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    LA VILLE AU CINMAThierry Paquot e Thierry Jousse

    La ville au cinma uma obracoletiva sob a direo de Thierry Paquote Thierry Jousse, que rene artigos sobo formato de uma enciclopdia. umaobra de referncia que se apresentacomo um convite a se perder nacentenria relao entre cidade ecinema. Convite confirmado pela ltimapalavra dos diretores da obra, dita no

    ltimo pargrafo do mode demploi:aprs la lecture dum article, fermezles yeux et laisser venir vous quelquesimages secrtement mmorises.

    A cidade desde o incio teve um foroprivilegiado no cinema, maisespecificamente a metrpole, a cidadegrande que explodiu no final do sculoXIX e que servia de cenrio para osprimeiros experimentos, com a mquinageradora de imagens em movimento.

    A relao entre a metrpole e ocinema se estabeleceu j de incio e a

    revoluo que ambas as experinciasprovocaram na vida urbana e na arterespectivamente, logo iria transbordar parauma contaminao mtua. O cinematorna-se, no s, a melhor maneira de

    representar a vida da e na metrpole, comotambm o imaginrio cinematogrficodemonstra-se uma potncia inesperada naremodelao desta mesma vida.

    Esta relao particular entre cidade ecinema foi percebida pelo filosofo alemoWalter Benjamin, que no ano de 1935,publica o ensaio Luvre dart lpoque de sa reproductibilittechnique, no qual discorre sobre a estreitarelao entre o cinema e a vida nasmetrpoles ressaltando a capacidade docinema ser a melhor forma de arte pararepresentar as metrpoles. Benjamin, poresta razo, figura na enciclopdia comoreferncia recorrente entre os autores.

    A proposta do livro imensa, noapenas pelo exaustivo trabalho, maspelas possibilidades de leitura e pelamultiplicidade de percursos que cadaleitor poder construir. uma grandecolagem polifnica de textos sobre otema cidade e cinema. Cada artigo trazdados, indicaes, informaesrelevantes, que em seu conjunto do aoleitor uma viso ampla. Cada verbetetraz dados especficos sobre os temasque cercam e relacionam acinematografia e o urbanismo de quasetodo este sculo tarefa herclea queos autores no pretendem esgotar.

    O aprofundamento e ocomprometimento da maioria dosautores com seus temas resultam emartigos bem desenvolvidos, onde apaixo pela temtica transparecenaturalmente, permitindo o

    compartilhamento no s da informaocomo tambm, e principalmente, dacompreenso da complexidade sedutoradas screen-cities utilizando o termocitado por Paquot em sua introduo.

    R E S E N H A SR E S E N H A SR E S E N H A SR E S E N H A SR E S E N H A S

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    Mas apesar da viso panormicaque um sculo de atividades sugeririam,o livro utiliza, conforme cada parte,diferentes lentes de aproximao sobre

    o cinema e a cidade para nelas deter-se, sobre verbetes privilegiados, dandoassim consistncia e detalhes a cadauma destas partes. Cada artigo trabalhasob uma trade cidade x cinema xverbete, seja este verbete um gnero,uma escola, um lugar, personagem, umcineasta, uma forma de representao.

    A estrutura da obra corresponde estrutura clssica de uma enciclopdia,trata de um domnio preciso (cidade ecinema) sendo organizada em artigosapresentados em ordem alfabtica.

    Apresentada por um modedemploi, redigido pela dupla deautores ressaltando o objetivo de umaenciclopdia: faire le point sur umthme ou um savoir. Texto curto edireto, o mode demploi parteimportante para a compreenso daconfigurao da obra e auxilia noprprio manuseio da enciclopdia.

    A introduo dividida em doistextos, cada um elaborado por um deseus autores:Des villes et des filmsporThierry Jousse (cinaste et ancien

    rdacteur en chef des Cahiers ducinma) e Cinma et aprs-villeporThierry Paquot (ph ilosophe,

    professeur des universits, diteur dela revue Urbanisme). Nesta introduo,os organizadores j anunciam o noesgotamento do tema. Assumemalgumas ausncias, justificam, ressaltame demonstram a visvel e extensarelao entre cinema e cidade.Introduzem e anunciam termos erelaes dentre os quais alguns iroreaparecer em certos artigos

    componentes do corpo da obra como:cinefilia e urbano, filmes-cidades,cidades-filmes, cinema esta na cidadee da cidade, cidade como labirinto,cidade como caleidoscpio, cidade

    fragmento, cinema-espao-tempo,cidade como territrio complexo...

    A apresentao seguida de umainteressante entrevista feita pelos

    diretores da obra com o cineasta EricRohmer, chamada Um cinaste dansla ville. Nesta entrevista, Rohmerdefine o cinema como uma arte doespao. Entre outros assuntos, Rohmerdeixa clara a sua crtica ao cinema atualque provoca o desaparecimento doespao pela utilizao de umenquadramento fechado, sufocante.Declara a essencialidade daarquitetura ao cinema, comenta sobrea abordagem do espao urbano pelaNouvelle Vague como conseqncia da

    inteno de mostrar o que viam perantesi, sobre a transformao do espaourbano em espao cinematogrfico ecom grande naturalidade descreve seuprocesso de pesquisa das locaes pararodar seus filmes e documentrios,comentrios sobre as cidades filmadase sobre a escolha destas cidades.

