Lacan e o Mal Entendido de Laplanche

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LACAN E O MAL-ENTENDIDO DE LAPLANCHE Na sessão de 03 de Junho de 1964, de O SEMINÁRIO, LIVRO 11: OS QUATRO CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE (1964), JACQUES LACAN (1901 – 1981) faz algumas pontuações decisivas para a correta demarcação do estatuto lógico do Inconsciente (freudiano), qual seja: Eu havia destacado que Freud enfatiza o seguinte: o recalcamento cai sobre algo que é da ordem da representação, que ele denomina 'Vorstellungsrepräsentanz'. §. (...). Então insisti nisto, que o que é recalcado não é o representado do desejo, a significação, mas o 'representante' – traduzi, literalmente – 'da representação'. §. Ora, é precisamente o que quero dizer, e o que digo – pois o que quero dizer, eu digo – ao traduzir 'Vorstellungsrepräsentanz' por representante da representação. §. (...). O 'Vorstellungsrepräsentanz' é o significante binário [S²]. Este significante [S²] vem constituir o ponto central da 'Urverdrängung' – daquilo que, a ser passado ao Inconsciente será, como indica Freud em sua teoria, o ponto de 'Anziehung', o ponto de atração por onde serão possíveis todos os outros recalques, todas as outras passagens similares ao lugar do 'Unterdrückt', do que é passado por baixo como significante –. Aí está o de que se trata no termo 'Vorstellungsrepräsentanz' (Nota 01). Entretanto, transcorridos onze anos JEAN LAPLANCHE (1924 – 2012) responderá crítica e duramente a estas pontuações nos seguintes termos: Como não relembrar que a noção introduzida por Lacan de um "representante da representação" não pode ser creditada a Freud? Como tradução do termo freudiano 'Vorstellungsrepräsentanz', isso seria um contra-senso. §. No temo composto 'Vorstellungsrepräsentanz' , o 's' que une os dois vocábulos não é a marca de um genitivo [no caso, 'da']. §. (...) 'Vorstellungsrepräsentanz' não significa, em nenhum caso, "representante 'da' representação", mas "representante 'de' representação", ou seja, "representante no domínio da representação" ou "representante representativo" ou "representante- representação". §. Freud jamais expressou a ideia de que a "representação" (`Vorstellung`) possa ter ela mesma um delegado, um representante. Desde as primeiras linhas de "L'inconscient", ele indica claramente, pelo contrário, que a representação é que "representa a pulsão" ([Freud:] 'eine den Trieb repräsentierende Vorstellung') (N. 02).Ora, a validade epistemológica do Inconsciente ocorre se (somente se) as pontuações de Lacan prevalecerem sobre a resposta de Laplanche, ou seja, não é possível predicar a existência do Inconsciente ('Unbewusste') se não se supuser o "recalcamento

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LACAN E O MAL-ENTENDIDO DE LAPLANCHE

