITE, 2011, p. 118)

Perante a problematizao sugerida pelo prprio Bolao, prope-se um estudo das relaes entre literatura e cultura de massa, com enfoque na utilizao de uma esttica que se aproxima aos gneros B, (romance policial), usando como base terica conceitos de cultura, de massa e de cultura de massa apresentados por diversos autores de orientao intelectual heterognea entre eles: Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ortega e Gasset, Elias Canetti, John Carey, Edgard Morin, Peter Buke e Carlos Monsivis.Qu hay detrs de la ventana? Pergunta-se o personagem Juan Garcia Madero, no final do romance, Los detectives Salvajes (1998, p. 608), est ser uma das perguntas desse estudo que se ampliar e se juntar, de maneira mais precisa, a outras, partindo da reestrutura de gneros definidos como cannicos (que est no centro), chegando aos que so deixados margem, portanto na fronteira, no limite. Essas ideias j foram apresentadas por Felipe A. Ros Baeza no seu livro: Roberto Bolao, una narrativa en el margen: desestabilizaciones en el canon y la cultura. O autor diz:No obstante, es necesario realizar una puntualizacin: ese elemento del margen en Bolao es mucho ms conflictivo y dinmico de lo que aparenta. Adems, resulta decidor que tal nocin haya sido examinada por la filosofa, la sociologa y la teora literaria como una zona de conflicto y ambivalencia, de diseminacin y filtro, e incluso como sinnimo de acepciones ms complejas: borde, marco, lmite u otras mayormente socioculturales, como frontera. (ROS BAEZA, 2013, p. 17)

O romance citado apresenta uma dupla investigao, uma investigao sobre investigao. Dois amigos, Arturo Belano e Ulisses Lima, nos anos de 1970, vo atrs de pistas que os levem a encontrar uma escritora mexicana (personagem do romance), a poeta Cesrea Tinajero, que fundou, na dcada de 1920, o movimento chamado real-visceralismo (um grupo de vanguarda de existncia passageira). Os dois esto empenhados em retomar e revisitar esse movimento de vanguarda.O romance apresenta a oposio entre tradio/vanguarda e o novo movimento, fadado a ser efmero e que serve como introduo para a discusso dessa oposio. Na narrao, mesmo com a possibilidade de fugacidade, o movimento acontece, ainda que tenha aparecido em uma nica publicao. O que os personagens buscam s far sentido anos depois, momento em que as vanguardas artsticas serviro para entender o caos da poca contempornea. Os personagens Belano e Lima retomam, resignificam e fundam o segundo real visceralismo, um movimento, cujo discurso os ajuda a chegar a um diferencial, ser distintos dos modelos artsticos que estavam sendo produzidos e criar um movimento potico, inspirado naquele primeiro movimento de vanguarda. Fazem isso quando saem a procura de Cesrea Tinajero, uma escritora e no um escritor, o gnero feminino com autonomia para criao, rompendo assim com o estabelecido. Procurar Cesrea Tinajero tambm sair em busca dos movimentos artsticos e literrios que justifiquem e fundamente a criao de um novo movimento. Esses dois jovens poetas sentem-se herdeiros do movimento real visceralista e, a partir dele, querem revolucionar o campo literrio mexicano e latino-americano. Todos los mexicanos somos ms real visceralistas que estridentistas, pero qu importa, el estridentismo y el realismo visceral son solo dos mscaras para llegar a donde de verdad queremos llegar. Y adnde queremos llegar?, dijo ella. A la modernidad, Cesrea, le dije, a la pinche modernidad (BOLAO, 1998, p. 460)

Na obra, Roberto Bolao associa o real visceralismo com o estridentismo (movimento vanguardista, do incio do sculo XX, influenciado por vrias correntes da poca como: simbolismo, dadasmo, futurismo, surrealismo), os dois movimentos esto vinculados sob a insgnia da modernidade.Mesmo com a crise institucional imposta pelos golpes cvicos militares, na Amrica Latina, determinando o fim das vanguardas e priorizando um novo estgio de influncias e de alternativas possveis da arte, processado como manifestao consequente de uma crise tica, poltica e social, aparece o nico poema escrito por Cesrea Tinajero, intitulado Sion (citado no romance) composto por trs linhas irregulares, uma reta, uma com curvas e outra cheia de pontas irregulares e sobre as trs est desenhado um retngulo, portanto um poema visual, que suscitou nos personagens uma discusso sobre como podiam interpret-lo[footnoteRef:4]. [4: Ver poema - Anexo II]

O que tambm pode ser matria deste estudo a possibilidade de tomar de outras anlises, algo que se ajuste e ajude a reescrever a vanguarda, levando em conta a tradio, mas uma reescrita diferente e em outra poca, posterior aos movimentos de vanguarda em si. Por que Bolao mistura as ambies da vanguarda (de Los detectives Salvajes) e seu esgotamento, com as virtudes da cultura de massa, concretamente o gnero policial? O que poderia estar por detrs da morte farsesca da vanguarda? Durante os movimentos de vanguarda, a cultura de massa se solidifica, se torna mais presente, a conscincia da estreita relao entre arte e povo, entre a arte e a sociedade, revela-se bastante viva (DE MICHELI, 2004, p. 11), essa afirmativa ajudar na pesquisa de como a imagem, a fico cientifica, o relato ertico ou pornogrfico, o romance policial, a novela negra, o romance gtico, a crnica de viagem, as reportagens, aparecem, na obra de Roberto Bolao. Como esses subgneros, que tambm podem ser denominados gneros B, alternativos, bastardos, mrbidos ou marginais, entendendo que todas essas denominaes, mesmo distante do cnone, derivam ou servem como enfrentamento ou resposta ao cnone? Como o autor utiliza, aproveita ou incorpora, na sua obra, a cultura de massa, disseminada atravs da televiso, das fotografias, dos filmes B (faroeste, gangster, horror, noir, trash e snuff), dos road movies, dos livros de bolso de faroeste, dos romances de aventura, dos folhetins, das fotonovelas, da msica popular, do thriller, etc.? Tudo isso pensado como cultura de massa que tambm mercadoria, vinculada indstria cultural. Porque em Bolao, a alta cultura e a cultura de massa, o lgico e o paradoxo, a pura fico e a realidade circunstancial, o verstil e o nico parecem fazer parte de um s lugar: o da escrita literria. (ROS BAEZA, 2013, p.15)Pode-se afirmar que: existe um limite para a obra de Bolao? Se sim, qual seria? Existe uma probabilidade do autor querer o leitor como cmplice quando traz os gneros B para dentro da sua escrita? Ainda importante a dialtica entre cnone (aqui o cnone pode ser lido como boom ou tradio latino-americana) e cultura de massa; entre narrativa de centro e de periferia, para que se possa definir um autor ou uma obra? Bolao, como escritor, se importaria com essa dialtica?Essas questes podem ser originrias de uma sociedade policultural. Segundo o socilogo Edgar Morin[footnoteRef:5], para que a indstria cultural atinja um pblico extenso, necessrio que seja variada, no s no mbito da informao, mas tambm no da imaginao. Oprodutoda cultura deve ser ecltico quanto ao seu tema como, por exemplo, esportes, humor, religio, poltica e arte. Partindo tambm dessa colocao de Morin, h repostas plausveis para as questes anteriores? Tais respostas devem mesmo ser dadas? J que a sociedade presencia a unificao da tcnica com os aspectos econmicos, o que promove mais fragmentao. Quanto mais diminui a distncia entre pases, por causa das novas ferramentas tecnolgicas, mais divises existem, mais o individualismo reforado, portanto se exige outra maneira de dizer, de se expressar e de criticar. [5: Ideais apresentadas pelo autor durante a palestra: Conscincia Mundial: por um conceito de desenvolvimento para o sculo XXI, proferida dia 03.07.2012, no SESC Consolao/SP. Disponvel em: http://edgarmorin.org.br/. Acesso em: 03.06.2015]