    O texto seguinte Du promeneurau spectateur, de Jean-Louis Comolli.Texto primorosamente desenvolvido, noqual Comolli aproxima as figuras do

    flaneur, do promeneur figura do

    spectateur. Confronta o mundo visvel eo mundo filmado, ressalta suasdiferenas, contradies e chega aopalimpsesto: a cidade habita a cidade.Com uma complementaridadeinteressantssima a entrevista de Rohmer,Comolli coloca o cinema como arte dotempo. Partimos ento para o corpo daobra com a bela idia de que o cinema a arte do espao e a arte do tempo, oupor que no: a arte do espao-tempo.

    Na abordagem e dilogo entre ostemas, o livro obedece a um projeto

    ambicioso e bem sucedido de umaviso panormica sobre a relaocidade e cinema, sendo constitudo porseis partes: 1) Filmer, Montrer,

    Rpresenter composta por 15 artigos

    (Arch it ec ture, Cadr age, Dcor,Hi st oi re , Lumire, Montage ,Musique, Urbanisme...); 2) Genreset Ecoles composta por 16 artigos

    (Comdie Musicale, Documentaire,Expressionisme, Film noir, Guerre,

    Nouvelle Vague, Science-fict ion,Western...); 3)Lieux et personnages composta por 30 artigos (Aroport,

    Bidonvile, Escalier, Gang, Metro,Politicien, Prostitue, Voisinage...);4) Villes Cinematographiques composta por 55 cidades; 5) Cinastesurbains composta por 50 nomes e6)Annexes contendo informaesespecificas sobre os autores, umabibliografia indicativa composta por

    Thierry Paquot, um index de filmescitados e a table de matires.

    Os artigos so escritos por 88autores das mais diversas formaesdentre estes cineastas, arquitetos,urbanistas, socilogos, crticos decinema, historiadores, antroplogos,gegrafos e jornalistas.

    A primeira parte do livro, Filmer,Montrer, Representer, talvez atmesmo pela pluralidade dos verbetes(architecture, cinphilie, numrique,

    porsuite, terrorisme...) apresenta-se

    de forma inconstante. Este blocoadquire uma irregularidade emconseqncia da no sustentao datemtica proposta por parte de algunsautores sob a trade j citada: cidade xcinema x verbete. Certos artigosescapam vez por outra, por umaabertura demasiada da abordagem,afastando-se assim, do fio condutor detoda a obra ou ento, mesmo por umaaproximao excessiva a um doscomponentes da trade, alguns artigoschegam a uma especificidade valorosa,

    mas que acaba resultando tambm, emum distanciamento deste fio condutor.Dentro deste primeiro bloco podemosaqui destacar as belas construes deJean-Yves de Lpinay (Archives et

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    cinphilie) e de Stphane Bouquet(Thorie Anglo-Saxonne, tema que primeira vista parece estar fora docontexto, mas logo nas primeiras linha,

    a autora situa magistralmente como arelao cidade/cinema ponto central dodesenvolvimento da teoria anglo-sax).

    A segunda parte, Genres et Ecoles,tambm apresenta pontos altos e baixos,caracterstica comum a obras compostaspor textos de diversos autores. Nestaparte, trs verbetes sobressaem por umaparente afastamento:Banlieue, verbeteque a princpio estaria mais bem localizadono terceiro blocoLieux et personnages;

    Jeux Vdeo, que gera um inicialestranhamento, assim como o verbete

    Manga, ambos escritos pelo mesmoautor.

    Annie Fourcaut, autora do artigosobre oBanlieue, consegue, utilizandoa histria do banlieuee de sua relaocom o cinema, deixar claro que obanlieue vai do dcor ao gnero,

    justificando e clarificando a localizaodo verbete neste bloco. Oacompanhamento do raciocnio daautora se da gradualmente com aleitura das oito subdivises do texto,tendo como bloco de fechamento la

    naissance dun genre: le film de cit.Jeux vdeo, apesar de ter uma

    interessante relao com o cinema inmeros jogos so lanados apsestrias de filmes de ao e ficocientifica, ou como j ocorreramalgumas vezes, alguns jogos ganhaamadaptaes cinematogrficas o textoacaba deixando a abordagem darelaojeux vdeo/cinema escapar. Aaproximao deste mesmo tema coma cidade um grande nmero destes

    jogos desenvolvem-se em ambientes

    urbanos o vis privilegiado peloautor, Erwan Hiniguen.

    O artigo sobre Manga acabareafirmando o estranhamento inicial. Aabertura dada pelo autor, que toca diversas

    obras de animao ocidental e acabafocando dois exemplos orientais: Akirade 1988 (filme de animao japonsbaseado em um manga de Katsuhiro

    tomo) e Metropolis de 2001 (filme deanimao japons baseado em ummanga homnimo de Osamu Tezuka).Esta escolha do autor, somado ao fatodo termo manga ser ele, hoje, consideradocomo polissmico, englobando osdomnios da bande-dessine, dascaricatures de presse et les dessins-animese ainda estar sendo rediscutidopor no ter nada a ver com sua definioprimeira, acaba afirmando o que aprincipio seria mais evidente, a escolhado gnero Filmes de Animao.

    Ainda nesta segunda parte, trsartigos se destacam pela clareza, pelototal domnio da temtica demonstradapelos autores, pela capacidade destestextos de reter a ateno do leitor epraticamente abarcar toda extenso dostemas:Documentaire, escrito por Jean-Louis Comolli eExpressionismeescritopor Stphane Fzessry. Thierry Paquot,trabalhando sobre Science-fiction etUtopie, deixa clara sua paixo pelarelao cidade/cinema associando-a auma outra temtica cara ao autor: a utopia.

