LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica...

19
LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO EALGUMAS POSSÍVEIS INTERPRET Rui Baptista COSTA MARQUES 1. A necrópole calcolítica do Bugio, situada a cerca de 200 m a Sul da Aldeia da Serra na localidade de Azóia, Sesimbra, foi alvo de várias interven<;oes e estudos desde a sua descoberta em 1957, por Rafael Monteiro e restante equipa (Monteiro et al., 1971). Na realidade, esta gruta apresenta, de acordo com Cardoso (1992), tres fases de ocupa<;ao: Neolítico Final, Calcolítico Inicial - Pleno e Calcolítico Superior. Existem, também, referencias a uma data<;ao feita por 14C: "4850 +- 45 B.P., 2900 a.c., laboratório de Groningen" (Serrao, 1994, p.74). Os prime iros trabalhos foram caracterizados, a um tempo, por alguma inexactidao no que se refere él recolha de dados sobre o material osteológico e, a outro, por alguns desentendimentos entre membros da equipa de escava<;ao (Rafael Monteiro, Eduardo da Cunha Serrao, entre outros, sendo este último, él data, Directo do Museu Arqueológico Municipal de Sesimbra)l. Talvez estes motivos tenham contribuído para que a história arqueológica da necrópole seja algo conturbada e para que hoje nao exista um registo exacto e fiável das posi<;oes de cada pe<;a e esqueletos no espa<;o, da correla<;ao entre estes e destes com o material arqueológico, nao se tendo conseguido, até ao momento, ter uma ideia definitiva da organiza<;ao do espa<;o de inuma<;ao. Podem contabilizar-se pelo menos 6 interven<;oes, classificando-se umas como mais "científicas" que outras (Cardoso, 1992). O material osteológico encontra-se hoje disperso pelo menos por dois locais: Museu de Arqueologia da Camara Municipal de Sesimbra e Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciencias e Tecnologia da Universidade do Porto. Ainda assim, foram elaborados vários estudos e publica<;oes aquando da sua descoberta (Isidoro, 1964; Monteiro et al., 1967; Monteiro et al., 1971), que tem sido citados e referidas outras tantas vezes em publica<;oes posteriores, facto de que é exemplo a obra de Serrao (1994). De acordo com os autores que primeiramente a escavaram (Monteiro et al., 1971), sao descritas, somente no que se refere ao material arqueológico associado, dez sepulturas e um ossário. Uma das sepulturas foi utilizada como modelo de descri<;ao para as outras pois, "para alé111 de estar absolutamente intacta, porque o canto ande jazia nao havia sido remexido, apresenta um corte muito bem definido" (Ibid. p.109). Esta sepultura é descrita como tendo cerca de 1,50 m de comprimento por 1 m de largura, com o fundo regularizado por lajes de calcário. As paredes eram feitas de lajes de cutelo. As lajes de calcário cobriam, também, todo o conjunto. Por cima destas últimas, "calhaus postas a esrno" (Ibid. p.l09) tapavam todo o conjunto. O cranio era suportado por uma estrutura em forma de caixa e corpo apresentava-se em decúbito dorsal estando as pemas flectidas para o lado esquerdo. Nao se conhecem referencias quanto él idade, sexo ou estatura do indivíduo Existem, para além disto, dados relativos ao tipo de inuma<;ao de outras sepulturas. Assim, verifica-se a presen<;a de uma sepultura dupla (a n.o 6 de acordo com o referido estudo) e outra (a n.02, igual fonte) que tinha "um carpo do lado da cabeceira e outro aos pés" (Ibid. p.109). Este dado pode-nos levar a pensar num caso de redu<;ao de corpo. A redu<;ao de corpos corresponde ao re-agrupamento dos ossos de um indivíduo, num espa<;o onde já tinha sido efectuado um depósito inicial (Silva, 1996). Estas sao, contudo, hipóteses impossíveis de verificar, uma vez que na altura se referia que era grande o grau de destrui<;ao das inuma<;oes e porque, sem registos fiáveis da organiza<;ao do espa<;o , Ila<;ao retirada a partir da análise do cademo de campo de um dos autores e membro da escava<;ao original (Rafael Monteiro) incluido e disponivel no espólio bibliográfico e documental do Museu Municipal de Sesimbra. 10]

Transcript of LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica...

Page 1: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS ALTERA~6ESENCONTRADAS NOMATERIAL DENTÁRIO HUMANO E ALGUMAS POSSÍVEIS INTERPRETA~6ES

Rui Baptista COSTA MARQUES

1. Introdu~ao

A necrópole calcolítica do Bugio, situada a cerca de 200 m a Sul da Aldeia da Serra na localidadede Azóia, Sesimbra, foi alvo de várias interven<;oes e estudos desde a sua descoberta em 1957, por RafaelMonteiro e restante equipa (Monteiro et al., 1971).

Na realidade, esta gruta apresenta, de acordo com Cardoso (1992), tres fases de ocupa<;ao:Neolítico Final, Calcolítico Inicial - Pleno e Calcolítico Superior. Existem, também, referencias a umadata<;ao feita por 14C: "4850 +- 45 B.P., 2900 a.c., laboratório de Groningen" (Serrao, 1994, p.74).

Os primeiros trabalhos foram caracterizados, a um tempo, por alguma inexactidao no que serefere él recolha de dados sobre o material osteológico e, a outro, por alguns desentendimentos entremembros da equipa de escava<;ao (Rafael Monteiro, Eduardo da Cunha Serrao, entre outros, sendo esteúltimo, él data, Directo do Museu Arqueológico Municipal de Sesimbra)l. Talvez estes motivos tenhamcontribuído para que a história arqueológica da necrópole seja algo conturbada e para que hoje naoexista um registo exacto e fiável das posi<;oes de cada pe<;a e esqueletos no espa<;o, da correla<;ao entreestes e destes com o material arqueológico, nao se tendo conseguido, até ao momento, ter uma ideiadefinitiva da organiza<;ao do espa<;o de inuma<;ao. Podem contabilizar-se pelo menos 6 interven<;oes,classificando-se umas como mais "científicas" que outras (Cardoso, 1992). O material osteológicoencontra-se hoje disperso pelo menos por dois locais: Museu de Arqueologia da Camara Municipal deSesimbra e Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciencias e Tecnologia da Universidade do Porto.Ainda assim, foram elaborados vários estudos e publica<;oes aquando da sua descoberta (Isidoro, 1964;Monteiro et al., 1967; Monteiro et al., 1971), que tem sido citados e referidas outras tantas vezes empublica<;oes posteriores, facto de que é exemplo a obra de Serrao (1994).

