laudos

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Ilka Boaventura Leite (organizadora) Laudos Periciais Antropológicos em debate Autores: Ilka Boaventura Leite Ela Wiecko Wolkmer de Castilho Silvio Coelho dos Santos Ruben George Oliven Miriam de Fátima Chagas Daisy Barcellos José Carlos Gomes dos Anjos José Maurício P. Andion Arruti Miriam Furta- do Hartung Osvaldo Martins de Oliveira Maria Dorothea Post Darella Flávia Cristina de Mello Paula Colmegna Ricardo Cid Fernandes Marcelo Veiga Beckhrausen Eliane Cantarino O’Dwyer Elaine Amorin Simone Becker Apoio: CNPq/ Fundação Ford 2005

Transcript of laudos

  • Ilka Boaventura Leite(organizadora)

    Laudos PericiaisAntropolgicos

    em debate

    Autores:Ilka Boaventura Leite z Ela Wiecko Wolkmer de Castilho z Silvio Coelho dosSantos z Ruben George Oliven z Miriam de Ftima Chagas z Daisy Barcellos zJos Carlos Gomes dos Anjos z Jos Maurcio P. Andion Arruti z Miriam Furta-do Hartung z Osvaldo Martins de Oliveira z Maria Dorothea Post Darella z FlviaCristina de Mello z Paula Colmegna z Ricardo Cid Fernandes z Marcelo VeigaBeckhrausen z Eliane Cantarino ODwyer z Elaine Amorin z Simone Becker

    Apoio: CNPq/ Fundao Ford2005

  • Copyright 2005, Ilka Boaventura Leite

    Capa e diagramaoNova Letra Grfica e Editora

    Apoio TcnicoAlexandra Alencar

    RevisoMarco Antnio Beck e Valria Herzberg

    ApoioCNPqFundao Ford

    340.115A849l

    Leite, Ilka Boaventura Laudos periciais antropolgicos em debate / Organizadora Ilka Boaventura Leite. Florianpolis : Co-edio NUER/ABA/2005. 288p.

    Apoio: CNPq/Fundao FORD/AB. ISBN 85-7682-045-5 (Nova Letra Grfica e Editora)

    1. Etnologia jurdica 2. Antropologia Laudos periciais I. Leite, IlkaBoaventura II. Ttulo.

    Contatoshttp://www.abant.org.brhttp://www.nuer.ufsc.br

    Impresso no Brasil2005

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partesdeste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito.

  • 5SUMRIO

    APRESENTAOMiriam Pillar Grossi e Gustavo Lins Ribeiro,09

    INTRODUOOs Laudos Periciais um novo cenrio na prtica antropolgicaIlka Boaventura Leite, 13

    PRIMEIRA PARTEA CARTA DE PONTA DAS CANAS EM DEBATE

    Oficina sobre Laudos Antropolgicos, 29A Carta de Ponta das Canas, 33

    Debatendo a CartaIlka Boaventura Leite, 45

    A atuao dos antroplogos no Ministrio Pblico FederalEla Wiecko Wolkmer de Castilho, 53

    Comentrio sobre a Carta de Ponta das CanasSilvio Coelho dos Santos, 59

  • 6O reconhecimento das terras indgenas e dos remanescentesde comunidades de quilombos diz respeitoa toda a sociedade brasileiraRuben George Oliven, 63

    SEGUNDA PARTELAUDOS DE IDENTIFICAO TNICA E TERRITRIOS TRADICIONAIS

    Estudos antropolgicos nas comunidades remanescentes de quilombos:sinais que amplificam a luta por uma vida histrica, vida jurdicaMiriam de Ftima Chagas, 71

    Relatrios tcnicos de identificao tnica e territrios tradicionais o caso de Morro AltoDaisy Barcellos, 81

    Remanescentes de quilombos: reflexes epistemolgicasJos Carlos Gomes dos Anjos, 89

    Etnografia e Histria no Mocambo:notas sobre uma situao de perciaJos Maurcio P. Andion Arruti, 113

