Laerte Coutinho

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Laerte está cansado de sua própria voz. Cartunista de sucesso, criador de persona- gens inesquecíveis, como o puxa-saco Fa- gundes, e integrante da trinca Los Três Ami- gos, juntamente com Glauco e Angeli, já era reconhecido pelo seu talento com as tirinhas. Mas, desde que, no segundo semestre do ano passado, começou a se travestir publicamen- te, jornais e revistas estamparam o homem sexagenário vestido com roupas femininas, atraindo olhares curiosos e mais atenção ainda da mídia, faminta em destrinchar os motivos que o fizeram se vestir daquele jeito — a prática se chama crossdressing, quando pessoas se vestem com objetos associados Quase um ano depois de começar a se vestir de mulher publicamente, da enxurrada de entrevistas e do assédio da mídia, Laerte questiona seu próprio discurso por Bruno Mateus fotos Marcelo Naddeo UM HOMEM LIVRE ao sexo oposto. Bissexual, ele afirma que os novos trajes em nada têm a ver com sua opção sexual, apenas atendeu a um desejo íntimo e antigo. Talvez seja por esse alarde todo que Laerte está farto de dar entrevistas. “Começo a duvidar do que falo, parece que sou outra pessoa falando. Tenho falado tanto por aí que cansei da minha própria voz, da minha própria argumentação. Começou a virar um discurso empedrado, entende? Não é tanto pelo tem- po, é pelo excesso de discurso — meu. Sou eu que estou me engessando, não a entrevista”, explica. Em nossas conversas por telefone, a voz do cartunista só confirmou essa angústia, essa coisa de não querer ser um animal enjaulado à exposição. Um tanto decepcionado com os textos da imprensa escrita, La- erte prefere dar entrevistas por e-mail, “daí controlo (melhor) o que vai sair”. E foi assim que ele bateu um papo com a Ragga.

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Revista Ragga - Agosto 2011

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Laerte está cansado de sua própria voz. Cartunista de sucesso, criador de persona-gens inesquecíveis, como o puxa-saco Fa-gundes, e integrante da trinca Los Três Ami-gos, juntamente com Glauco e Angeli, já era reconhecido pelo seu talento com as tirinhas. Mas, desde que, no segundo semestre do ano passado, começou a se travestir publicamen-te, jornais e revistas estamparam o homem sexagenário vestido com roupas femininas, atraindo olhares curiosos e mais atenção ainda da mídia, faminta em destrinchar os motivos que o fizeram se vestir daquele jeito — a prática se chama crossdressing, quando pessoas se vestem com objetos associados

Quase um ano depois de começar a se vestir de mulher publicamente, da enxurrada de entrevistas e do assédio da mídia, Laerte questiona seu próprio discurso

por Bruno Mateus fotos Marcelo Naddeo

UMHOMEMLIVRE

ao sexo oposto. Bissexual, ele afirma que os novos trajes em nada têm a ver com sua opção sexual, apenas atendeu a um desejo íntimo e antigo.

Talvez seja por esse alarde todo que Laerte está farto de dar entrevistas. “Começo a duvidar do que falo, parece que sou outra pessoa falando. Tenho falado tanto por aí que cansei da minha própria voz, da minha própria argumentação. Começou a virar um discurso empedrado, entende? Não é tanto pelo tem-po, é pelo excesso de discurso — meu. Sou eu que estou me engessando, não a entrevista”, explica. Em nossas conversas por telefone, a voz do cartunista só confirmou essa angústia, essa coisa de não querer ser um animal enjaulado à exposição. Um tanto decepcionado com os textos da imprensa escrita, La-erte prefere dar entrevistas por e-mail, “daí controlo (melhor) o que vai sair”. E foi assim que ele bateu um papo com a Ragga.

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Como foi se olhar no espelho vestido de mulher pela primeira vez?

Eu lembraria mais a primeira vez em que vi no espelho meu corpo totalmente depilado. Mais que vestir roupas femininas, foi esse des-pir simbólico da “roupa” de pelos que me foi impactante e revelador. Como se me visse pela primeira vez.