De acordo com os autores que primeiramente a escavaram (Monteiro et al., 1971), sao descritas,somente no que se refere ao material arqueológico associado, dez sepulturas e um ossário.

Uma das sepulturas foi utilizada como modelo de descri<;ao para as outras pois, "para alé111 deestar absolutamente intacta, porque o canto ande jazia nao havia sido remexido, apresenta um corte muito bemdefinido" (Ibid. p.109). Esta sepultura é descrita como tendo cerca de 1,50 m de comprimento por 1 m delargura, com o fundo regularizado por lajes de calcário. As paredes eram feitas de lajes de cutelo. Aslajes de calcário cobriam, também, todo o conjunto. Por cima destas últimas, "calhaus postas a esrno" (Ibid.p.l09) tapavam todo o conjunto. O cranio era suportado por uma estrutura em forma de caixa e corpoapresentava-se em decúbito dorsal estando as pemas flectidas para o lado esquerdo. Nao se conhecemreferencias quanto él idade, sexo ou estatura do indivíduo

Existem, para além disto, dados relativos ao tipo de inuma<;ao de outras sepulturas. Assim,verifica-se a presen<;a de uma sepultura dupla (a n.o 6 de acordo com o referido estudo) e outra (a n.02,igual fonte) que tinha "um carpo do lado da cabeceira e outro aos pés" (Ibid. p.109). Este dado pode-nos levara pensar num caso de redu<;ao de corpo. A redu<;ao de corpos corresponde ao re-agrupamento dos ossosde um indivíduo, num espa<;o onde já tinha sido efectuado um depósito inicial (Silva, 1996).

Estas sao, contudo, hipóteses impossíveis de verificar, uma vez que já na altura se referia que eragrande o grau de destrui<;ao das inuma<;oes e porque, sem registos fiáveis da organiza<;ao do espa<;o

, Ila<;ao retirada a partir da análise do cademo de campo de um dos autores e membro da escava<;ao original (Rafael Monteiro)incluido e disponivel no espólio bibliográfico e documental do Museu Municipal de Sesimbra.

10]

Page 2: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHlSTÓRICAS PENINSULARES

funerário, somente podemos conjecturar. Nao existem, para tal efeito, fotografias ou desenhos de campoque nos possam elucidar.

Tal como se refere acima, os dados existentes relativos a escava<;ao, registo e conserva<;ao domaterial nao nos permitem obter dados fundamentais, como por exemplo, o número de sepulturas queconstituíam o espa<;o funerário do Bugio. Por estes motivos, o material em questao, que se apresentalimpo, marcado e devidamente acondicionado em depósito da Cámara Municipal de Sesimbra, foiestudado como se de um ossário se tratasse. Este estudo preliminar, sob a forma de contributo para oconhecimento do material, foi desenvolvido por Marques (2004) no ámbito de uma colabora<;ao com aCámara Municipal de Sesimbra.

Assim, esta série, tendo em conta o estudo das mandíbulas, representa, no mínimo, 15indivíduos. No que diz respeito a diagnose sexual, foi empregue a metodologia desenvolvida porWasterlain (2000) para ossos longos e a de Buikstra e Ubelaker (1994) e Ferembach et al. (1979) para aanálise morfológica craniana. O estudo de úmeros e fémures permitiu uma preponderáncia deindivíduos masculinos (3 e 6 respectivamente), ao passo que a análise morfológica dos cránios nos fazincluir elementos do sexo feminino na série, devido a presen<;a de um cránio com características que aessa conclusao se prestam.

A determina<;ao da iaade a morte, foi feita através do desgaste dentário das mandíbulas, daerup<;ao dentária para um nao adulto e da análise da epífise medial de uma clavícula. O estudo dodesgaste dentário concede-nos um intervalo de idades entre os 16 e os 55 anos de acordo com o métodoproposto por White (1991) para os indivíduos estudados e a erup<;ao dentária do nao adulto situa-onuma faixa etária entre os 10 e os 13 anos, tendo em conta os parámetros descritos em White (1991). Oestado de fusao da epífise medial (Buikstra e Ubelaker, 1994) da clavícula observada permite-nos pensarnuma idade inferior a 30 anos para o indivíduo.

No que a determina<;ao da estatura diz respeito, de acordo com o método desenvolvido porMendon<;a (2000), somente foi possível propor que um dos elementos do sexo masculino teria entre 1,66e l,67m de altura.

A análise dos caracteres discretos determinou a presen<;a de uma perfura<;ao (foramen) no parietalesquerdo da pe<;a 04/4 e de um osso supranumerário na sutura lambda do cránio composto peloselementos 04/3 e 04/4.No que concerne a uma análise paleopatológica preliminar, é de sublinhar a presen<;a de um elevadograu de desgaste dentário (cf. Fig. 1) e de cribra orbitalia.

2. Material e métodos

O material que é alvo deste estudo consubstancia-se em alguns especllnens dentários de 3fragmentos mandibulares que fazem parte de um conjunto de 22, também fragmentadas ou incompletas,pertencentes ao espólio osteológico humano proveniente da lapa pré-histórica do Bugio localizada emAzóia, Sesimbra e que faz parte do acervo material do Museu Municipal de Sesimbra.