    Lieus et Personnages, terceiraparte do livro, ganha um conjunto detextos mais homogneo, mais regular,da qual podemos ressaltar os artigos

    Metro Parisien, do prprio Paquot,Portde Aud Math, Prostitue dePhilippe Simay, Souterrainde LoicBags et Usinede Thrse Evette.

    A quarta parte do livro VillesCinmatographiques mostra-se decerta forma, surpreendente. Algunsartigos surpreendem pela riqueza deinformaes e de detalhes da relao

    destas cidades especficas com acinematografia, alm da transparnciadas relaes estreitas e particularesque de certos autores demonstram terpor estas cidades.

    O desenvolvimento e astransformaes paralelas destas cidadese do cinema ampliam a viso do leitor,fazem-no expandir o Atlas das cidades

    cinematogrficas inclundo as no obviasAbidjan, Bamako, Ouagadougou,Saravejo, Tel-Aviv (que criada quaseque simultaneamente com a invenodo cinema) e o trio Glasgow/Liverpool/Manchester.

    Os artigos que alcanam comgrande mrito uma construoprimorosa da relao cidade/cinemaso: Berlinde Stphane Fzessry,

    Bruxelles/Anvers de Marc Goss,Budapest de Gabor Erss, BuenosAiresde Gilles Rousseau,Helsinkide

    Peter Von Bagh, o apaixonado einspirado texto sobre Marseille deJean-Louis Comolli assim como o timotexto de Giuliana Bruno sobreNaples.

    O quinto bloco Cinastes Urbains,assim como o bloco anterior, alcana umamaior regularidade. Com algumasausncias percebidas, como por exemploa do cineasta argentino Fernando Solanas,os cinqenta cineastas selecionados socompetentemente abordados por cadaum dos autores. Claude Eveno discorresobre Michelangelo Antonioni destacando

    a sua produo particularmente voltadapara a cidade durante a dcada de 60,sua viso da cidade como paisagem quetorna-se ento mundo. Thierry Jousseescreve sobreBertoluccie suas carascidades Parme, Rome, Paris, Pkin com as quais mantinha relaesespecificas. Ainda Jousse, nos timosartigos sobre Guy Debord e JacquesDemy, ressalta a importncia da cidadenas vidas e obras destes cineastas.

    Phillipe Azoury demonstra umprofundo conhecimento e sensibilidade

    obra do cineasta Louis Feuillade,assim como Marco Bertozzi sobreFellini, Jean-Sbastien Chauvin sobreWin Wenders e Juliette Cerf sobreAgns Varda.

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    A edio caprichosa, noadquirindo as dimenses clssicas de umaenciclopdia (grande e pesada). A obrapor isso acaba propiciando um fcil

    manuseio. A disposio dos artigossubdivididos em blocos temticos,precedidos por um mode demploi, efazendo parte do anexo, um index de

    filmes citados seguido pela table dematires, facilitam o acesso obra. Comrelao s imagens, houve a preocupaocom a reproduo de fotogramas dosfilmes em boa qualidade e em bomtamanho apesar das reprodues seremfeitas em preto e branco.

    Publicar um livro com essaamplitude temporal num panorama da

    cultura cinematogrfica e urbansticamundial onde no se encontram outrosexemplos de outros trabalhos do mesmoporte uma obra que poder gerarpolmicas, pois ir enfrentar, da partede alguns leitores, toda a expectativaprvia que inevitavelmente nasce daausncia de outras fontes de mesmocarter na lngua francesa.

    O livro se sai com galhardia dessedesafio configurando-se, desde o seulanamento, como um clssico que setornar certamente indispensvel, tanto

    aos profissionais como a qualquerinteressado na temtica.

    A enciclopdia apresentainteressantes e democrticas aberturas,como por exemplo, a incluso dacidade de Bollywood, do cineastaJohn Carpenter e do gnerojeux vdeodemonstrando um olhar no formatado,uma viso no totalizadora que poderiater sido escolhida facilmente,privilegiando cineastas, gneros, escolase cidades clssicas e j reconhecidas.

    Por isso os leitores encontraro, no

    livro de Jousse e Paquot, um material depesquisa frtil, que permitir um conjuntode novas abordagens e rumos deinvestigao, assim como a abordagemde temas j clssicos a respeito do cinema

    e da cidade. A maioria dos autores,incluindo os dois diretores, no deixamde contribuir mais ainda para estes novosrumos de investigao e de abordagem,

    atravs dos vrios questionamentosintroduzidos pelos artigos.

    A obra serve como fonte deconsulta para cineastas, arquitetos,urbanistas, historiadores, socilogos,antroplogos, gegrafos, estudantes,pesquisadores, e tambm, para todoaquele cidado que, assim como osautores, seja um apaixonado pelacidade e/ou pelo cinema.

    Adriana CalaDoutoranda no PPG-AU

    Universidade Federal da [email protected]

    Ttulo: La ville ao cinmaAutores: Jousse, Thierry; Paquot, Thierry(org). Editora: Paris, Cahiers du cinma/LEtoile, 2005

    A IMAGEM-TEMPOGilles Deleuze

    A escolha do tema para estenmero da revista Rua motivou estabreve resenha do livro de GillesDeleuze, pensador/filsofo e tambm

    cinfilo: A Imagem Tempo. Trata-sede uma inquestionvel contribuio cultura contempornea enquantoTeoria do Cinema; um livro

    simultaneamente de filosofia e decinema e que, direta ou indiretamente,pode interessar diferentes reas deconhecimento, inclusive arquiteturaque mantm uma interface com aproduo cinematogrfica em nvel decenografia, tanto a analgica de cunhotradicional, quanto a digital que resultade avanos tecnolgicos.