A hiptese que nortear este estudo ser a de tentar demonstrar, atravs da anlise da obra 2666 de Roberto Bolno (principalmente do captulo, La parte de los crmenes), que autor talvez j aponte um dilogo consistente com a cultura de massa, de entretenimento e com os gneros B, quando escolhe os temas, a trama, a esttica de sua prosa, a linguagem empregada e a configurao dos personagens. Esse aspecto pode ser observado j na escolha dos ttulos dos seus livros que refletem essa proximidade: Consejos de um discpulo de Morrison a um fantico de Joyce (1984), livro escrito com Toni Garca Porta, cujo ttulo uma parfrase de um poema de Mario Santiago Papasquiaro intitulado, Consejos de un discpulo de Marx a un fantico de Heidegger[footnoteRef:6]. Outros ttulos de livros ratificam essa aproximao: Putas Asesinas; Una novelita Lumpen; Los detectives salvajes; Llamadas telefnicas, assim como as fotografias que ilustram as capas dos seus livros. [6: Ver poema - ANEXO III]

Alm disso, o autor aborda questes referentes identidade ou marginalidade e estas constituem um eixo temtico que est presente tanto nos seus romances, quanto nos seus contos. Neles, o autor apresenta uma certa (re)experimentao formal e estrutural, o que ajuda a mostrar qual a condio de escritores, como ele, dentro da sociedade contempornea, aqueles que fazem ou tentam fazer o jogo entre o que j est estabelecido e as outras possibilidades de sentido e de escrita. Uma obra que ultrapassa os limites da intertextualidade e da interdiscursividade e chega a uma transtextualidade (conceitos propostos por Grard Genette) pode ampliar a discusso? Quais so as possveis leituras ou textos que figuram por trs da janela da contemporaneidade?Outra hiptese significativa est relacionada ao romance policial, ser possvel que Roberto Bolao, utilizando a base de construo do romance policial tradicional e toda influncia recebida de Borges, consegue reordenar, reestruturar e reescrever de uma maneira to singular que possa alar este gnero, primeiro figurado como de massa, ao patamar cannico? Os pressupostos tericos estaro vinculados aos objetivos deste trabalho e orientaro, em grande medida, o tipo de pesquisa a ser desenvolvida. Na inteno de realizar uma leitura mais profunda do conjunto de textos selecionados como representativos para esse trabalho, sero empregadas estratgias comparativas de anlise e reflexo de modo que um pensamento crtico se desenvolva.Tais textos se articularo com a anlise da obra 2666, dando mais nfase a sua quarta parte intitulada, La parte de los crmenes, a partir de uma abordagem interdisciplinar e intertextual entre os discursos literrio, os gneros B (o romance policial) e a cultura de massa que possibilitar uma leitura e compreenso mais minuciosa do dilogo que se estabelece entre esses campos do conhecimento. O corpus terico dessa pesquisa, referente ao cnone, ser mais centrado nas obras de: Harold Bloom cnone e alta cultura e Pierre Bourdieu campo literrio fazendo um contraponto entre os conceitos apresentados pelos dois estudiosos. Sobre cultura e cultura de massa, ainda esto sendo pesquisados os autores que melhor se adequaro ao estudo dessa parte da obra de Roberto Bolao. Sobre o romance policial, sero apresentados estudos de vrios autores que foram compilados em um livro, organizado por Daniel Link, El juego de los cautos e, sobre violncia, sero consultados escritos de Hannah Arendt e Slavoj iek. Outros autores contemporneos faro parte do debate: Fredric Jameson, Terry Eagleton para entender como pode-se pensar o engajamento poltico-esttico na literatura nos dias atuais.Esta tese est dividida em quatro captulos, o primeiro, intitulado Espao de disputa, abre com a discusso sobre cnone, qual a relevncia de uma obra ou um autor pertencer ao cnone? O cnone est ligado tradio, uma questo de mercado ou ambos? At que ponto o cnone est ligado ao consumo? Quem ou o que estabelece e dita as diretrizes do cnone? De onde parte Roberto Bolao, qual o seu lugar de escrita, quais as bases do seu projeto artstico-literrio, quem ou que tipo de literatura ou autor ele elege como cannico? O que Bolao escreve sobre o cnone?O segundo, Narrativas interditadas, 2666 - La parte de los crmenes: realidade ou fico, ser escrito com o intuito de trazer a representao da violncia (a partir do cotidiano de uma cidade de fronteira) como forma de denncia e como a mesma se torna banal, no caso do texto, como diz a epigrafe de 2666, Un oasis de horror em medio de um desierto de aburrimiento (Charles Baudelaire) que descortina a cidade de Santa Teresa. Essa cidade apenas imaginria? Alm da banalidade do mal, se tentar pensar a fronteira literria (existe uma?), fazendo um contraponto com os aspectos geogrficos, comparando a forma e a estrutura de escrita de Bolao com o que passa na fronteira do norte do Mxico. Se cabe pensar uma construo de fronteira de cidade e literria, cria-se um problema: essa composio de escrita, que ele prope, e a literatura em si, tambm seriam um lugar de fluxo? Assim como no existe uma fronteira, mas inmeras dentro das cidades, poder-se-ia propor uma analogia com os gneros literrios, j que existem muitos que no se esgotam, mas que compem uma obra. E pensando a construo de uma escrita no linear, cuja a noo no pode ser reduzida a um nico gnero, o lugar de escrita de Bolao, assim como a fronteira da cidade de Santa Teresa no poderiam ser considerados espaos delimitados?Uma questo interessante se apresenta, os deslocamentos geogrficos dentro da obra 2666 correspondem aos deslocamentos de gneros que esto presentes no texto? Se existe a possibilidade desses deslocamentos, como se configuraria a costura entre o geogrfico e o literrio? Aconteceria a partir da Cidade de Santa Teresa, lugar de confluncia dos personagens da narrativa e que ao mesmo tempo se configura como um lugar de sada, j que uma fronteira? Ou tal costura se daria atravs da busca do escritor Benno von Archimboldi? O terceiro captulo, Campo de batalha, traz a cultura de massa, que aspectos importantes da cultura de massa podem-se verificar dentro da obra de Roberto Bolao, a importncia dos gneros B dentro do seu projeto artstico-literrio. Tambm percorrer o romance policial, como gnero que serve massa, mas que reescrito e reestruturado por Bolao pode se tornar uma nova proposta do gnero, visitando a traduo do gnero policial desde Jorge Lus Borges a Ricardo Piglia, passando por Manuel Puig. Por que Roberto Bolao faz a opo pelo gnero policial? Quem so os investigadores, os detetives dentro de 2666? Os crimes relatados so desvendados? E o quarto e ltimo captulo, aparece como um complemento e est ligado a uma pergunta feita pelo narrado de Los detecties salvajes, Qu hay por detrs de la ventana? Essa parte da tese tem o intuito de apresentar a arte como um ato de resistncia, o momento em que o artista esgota a vida e passa arte, contemporaneidade, ao mercado, tentando entender, por um lado a crise das vanguardas e por outro, a concretizao da cultura de massa.

1 Espao de disputa: cnone

A capacidade que um autor possui em criar um mundo ficcional baseado no real/factual, ou exatamente o contrrio, proporciona uma escrita reveladora das condies de produes (principalmente artsticas) que reinam nas sociedades atuais e como essas produes so entendidas como espetculo. O romance 2666, escrito por Roberto Bolao em 2004, faz parte desse tipo de narrativas que esto inseridas nesse vis contemporneo e ficcional convertido em representao, tal sua intensidade e o seu rompimento com as regras de estrutura de romance, nesse caso, o romance policial. O ttulo sugestivo do romance remete a um ano meramente imaginrio, pois o ano de 2666 j havia aparecido em uma das obras emblemticas de Roberto Bolao, o curto romance Amuleto, apresentado em uma cena narrada pela personagem protagonista, Auxilio Lacouture, citado como um cemitrio o ano de 2666, escondido debaixo de uma plpebra morta no nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer algo, acabou esquecendo tudo (BOLAO, 2008, p.65). Esta citao aponta para um lugar percebido e entendido como fronteirio, o cemitrio, onde o espetculo morturio encontra o seu ponto final.