Uma vez que todos os dentes analisados sao mandibulares e, portanto, inferiores, estaespecifica<;ao nao é feita quando os referimos. Somente é indicado o dente e sua lateralidade. Assim,recorrendo anomenclatura utilizada por White (1991), PI esquerdo é exemplo da designa<;ao dada a umprimeiro pré-molar esquerdo.

A pe<;a 04/22 é uma hemi-mandíbula esquerda, sem ramo ascendente e fracturada junto dasínfise mandibular (cf. Fig. 2), em que se preservam nos alvéolos, o canino (C) esquerdo, o primeiro pré­molar (PI) esquerdo e o primeiro (MI) e segundo (M2) molares esquerdos. As demais pe<;as dentárias(incisivo central (JI) direito, h esquerdo, incisivo lateral (h) esquerdo, segundo pré-molar (P2) e M3esquerdos) parecem ter sido perdidas post mortem, uma vez que, tanto quanto é perceptível, nao se

102

Page 3: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS ALTERA<;:6ES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

assiste a indícios claros de reabson;ao alveolar.A mandíbula 04/31 parece ter sido fragmentada ante ou post mortem de ambos os lados junto da linhaoblíqua, antes do início dos ramos ascendestes. Aquando da sua análise pudemos observar odesenvolvimento de torus mandibular esquerdo e direito e de espinhas mentonianas.

O único dente que se manteve no alvéolo correspondente é o MI esquerdo, sendo que, para osrestantes, parece ter havido perda ante ou post-mortem. Evidenciam-se como elementos dentáriosperdidos ante-mortem alguns dos incisivos centrais e laterais, assim como o MI e M2 direitos. Nesteúltimo caso, é clara a reabson;ao alveolar. Relativamente a perdas post-morte117., parecem representar estegrupo o C e PI e P2 direitos, assim como o PI e P2 esquerdos (cf. Fig. 3). Este dente apresenta algumaslinhas de fractura que se julgam ter ocorrido após a morte do indivíduo.

O fragmento mandibular 04/39 é um segmento que vai do C direito ao MI direito, sendo queainda se pode observar a face anterior do alvéolo do M2. Preservam-se nos alvéolos o C, o P2 e o M]direitos. O PI parece ter sido perdido post-mortem, urna vez que nao há reacc;ao do tecido alveolar (cf. Fig.4).

De entre o conjunto dos 22 fragmentos mandibulares2, podemos apontar a presenc;a de urnamandíbula de um nao adulto, de outra de indivíduo com extensa perda de dentes ante mortem, entreoutras. Urna característica evidente é o elevado grau de desgaste dentário de muitos dos dentes, tal comohavia já sido referido. Porque nao é esse o objectivo deste trabalho, o desgaste dentário só será avaliadopara os dentes que apresentam as alteraC;6es em questao. COlltudo, para que se tenha urna ideia, mostra­se um dos casos mais severos na figura 5.

Os desgastes e sulcos nestas pec;as dentária~ foram analisados recorrendo a análise macroscópicasimples e utilizando, quando necessário, instrumentos ópticos COlI'.J a lupa. A fotografia do material foifeita em condic;6es de luminosidade homogénea, utilizando urna fonte de luz indirecta artificial. Foiutilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada comurna lente macro Cad Zeiss. A utilizac;ao deste recurso permitiu que a análise fosse mais pormenorizada,para além do facto de possibilitar um armazenamento informático de elevada qualidade.

Para interpretar as observac;6es, foi feita pesquisa bibliográfica sobre o tema, usando palavraschave como "non-occlusal dental wear", "occupational dental wear", "taphonomic dental wear", "interproximaldental grooves", "extra-masticatory dental wear", em recursos como a Biblioteca do Conhecimento online ouos motores de busca (Sirius) da página de pesquisa bibliográfica da Biblioteca de Antropologia doDepartamento de Antropologia da FCTUC (SUB). Nao se descuraram, também, as informac;6es contidasem obras mais genéricas dedicadas él Antropologia Biológica, él Bioarqueologia, él Paleopatologia, entreoutras.

Para avaliar a patologia oral dos espécimens em análise, mais precisamente no que diz respeitoaos processos cariogénicos, utilizou-se a classificac;ao de Moore e Cobert (1971) in Powell (1985) para alocalizac;ao e a de Luckacs (1989) para o grau. Para o desgaste dentário recorremos él classificac;aodesenvolvida por Brothwell (1981), para material que se enquadre numa cronologia Neolítico - PeríodoMedieval, e referida por Mays (1998), no que se refere aos molares e para os caninos e pré-molares,decidimos empregar a metodologia proposta por Buikstra e Ubelaker (1994). Para a mineralizac;ao daplaca dentária escolheu-se a utilizac;ao do método referido por Lamarque (1991).

Recorre-se él metodologia conhecida como diagnóstico diferencial para procurar trac;ar alguns doscenários etiológicos possíveis para cada urna das alterac;6es.

2 Representantes de 15 individuos. Veja-se a Inh"odu<;ao.103

Page 4: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PE '1 SULARES

3. Resultados

Cada uma destas 3 mandíbulas apresenta, em determinadas pec;as dentárias e de mododiferenciado, sulcos e desgastes que, pela morfologia, dimens6es e localizac;ao, sao singulares. A suadescric;ao e análise é feita nos pontos seguintes.

3.1. A Mandíbula fragmentada 04/22

A mandíbula fragmentada 04/22 possui, nas faces vestibulares do C esquerdo e do Pl esquerdo,indícios de alterac;ao que se apresentam sob a forma de planos de desgaste desiguais formando umaconcavidade angulosa. As suas medidas sao difíceis de apresentar, uma vez que a alterac;ao é muitoirregular. Contudo, pode dizer-se que, para o C, a altura máxima da alterac;ao é de 5,5 mm e a larguramáxima é de 6,9 mm. No que concerne ao P1, consegue-se somente referir que as dimens6es de superfíciedesgastada sao menores (d. Figs. 6, 7 e 8). Em termos de posicionamento nas coroas, as duas alterac;6esparecem estar amesma altura.