    Traduzido e publicado no Brasil em1990 a nova edio de 2005, aps uminexplicvel e longo intervalo de esperapara uma obra to importante, reafirma

    no somente a importncia que comportae sua atualidade, mas tambm, traz emseu bojo o original repertrio conceitualda Lgica da Multiplicidade(pensamento rizomtico), particular-mente, em relao ao conceito Tempo,criando, assim, um inalienvel e originalcomplemento ao seu livro anterior

    Imagem-Movimento, tambm de 1985.Trata-se de uma obra cuja

    abordagem complexa no diminui oprazer de sua leitura, pois, considera ocinema como uma forma de pensar e

    criar, no universo da Arte, interagindocom as outras formas de pensar e criar,isto , com a Cincia e a Filosofia.Concepo em que cada uma destasformas mantm sua especificidade(autonomia), no havendo, portanto,nenhuma predominncia de uma sobreas outras, apesar das pretenseshegemnicas da Cincia. O pensamento ento entendido, por Deleuze, comouma Heterognese.

    O Cinema, bem como a Arquiteturaentre outras formas de expresso

    artstica, produzem obras de arteenquanto blocos de sensaes e, nocaso do Cinema, essas sensaes vomuito alm da relao Imagem-Movimento, razo que levou o autor a

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    produzir o segundo tomo:A Imagem-Tempo. Neste texto, Deleuze procuracaracterizar os limites expressivosdessa relao Imagem-Movimento, e

    isto, em decorrncia do vnculo que omovimento mantm na interface doespao extensivo tridimensional, pois,como afirma o autor, com a introduoda relao Imagem-Tempo: o crebroperdeu as coordenadas euclidianas eemite agora outros signos. Para almdo movimento e seus opsignos esonsignos, emergem os cronosignos, oslektosignos1e os noosignos(a mente,o pensamento). E mais, o autor procuramostrar que o cinema um lugarprivilegiado para promover

    multiplicidade de relaes temporaisem diferentes dimenses, ou seja, otempo enquanto Passado e Presente,Memria (Durao) e Acontecimento(Instante), percorrendo, assim, a trilhado paradoxo traado por Bergsonenquanto contraponto ao tempocronomtrico do movimento, ou seja, opassado coexistindo com o presenteque passa num Devir-outro.

    Enquanto percepo, lembraDeleuze que, como j advertiaBergson, ns no percebemos a coisa

    ou a imagem inteira, percebemossempre menos, apenas aquilo queestamos interessados em perceber, eisso, devido aos nossos interesseseconmicos, nossas crenasideolgicas, nossas exignciaspsicolgicas. Questo esta tambmcolocada por Foucault visando adesconstruo fenomenolgica darelao Sujeito/Objeto, e isso,evidenciando a indissocivel relaoque formam a trade: Poder/Saber/Subjetivao. Entretanto, a questo da

    percepo no se esgota no universoque emana do mundo da representao,da opinio (doxa) e dos sentimentossedimentados do senso comum, mas nacriao de novas percepes que ele

    denomina de Perceptos, os quaistambm pressupem Afetos, ou seja,novas relaes e conexes perceptivase afetivas, no sentido de

    Acontecimentos artsticos e estes noso simples percepes nemsentimentos codificados, mas criaes.O cinema contemporneo com seusmestres e suas realizaes tempromovido um conjunto de Percetos eAfetos, particularmente, no tocante sImagens que cria e as dimensestemporais que elas expressam.

    Comentando criadores e seusfilmes e isso, sob a gide da Imagem-Tempo e demonstrando umaextraordinria vivncia com o cinema,

    Deleuze faz questo de ressaltar quea prpria teoria filosfica deve serentendida como uma prtica deconceitos e necessrio julg-la emfuno das outras prticas com as quaisos conceitos do cinema se relacionam.Pois, a teoria do cinema no tem porobjeto o cinema, mas, os conceitos docinema, que no so menos prticos,efetivos ou existentes que o prpriocinema. Analisando, um extensoconjunto de produes do cinemacontemporneo, emergem conceitos

    (incorporais) criados da experinciaemprica do fazer cinema e que seatualizam nas prticas discursivas, nosentido epistemolgico, enquantoFilosofia.

    A crtica maior que Deleuze faz civilizao da imagem no sentidogeral e, especificamente, produocinematografia, diz respeito condioredutora da imagem em clich, e isso,porque ela se insere em encadeamentossensrio-motores, organizando einduzindo seus encadeamentos, pois,

    como se afirmou antes, nuncapercebemos tudo o que h na imagem,e justamente por isso que o clichfunciona como encobrimento daimagem ou parte dela. E ao mesmo

    tempo, a imagem est sempre tentandoatravessar o clich, fugir dele, pois, hsempre a possibilidade de seacrescentar imagem outros clichs.

    A propsito, lembra:[..] s vezes preciso restauraras partes perdidas, encontrartudo o que no se v na imagem,tudo o que foi subtrado dela

    para torna-la interessante. Mass vezes, ao contrrio, preciso

    fazer buracos, rarefazer aimagem, suprir dela muitas coisasque foram acrescentadas paranos fazer crer que vimos tudo.

    preciso dividir ou esvaziar paraencontrar o inteiro.