1.1 2666, um abismo

[] 2666 ha sido, es, y posiblemente seguir siendo considerada como el testamento literario de Bolao, una suerte de Apocalipsis, dentro y fuera de la digesis, que tematiza el destino fatal e irremediable de un continente que ha sido abandonado a su suerte, aquel continente por el que deambul toda una generacin de jvenes -los nacidos en la poca de los 50 abocados al fracaso [] [footnoteRef:7] [7: POBLETE, Patrcia Alday. Bolao: otra vuelta de tuerca. Chile: Universidad Academia de Humanismo Cristiano, 2010, p. 10]

2666 um romance pstumo, com uma caracterstica abismal, no sentido de no terminar e fragmentrio, fugindo do aspecto tradicional do romance. Est dividido em cinco partes, que tambm podem ser lidas como livros autnomos, mas que se relacionam entre si. La parte de los crticos, La parte de Amalfitano, La parte de Fate, La parte de los crmenes e La parte de Archimboldi. Essas partes (livros) esto cercadas pela presena, ou a ausncia, ou a busca por Archimbold, um escritor alemo cujas obras, viagens e forma de vida so desconhecidas. Duas perguntas esto, de alguma maneira, interligadas dentro da obra: quem o crtico literrio Benno von Archuimboldi? E, quem o assassino das mulheres na cidade de fronteira, Santa Teresa, entre Mxico e os Estados Unidos?A primeira parte do romance relata as peripcias de um grupo de quatro crticos literrios, especialistas na obra de Archimbold, que tentam decifrar o paradeiro desse autor. Essa parte remete a uma procura similar a esta, dentro de outra obra de Bolao, Los detecitves salvajes, quando Arturo Belano e Ulises Lima empreendem uma busca poeta Cesrea Tinajero, fazendo aluso que a viagem pode ser uma experincia vital, ligada a necessidade sempre de partir, de desprender-se, de deixar o cas, uma aventura sem limites. Os crticos leem e seguem a pista do autor, levados por um desejo arbitrrio, por isso o carter excntrico da busca proposta. Este tipo de assimilao da intertextualidade - escritores/leitores que procuram escritores/leitores - sem dvida um eco de Jorge Lus Borges em Roberto Bolao, sendo que em Borges so os livros, que s vezes, levam a morte e em Bolao so as histrias, o acaso, e a prpria vida que pode levar a uma degradao. (AYALA, 2008, p.100). Essa semelhana ser abordada mais adiante. Nessa viagem, que parte com a busca a Archimbold, a narrativa tambm se desloca para a segunda parte, La parte de Amalfitano que conta a histria de um professor chileno radicalizado na cidade de Santa Teresa. Mesmo sem saber ao certo porque foi parar naquela cidade, scar Amalfitano realiza atividades comuns, a de professor e pai, pois fora abandonado por sua mulher que preferiu seguir um poeta qeu vivia trancado em um manicmio no norte da Espanha. Amalfitano representa a condio da viagem e do exlio, alm da solido e da loucura da prpria viagem em si, at o ponto de esquecer que tem uma filha e de pendurar no varal de roupas um exemplar do livro Testamento geomtrico de Rafael Dieste, para ver se o mesmo resistia a intemprie e a natureza desrtica. Durante un rato se qued quieto, respirando con la boca abierta [...] extrajo tres pieza para la ropa, que l se empecinaba en llamar peritos, y con ellas enganch y colg el libro de uno de los cordeles y luego volvi a entrar en su casa sintindose mucho ms aliviado. La idea, por supuesto, era de Duchamp. [] Espero que no te ests volviendo loco, dijo Rosa. No, no te preocupes [...] Te lo aviso para que no lo descuelgues. Simplemente haz de cuenta que el libro no existe [...] (BOLAO, 2004, p. 245-246)

Esta parte, assim como a ltima do livro, tem como elemento central a literatura. Cristopher Domnguez Michael em seu artigo, La literatura y el mal (2005), amplia a questo dizendo: esta segunda novela est dispuesta esencialmente para que Amalfitano y su hija nos introduzcan en la atmsfera de irrealidad y sevicia de Santa Teresa, que se ir volviendo de una lectura casi intolerable en La parte de los crmenes. La parte de Fate percorre os abismos da fronteira e Bolno soube tratar com habilidade essa questo, apresentando uma homenagem a decisiva influencia de la cultura estadounidense en su formacin, a travs de las figuras fronterizas del periodista negro, del predicador, del imposible militante del Partido Comunista en Brooklyn y del hervidero, tan profundamente estadounidense, de las teoras de la conspiracin. (DOMNGUEZ MICHAEL, 2005).Em La parte de los crmenes, que ser o corpus de estudo dessa tese, Bolao se aproxima, com a ajuda do livro de Sergio Gonzlez Rodriguz, Huesos en el desierto (2003), aos feminicidios de Santa Teresa (um espelho de Ciudad Juarez, embora Santa Teresa exista tambm como cidade de fronteira no Mxico). Os crimes acontecem com a mesma rapidez e deslocamentos que as viagens que acontecem entre as fronteiras mexicanas e estadunidenses, entre tudo que ambos lados possam representar. Nessa parte, os relatos das mulheres assassinadas, violentadas e torturadas se misturam e se contrapem com a narrao de personagens obscuros, alguns deles agentes de polcia que transitam pelos dois lados da fronteira. Uma vez mais, a fala de Dominguz Michael (2005) serve para ilustrar:

Yo no crea posible que se pudiese hacer literatura de tanto horror y, al hacerlo, conservar al mismo tiempo el honor de las vctimas y el honor de la literatura, encarando uno de los problemas morales menos transitables de la creacin artstica. Si los crmenes se deben a la difuminacin del asesinato serial o a la multiplicacin del rito satnico, eso ya es cosa que, en 2666, depende de las estrategias novelescas que Bolao utiliza.

La parte de Archimboldi fecha o romance e apresenta o esboo da figura do escritor alemo procurado pelos crticos, que uma espcie de ponte que liga o terror e a violncia da Segunda Guerra mundial as mortes das mulheres de santa Teresa, mostrando o estado mais puro da violncia, do mal e do horror que persiste e est sendo disseminado pelo mundo todo e principalmente nas fronteiras dos pases latino americanos. Deste modo, as partes (livros/fragmentos) aspiram uma unidade, que pode beirar a impossibilidade, mas da qual o autor absolutamente consciente, at o ponto que se poderia dizer que, parte da inteno narrativa mostrar a verossimilhana dos livros diante utopia do romance como uma totalidade absoluta. Existe uma estratgia, alm da verossimilhana, o escritor deseja atrair o leitor para dentro da narrativa, como sempre atrai quando conta algumas de suas histrias. (MASOLIVER, 2008, p. 315)O romance 2666, assim como outras obras de Bolao, em destaque Los detectives salvajes, caracterizam-se fortemente, pelas possibilidades que a literatura oferece para a vida se opondo a um discurso autossuficiente e hermtico, tentando transmitir um sentimento de uma gerao, como ele mesmo menciona no seu discurso de Caracas:Los que nascimos en la dcada del cincuenta y los que escogimos en un momento dado el ejercicio de la milicia, en este caso sera correcto decir la militancia, y entregamos lo poco que tenamos, lo mucho que tenamos, que era nuestra juventud, a una causa que cremos la ms generosa de las causas del mundo y que en cierta forma lo era, pero que en la realidad no lo era. De ms est decir que luchamos a brazo partid, pero tuvimos jefes corruptos, lderes cobardes, un aparato de propaganda que era peor que una leprosera, luchamos por partidos que de haber vencido nos habran enviado de inmediato a un campo de trabajos forzados, luchamos y pusimos toda nuestra generosidad un ideal que haca ms de cincuenta aos que estaba muerto, y algunos lo sabamos [] pero igual lo hicimos, porque fuimos estpidos y generosos, como son los jvenes, que todo lo entregan y no piden nada a cambio, y ahora de esos jvenes ya no queda nada, los que no murieron en Bolivia, murieron en Argentina o en Per, y los que sobrevivieron se fueron a morir en Chile o a Mxico, y los que no mataron all los mataron despus en Nicaragua, en Colombia, en El Salvador. Toda Latinoamrica est sembrada con los huesos de estos jvenes olvidados. (2004, p.37-38)