As pessoas ainda têm muita dificuldade em aceitar o crossdressing? Qual foi a reação dos seus pais, filhos?

Transgeneridade sempre foi um grande problema para muitas culturas. Fora de con-textos muito específicos, como o Carnaval, ou

de relações precisas, como as que envolvem troca sexual, é tabu. Desculpe pular fora da palavracrossdressing, que, para mim, é escorregadia. Ao mesmo tempo em que indica uma co-munidade, camufla sua natureza classista e escapista. Meus próximos receberam a minha decisão com respeito e amor — nem sempre com conforto total. Também respeito o desconfor-to que possa existir.

Já passou por algum momento constrangedor, algum xingamento?

Não, ainda não. Pelo menos não senti constrangimento, nem ouvi insultos. Talvez algo assim possa ter ocorrido fora da minha área de percepção. Não sei. Talvez a transgressão de gênero ainda esteja em “fase de introdução”, vamos dizer. Talvez o desconcerto provocado ainda seja maior do que a

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vontade de agredir.

Você abandonou personagens famosos, como o Overman e Os Piratas do Tietê. Por que isso aconteceu? Foi uma crise, ficou de saco cheio?

Senti, por volta de 2003, que havia se completado um ciclo, um grande ciclo. Achei que não havia porque continuar naquele ca-minho, que, se é motivo de satisfação real, também parece pertencente ao meu passado criativo. O estranho é que, em busca de uma expressão mais representativa do momento em que vivia, acabei revisitando modos e procedimentos de um passado mais remoto ainda, da minha juventude – quando ainda não havia me profissionalizado. É estranho, mas não muito, para falar a verdade, revela

o quanto, em nome da eficiência profissional, muitas vezes abandonamos nossa busca mais profunda.

Pode-se dizer que você, vestindo-se de mulher, rechaça um personagem e assume outro?

Não, não me vejo como personagem. Ten-to viver minha transgeneridade da forma mais sincera que posso.

Em uma entrevista, você disse que queria ser como o Angeli, “que desenha com um amor imenso”, ou como o Paulo Caruso, “que desenha com uma facilidade assombrosa”. Você gosta do que faz?

Sinto, em relação a esses dois queridos, admiração e inveja, mas sei que dificilmente vou atingir esse padrão. Sinto coisas difíceis de explicar em relação ao meu trabalho — algumas delas são próximas de desconforto e impaciência. Ao mesmo tempo, não me vejo fazendo outra coisa que não essas histórias que faço.

Como é sua rotina de produção?

Tento resolver de manhã as coisas mais

SINTO COISAS DIFÍCEIS DE EXPLICAR EM RELAÇÃO AO MEU TRABALHO – ALGUMAS DELAS SÃO PRÓXIMAS DE DESCONFORTO E IMPACIÊNCIA. AO MESMO TEMPO, NÃO ME VEJO FAZENDO OUTRA COISA QUE NÃO ESSAS HISTÓRIAS QUE FAÇO

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urgentes, à tarde as menos urgentes. O tempo todo passa pela cabeça ideias, propostas, conceitos, que podem vir a ser histórias. Algumas delas eu anoto.

Envelhecer o assusta?

Envelhecer, nem tanto. Chegar perto da morte, sim. Não o tempo inteiro.

O que é mais desconfortável no vestuário feminino?Nada, para falar a verdade. O que pode ser “desconfortá-

vel”, como se enfiar dentro de um corset, carrega em si tanto encanto que nem ligo. Acho que o desconfortável é quando a gente abre o armário e não encontra nada que nos represente em determinado momento. Isso acontece — os homens cos-tumam zombar dizendo que o armário está lotado de roupa, identificando uma ideia de frivolidade e infantilismo de com-portamento. É mais complicado, claro.

Você já disse que “o crossdresser é um travesti de classe média”. Por quê?