    Lembra tambm que os prprioscriadores de filmes nem sempre tmconscincia que a nova linguagemdeve rivalizar com o clich.Acrescentar alguma coisa a ele, ou atmesmo, parodi-lo, no o suficiente.Seguindo a intuio bergsoniana, diz eleque no basta juntar imagem tico-sonora, foras apenas de naturezaintelectual e at mesmo social, mas, quetais foras resultem, enquantoacontecimento, de uma profundaintuio vital.

    A obra densa de questes quevo alm da Imagem-Movimento,fazendo uma recapitulao dasemitica, potencializando asconcepes bergsonianas do tempo eda relao Virtual/Atual, bem como,evidenciando as diferenasinexplicveis entre Real/Imaginrio eVerdadeiro/Falso, particularmente, arelao entre o pensamento e oCinema, corpo/crebro e o Cinema.Por fim, explicita os componentes daimagem e, conclusivamente, reafirma

    a utilidade da Filosofia enquanto Teoriano Cinema, pois:

    [..]) os conceitos do cinema noso dados no cinema, e todaviaso conceitos do cinema, no

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    teorias sobre o cinema. Tantoassim que sempre h uma hora,meio-dia ou meia-noite, em queno se deve perguntar o que

    o cinema?, mas o que afilosofia? O prprio cinema uma nova prtica das imagens edos signos, cuja teoria a filosofiadeve fazer como prticaconceitual. Pois nenhumadeterminao tcnica, nemaplicada (psicanlise,lingistica), nem reflexiva, basta

    para cons ti tuir os prpriosconceitos do cinema. verdade que a obra em questo

    necessita, para sua completa

    assimilao e entendimento, certafamiliaridade e conhecimento emrelao ao extenso nmero dos filmesreferido pelo autor, pois eles so muitose pertencem a diferentes gneros egeraes. Entretanto, para o leitormenos informado, no deve impedir queo mesmo perceba, pelo menos, amensagem filosfica contida norepertrio conceitual utilizado, pois eleno do Cinema, mas da Filosofia.

    Para ns arquitetos, considerandoo repertrio especfico utilizado na

    formao discursiva da Arquitetura, provvel que A Imagem-Tempovenha servir tanto como exemplo etalvez, mais ainda, como lio, e isto,frente as atuais disciplinas de Teoria eHistria da Arquitetura, as quais, deregra, evidenciam a pretensocientfica de seus conceitos. Valeressaltar, pois, que para Deleuze noexistem conceitos cientficos, osconceitos so filosficos. especificidade da Filosofia criarconceito, da Cincia criar functivos

    (funes, enunciados, formaesdiscursivas, lgicas) e da arte criarperceptos e afetos. Vale tambmlembrar, apenas como memria que, noincio de minha formao acadmica

    em arquitetura, no incio dos anos 50,constava do currculo a disciplinaFilosofia da Arquitetura.

    Para finalizar esta breve resenha

    numa revista de arquitetura, valeafirmar, parafraseando Deleuze, que osconceitos da Arquitetura no so dadosna Arquitetura, so conceitos daArquitetura (que se atualizam naarquitetura), no teoria sobre aArquitetura, pois, os conceitos socriaes filosficas. Partindo

    justamente dessa afirmao que oautor estabelece em A Imagem-Tempo, uma nova territorialidadeconceitual que no dada no Cinema,e todavia um territrio do Cinema.

    Pasqualino MagnavitaProfessor do PPG-AU

    Universidade Federal da [email protected]

    Ttulo do livro: Imagem e tempoAutor: Deleuze, Gil lesEditora: So Paulo, Brasiliense, 2005,338p.

    Notas

    1 Lektosigno, palavra grega que designa ocontedo de uma proposio independentemente

    da relao desta com seu objeto. Igualmente paraa imagem quando esta apreendida,independentemente de sua relao com um objetoque se suponha exterior.

    O CINEMA E AS OUTRASCIDADES

    Bogot, anos 90. Um antigocasaro no centro da cidade ocupadoh anos por vrias pessoas sem

    condies financeiras para pagaraluguel. O centro urbano passa por umprocesso de renovao e o proprietriodo imvel decide retom-lo e recuper-lo para que se conserve como ummonumento que representa a antigaBogot. Os ocupantes do casaroconsideram que o edifcio os pertencelegitimamente devido aos anos devivncia no local, e decidem lutar parapermanecer a. Comea uma batalhana justia entre o advogado doproprietrio e o advogado dos

    ocupantes do casaro. Mas trata-se deuma luta em vo... A ttica utilizadapelo advogado do proprietrio asseguraa sua vitria atravs da corrupo dosistema judicirio. Resta ao grupo quehabita o casaro elaborar uma outraestratgia de resistncia, que emborano assegure a sua permanncia noedifcio, ao menos garante amanuteno da sua dignidade. Surgeassim a estratgia do caracol. Assimcomo o caracol leva consigo a suaprpria casa, o mesmo acontece com

    os habitantes do casaro. Decidemdesmontar e transportar todas as partesdo edifcio para outro local. Se nopodem permanecer vivendo no terreno,ao menos continuaro habitando em

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    outro local, mas entre as mesmasparedes, portas e janelas... Mas devemrealizar a transposio da casasorrateiramente, para que ningum

    perceba que est sendo realizada...Para tanto, contam com a habilidade doseu advogado, que utiliza todas asmanobras legais existentes para obtermais tempo para que se conclua atransferncia. E afinal, conseguemrealiz-la. Mas os ocupantes reservamao proprietrio uma surpresa: quandoenfim tm que entregar o edifcio,explodem a sua nica parte intacta, afachada. Revela-se finalmente aartimanha dos ocupantes do edifcio. Eesta revelao expe tambm toda uma

    situao de fragilidade e vulnerabilidadedas pessoas que habitam os centros dasgrandes cidades em transformao.Mas manifesta tambm que emboraexistam pessoas em situao deexcluso, existe tambm a possibilidadede realizar pequenas estratgias deresistncia...