Tanto os desgastes verificados no C como no P1 nao apresentam bordos de arestas vivas sendo,ao contrário, a transi<;ao para' a superfície nao desgastada feita com suavidade.

Verifica-se, também, lnineralizac;ao da placa dentária de estado 1 na face vestibular do Cassociado a esta alterac;ao. Já o desgaste dentário oclusal pode ser avaliado como sendo de estádio 4(exposic;ao moderada de dentina) para o C e estádio 3 (remo<;ao das cúspides e ponto de dentinamoderado) para o P1 .

3.2. A Mandíbula fragmentada 04/31

A mandíbula fragmentada 04/31 exibe duas cáries interproximais de grau 1 no M1 esquerdo (cLFigs. 9 e 10). A cárie interproximal posterior verificámos estar directamente associada uma alterac;ao soba forma de sulco paralelo ao plano oclusal da coroa do dente e localizado aproximadamente a 3,0 mmdaquela linha, com cerca de 1,0 mm de profundidade (d. Fig. 11) e 7,0 mm de largura máxima. Podedizer-se que o sulco atravessa a cárie ou que esta patologia intersecta aquela altera<;ao. Sao possíveis asduas interpretac;6es.

A última medida referida (7,0 11U11 largura máxima) pennite ao sulco, cujos bordos sao cortantes,chegar a face vestibular do dente, contornando-o. Nota-se também que atravessa o dente, em eixovertical, uma fractura que parece ser post-111orte117 e derivada da actividade dos agentes do processotafonálnico (d. Fig. 11). O grau de desgaste oclusal verificado é classificado como sendo de estádio 4+,apresentando já alguma tendencia acoalescencia dos pontos expostos de dentina (d. Fig. 12).

3.3. O Fragmento mandibular 04/39

No que diz respeito ao desgaste dentário oclusal do M1 direito do fragmento mandibular 04/39, aclassificac;ao encontrada é de grau 2, nao evidenciando os demais dentes este tipo de desgaste. Nao seregista, também, a presen<;a de processos cariogénicos.

A mandíbula fragmentada 04/39 apresenta no M1 direito, na zona de transic;ao entre a coroa e araiz em posi<;ao lateral posterior, unl sulco, localizado a 4,0 mm do plano de oclusao, com 4,0 mm delargura, 3,0 mm de altura máxima e com 1,0 mm de profundidade (d. Figs. 13 e 14). A transic;ao para aface nao alterada do dente é em fonna de aresta viva. Ao contrário do que acontece no M'I esquerdo damandíbula fragmentada 04/31, o sulco nao invade a face vestibular do dente, mas sim a sua face lingual.Tanto P2 como M'I apresentam fracturas longitudinais (d. Fig. 15).

104

Page 5: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUCIO - SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS ALTERA<;:6ES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

4. Discussao

Existem várias formas através das quais o material dentário pode sofrer traumas. Estas incluem aagressao directa da face, a fon;a exercida em algum material mais duro e que provoca fractura doesmalte dentário, abrasao por alimentos menos brandos, uso dos dentes como uma ferramentasuplementar em alguma actividade ocupacional, entre outros, tal como refor¡;a Ortner (2003).Pechenkina et al. (2002) mostram-nos, por outro lado, que alimenta¡;ao, desgaste dentário e esfor¡;omastigatório sao vectores intimamente ligados e que é exponencial a complexidade da sua interac¡;ao.Nao podemos, portanto, colocar de lado a hipótese de que as altera¡;6es ao material dentárioapresentadas advem, pelo menos em certa medida, da fW1¡;ao mastigatória usual.

Sao algumas as referencias encontradas na literatura acerca de altera¡;6es ao material dentário soba forma de sulcos ou desgastes nao oclusais, sendo diversas as interpreta¡;6es que os autores apresentampara a sua presen¡;a no material osteológico e mesmo fóssil. Apresentam-se, seguidamente e de formaresumida, algw1s casos que nos parecem ajudar a entender melhor as altera¡;6es no material dentário danecrópole do Bugio, uma vez que tanto pela morfologia, como pela localiza¡;ao, constituemcaracterísticas identicas.

Aponta Ubelaker (1989), reportando-se a altera¡;6es semelhantes as que apresenta o materialdentário objecto deste trabalho, que é verdadeira a observa¡;ao de sulcos relativamente pouco profw1dose polidos que tendem a ocorrer entre os molares na jW1¡;aO da coroa com a raiz de algum material (d.Fig. 16). Acrescenta o autor, que a aparencia e o posicionamento destes sulcos sugerem que teriam sidoproduzidos pela inser¡;ao repetida de um instrwnento entre os dentes e que, quando associados a cáriese a reabsor¡;ao alveolar por doen¡;a periodontal, os sulcos podem indicar uma tentativa de alívio dodesconforto provocado por tais processos patológicos.

Numa outra publica¡;ao, mais recente, referem Buikstra e Ubelaker (1994), sao várias asmodifica¡;6es dentárias ante ou perí mortem que podemos observar no registo arqueológico. Uma das:ategorias estabelecidas e propostas pelos autores é a de desgaste dentário associado a produ¡;ao ou usode artefactos.

É neste ponto específico que os autores incluem sulcos interproximais que podem estarassociados a processos de cárie ou doen¡;a periodontal e que podem ser explicados pela ac¡;ao de puxarfios finos ou cordel entre e através dos dentes, actividade associada ao uso ou produ¡;ao de artefactos(Buikstra e Ubelaker, 1994). Estas altera¡;6es sao muito semelhantes as observadas e descritas para omaterial do Bugio.

Bass (1995), por seu lado, advoga que sao várias as características da morfologia dentária quepodem ser atribuídas a factores culturais, referindo que tem sido verificada a ocorrencia de sulcosartificiais localizados em zonas interproximais dos molares de vários indivíduos de origem índia (d.figura 17). Estes sulcos verificam-se preferencialmente na zona de jun¡;ao da coroa com a raiz do denteem questao e estao associados a ocorrencia de cáries, abcessos e doen¡;a periodontal. Por este motivo,uma hipótese apontada para a explica¡;ao dos sulcos é a tentativa de alívio da dor sentida na regiao.Refere-se ainda que estes casos sao relatados em sítios arqueológicos de toda a zona norte do continenteamericano e em períodos de tempo muito variados.