Na sessão de 03 de Junho de 1964, de O SEMINÁRIO, LIVRO 11: OS QUATRO CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE (1964), JACQUES LACAN (1901 – 1981) faz algumas pontuações decisivas para a correta demarcação do estatuto lógico do Inconsciente (freudiano), qual seja:↪ Eu havia destacado que Freud enfatiza o seguinte: o recalcamento cai sobre algo que é da ordem da representação, que ele denomina 'Vorstellungsrepräsentanz'. §. (...). Então insisti nisto, que o que é recalcado não é o representado do desejo, a significação, mas o 'representante' – traduzi, literalmente – 'da representação'. §. Ora, é precisamente o que quero dizer, e o que digo – pois o que quero dizer, eu digo – ao traduzir 'Vorstellungsrepräsentanz' por representante da representação. §. (...). O 'Vorstellungsrepräsentanz' é o significante binário [S²]. Este significante [S²] vem constituir o ponto central da 'Urverdrängung' – daquilo que, a ser passado ao Inconsciente será, como indica Freud em sua teoria, o ponto de 'Anziehung', o ponto de atração por onde serão possíveis todos os outros recalques, todas as outras passagens similares ao lugar do 'Unterdrückt', do que é passado por baixo como significante –. Aí está o de que se trata no termo 'Vorstellungsrepräsentanz' (Nota 01). ↫Entretanto, transcorridos onze anos JEAN LAPLANCHE (1924 – 2012) responderá crítica e duramente a estas pontuações nos seguintes termos:↪ Como não relembrar que a noção introduzida por Lacan de um "representante da representação" não pode ser creditada a Freud? Como tradução do termo freudiano 'Vorstellungsrepräsentanz', isso seria um contra-senso. §. No temo composto 'Vorstellungsrepräsentanz' , o 's' que une os dois vocábulos não é a marca de um genitivo [no caso, 'da']. §. (...) 'Vorstellungsrepräsentanz' não significa, em nenhum caso, "representante 'da' representação", mas "representante 'de' representação", ou seja, "representante no domínio da representação" ou "representante representativo" ou "representante-representação". §. Freud jamais expressou a ideia de que a "representação" (`Vorstellung`) possa ter ela mesma um delegado, um representante. Desde as primeiras linhas de "L'inconscient", ele indica claramente, pelo contrário, que a representação é que "representa a pulsão" ([Freud:] 'eine den Trieb repräsentierende Vorstellung') (N. 02).↫Ora, a validade epistemológica do Inconsciente ocorre se (somente se) as pontuações de Lacan prevalecerem sobre a resposta de Laplanche, ou seja, não é possível predicar a existência do Inconsciente ('Unbewusste') se não se supuser o "recalcamento originário" ('Urverdrängung') não da "representação" ('Vorstellung') mas sim de seu "representante" ('Repräsentanz') enquanto "significante" ('Signifiant') – para o qual não há, pois, representação e/ou significação possível –.

Isto posto, o estatuto lógico do Inconsciente – portanto, sua racionalidade – está encapsulado na seguinte proposição:

► O Inconsciente ('das Unbewusste') está fundamentado no recalcamento originário ('Urverdrängung') do representante da representação ('Vorstellungsrepräsentanz'); sendo assim, tal representante é o significante binário (S²), qual seja, o significante que, a título paradoxal de "saber não-sabido" (saber sem representação), constitui o ponto central daquele sistema psíquico inacessível pela significação (significado e/ou sentido) (N. 03).

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Pois bem, Laplanche assesta sua crítica exata e precisamente contra o posicionamento lógico de Lacan na medida em que tal posicionamento decifra a estruturação do Inconsciente como um 'locus' irredutível à representação ('Vorstellung') – e, pois, radicalmente refratário à significação, ou, se se preferir, à territorialização possibilitada pelo significado e/ou sentido –.

Noutros termos, para Laplanche o Inconsciente seria em última instância acessível pela via de procedimentos representativos, rendendo-se dócil, no final, a estes mesmos procedimentos...

Para dizê-lo de uma vez: – Apesar de todas as aparências em contrário, Laplanche situa-se no mesmo campo discursivo da... "Filosofia da Consciência" (um pleonasmo!) e/ou da... "Ego Psychology" (outro pleonasmo!) e/ou do... "Discurso da Universidade" (aqui não temos pleonasmo, posto que Lacan mostrou-nos a existência de "outros discursos" [N. 04]).

De todo modo, o mal-entendido de Laplanche vis-à-vis Lacan é chocantemente expressivo de que a "ferida narcísica" aberta por SIGMUND FREUD (1856 – 1939) no campo da representação talvez não seja jamais admitida como um fato de estrutura ineliminável das subjetividades, sociedades e culturas, pois como é possível que o célebre psicanalista "Jean Laplanche" – autor dos cultuados "Hölderlin e a questão do pai" (1961/2007) e "Vocabulário da Psicanálise" (1967/2004), além de muitos outros livros supostamente psicanalíticos – possa aplicar-se tão meticulosamente à leitura dos textos freudianos senão para silenciá-los?