Neste fragmento, o autor, faz uma reflexo sobre a herana de projetos polticos falidos e das catstrofes econmicas e humanas do sculo XX. Existe por trs de sua escrita, do seu projeto artstico-literrio, uma grande pergunta, que traz tona, a problemtica de uma poca, porque o projeto de modernidade fracassou? Ser que pode estar ligado s ideias iluministas e sua relao com os genocdios do sculo passado? Qual o papel da arte, da literatura dentro da sociedade e suas implicaes ticas, estticas e morais? Talvez um papel mais prximo da vida, tendo a arte um papel consistente e importante de resistncia?Alm de transmitir o sentimento de uma gerao e mostrar parte do seu projeto artstico-literrio, percebe-se 2666 como uma obra ficcional que cumpre uma tarefa indispensvel para a sobrevivncia do ser humano, no s ajuda a predizer suas reaes em situaes hipotticas, como o obriga a represent-las em sua mente, repetindo-as muitas vezes at chegar a sensao de que esto sendo experimentadas de verdade, chegando ao momento de reconhecer a fico como uma verdade possvel. Uma espcie de mentira contagiosa, pois, segundo Jorge Volpi, esta obra um dos romances mais poderosos, perturbadores e influentes escrito em espanhol, nas ltimas dcadas. (2008a) Em 2666, o poder como fora exerce forte influncia sobre o corpo e a vida, revelando diferentes formas de poder que aparecem no mundo real e que podem ser transportadas para a fico e para dentro desse mundo imaginrio. A noo de poder toma um sentindo to intenso que se mistura ao conceito que aparece dentro da realidade social, aquele que mostra que o campo literrio coloca em cheque e traz para o foco relaes de poder, tanto dentro da estrutura literria como no plano histrico, poltico e social. A literatura pode exercer algum tipo de poder dentro da configurao da vida histrico-poltico-social? At que ponto, os textos literrios podem intervir na vida ou nas prticas de vida das sociedades contemporneas? Para entender de onde parte a narrativa de Roberto Bolao, deve-se perceber que o tipo de texto literrio que ele constri como ficcional um tipo de resposta a determinadas condies histricas que tm como incio, o ano de 1968 (ano em que Roberto Bolao deixa o Chile, seu pas de origem, um ano que tambm pode-se pensar como o marco do incio da derrota das utopias, quando a arte perde o horizonte de prosperidade). O ano de 1968 o momento de onde parte a esttica de Bolao, perodo herdado diretamente, central e para onde sua obra se volta constantemente, com o objetivo de refletir e, a partir de a tentar observar todas as possveis solues para os problemas gerados naquela poca (principalmente os de ordem econmico-social), se que podem ser solucionados a posteriori e usando a literatura como espao para essa reflexo. Bolao traa um caminho, dentro de sua obra, que parte dessa data, mas transita pelos problemas de outras pocas como as ditaduras dos anos de 1970, com suas mentiras, torturas, violaes, mortes e desaparies; a representao do exlio com suas identidades sem cho, deriva, at chegar nos mais atuais, mas no menos atrozes, os feminicidios no resolvidos da Ciudad Jurez. Bolao se permite a transitar por temas que, ainda hoje, parecem vetados por grande parte de escritores, pois arriscar-se compe o ser escritor. Por e com isso, sua esttica aparece como subversiva e problemtica, j que rompe limites estabelecidos. O autor, Rodrigo Fresn corrobora com essa afirmao quando diz em seu artigo, El samuri romntico: Una cosa est clara, no hay dudas al respecto: Bolao escriba desde la ltima frontera y al borde del abismo. Slo as se entiende una prosa tan activa y cintica y, al mismo tiempo, tan observadora y reflexiva (In: PAZ SOLDN y FAVERN PATRIAU, 2008, p.205)

1.2. Cnone: influncia, tradio e ruptura

No seu livro Entre parntesis, Bolao relembra de um poema escrito por Nicanor Parra que se encaixa muito bem quando fala-se em cnone, literatura, exlio e desterro. Tal poema comea citando quatro grandes poetas chilenos. Existem os que afirmam que os quatro grandes poetas do Chile so Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Pablo de Rokha; outros dizem que so Pablo Neruda, Nicanor Parra, Vicente Huidobro e Gabriela Mistral; a ordem varia segundo os interlocutores, mas sempre so quatro cadeiras e cinco poetas, seria mais simples se falassem logo dos cinco grandes poetas do Chile, at que Nicanor escreveu o seguinte poema:Los cuatro grandes poetas de Chileson: tresAlonso de Ercilla y Rubn DaroNeste poema, Parra apresenta trs ensinamentos, o primeiro quando diz que os chilenos no tm nem Daro e nem Ercilla, e que eles no podem ser propriedade dos chilenos, l-los j o bastante; o segundo quando deixa a entender que o nacionalismo nefasto, pois destri a si mesmo; e o terceiro quando afirma que os melhores poetas chilenos foram um espanhol e um nicaraguense que passaram pelo Chile sem a menor inteno de permanecerem naquele territrio, os dois grandes poetas chilenos eram dois viajantes, Bolao termina o episdio dizendo: Y con esto creo que queda claro lo que pienso sobre literatura y exilio e sobre literatura y destierro. De Nicanor Parra apreciava a sua diversidade de matizes e registros e sobretudo o seu humor, continua dizendo que ele conseguiu sobreviver, nem a esquerda chilena de convices direitistas, nem a direita chilena neonazista e sem memria puderam com ele. Nem a esquerda latino-americana neostalinista, nem a direita latino-americana globalizada tambm no puderam com ele. Os professores medocres latino-americanos, que andam pelo campus das universidades norte-americanas, no puderam com ele, assim como os seguidores de Parra no puderam com Parra. Disse Parra: Es un error ceer que las estrellas puedan servir para curar el cncer. Ele tinha mais razo que um santo. (2004; p. 44-46 92-93).Para entender como Roberto Bolao percebia e se relacionava com os escritores que estavam ou no inseridos dentro do cnone, deve-se pensar como a figura do escritor entendida nos dias atuais. Ser que possvel enumerar os escritores como romnticos, segundo Rodrigo Fresn (2008, p. 294-295) aqueles que veem a literatura e a sua prtica como utopia realizvel, com uma vontade feroz de que tudo seja escrita, de que a tinta tenha a mesma importncia que o sangue e que se escreva desde a ltima fronteira beira do abismo? Como realistas, ultrarrealistas ou metaliterrios (como muitos denominam Bolao)? Como os comprometidos com sua poca; os funcionrios da palavra, aqueles que esto dentro da sua torre de marfim esperando que as musas os inspirem? Como os que tentam ver publicados seus livros em uma grande editora, fazendo parte de um mundo para poucos? Como os que transitam pela fico cientfica, os que narram a partir do relatrio policial, seguindo uma ordem cronolgica prxima ao texto jornalstico?Como autor, Roberto Bolao elabora uma fico esttica, poltica e possvel a partir de eventos que partem da data anteriormente citada 1968 - e servem como resposta ao horror e a violncia de determinados casos histricos, no apenas com a mera intenso de represent-los, mas como forma de construir seu processo narrativo que ter como base escritores que esto dentro de um cnone j estabelecido como o caso de Jorge Lus Borges. Palavras do prprio Bolao presentes na crnica intitulada El bibliotecario valiente mostram de onde parte sua literatura, nesse caso, de Jorge Lus Borges. Despus de su libro sobre piratas y otros forajidos, escribi dos libros de relatos que probablemente son los dos mejores libros de relatos escritos en espaol en el siglo XX. El primero parece en 1941, el segundo en 1949. A partir de ese momento nuestra literatura cambia para siempre [] Varios, sin embargo, son sus mritos: una escritura clara, una lectura de Whitman, acaso la nica que an se mantiene de pie, un dilogo y un monlogo ante la historia, una aproximacin honesta al english verse. Y nos da clases de literatura que nadie escucha. Y lecciones de humor que todos creen comprender y que nadie entiende. En los ltimos das de su vida pidi perdn y confes que le gustaba viajar. Admiraba el valor y la inteligencia. (2004, p. 291)