Alegam Roberts e Manchester (1995) que a modifica¡;ao do material dentário com motiva¡;6escomportamentais pode ser evidente numa observa¡;aO macroscópica ou através de estrias microscópicas.No que respeita as altera¡;6es Inacroscópicas a inten¡;ao pode ser clara e devida a trauma ocupacional,por exemplo.

É referido por estes autores que existem evidencias para a utiliza¡;ao de instrumentos parapromover a higiene oral e que provocam sulcos em dentes adjacentes. Semelhante interpreta¡;ao é feitapor Hillson (1996) para o mesmo tipo de características dos dentes.

-105

Page 6: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PENINSULARES

Altera<;oes muito comparáveis as do nosso material podem ser observadas em Capasso (Capassoet al., 1999) . Estas sao descritas como sulcos que desgastam as faces mesial e distal dos dentes,estendendo-se completamente nas margens bucal e lingual. Sao interpretadas como decorrentes doprocessamento de fibras animais com os dentes.

A hipótese de promo<;ao da higiene oral e a tentativa terapeutica de alívio das dores provocadaspor patologias dento-alveolares é defendida, por seu turno, por BOlúiglioli et al. (2004) acerca do materialproveniente da necrópole Epipaleolítica de Taforalt, em Marrocos. A preferencia de explica<;ao destesautores recai sobre a segunda hipótese.

Larsen (1997), referindo-se a desgaste extramastigatório, diz-nos que algumas das maioresexigencias mecanicas que se exercem sobre os dentes advém do uso dos destes como ferramentas emfun<;oes nao mastigatórias. Neste particular faz notar que as pe<;as dentárias podem mostrar os efeitos deurna grande variedade de actividades nao relacionadas com a alimenta<;ao, que resultam em padroes dedesgaste, fracturas ou perda de dentes por trauma, evidencias facilmente distinguíveis.

Outros contributos para a discussao do tema advem do trabalho de Mays (1998), alegando quesao vários os grupos humanos recentes que, ao praticarem urna higiene oral rudimentar, recorrem autensílios como os "ehewing stieles" ou "tooth pieles" para prevenir patologias como as cáries. Parecetambém, e¡¡n conformidade com o autor, que existem evidencias arqueológicas deste procedimento emalguns dentes. Os sulcos, que pelo posicionamento sao interproximais, tem urna interpreta<;ao bastantecontroversa, sendo que nalgumas situa<;oes se pode pensar na inser<;ao de utensílio para desalojarresíduos de alimentos.

Hlusko (2003), por seu lado, apresenta-nos as evidencias de urna experiencia de naturezabiocultural desenhada para testar a hipótese de que a utiliza<;ao de filamentos vegetais3 disponíveis emabundancia e em dispersao geográfica e cronológica, como palit04, poderia ter resultado na ocorrenciados já referidos sulcos interproximais. Os resultados apontam no sentido de que a utiliza<;ao dessespalitos produz altera<;oes cuja morfologia macro e microscópica é identica a dos sulcos identificados eanalisados no registo fóssil e nas séries osteoarqueológicas. Estas altera<;oes representam urna das maisantigas evidencias comportamentais do registo fóssil hominídeo, apresentando dados sobre aspaleodietas, saúde oral e, porque ocorrem mais em indivíduos do sexo masculino em grupos humanosanatomicamente modernos, possivelmente acerca dos papéis sociais desempenhados por cada género(Hlusko, 2003).

A utiliza<;ao de fibras vegetais em ac<;oes rudimentares de higiene oral ou o processamento,recorrendo a boca como urna 3a mao, de tendoes de animais, sao as explica<;oes mais críveis apresentadaspor Bermúdez de Castro et al. (1997) para explicar o desgaste interproximal mandibular encontrado nosrestos fósseis de alguns hominídeos da Sierra de Atapuerca, em Espanha. Um dado importante referidopelos autores é que estas hipóteses, a terem ocorrido, poderao ter sido agravadas no resultado pela ac<;aode partículas de sujidade adjacentes aquando da introdu<;ao repetida destes elementos estranhos entre adenti<;ao posterior.

A hipótese de os sulcos interproximais advirem do processamento de tendoes de animais para amanufactura<;ao de artefactos, recorrendo a boca como urna ferramenta extra é, também, explorada porBrown e Molnar (1990) no que respeita a 85 cranios do século XIX encontrados em Swanport, Sul daAustrália. Também aqui, tal como se refere atrás, ila<;oes sobre possíveis papéis sociais podem advir dofacto de os sulcos terem o dobro da frequencia nos homens. Esta explica<;ao para as altera<;oes écontestada por Frayer (1991), sendo a introdu<;ao interproximal de instrumentos vegetais na denti<;aomandibular anterior preferida por este autor.

3" Grass stalks" no original.4 "Toothpick" no original.

106

Page 7: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECíFICO DAS ALTERA<;:6ES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

o caso das altera<;oes a denti<;ao mandibular anterior é discutido, por exemplo, por Torres-Rouf(2003), quando aborda o tema das implica<;oes orais do uso de adornos labiais em popula<;oes do Chilepré-colombiano. Mostra o autor que, entre outras afec<;oes da cavidade oral, o uso deste tipo de artefactopor parte de um dos indivíduos de urna série de Solcor - 3, Chile, fez com que a sua saúde oral fossemenor do que a dos demais indivíduos estudados. Para além de extensa perda ante-mortem de dentes,ambos os caninos apresentam facetas labiais de desgaste, cujas dimensoes variam entre os 7,0 mm e 8,5mm de altura e os 3,0 mm e 3,5 mm de largura e de forma ovalada. Estas zonas sao muito polidas eachatadas. Nao existem altera<;oes semelhantes nos dentes maxilares.