    Barcelona, anos 2000. Algunsedifcios no bairro do Raval, no centroda cidade, comeam a ser demolidos.Pouco a pouco vai sendo construdo nomesmo local um novo edifcio

    residencial. Essa interveno faz partede um plano de renovao do centrode Barcelona. Aproximamo-nos docotidiano das pessoas que esto diretaou indiretamente relacionadas comessa mutao urbana. Acompanhamossuas conversaes e movimentaes.So espanhis e catales que semprefizeram parte do bairro, cidados detodas as idades, com suas motivaese preocupaes. So pessoas vindasde vrias partes do mundo e que sefixaram no bairro, trazendo consigo

    suas iluses e frustraes. So,tambm, pessoas que no pertencemao Raval, mas que estabelecemvnculos com o bairro durante o seuprocesso de modificao: so os

    operrios diretamente envolvidos coma demolio e construo do local. Sotodos pobres, quase sempremarginalizados... Todos eles tm seu

    cotidiano transformado pelo impactodas transformaes urbanas no centroda cidade. Mas tambm seguimos asconversas e movimentos de outraspessoas, vindas de outras partes dacidade: pretendem ir viver no bairro,mas no querem fazer parte dele.Preferem que o Raval se transformeem outro bairro de Barcelona...

    Bogot e Barcelona vistas atravsdo cinema. Estes dois relatos fazemparte de dois filmes pouco difundidosno Brasil. O primeiro,La estrategia

    del caracol do diretor colombianoSergio Cabrera (1994). Trata-se deuma fico inspirada em uma notciade um jornal da Colmbia: uma aode desocupao de um edifcio passouanos sem ser avaliada pela burocracia

    jurdica do pas. Quando finalmente foiautorizado o desalojamento, a casa jno existia e seus habitantes haviamdesaparecido. O diretor colombianoutilizou essa notcia como inspiraopara narrar este conto urbano queexpe as vivncias e resistncias de

    um grupo marginalizado que combate sua maneira expulso do centro dacidade, provocada por um processo detransformao urbana excludente. Osegundo filme, En construccin dodiretor espanhol Jos Luis Guern(2001). um documentrio que foirealizado durante trs anos no Ravalde Barcelona, tempo necessrio paraque o diretor e sua equipe pudessemacompanhar as experincias de vidaque so modificadas pelas intervenesurbanas. Nesse filme, parece que no

    h resistncia dos habitantes do bairro.Sua situao de excluso os deixaperplexos diante das transformaes doseu bairro, e sem possibilidade derealizar alguma contestao

    contundente... Entretanto, suaresistncia existe, j que a populaodo Raval insiste em permanecer nobairro e preservar suas diferenas,

    apesar do vertiginoso processo detransformao do local. E percebe-seisso no Raval real, nas suas casas, ruase praas, e sobretudo na diversidadedas pessoas que ainda o habitam, queo seguem vivenciando, apesar de tudo...

    Cinema e Cidade. Se o cinema aarte que mais representa e apresentaa cidade, resta saber que cidade se(re)presenta nos dois filmescomentados. Diante da cidade que vista e ouvida exausto, expostaconstantemente atravs do cinema de

    massa, esses dois filmes mostramoutras cidades, que costumampermanecer mais invisveis esilenciosas, mas que insistem emexistir... E nesses casos o cinemaassume um instigante compromisso demanifestar a cidade, mas no qualquercidade, mas sim a cidade da alteridade.

    Estes dois filmes expem ospequenos (ou grandes?) atos deresistncia urbana. Mostram que portrs das modificaes das cidadesacontecem tambm transformaes

    das pessoas que habitam esses locais,que so expostas atravs do cinema.E, tal como afirma o Jos Luis Guern,nesse processo de mutao dapaisagem urbana e humana sereconhecem muitos ecos de situaessemelhantes espalhadas pelo mundo.1

    Ana Carolina de Souza BierrenbachPs-doutoranda no PPG-AU

    Universidade Federal da BahiaBolsista FAPESB

    [email protected]

    Filmes:La estratgia del caracolDiretor SergioCabrera Colmbia (1994)En construccinDiretor Jos Luis Guerin Espanha (2001)

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    Notas

    1Ver: Crespo, Txema. El arquitecto esbirro es comoel cineasta funcionario.

    Sites Consultados

    La estrategia del caracol

    Carvajal, Vera. La estrateg ia del caracol . 27 defevereiro de 2006

    < h t t p : / / w w w . t i e r r a d e m a i z . c o m / index.php?option=content&task=view&id=215&Itemid=2>- Acesso em fev. 2007.

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    - Acesso emfev. 2007.

    Sartora, Josefina. En construccin.

    - Acesso emfev. 2007.

    perigo dos moradores de Dogvilleaumenta, o que eles pedem em troca Grace se torna mais e mais rduo. Ofilme segue um crescendo de exibies

    de crueldade e de explorao, at ogrande final.Um suposto niilismo deDogville

    foi louvado ou execrado na crticacinematogrfica. De fato,Dogvillea histria de uma vingana em vriosnveis. E na afirmao da vingana,na festa da vingana e da perversidadeque o filme subverte o processovingativo. Segundo Von Trier,Dogville inspirado pela obra de Brecht.