Bolao no s admira a escrita de Borges como diz que a partir dele a literatura sofre uma mudana to grande que no ser mais a mesma. Apesar de se inseri dentro de uma tradio literria, o autor de 2666 reelabora as formas poticas, estticas e porque no dizer tica, quando prope o seu lugar de escrita. Alm de apresentar novas formas literrias que predominam sobre outras, dependendo qual o objetivo que deseja alcanar e porque razo. Igncio Echevarra (2013) prope um mapa das devoes literrias de Bolao, mas diz que seria uma tarefa muito difcil por causa do seu enorme leque de leitura. Esclarece Echevarra:En lo que toca a la literatura estadounidense, ese mapa hara notorio el ascendente que sobre Bolao tuvieron escritores como Twain y Melville, por supuesto, pero tambin Willian Burroughs y los escritores de la generacin beat; toda la novela negra, hasta llegar a James Ellroy; Philip K. Dick y los autores de ciencia ficcin. [] Ms complicado sera el levantamiento de ese mapa en lo relativo a las lecturas de escritores europeos [] En cuanto a libros y escritores latinoamericanos, Bolao sembr muchas pistas, que en algunos casos velaban otras igualmente relevantes. As, por ejemplo, el magisterio insistentemente invocado de Borges y Cortzar. [] en otro plano, est la red de complicidades que estableci con algunos escritores de su misma franja generacional, y mediante la cual Bolao contribuy a actualizar el canon contemporneo de la narrativa del continente, en el que hoy da figuran nombres como los de Daniel Sada, Juan Villoro, Horacio Castellanos Moya, Rodrigo Rey Rosa, Ricardo Piglia, Csar Aira, Alan Pauls, Rodrigo Fresn o Pedro Lemebel [] (p.191)

Em seu artigo Ricardo Piglia y Roberto Bolao: tradicin y narratividad, Andrea Torres Perdign cita David Fishelov e traz a dinmica do cnone estabelecida a partir de duas posturas: el bando que defende la beleza como critrio y el bando que defende el poder. El primero, al que llama The beauty party, which dominated criticismo for centuries, assumes taht the status of a great book is a function of certain aesthetic qualities inherent in the work, no qual figuram as tendncias como o New Criticism, o formalismo russo, alm de um debate mais atual e polmico levantado por Harold Bloom, que diz que existe uma autonomia do texto cannico que est acima de qualquer causa extraliterria social ou poltica.E o segundo que define como el bando opuesto, es decir el del poder, que segundo Fishelov o grupo que traz as tendncias crticas como a teoria marxista (em particular Lucks, Trotsky, Fredic Jameson, Terry Eagleton). Ainda que essas duas tendncias, a da beleza e a do poder, so distintas entre si, essa colocao serve para definir a partir de onde o cnone foi estruturado, com uma predominncia eurocntrica, deixando de fora alguns autores que tem um carter mais a margem da sociedade atual ou autores, cuja produo literria mistura gneros entendidos como pertencentes cultura de massa, como no caso desse estudo, o gnero policial. Talvez o desenho dessa composio precisa ser equnime, propondo uma dissoluo de literatura cannica e de massa. O que pode comear por uma nova proposta de cnone. A construo e a divulgao de um cnone literrio, sejam no contexto das literaturas nacionais ou universais, ainda provocam, nos dias de hoje, muitos debates, pois passa pelo entendimento de que representa algo elitista, ligado ao mais exmio da literatura, de uma cultura e a imortalidade dos autores. Esses dois aspectos constituem o prestgio de um pas como nao cultural, dizendo que uma nao s tem cultura a partir de um cnone estabelecido nas e pelas elites que formam a nao, deixando de lado os que esto margem. Argumenta-se que o cnone no mbito das literaturas nacionais contribui ou serve para a construo das identidades nacionais e est relacionado com aspectos de poder cultural institucional, que ajudam a definir os valores de uma nao, de um continente ou de uma cultura determinada. Os autores e as obras que incorporam o cnone formam a cspide da cultura, enquanto os que ficam excludos fazem parte de um grupo de segunda categoria, que no pode nem tentar chegar ao patamar de canonizao. Os debates acirrados e todos os conceitos sobre cnone, levantados por estudiosos, trataram ou tratam sempre da construo de paradigmas e da imposio de um determinado conceito de literatura, isto , de um cnone. O que deixa transparecer que o cnone literrio est ao mesmo tempo relacionado com as diversas escolas literrias e estticas (barroco, romantismo, realismo, surrealismo, expressionismo, realismo mgico), e com as teorias literrias, tais como: o formalismo russo, o estruturalismo, a esttica da recepo, etc. O cnone literrio est ligado a recepo e discusso sobre obras precedentes, no caso de Jorge Lus Borges e de Roberto Bolao, este um aspecto exemplar, pois ambos se destacam por confluir o terico e o ficcional nas suas obras, parecem sempre tratar de problemas tericos e sobre o cnone literrio na sua prpria prtica literria, citando nomes de vrios autores e obras, Bolao d pistas de suas preferncias com em sua obra, La literatura nazi em Amrica, uma coleo de biografias mnimas de personagens nfimos, ele, de alguma maneira, recupera nesse livro a vontade transgressora da Historia universal de la infamina de Borges y a expande de forma excessiva e lenta. (MANZONI, 2008, p. 344)Pode se dizer que os dois autores, com suas obras, lutam contra e a favor do cnone. Todas as suas formas de prtica literria levam a uma predeterminada seleo de autores e obras; a um cnone. Afinal, todos aqueles que reclamam cnones pessoais, repetem modelos j estabelecidos, pois operam com os procedimentos de seleo, de excluso e incluso de autores e obras. O cnone pode ser apresentado com diversas funes, por exemplo, a de estabelecer uma ordem cronolgica, tambm pode apresentar determinados temas e registros que serviro de base para as histrias da literatura. O conceito formulado para esta tese evita uma abordagem ideolgica e prope outro caminho, o de investigar as estratgias discursivas que produzem os critrios para a formao ou negao de um cnone, sabendo que Bolao com seu humor, seu sarcasmo e sua ironia, mostra que sua eleio produto da sua vasta e variada leitura, mas que provoca um questionamento: a seleo de suas leituras est ligada sua concepo esttica e junto a essa concepo informa sobre sua prpria maneira de escrever? Ou ainda, o que os autores e as obras selecionadas por Bolao tem em comum? Essa sua seleo reflete uma concepo determinada de literatura? Ele estabelece um cnone normativo ou dinmico? Bolao relativiza todo tipo de cnone quando confronta seus autores e textos atribuindo-lhes valorizaes e apreciaes divergentes? Muda a sua leitura atravs dos anos? Qual a funo que tem a seleo de autores e textos em Bolao? O autor contribui para formao de algum cnone ligado a nacionalidade ou a universalidade? Ser que cabe tentar responder essas perguntas a partir de Harold Bloom, que afirma que o cnone um produto de uma luta para sobreviver atravs dos sculos, j que cada cultura e cada sculo seleciona de forma diferente? Segundo Bloom, o cnone constitudo por livros que sobreviveram graas a sua prpria fora, ele entende o cnone como um fenmeno que se autogera e/ou se autorregula e o leitor preparado ser eleito para captar e construir junto um cnone que resultado de um fenmeno elitista, subjetivo, individual, atravessando alguns sculos de disputa para estabelecer-se como matriz universal. Diferente do de Bloom, o cnone de Bolao produto de prazer, portanto arbitrrio, no parte do que est estabelecido, no equivale ao cnone geral (dito como universal em Bloom), ou de todos, mas sim da sua biblioteca particular, singular e nica, trazendo tambm aqueles que negaram o cnone, embora, hoje, faam parte dele. Bolao revela de onde parte suas eleies e como se consolida determinado cnone, no caso o argentino. O autor escreve no seu ensaio, Derivas de la pesada: Con Borges vivo, la literatura argentina se convierte en lo que la mayora de los lectores conoce como literatura argentina. Es decir: est Macedonio Fernndez, que en ocasiones parece un Valry porteo; est Giraldes, que est enfermo y es rico; est Ezequiel Martinz Estrada; est Marechal, que luego se hace peronista: est Mujica Linez; est Bioy Casares, que escribe la primera novela fantstica y la mejor de Latinoamrica, aunque todos los escritores latinoamericanos se apresuren a negarlo; est Bianco, est el pedante Mallea; est Silvina Ocampo, est Sbato, est Cortzar, que es el mejor; est Roberto Arlt, que fue el ms ninguneado de todos. Cuando Borges se muere, se acaba de golpe todo. (BOLAO, 2004, p. 24)