Também a denti<;ao anterior de um esqueleto medieval do Kent, Inglaterra, estudado por Turnere Anderson (2003), mostra um elevado grau de desgaste irregular e interproximal, que os autoresatribuem, presumivelmente, a actividade ocupacional, mais precisamente a carpintaria. Isto porquepregos medievais recolhidos parecem encaixar na perfei<;ao nas diversas formas desgastadas dosincisivos mandibulares.

A hipótese de altera<;oes tafonómicas coloca-se com alguma for<;a. Uma análise microscópicalevada a cabo por Pérez-Pérez et al. (1999) sobre fósseis de Hamo heidelbergensis provenientes da Sima delos Huesos, Atapuerca - Espanha, mostra-nos, contudo, que o padrao de altera<;ao é algo diferente doque foi exposto nos pontos anteriores deste trabalho. Com efeito, o que se observa naqueles fósseis é apresen<;a de uma elevada densidade de tra<;os curtos causados pela abrasividade dos sedimentos sobre asuperfície do esmalte. É certo que, tanto o contexto tafonómico da Sima de los Huesos, e logo os seusagentes, como o tipo de análise que mostrou estes resultados, diferem grandemente do que foiobservado e realizado para o material da lapa do Bugio.

Contudo, parece-nos, estas sao evidencias que devem ser conhecidas e inc1uídas na presenteanálise.

Um outro estudo acerca dos efeitos do processo tafonómico no material dentário é-nos trazidopor King et al. (1999). Para este efeito, foram criadas condi<;oes que pudessem, de forma cabal, simular osefeitos de alguns agentes do processo tafonómico sobre material dentário. Assim, este material foi sujeitoa erosao por ácidos, simulando a digestao de um carnívoro; por substancias alcalinas, tal comoaconteceria em alguns contextos sedimentares e a abrasao semelhante a provocada por transporte oupressao sedimentar. Nao sendo estes todos os agentes do processo, as altera<;oes provocadas, percebe-se,visualizam-se sobretudo a nível microscópico.

Tendo em conta estas abordagens e interpreta<;oes podemos esbo<;ar um diagnóstico diferencial:Uma das hipóteses mais plausíveis para o padrao de desgaste pouco comum observado na

mandíbula fragmentada 04/22 seria uma altera<;ao provocada por algum elemento nao inc1uído noprocesso mastigatório, uma vez que a sua localiza<;ao é labial e anterior. O caso de utiliza<;ao dedeterminada espécie de adorno, ou do benefício da boca para algum tipo de actividade ocupacional,sendo a primeira preterida em rela<;ao a segunda, sao explica<;oes viáveis. A presen<;a dos mesmosdentes da hemi mandíbula oposta seria de grande valia.

Para explicar a altera<;ao dentro dos parametros da actividade mastigatória, o overbiting, quedesigna a sobreposi<;ao da denti<;ao maxilar a mandibular aquando da oc1usao (Kaifu, 2000), seria umahipótese possível mas pouco provável para a altera<;ao observada neste espécimen, tendo em conta que omovimento necessário seria contrário a natureza biomecanica da mandíbula humana. Também amineraliza<;ao da placa dentária junto da altera<;ao pode advogar a favor de uma altera<;ao ante-mortem,uma vez que a produ<;ao de um desgaste tao visível num período post-mortem teria, com algum grau deprobabilidade, removido a placa dentária ainda adjacente. Junta-se a isto o facto de as arestas dodesgaste nao serem vivas. Nao descartamos, contudo uma altera<;ao resultante da actua<;ao de agentestafonómicos.

107

Page 8: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PENINSULARES

Para as altera<;6es presentes no MI esquerdo da mandíbula fragmentada 04/31, as hipótesesetiológicas que conseguimos avan<;ar sao enriquecidas pela presen<;a de urna cárie associada ao sulco.Com efeito, podemos propor que a cárie na zona de transi<;ao entre a raíz e o esmalte telilla sidoprovocada pelo enfraquecimento continuado do local, pela introdu<;ao de corpo estranho, reduzindo aresisténcia él ac<;ao bacteriana. O inverso pode, também, ser verdadeiro, na medida em que o surgimentoda cárie pode ter levado él inser<;ao repetida de objecto semelhante no local de forma a ali viar odesconforto, tal como defendem autores já citados (Bass, 1995; Bonfiglioli et al., 2004; Ubelaker, 1989). Noprimeiro caso a altera<;ao poderia ter urna origem, por exemplo, ocupacional. Já no segundo esta dever­se-ia cuidados de terapéutica ou higiene oral rudimentares.

Outra possibilidade etiológica seria a actua<;ao de agentes do processo tafonómico e altera<;aopost-mortem. Neste caso, alguns dos argumentos a favor consubstanciar-se-iam nos factos de os bordosdo sulco serem cortantes e da existéncia de fractura no dente. Lamenta-se a auséncia dos restantesdentes, sobretudo do M2 esquerdo, pois daqui poderiam advir mais informa<;6es.

A outra altera<;ao num MI do fragmento mandibular 04/39 da mesma série osteológica humanaparece-nos talvez a menos fácil de interpretar. Na realidade, a altera<;ao pode, entre outras, ser resultanteda actua<;ao de agentes tafonómicos, de práticas ocupacionais ou derivada de cuidados de higiene oralrudimentanes, sem prevaléncia de nenhuma. O facto de que o dente que apresenta o sulco estarfracturado no eixo vertical, -e de isto poder ser interpretado como acontecimento post-l1wrtem, podesustentar a origem tafonómica da altera<;ao, assim como a defende a evidéncia de que os bordos sao algoirregulares e a transi<;ao para a face nao desgastada é um pouco abrupta. Por outro lado, a orienta<;ao dosulco é muito semelhante él que se mostra na figura 16 para defender a inser<;ao de um objecto estranho.