    A cano de Jenny-dos-corsrios napera de quatro tostes era, em efeito,

    um ponto de partida [] Eu a escutavasempre e era seduzido pelo motivo devingana da cano: eles meperguntaram quantas cabeas cairiame o silncio guardava o porto quando eurespondi : todas. O mais interessanteseria inventar uma histria que pela suaconstruo mostra tudo aquilo que leva vingana. () E mais, eu me coloqueina cabea que s faria filmes que sepassam nos Estados Unidos. Talvezporque no lanamento de Danando noEscuro me reprovaram por realizar um

    filme sobre um pas que eu nunca haviavisitado. (informao verbal)3.Von Trier, o maior dos vingativos,

    comea por um trao: marcada apenascom linha branca num piso negro, comonum jogo de crianas (uma grandeamarelinha), a cidadezinha que dnome ao filme presente por umcenrio mnimo: casas ao longo da ruaprincipal e alguns caminhos, um pomar,um co. Um plano habitado assimlanado, com alguns objetos: caminho,rochedo, mina desativada, vitrine, quelhe do uma base de funcionamentosuficiente ao desenrolar da pea.

    Jogo de luzes, visibilidade,invisibilidade, jogo de cenas, de atorese da prpria forma de fazer cinema: o

    DOGVILLE E DEVIRES1

    Lars Von Trier

    Dogville, em sua abertura, umarevelao. Um mundo sem paredesextremamente familiar, por onde seusmoradores se movimentam. Ummundo estranhamente comum onde, dealguma forma, habitamos. MichaelEnde (1984), escritor alemo,descreveu um mundo onde se podiacomer as paredes e atravess-las. Eledizia: os muros so to penetrveis quecada passo uma deciso2. Essa idiacontrasta com Dogville, um outromundo sem muros, dificilmente

    penetrvel, mesmo que se possa veratravs dele pelas mudanas de luz,movimentos imperceptveis e pequenosdetalhes.

    Dogville fica em algum lugar perdidonas montanhas rochosas do meio-oestedos Estados Unidos e l que chegaGrace (Nicole Kidman), em seucaminho de fuga aps uma perseguiopor gangstres. Convidada por Tom(Paul Bettany, o fantico do filme OCdigo Da Vinci), a belssima Graceaceita pedir aos moradores permisso

    para que se refugie em Dogville. Tomprope que ela participe de um jogoonde, em troca da possibilidade de ficarna cidadezinha, ela oferea pequenosservios. Conforme a sensao de

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    mundo criado porDogvillepode serreterritorializado no interior mesmo dametrpole, j que o filme evoca umaunidade bsica de toda estrutura de

    vida coletiva.Dogville, em sua relaocom a metrpole, ressoa ainda comoutros filmes mais ou menos recentesque surgem aqui apenas comorelances. Um deles seriaA Vila4, queevoca um mundo j em um estadoavanado de fechamento e corte, numvilarejo perdido numa florestaassustadora, recriando a evaso maistotal. Um filme comoBlade Runner5

    se d tambm sobre um fundo deevaso abandono do planeta masno sentido de uma persistncia: um

    mundo que se cria na extremaadversidade e que, em vez de restringira idia do que humano ou no, bomou no, a amplia, borra as fronteiras,as coloca em dvida.Matrixj seria apesquisa de uma brecha por ondeescapar de um mundo totalitrio e poronde finalmente encarnar, ou melhor, um filme que analisa as condiesde encarnao em um mundo totalitrioe totalizante. E um filme como Showde Truman6exploraria tambm, nessesentido, as condies de libertao da

    violncia extrema do monitoramento,em um mundo programado e invasivo.Filmes e devires. Um filme serve,

    assim, para evocar linhas de fora: umdevir, mais que um modo de vida. Umfilme, um devir, uma cidade (oucidadezinha) tm em comum o fato deserem mundos criados e deengendrarem mundos e outros devires.Um mundo para Deleuze oagenciamento de alguns afetos, numaescolha determinada, uma seleo numuniverso mais amplo de possibilidades7.

    Vejam o carrapato, admirem esteanimal, ele se define por trsafetos (). A luz o afeta, e elese suspende at a ponta de umgalho. O cheiro de um mamfero

    o afeta, e ele se deixa cair sobreele. Os plos o atrapalham, e elebusca um lugar sem pelos parase enfiar na pele e beber sangue

    quente. Cego e surdo, ocarrapato s tem trs afetos.5) Que poder, portanto.Finalmente, tem-se sempre osorgos e as funescorrespondentes ao afetos deque se capaz.A cidade, como um filme,

    tambm um mundo criado, umaseleo, investida por desejos, foras,potncias e poderes em conflito,dominaes, atraes, exploraes,abusos, paixes e todos os outros afetos

    de que homens e mulheres so capazes.Uma histria da cidade em relao violncia dos jogos de sujeio eexplorao poderia ser feita,enriquecida das relaes e desejos quegeram mundos, como este mundo cadadia mais invasor que se chama, s vezes,de condio urbana. Dogville, noconjunto dos quatro filmes, sendo omais despido em todos os sentidos, o que encarna uma banalidade, umasimplicidade e mesmo uma concretudeda vida coletiva: nao h distrao em

    Dogville , no h nada, mesmo amaterialidade da cidadezinha no estl. Apenas um arsenal mnimo de forase de territrios um traado, corpos,ou seja, aquilo que atravessa todaorganizao, e at mesmoorganizaes ainda a vir. Pode-se assimseguirDogvillepara pensar o espaoda cidade como mundos em devir, ouseja, sempre em processos que no seterminam em estados fixos, mas quedo lugar a outras transformaes, peladisputa de afetos, desejos, foras.