Bolno acredita que existe uma lacuna, defendida por ele como um pesadelo, uma rua sem sada, um cenrio a ser montado. Continua dizendo que na literatura argentina atual existem trs linhas, mas que no se aproximam ao bloco de autores da estirpe de Borges. Autores que so antiborgenianos e representam um retrocesso, pois so conservadores. Ele no nega a fora e a boa escrita desses autores. Na primeira linha aparece Osvaldo Soriano; na segunda Roberto Arlt e Ricardo Piglia e na terceira, que ele denomina como secreta, aparecem Osvaldo Lamborghini e Cesar Aria. Bolao no os considera assim to ruins, escrevem livros de fcil acesso ao pblico e que at podem ganhar mercado com isso, mas perdem em originalidade, nenhum deles to original quanto aos mencionados anteriormente. Faz uma crtica pesada a Lamborghini, e afirma que: Piglia me parece un de los mejores narradores actuales de Latinoamrica. Lo que pasa es que se me hace difcil soportar el desvaro gangsteril, de la pesada- que Piglia teje alrededor de Arlt, probablemente lo nico inocente en este asunto. (BOLAO, 2004, p. 27). De Charles Baudelaire a Franz Kafka, passando por Arthur Rimbaud, de Macedonio Fernandz a Allen Ginsberg, passando por Jack Kerouac, Jorge Lus Borges e Julio Cortzar, implicitamente, Bolao revelou em qual tradio literria estava inserido e qual seria o provvel caminho de sua escrita.Os grandes novelistas latino-americanos, segundo Miguel Carrera (2011), os perseguidores do romance total, recebiam uma influncia maior do romance anglo-saxo, mais pelo lado americano que o europeu. Garca Mrquez, Vargas Llosa ou Carlos Fuentes estavam muito mais interessados em Ernest Hemingway e William Faulkner do que em Alain Robbe-Grillet ou Nathalie Sarraute, enquanto Cortzar foi para Paris e traduziu Edgar Allan Poe.Bolao recebeu toda essa dupla influncia. Tanto a sua condio de admirador, como a sua condio de escritor latino-americano o levaram a interessar-se pela condio do romance como obra total. Mas no se pode negar a grande influncia recebida de Jorge Lus Borges que se soma s anteriores. Borges o grande negador do romance, pois considerava que o romance era um caminho narrativamente esgotado, em definitiva, superado pelo conto. A superioridade do conto em relao ao romance resultava evidente em Borges, porque a narrao de uma histria em funo de seus personagens j no tinha nenhum sentido. Uma histria j no podia ser contada, seguindo seus protagonistas e vendo como a trama se desenvolvia ao seu redor, ou seja, seguindo os moldes clssicos do romance. Borges inverteu a frmula, e seus personagens passaram a surgir de sua prpria histria. A trama se convertia em uma desculpa para o desenho dos personagens que ficavam subordinados a sua prpria peripcia. Para Bolao, o nico modo de conciliar as influncias seria desde a estrutura e por isso sua obsesso pela estrutura do romance. Considerava que o verdadeiro romance e a nica forma de avanar na narrativa, era mediante a apresentao de novas estruturas, mas estruturas que no podiam surgir da reordenao da trama. Seguindo as ideias de Borges, Bolao considerava que o romance j no podia viver da recomposio da trama, j que era um caminho que estava esgotado. Entre relatar uma trama de forma linear e faz-lo de forma fragmentada j no fazia diferena, assim como negar a trama ou ocult-la por meio de vrios narradores que contassem a histria desde vrias perspectivas.Bolao, ento, buscou um novo tipo de estrutura como as que aparecem nos contos de Borges, o desenho do personagem surge de sua trama, mas diferente de Borges, Bolao confia no romance, ainda que acredite que nele a trama no seja possvel. Como soluo, elabora uma estrutura onde os personagens se desenham de uma maneira borgeniana. Agora, os personagens no surgem da trama, mas de pequenos esboos de narrao sem nenhuma trama. Ao invs de fazer crescer os fatos narrados, os reduz ainda mais, por isso o tamanho da maioria dos seus romances seja curto. (CARRERA, 2011)A influncia de Borges aparece tanto na sua forma de criao, como no modo de encarnar a intertextualidade nos seus textos escritores/ leitores que vo atrs de outros escritores/leitores. s vezes, em Borges, os livros levam a morte, diferente em Bolao, onde so as histrias, o acaso e a vida em si mesma que podem levar a degradao. (AYALA, 2008, p. 101). Como Borges, Roberto Bolao tambm jogou com os fatos histricos, modificando apenas alguns dados como: datas, lugares e nomes. Bolao, um leitor assduo de Borges, recordou em um dos seus artigos de Entre parntesis, que o primeiro livro que comprou na Europa, precisamente em Madri, em 1977 e que guardava na sua biblioteca foi a Obra potica de Borges. Bolao lembrou que a leitura de Borges:[] era la nica lectura posible para m, la nica lectura que me poda distanciar efectivamente de una vida hasta entonces desmesurada, y la nica lectura que me poda hacer reflexionar, porque en la naturaleza de la poesa borgeana hay inteligencia y tambin valenta y desesperanza, es decir lo nico que incita a la reflexin y que mantiene vive a una poesa. (2004, p. 185)

Os textos de Bolao que fazem uma crtica ao cnone evitam uma separao universal estabelecida, dos que podem ou no figurar como cannicos, isso ele vai mostrando ao longo das suas narrativas ficcionais, assim como no seu livro Entre parntesis. Portanto, para Bolao, o cnone um resultado dinmico oriundo de um processo infinito de leitura e reescritas, onde o autor contemporneo subverte e recodifica as obras anteriores canonizando-as. Mas quem determina o cnone e sob que premissas? Lendo o que Bolao pretende como projeto artstico-literrio a resposta poderia ser, os leitores, as instituies educacionais, as editoras os crticos e os meios de comunicao massiva.A partir da relao entre cnone e poder, alguns autores, incluindo Roberto Bolao, partem de uma tendncia de desfazer, reorganizar e reescrever certas formas cannicas. A partir dessa tendncia, as mudanas nas formas literrias recebem influncias das transformaes que ocorrem no mundo scio-histrico-poltico, durante o qual a obra produzida, mudando assim a estrutura interna do prprio fazer literrio e sua tradio. Logo, o cnone se molda aos gneros literrios que so retomados em um determinado momento histrico, assim sendo, toda forma literria que se recria o que se deixa de fora do cnone implica uma significao determinada, as formas literrias que circulam entre as tradicionais esto carregadas de significao e por isso, seu uso estabelece uma determinada concepo de literatura. (PERDIGN, 2012)Quando se pensa a importncia da tradio literria no projeto artstico-literrio de Roberto Bolao, existem alguns aspectos importante a serem mencionados, alm de ter sido um grande leitor, ele se dedicava de forma exclusiva a escrever, no s apenas seus romances, mas ensaios e resenhas crticas, o que confere, a ele, maior entendimento do que possa figurar como literatura cannica, pois fazia uma anlise do lugar da sua prpria escrita em relao a literatura anterior e com a qual se identificava. Tambm no deixava de valorizar a literatura feita pelos seus contemporneos e pelos autores mais jovens. Alm de forte, e de ultrapassar o mbito de literatura com intuito de diverso, o projeto de Bolao rompe barreiras dentro de uma estrutura literria pr-estabelecida, seus contos e sobretudo seus romances, han roto las barreras que dividen a ambos gneros y han dado a la novela una agilidad, una sensacin de instantaneidad, casi da una visin cubista, y al mismo tempo la disciplina del relato. Essas palavras de Juan Antonio Masoliver Rdenas, que constam no seu artigo Palabras contra el tempo, complementam a ideia. (2008, p. 314)Necessitariam muitas pginas para citar outros tantos autores que fazem parte da tradio literria lida por Bolao, sobretudo que tipo de escrita lhe interessa defender, por isso Borges aparece como uma das principais influncias sobre o autor e sua forma de escrita, que foge a norma, carregada de uma multiplicidade de formas narrativas, hbrida e complexa, dando chance a uma nova leitura, ou reescrita das formas tradicionais que defendiam o bom gosto esttico hegemonicamente estabelecido como cannico. Continuando o debate, e partindo da informao de Jorge Herralde (2005, p.22) de que Roberto Bolao, assim como Perec, adorava listas e as convertia em histrias, o prprio Herralde, parafraseando o escritor, lista os autores que Bolao apreciava e conceituava como muito bons: Borges, Bioy, Bustos Domeq, Silvina Ocampo, Rodolfo Wilcock, Cortzar, Manuel Puig, Copi, Nicanor Parra, Enrique Lihn, Gonzalo Rojas, Jorge Edwards, s vezes Jos Donoso, Juan Rulfo, Sergio Pitol, Carlos Monsivis, Juan Mars, lvaro Pombo e Ricardo Piglia. Nomes bvios, mas que desenham uma cartografia precisa, de includos e excludos: por um lado, a ebulio da literatura, por outro, a guerra contra o clich. Bolao tambm admirava e lia com paixo e generosidade autores de sua gerao (autores que viveram o terror dos anos de chumbo e a poca dos traumas posteriores s ditaduras) e os autores da gerao dos anos de 1990, alguns dos escritores que apreciava: Fernando Vallejos, Jorge Volpi, Alan Pauls. Pedro Lemebel, Javier Maras, Enrique Vila-Matas, Rodrigo Fresn entre outros. Esta lista pode revelar como Bolao percebia o cnone, no s o latino-americano, mas tambm o europeu, e o que esperava desses autores, talvez uma literatura dentro da literatura, compartilhando um tema ou uma forma comum de faz-la. Sobre Pedro Lemebel, escreveu:Lemebel no necesita escribir poesa para ser el mejor poeta de mi generacin. Nadie llega ms hondo que Lemebel [] es valiente, es decir sabe abrir los ojos en la oscuridad, en esos territorios en los que nadie se atreve entrar. [] reconoc en Lemebel el espritu indomable del poeta mexicano Mario Santiago [] y entonces supe que ese escritor marica, mi hroe, poda estar en el bando de los perdedores pero que la victoria, la triste victoria que ofrece la Literatura (escrita as, con maysculas), sin duda era suya. (2004, p, 65-66)