Na aula seguinte em que proferira sua crítica à tradução lacaniana de 'Vorstellungsrepräsentanz', Laplanche conclui seu escandaloso mal-entendido do Ensino de Lacan (1951 – 1981) com um dar de ombros lamentável:↪ Trata-se, exatamente, da oposição que outros [leia-se: Lacan] procuram hoje estabelecer entre prazer e "gozo"? [Aspas do próprio Laplanche.] Não estou certo disso, em absoluto, e pouco me importa (N. 05). ↫Sim, a análise pessoal de Laplanche com Lacan – transcorrida entre os anos 1950-1960 – não aconteceu.

NOTAS

(Nota 01) LACAN, J. "O sujeito e o Outro (II): a afânise", in: O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Sessão de 03 de Junho de 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Segunda Edição: 1998: 206 – 207.

(N. 02) LAPLANCHE, J. "Para situar a sublimação", in: Problemáticas III: a sublimação. Aula de 02 de Dezembro de 1975, ministrada na Sorbonne (Université Paris VII). São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989: 25 – 26.

(N. 03) Apresento-lhes uma extraordinária sequência lógica na qual Lacan faz emergir, a partir do 'Urverdrängt' ("recalque/recalcado originário"), a "categoria do impossível" e o "furo inviolável do simbólico" (ambos constitutivos, portanto, do conceito de real).

A articulação lacaniana é admiravelmente rigorosa – ei-la:↪ É enquanto alguma coisa é 'Urverdrängt' (recalcada originariamente) no simbólico que há algo a que não damos jamais sentido. ↫

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↪ O que Freud nos traz no que diz respeito ao Outro é justamente isso: apenas há Outro quando se diz. Mas não é possível dizer o Outro-todo, pois há uma 'Urverdrängt', a saber, um Inconsciente irredutível que introduz, como tal, a categoria do impossível. ↫↪ É nisso que lhes devolvo A Coisa [das Ding], a qual não é nada menos que a 'Urverdrängt', ou seja, o recalcado originário, o recalcado primordial. ↫↪ Esse recalcado é o furo [do simbólico]. Vocês jamais o terão. ↫↪ Esse recalcado é o primordial, a 'Urverdrängt': é o que Freud designa como o inacessível do Inconsciente. ↫↪ O simbólico gira em torno de um furo inviolável, sem o qual o nó dos três [dos três registros topológicos] não seria borromeano. Porque é isso o que o Nó Borromeano quer dizer: o furo do simbólico é inviolável. ↫↭ Citações colhidas em: LACAN, J. Seminário R. S. I. (1974 – 1975). Inédito. Os dois primeiros parágrafos são da lição proferida em 17 de Dezembro de 1974; o terceiro e o quarto parágrafos são de 14 de Janeiro de 1975; o quinto parágrafo é de 18 de Fevereiro de 1975; finalmente, o sexto parágrafo é de 11 de Março de 1975.

(N. 04) Cf. LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969 – 1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

(N. 05) LAPLANCHE, J. "Para situar a sublimação", in: Problemáticas III: a sublimação. Aula de 09 de Dezembro de 1975, ministrada na Sorbonne (Université Paris VII). São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989: 35.

Abraços:

JOSÉ MARCUS DE CASTRO MATTOSPoetaPsicanalista

Autor de SOLI DEO GLORIA:www.poesiasolideogloria.blogspot.com.br

Autor do conceito de PSICANÁLISE-AMBIENTAL:www.psicanaliseambiental.blogspot.com.br

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{As fotos representam os psicanalistas franceses JACQUES LACAN [1901 – 1981] e JEAN LAPLANCHE [1924 – 2012].}