    Dogvillese define a princpio poruma circunscrio comunitriadestacada, onde uma situao talveznova permite que comportamentos serevelem, sobretudo aqueles de

    tendncia abusiva, regida pela idia deproteo e segurana. Esse esquemaressoa de muitas formas atualmente,sobretudo se se observam os traados

    sobre o solo e no territrio: divises,limites, vazios, rejeies, privilgios. Eleressoa, a princpio, com a idia defechamento ou com o conjunto defenmenos ou estratgias em cursohoje baseadas na rejeio ou napacificao da metrpole comoorganizao urbana, ou na criao deenclaves protegidos e pacificados.Esses fenmenos, em sua ressonnciacomDogville,nos propem a idia deum devir e, mais especificamente, deum devir-cidadezinha da metrpole.

    Um devir cujo efeito um fechamentoprecisa ser situado numa sociedadehiperconectada e em um mundo urbanoultrameditico, para que se observemo jogo de foras que investe o territrioe o processo pelo qual desejos derestrio, separao, controle, seinvestem no campo das produessociais urbanas motivados poremoes como, por exemplo, o medo.

    Todavia, a tragdia deDogvilletambm a da ilustrao como modo depensar, a origem do drama de Grace (a

    graa, que vem mostrar aos habitantesa arte de receber). Dogville nofunciona como ilustrao ou modelo,metfora ou cenrio, mas como umretrato distorcido ou uma criaomontruosa, capaz de flertar com todasessas imagens de forma irnica,caricatural. Dogville pode assim serexplorado como anti-conto de fadas oucomo uma histria perversa deprocedimentos mltiplos de fechamentoe disperso na cidade hoje, marcada pordesiluso e abuso. No se trata de

    representao mas de ressonnciaaterrorizante e irnica. No tambma idia de ver o real em um filme, masde proceder uma inverso: compreendera cidade como um filme, como mundos

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    criados, em devir, como um movimentoque no se termina, mas que se encadeiacom outros e com outro devires.

    Dogvil le , assim, imagem que

    assombra, fantasmagrica.A atmosfera dogvilliana flerta com

    esse processo ou conjunto de atos queseria o devir-cidadezinha, um devirligado a desejos de se encolher ecircunscrever, que por vezes seassociam estratgias de evitamentode potncias do urbano, sua violncia,mas que, em sua busca da segurana epacificao, geralmente cometem o piorabuso, a pior violncia. Mas um devir-cidadezinha no atravessa apenasGrace, que foge da grande cidade e vem

    se esconder no vilarejo perdido e serexplorada pelo habitantes, nem estapenas ligado reticncia dos habitantesem acolh-la, mas atravessa todo oesquema: Grace, os habitantes,Tom, ailustrao-idealizao, um traado, amfia, o co, etc.

    Um devir-cidadezinha ressoa comoutro devires: devir-grande cidade de

    Blade Runner, devir-casulo e devir-tribo deMatrix, e devir-bolha deMatrixeA Vila. Seu territrio so as grandesestruturas urbanas, o excesso mesmo

    de urbanizao. Ele teria efeitos sobrea relao entre o corpo e a cidade:quem se encolhe, evita, afasta, aguentaabusos e os produz ao mesmo tempoo corpo e a cidade. A cidade aexperincia mesmo de um ser-estarem devir, da o interesse de pensar acidade e os corpos que a criam e a seinvestem como estando em devirconstante e mltiplo, atravessados pordesejos, fluxos, foras, cortes. Devirescriadores de mundos penetrveis ouimpenetrveis, guerras de mundos,

    incorporaes.Quando estes devires investem o

    campo da produo da cidade, queespaos criam, que mundos? Quando

    eles se confrontam com violncia edisputas, que cidades criam, quefuncionamentos? Quando seconfrontam com outros desejos,

    emoes e devires, com outras formasde incorporar lutas e foras, que outrosmundos podem da decorrer?Dogvilleno responde essas perguntas, masataca as idias de paz, sossego,hospitalidade, bondade, idealismo. Ofilme ataca o velho mito da pequenacomunidade protegida, que parecepersistir, mesmo anacronicamente, eganhar novas foras no mundo de hoje.Nos escombros e cinzas do idealismo,alguns acham que no se pode colocarnada, da o niilismo. Mas se pode criar

    novos mundos: da os devires, asforas, a criao. Da a sobrevivnciado co, como um enigma.

    Clarissa MoreiraDoutoranda na Universidade Paris 1

    [email protected]

    Filme: DogvilleDiretor: Lars von Trier

    Ano: 2003

    Notas

    1

    Essa resenha foi feita com base na tese de doutoradoDogville ou o devir-cidadezinha da metrpoledirigida por Henri-Pierre Jeudy, que estamosdesenvolvendo no Departamento de Filosofia daUniversidade de Paris 1, Sorbonne, desde setembrode 2004, com apoio da CAPES. ColaboraoAdriany Mendona e Isabela Moreira.

    2 ENDE, Michael. O espelho no espelho: Umlabirinto. So Paulo: Marco Zero/Crculo do Livro,1984.

    3Entrevista para Le Cahier du Cinema, Paris maiode 2003.

    4The Village, Night Shyamalan, 2004.

    5 Matrix, Andy e Larry Wachowski 1999-2002.

    6Truman Show, Peter Weir, 1998.

    7A comme animal Labc daire de Deleuze .Entrevista com Claire Parnet. Pierre-AndrBoutang. Paris: Editions Montparnasse. 1996