Pedro Lemebel, autor de vrios livros, entre eles, Tengo miedo Torero, um dos escritores que est inserido na abundante produo entorno da ditadura cvico-militar, das violaes dos direitos humanos; produo, muitas vezes pensada, durante os anos de 1990, quando Chile vivia o momento de democracia neoliberal. A gerao dos anos de 1980, a qual Bolao fazia parte em termos etrios e formativos, soube muito bem como processar as influncias da tradio e ao mesmo tempo representar, atravs de uma diversidade de estratgias de escrita, as diferentes frequncias que a realidade circundante demandava. Uma vez resolvido o dilema, no s a literatura, mas toda cultura chilena enfrentou uma continua exposio artstica entorno das violaes cometidas em relao aos direitos humanos. (OLIVARES, 2010, p.73)Bolao tinha muito apreo pela escrita de Pedro Lemebel, segundo ele, um dos escritores mais brilhantes, o melhor poeta da sua gerao, ainda que no escrevesse poesia. Lemebel foi dos poucos escritores que no buscavam a respeitabilidade, mas sim a liberdade. Ningum chegou mais fundo que Lemebel, que ao mesmo tempo mostrava doura e uma sensao de fim de mundo aliada a um ressentimento feroz. Bolao reconhecia em Lemebel o esprito indomvel do seu amigo poeta mexicano, Mario Santiago Papasquiaro. Segundo ele, Lemebel foi valente e soube abrir os olhos na escurido, dentro de territrios que ningum se atreveu entrar. No foi o primeiro homossexual dentro do Parnaso chileno, mas foi o primeiro travesti que apareceu no cenrio, sozinho, iluminado por todos os holofotes e que falou ante um pblico literalmente estupefato: A m no me perdonan que tenga boca, Robert, me dice Lemebel al otro lado de la lnea telefnica. Santiago resplandece con la iluminacin nocturna. Parece la ltima gran ciudad del Hemisferio Sur. Los coches pasan bajo mi balcn y Pinochet est preso en Londres. Cuntos aos faltan para el prximo? A m no me perdonan que recuerde todo lo que hicieron, dice Lemebel. Pero quieres saber lo que menos me perdonan, Robert? No me perdonan que yo no los haya perdonado. (2004; p. 77)

Do ponto de vista literrio, Bolao tambm considerava Juan Villoro, Rodrigo Rey Rosa, Enrique Vila-Matas, Horacio Castellanos Moya, Javier Cercas, Javier Marias, Rodrigo Fresn, Alan Pauls, como um seleto grupo, pelo fato de que todos so escritores de obras importantes e que escreveram suas narrativas a partir da prpria experincia pessoal e cultural. Um grupo misto de escritores latino-americanos e europeus, sem importar essa diviso, porque todos compartilham a mesma lngua. Bolao acabou tomando para si as dores dos jovens escritores marginalizados, pois com uma aparente e deliberada provocao e prepotncia, nutriu um sutil ressentimento em relao ao panorama literrio que o rodeava, pois o que queria era estar alheio a qualquer relacionamento com o poder e, sempre que podia, afirmava que tinha um compromisso consigo mesmo, no seu discurso, proferido em Caracas quando do prmio Romulo Gallegos, falou do seu compromisso com a literatura, que a ptria de um escritor no somente sua lngua, mas as pessoas que ama e muitas vezes a ptria de um escritor no so apenas as pessoas que ama, mas sua memria e que a escrita de qualidade seria colocar a cabea na escurido e saber saltar no vazio, compreender que literatura um oficio perigoso. (2004, p.36)Em sua ltima apario pblica, a conferncia em Sevilha, Roberto Bolao defendeu sua gerao e foi generoso com os poetas da nova gerao quando frente a sua prpria pergunta, de onde vinha a nova literatura latino-americana, respondeu: Venimos de la clase media o de un proletariado ms o menos asentado o de familias de narcotraficantes de segunda lnea que ya no desean ms balazos sino responsabilidad. [...] antao los escritores provenan de la clase alta o de la aristocracia y al optar por la literatura optaban, por el escndalo social, por la destruccin de los valores aprendidos por la mofa y la crtica permanente. Por el contrario, ahora, [] los escritores salen de la clase media baja o de las fila del proletariado y lo que desean [] es un ligero barniz de respetabilidad. [] los escritores ahora buscan el reconocimiento no de sus pares, pero de lo que suele llamar de instancias polticas, los detenedores de poder [] y a travs de ste, el reconocimiento del pblico, es decir la venta de libros [] (2004,p. 311)