Como já comentei — e segundo minhas observações pes-soais —, a palavra crossdresser veio do inglês, para identificar grupos que se travestiam, mas faziam questão de explicitar sua heterossexualidade. No Brasil, tal distinção se acomodou, no contexto da nossa cultura, a uma separação de classe. O que quero dizer é que, nos grupos brasileiros que se afirmam cros-sdressers, é possível encontrar heterossexuais, homossexuais, bissexuais e assexuais, bem como pessoas que praticam sexo na forma de programas ou que vivem seu travestismo como fe-tiche. O que concluí é que a diferença que se estabeleceu é em relação às travestis que vivem a realidade da pobreza, o que frequentemente inclui a prostituição, mas que, de um modo ge-ral, as leva a uma assunção plena e cotidiana da sua condição de transgêneras. Na vida das assim chamadas crossdressers, isso é evitado, em nome da manutenção de uma imagem pú-blica “respeitável”, “normal”. A transgeneridade é, com frequên-cia, escondida não só no ambiente de trabalho e social, mas até de familiares próximos, cônjuges e filhos.

É você mesmo quem compra suas roupas?

Sim, claro. De outra forma eu estaria abrindo mão da mi-nha busca. Apenas a própria pessoa pode fazer essa busca. Para quem tem receio de passar por humilhações em lojas, posso dizer que tenho sido sempre alvo de cortesia, quando não de calorosa festividade, da parte de atendentes, em quase todo lugar. No começo dá uma baita insegurança, é verdade — mas em pouco tempo a experiência mostra que o medo só está dentro da nossa cabeça.

De que forma a morte do seu filho, em 2005, atingiu o seu trabalho como cartunista? Influenciou também no crossdressing?

Prefiro não responder essa pergunta, tudo bem? Ainda é — e provavelmente sempre vai ser — uma questão muito complexa, frente à qual minhas tentativas de resposta têm soado invariavelmente reduções simplificadoras e análises superficiais. Continuo sentindo e refletindo, claro, mas não quero expor aquilo a que chego.

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Há pouco tempo, você brincou: “Senta aqui, Bolsonaro!”. O que falaria para ele?

Não sei. Naquela palestra, na Flip [Festa Literária Interna-cional de Paraty], usei esta imagem (que se revelou possuidora de um duplo sentido, depois) em nome do desentrincheiramen-to, da busca de trocas de ideias, em vez de troca de pedradas. Ainda defendo essa posição, mas existem momentos em que é preciso estabelecer o primado da cidadania, a defesa de di-reitos básicos e universais — um momento que supera o do debate. Quando grupos alegam defender a livre expressão ao “criticar” a homossexualidade, é preciso estabelecer que essa liberdade não é possível, da mesma forma que não é possível pregar a inferioridade racial ou o caráter maligno de determina-da etnia. A suposta “crítica” que igrejas e grupos homofóbicos fazem à homossexualidade é apenas a negação de um direito humano, a negação da qualidade de humano a um imenso gru-po de seres humanos. Não deve ser permitido, mesmo — não é objeto de debate. Ou então o debate deve ser outro: deve ser permitida a defesa do racismo? Do nazismo, da perseguição e eliminação de pessoas segundo determinadas etnias e ideo-logias? Da negação de direitos humanos e cidadania a grupos específicos da população?

Afinal, vestir-se de mulher é uma forma de transgredir, de questionar preconceitos?

A expressão “vestir-se de mulher” é meio discutível, na me-dida em que não pretendo iludir que eu seja verdadeiramen-te mulher. Uso roupas femininas, mas esse mesmo repertório também é discutível, na medida em que as mulheres já ultra-passaram há muito suas fronteiras e usam qualquer peça que lhes pareça cair bem. Então, penso que minha motivação é bus-car essa mesma liberdade. Parece que sim – este é considerado um comportamento transgressor, que questiona preconceitos. Mas, para não ficar um papo muito rococó (“visto roupas consi-deradas do repertório assim dito feminino”), “vestir de mulher” até passa.

TENHO FALADO TANTO POR AÍ QUE CANSEI DA MINHA PRÓPRIA VOZ, DA MINHA PRÓPRIA ARGUMENTAÇÃO. COMEÇOU A VIRAR UM DISCURSO EMPEDRADO, ENTENDE? SOU EU QUE ESTOU ME ENGESSANDO, NÃO A ENTREVISTA

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