5. Notas finais

O estudo de 3 mandíbulas fragmentadas pertencentes él série osteológica humana da necrópolecalcolítica do Bugio - Sesimbra mostrou a existéncia de sulcos interproximais e de desgastes anterioresnos dentes preservados. Nao encontrámos, para o território portugués, registos de casos semelhantes.Talvez isto se deva ao facto de que, nao sendo muito evidentes, altera<;6es deste tipo possam facilmentepassar despercebidas, se a sua localiza<;ao e análise nao for o objectivo do estudo. A interpreta<;ao que sefaz das observa<;6es aponta no sentido de que as características do material podem ter surgido pelautiliza<;ao da boca como um recurso com fun<;ao extra mastigatória, por práticas terapéuticas ou dehigiene oral incipiente ou , por outro lado, a sua origem pode ser tafonómica. Todas estas hipóteses, eoutras que nao descortinamos, sao possíveis.

Urna vez que nao tivemos oportunidade de estudar a totalidade do material, assim como aqueleque foi observado se encontra fragmentado e incompleto, deve ter-se em conta que este trabalho seapresenta com limita<;6es e prima pelo carácter exploratório e eminentemente introdutório.

De entre os constrangimentos apontados, salienta-se o facto de nao estarem presentes, na sérieobservada, os dentes maxilares e restantes mandibulares dos indivíduos em questao. Seria muitorelevante o estudo do material guardado no Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciéncias eTecnologia da Universidade do Porto. A sua análise, assim como outras informa<;6es relativas él série,poderiam proporcionar urna imagem mais clara das press6es comportamentais, tafonómicas ou outras aque esteve sujeita a denti<;ao dos indivíduos inumados na Lapa do Bugio e, em consequéncia, do seumodo de vida.

108

Page 9: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS ALTERA<;:ÓES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

BIBLIOGRAFÍA

BASS, W.M. (1995): Human osteology: a laboratory and field m.anual. Columbia.BERMúDEZ DE CASTRO, J.M., ARSUAGA, J.L. e PÉREZ, P,J. (1997): Interproximal grooving in the

Atapuerca-SH hominid dentitions. American Joumal ofPhysical Anthropology 102: 369-376.BONFIGLIOLI, B., MARIOTTI, V., FACHINI, E, BELCASTRO, M.e. e CONDEMI, S. (2004): Masticatory

and non-masticatory dental modifications in the Epipalaeolithic necropolois of Taforalt (Morocco).Intemational Joumal ofOsteoarchaeology 14: 448-456.

BROTHWELL, D. (1981): Digging up bones. Nova York.BROWN, T. e MOLNAR, S. (1990): Interproximal groove and task activity in Australia. American JO~lrnal

ofPhysical Anthropology 81: 545-553.BUIKSTRA, J. e UBELAKER, D. (1994): Standards for data collections fram human skeletal remains. Arkansas

Survey Research Series 44. Lafayetteville.CAPASSO, L., KENNEDY, K. e WILCAZK, e. (1999): Atlas of occupational markers 011. human remains.

Journal of Paleontology. Monographic Publications 3. Teramo.CARDOSO, J.L. (1992): A lapa do Bugio. Setúbal Arqueológica: IX-X: 89-225.FEREMBACH, D., SCHWIDETZKY, 1. e STLOUKAL, M. (1979): Recommandations pour la

détermination de l'age et du sexe sur le squelette. Bulletins et Mémoires de la Societé d'Anthropologie deParis XIII: 7-45.

FRAYER, D.W. (1991): On the etiology of interproximal grooves. American Joumal of PhysicalAnthropology 85: 299-304.

HILLSON, S. (1996): Dental anthropology. Cambridge.HLUSKO, L.J. (2003): The oldest hominid habit? Experimental evidence for tooth picking with grass

stalks. Current Anthropology 44: 738-741.ISIDORO, AE (1964): Estudo do espólio antropológico da gruta neo-eneolítica do Bugio (Sesimbra). Porto,.KAIFU, y. (2000): Tooth wear and compensatory modification of the anterior dentoalveolar complex in

humans. American Joumal ofPhysical Anthropology 111: 369-392.KING, T., ANDREWS, P. y BOZ, B. (1999): Effect of taphonomic processes on dental microwear.

American Joumal ofPhysical Anthropology 108: 359-373.LAMARQUE, e. (1991): Caries, usure et paradonte dune population medieval provenant du Quartier Saint­

Etienne aToulouse. Bordéus.LARSEN, e.S. (1997): Bioachaeology: interpreting behaviour from. the human skeleton. Cambridge.LUCKACS, J. (1989): Dental paleopathology: methods for reconstructing dietary patterns. Em M. Iscan y

K. Kennedy (eds.): Reconstruction ofliJefram the skeleton. Nova York.MARQUES, RB.e. (2004): Contributo para o estudo do material osteológico humano da lapa do Bugio, Azóia ­

Sesimbra (Relatório técnico inédito). Camara municipal de Sesimbra.MAYS, S. 1998. The archaeology ofhuman bones. Londres.MENDONC;::A, M.e. (2000): Estimation of height from the length of long bones in a Portuguese adult

population. American Joumal ofPhysical Anthropology 112: 39-48.MONTEIRO, R, ZBYSZEWSKY, e. e FERREIRA, O.de V. (1967): Uma notável placa de xisto encontrada

na Lapa do Bugio (Azoia). Revista de Guimariies LXXVII(3-4): 323-328.- '(1971): Nota preliminar sobre a lapa Pré-Histórica do Bugio. JI Congresso Nacional de Arqueologia.

Coimbra: 107-120.ORTNER, D.J. (2003): Identification ofpathological conditions in human skeletal remains. San Diego.PECHENKINA, E.A, BENFER, RA e ZHIJUN, W. (2002): Diet and health changes at the end of the

chinese Neolithic: The Yangshao/Longshan transition in Shaanxi province. American Joumal ofPhysical Anthropology 117: 15-36.