Jorge Volpi afirmou em seu artigo Bolao, epidemia (2008a), que todos os escritores jovens latino-americanos, com 38 anos, tinham um ponto e um vnculo em comum, todos se orgulhavam dele, todos o admiravam, todos eram Bolao. Para Bolao pareceria estranha essa admirao, porque o mais curioso era que quem tinha mais de 39 anos, com exceo de Fresn, Gamboa e Paz Soldn, no geral, no admirava Bolao, ou o admirava com ressalvas. Nesta poca onde as fronteiras geracionais no tm importncia, que desconfia das classificaes dos livros, dos manuais acadmicos, dos crticos aduladores, que renega o cnone, resulta que os escritores com menos de 40 anos amam Bolao com paixo desenfreada. Diante de um fenmeno que se aproxima ao paranormal e com inegveis pinceladas religiosas, cabe a pergunta, por qu?O prprio Volpi responde dizendo que para ele, Roberto Bolao publicou trs obras maestras: Estrella distante, Los detectives salvajes e Nocturno de Chile que culminaram em seu romance pstumo, 2666. Nessas obras pode-se encontrar o melhor que j tenha sido escrito sobre e na Amrica Latina. Bolao foi aquele quem criou uma obra ampla, rica e variada, na qual cada escritor, crtico e leitor podem encontrar algo novo, que estremea, pois Bolao escreveu em um estilo cheio de acumulaes, de polissndetos, de oraes coordenadas e subordinadas caticas, um estilo to fcil de admirar e imitar e ainda assim, difcil. Para os amantes das histrias, os defensores da aventura, os que so obsessivos pela trama, ficam fascinados pelos seus relatos circulares e um tanto onricos, cheios de detalhes imprevistos, de digresses e vivncias em outros mundos, de incurses paralelas, cheios, inclusive, de uma espcie de suspense que ultrapassa a estrutura clssica do romance policial. Uma parte reduzida e cada vez mais poderosa que faz parte da seita de adoradores dos livros que falam sobre outros livros, os aficionados (doentes) pela literatura e pela metaliteratura de Vila-Matas e Piglia, tambm encontram em Bolao uma boa dose de citaes, de dissimuladas referncias literrias, de metforas eruditas, de meditaes sobre escritores excntricos. Existem at, aqueles que gostam da experimentao formal e sentem que Bolao se arriscou nas formas, usando paradoxos, ambiguidades sintticas, por causa do seu amor pela certeza e pelo caos ao mesmo tempo. Depois desse trajeto pelo o que pode conformar um cnone literrio para Bolao, e com todo esse apanhado de escritores, ainda importante salientar que, no seu livro de contos, Putas asesinas, o autor recupera a imagem do escritor entre o momento da escrita e a paixo como leitor. A parte intitulada, Carnet de baile[footnoteRef:8] uma das que pode mostrar bem o que ele lia e de onde parte sua escrita. Em outro ensaio, Los mitos de Chtulhu, (presente na obra El gacho insufrible), Bolao traa com muita ironia, acidez e lucidez, por onde caminha a literatura na atualidade, apresentando uma onda de escritores preocupados com o mercado em detrimento da boa escrita.[footnoteRef:9] [8: Ver Anexo III] [9: Ver Anexo IV]

Segundo Jorge Volpi (2008a), Bolao conhecia muito bem os autores que trazia com ele, os que admirara e os que odiava e geralmente eram os mesmos. Negava e desprezava os espanhis, mas os invejava ao mesmo tempo. Negava tambm os russos, porque o deixava sem cho. Ficava entediado com os alemes; os franceses ele sabia de cor e aos ingleses no dava muita ateno. J os autores latino-americanos, ao mesmo tempo que o irritava, tambm o comovia. Volpi completa o seu pensamento dizendo que: Cada maana, luego de sorber un cortado [...] Bolao dedicaba un par de horas a prepararse para su lucha cotidiana con los autores del boom. A veces se enfrentaba a Cortzar, al cual una vez lleg a vencer por nocaut en el dcimo round; otras se abalanzaba contra el do de luchadores tcnicos formado por Vargas Llosa y Fuentes; y, cuando se senta particularmente fuerte o colrico o nostlgico, se permita enfrentar al campen mundial de los pesos pesados, el destripador de Aracataca, el rudo Garca Mrquez, su nmesis, su enemigo mortal y, aunque sorprenda a muchos su nico dios junto con ese dios todava mayor, Borges. [] creci a la sombra de esa pandilla todopoderosa y aparentemente invencible, esos superhroes vanidosos [] Bolao los ley de joven, los ley de adulto y tal vez los hubiese reledo de viejo: nombrndolos o sin nombrarlos, cada libro suyo intenta ser un respuesta, una salida, una bocanada de aire, una rplica, una refutacin, un homenaje, un desafo o un insulto a todos ellos.[footnoteRef:10] (VOLPI, 2008b, p. 193) [10: Destaco a frase em itlico.]

A persistncia na construo de um projeto de escrita que transforma a biografia de artista, junto com as sries de nomes e de obras, em instrumento de composio de uma linhagem, projeta seus textos para o espao polmico da reformulao cannica. Uma projeo sustentada em uma potica que transita pelo prazer da leitura, pela ironia e pelo humor que acaba criando uma identificao entre autor e leitor. (MANZONI, 2008, p. 342)Roberto Bolao imprimiu uma outra concepo de literatura, que no abandona a tradio ou o que se entende como norma literria dentro do cnone, mas que tambm traz outras formas de escrita que pertencem a ordem de experimentao e da ruptura, como as propostas pelos movimentos de vanguarda, a de ser plural, aquelas que abolem ou transpassam o limite das fronteiras dos gneros, a extino das autonomias e das especificidades, assim como a diluio de arte em vida fragmentada e impotente ou exatamente o contrrio. Em um dos seus ensaios, Bolao esclareceu sua viso: de que a alta literatura se assemelha a sua ideia de cnone e dos livros que considerava como clssicos:Por qu un autor se convierte en un clsico? Ciertamente, no por lo bien que escribe; de ser as el mundo de la literatura estara superpoblado de csicos. Un clsico, en su acepcin ms generalizada, es aquel escritor o aquel texto que no slo contiene mltiples lecturas, sino que se adentra por territorios hasta entonces desconocidos y que de alguna manera enriquece (es decir, alumbra) el rbol de la literatura y allana el camino para los que vendrn despus. Clsico es aquel que sabe interpretar y sabe reordenar el canon. Normalmente su lectura, segn los bobitos, no es considerada urgente. Tambin hay otros clsicos cuya principal virtud, cuya elegancia y vigencia, est simbolizada por la bomba de relojera, una bomba que no slo recorre peligrosamente su tempo sino es capaz de proyectarse hacia el futuro. (2004, p.166)

Para ele, a concepo de literatura era buscar lugares desconhecidos, tanto em relao ao que, e como se quer dizer algo sem destruir a ideia de literatura como obra de arte, que causa reflexo e estranheza, caracterizada pela ausncia de uma direo especifica e pela expanso de suas mltiplas possibilidades estticas que se desdobram. A escrita de qualidade para o autor era: saber meter la cabeza en lo oscuro, saber saltar al vaco, saber que literatura es um oficio peligroso. (2004, p.36), alm disso, permanecer lcido, buscando a renovao, a readaptao das formas e o novo que podem ser mantidos dentro de um circuito cannico, posto que original, legtimo, comunicvel e denunciador.Ainda que o seu projeto artstico-literrio parea ser to aberto, no sentido intertextual, polissmico e metalingustico, tentando violar as normas das estruturas dos vrios gneros, existe sim um conjunto de uma obra problemtico, que pode ter como causas: a sua representao, o modo de como se escrever e se faz arte que, mesmo criticando os poderes dominantes, pode vir a ser cannica, pois um dos efeitos mais fortes que sua obra produz, provem ora da contradio entre esttica e tica, ora da aproximao de ambas, passando pelos riscos que assume ao mostrar sua capacidade de transgredir e lutar contra as convenes e abrir novas possibilidades para a arte, neste caso, a literatura. Esse tipo de artifcio faz de Roberto Bolao um autor cannico e anticannico ao mesmo tempo, pois quando apresenta uma nova forma de desconstruo, o referente literrio desaparece, inclusive a origem que a motivou, produzindo um novo texto, onde sempre fica claro o referente literrio. A princpio, Bolao no acreditava em um cnone e suas hierarquias, pois estava mais ligado s diferenas, s margens, aos gneros massivos e perifricos, portanto mais ecltico. Nos seus textos existe um desejo infinito de experimentar as diversas forma e frmulas, tanto na seleo de suas leituras, como na sua maneira de narrar.Resumindo o at agora exposto, para Roberto Bolao no existiam as literaturas nacionais, universais ou cannicas e sim literaturas que apreciava ou no, assim como no existia escritura maior ou menor, mas sim aquela que caiu no seu gosto, na biblioteca de sua preferncia. Alm disso, ele no criou um cnone estabelecido pela histria, ou pelas escolas literrias, mas foi fiel ao lema, onde cada autor produz seus antecessores, mesmo cometendo um parricdio da tradio literria que se d atravs da recodificao, da transmutao e da releitura. H estudiosos que enxergam Roberto Bolao de 2666 como algum que chegou perto do abismo ou que estava de frente a um espelho opaco, ainda existem os que consideram, esta obra, uma ofensa, uma sabotagem ou uma negao ao boom. (VOLPI, 2008a), portanto uma crtica de aceitao e rejeio aos escritores que fizeram parte deste movimento literrio. O prprio Bolao ratificou e esclareceu tal percepo dizendo que:El territorio que marca mi generacin es el de la ruptura. Es una generacin muy rupturista, es una generacin que quiere dejar atrs no slo el boo