109

Page 10: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PENJNSULARES

PÉREZ-PÉREZ, A., BERMÚDEZ DE CASTRO, J. YARSUAGA, J. (1999): Non-occlusal dental microwearanalisys of 300.000-year-old Homo heidelbergensis teeth from Sima de los Huesos (Sierra de Atapuerca,Spain). American Journal ofPhysical Anthropology 108: 433-457.

POWELL, M.L. (1985): The analysis of dental wear and caries for dietary reconstruction. Em: R.I. Gilbert e J.H.Mielke (eds.): The analysis ofprehistoric diets: 307 - 338, 1985.

ROBERTS, e. y MANCHESTER, K. (1995): The archaeology of disease. Nova York.SERRÁO, E.e. (1994): Carta arqueológica do concelho de Sesim.bra: do Vilafranquiano Médio até 1200 d.C.

Sesimbra.SILVA, A.M. (1996): N09i5es de Antropologia funerária: práticas funerárias do paleolítico médio ao neolítico final

(Provas de aptidao pedagógica e capacidade científica). Universidade de Coimbra.TORRES-ROUFF, e. (2003): Oral implications of labret use: a case from the Pre-Columbian Chile.

Intemational Joumal of Osteoarchaeology 13: 247-251.TURNER, G. e ANDERSON, T. (2003): Marked occupational dental abrasion from medieval Kent.

Intemational Joumal ofOsteoarchaeology 13: 168-172.UBELAKER, D. (1989): Hum.an skeletal remains: excavation, analysis, interpretation. Washington.WASTERLAIN, S.R. (2000): Morphé: análise das propor9i5es entre os membros, dimorfismo sexual e estatura de

uma an1,Qstra da Colec9iio ae Esqueletos Identificados do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra.Coimbra.

WHITE, TD. (1991): HUlnan osteology. San Diego.

lID

Page 11: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGlO - SESIMBRA O CASO ESPECíFICO DAS ALTERAc;:6ES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

Figura 1. Perspectiva oclusal do fragmento mandibular 04/40representativa do elevado grau de desgaste dentário dos

molaTes do conjunto em análise.

111

Figura 2. Perspectiva oclusal da mandíbula fragmentada04/22. Podem observaT-se os dentes presentes, assim comoausencia de reabson;:ao dos alvéolos em que as pe<;as nao se

preservaram.

Page 12: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PENINSULARES

Figura 3. Perspectiva oclusal da mandíbula fragmentada 04/31, em que se destacam as espinhas mentonianas e os torii (setas).

Figura 4. Perspectiva oclusal da mandíbula hagmentada 04/39, em que podem observar os dentes preservados.

112

Page 13: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECíFICO DAS ALTERA<;:ÓES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

Figura 5. Vista oclusal da mandíbula fragmentada 04/21, em que se pode observar o elevado grau de desgaste dentário do M2esquerdo. A cavidade pulpar fica exposta, senda que esta característica pode advir do desgaste severo ou da actividade dos

agentes tafonómicos.

Figura 6. Perspectiva oclusal do fragmento de mandíbula 04/22 em que é possível observar n1ineraliza<;ao da placa dentáriaperto do bordo alveolar do e esquerdo (seta), assim como o desgaste oclusal avaliado.

113

Page 14: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHJSTÓRICAS PENINSULARES

Figura 7. Perspectiva vestibular pormenorizada dos dentes envolvidos no desgaste vestibular da mandíbula fragmentada

04/22.

Figura 8. Pormenor interproximal do desgaste vestibular anterior (seta) do e esquerdo da mandíbula fragmentada 04/22.

114

Page 15: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO - SESIMBRA O CASO ESPECíFlCO DAS ALTERA<;:6ES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

Figura 9. Perspectiva interproximal anterior pormenorizada do MI esquerdo da mandíbula fragmentada 04/31 em que sedestaca a cárie interproximal anterior analisada.

Figura 10. Perspectiva interproximal posterior pormenorizada do MI esquerdo da mandíbula fragmentada 04/31 em que sedestaca a cárie interproximal descrita, assim como o sulco que se lhe associa e a fractura em eixo vertical (seta).

115

Page 16: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PENINSULARES

Figura 11. Perspectiva vestibular pormenorizada do sulco presente no M, esquerdo (seta) da mandíbula fragmentada 04/31.

Figura 12. Perspectiva oclusal do M, esquerdo da mandíbula fragmentada 04/31 em que se pode observar o desgaste oclusal e,em menor escala, a cárie e o sulco posteriores.

116

Page 17: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUGIO- SESIMBRA O CASO ESPECíFICO DAS ALTERAC;:ÓES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

Figura 13. Perspectiva lingual do sulco descrito para o Ml direito do fragmento mandibular 04/39.

Figura 14. Perspectiva lingual pormenorizada do sulco descrito para o M, direito (seta) do fragmento mandibular 04/39, emque este é orientado de forma a que se visualize melhor a altera<;ao.

117

Page 18: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAS SOCIEDADES PREHISTÓRICAS PENINSULARES

Figura 15. Perspectiva oclusal do fragmento mandibular 04/39 em que se pode observar a fractura longitudinal no MI (seta).

Figura 16. Sulco interproximal num molar mandibular associado a uma lesao por cárie. Adaptado de Ubelaker (1989).

118

Page 19: LAPA DOBUGIO -SESIMBRA O CASO ESPECÍFICO DAS … Com... · utilizada urna máquina fotográfica digital Sony DSC-S85, de 4.1 Mega Pixels, 6X Zoom, equipada com urna lente macro Cad

LAPA DO BUCIO - SESIMBRA O CASO ESPECÍF1CO DAS ALTERA<;:ÓES ENCONTRADAS NO MATERIAL DENTÁRIO HUMANO

f····i.;ji~ •. ~j

'y,...... t

- ¡rJ~"f!"'~t. . 1~ . ." <'

.';. .:¡ ~ -..-,

l<,c.

'rd

'--._~ ;."

./(.',

Figura 17. Imagem representativa do processo de altera<;ao artificial do material dentário sob a forma de sulcos interproximais.Adaptado de Bass (1995).

119