    Os limites da assessoria antropolgica: o caso dos descendentesde escravos e libertos da Invernada Paiol de Telha - PRMiriam Furtado Hartung, 137

    O trabalho e o papel do antroplogo nos processos deidentificao tnica e territorialOsvaldo Martins de Oliveira, 147

  • 7TERCEIRA PARTELAUDOS SOBRE IMPACTOS AMBIENTAIS E PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO

    As Comunidades Guarani e o processo de duplicao da BR-101em Santa Catarina: anlise da questo territorialMaria Dorothea Post Darella e Flvia Cristina de Mello, 157

    Reflexiones acerca del papel del/a antroplogo/aen proyectos de desarrolloPaula Colmegna, 171

    Produto e processo: desafios para o antroplogo naelaborao de laudos de impacto ambientalRicardo Cid, 191

    Aplicao do princpio da proporcionalidade:conflitos entre diversidade e desenvolvimentoMarcelo Veiga Bekhrausen, 207

    QUARTA PARTETICA E INTERVENO

    Laudos Antropolgicos: pesquisa aplicada ou exerccioprofissional da disciplina?Eliane Cantarino ODwyer, 215

    O lugar da Antropologia no campo multidisciplinar do laudoElaine de Amorim Carreira, 239

    Breves Reflexes sobre interveno e tica nos laudos antropolgicosSimone Becker, 249

  • ANEXOS

    1- ACORDO DE COOPERAO TCNICA ENTRE AABA E O MINISTRIO PBLICO, 2001 ................................................... 265

    2- MINISTRIO PBLICO FEDERAL: DOCUMENTO DOS ANTROPLOGOS, 2001 ....... 273

    3- DESAFIOS DO MERCADO DE TRABALHO E REGULAMENTAO DE ASSESSORIAS,LAUDOS E PERCIAS RELATRIO DA OFICINA DE ENSINO DE ANTROPOLOGIA:DIAGNSTICO, MUDANAS E NOVAS INSERES NOMERCADO DE TRABALHO, 2002 ............................................................. 279

    4- DOCUMENTO DA ABA SOBRE O DECRETO 4 887, 2003 ........................ 283

  • 9APRESENTAO

    com grande satisfao que apresentamos este livro, organizado por IlkaBoaventura Leite, resultado de uma srie de encontros realizados sob os auspciosda Associao Brasileira de Antropologia, iniciados na gesto presidida por RubenGeorge Oliven (2000/2002). As gestes subseqentes presididas por GustavoLins Ribeiro (2002-2006) e Miriam Pillar Grossi (2004-2006) seguiram nesta aode privilegiar, no mbito da ABA, a reflexo sobre percias antropolgicas napromoo de fruns de debates e divulgao dos trabalhos dos pesquisadoresengajados neste campo temtico.

    Este livro fruto de um debate iniciado h quase duas dcadas, desde apromulgao da Constituio de 1988, sobre o papel dos antroplogos na ela-borao de laudos periciais. As reflexes sobre laudos, no campo antropolgico,se iniciaram em torno da demanda de especialistas antroplogos para a demar-cao de terras indgenas, de estudos sobre impactos ambientais em projetos dedesenvolvimento e questes territoriais junto aos remanescentes de comunidadesde quilombos. A complexidade destas questes e demandas transformaram, hoje,este tema, em projeto prioritrio nas aes da comunidade antropolgica preo-cupada com a luta dos grupos sociais em seus direitos e reivindicaes.

    Esta publicao vem se somar a uma srie de outros livros publicadospela ABA sobre temticas envolvendo questes relativas a laudos antropolgicose aos direitos humanos de grupos indgenas e quilombolas: Percia Antropolgica emProcessos Judiciais, organizado por Silvio Coelho dos Santos, Quilombos Identidadetnica e territorialidade, organizado por Eliane Cantarino ODwyer, tica e Antropo-logia organizado por Ceres Victora et alii e a srie Antropologia e Direitos Humanos I,II e III, editada por Roberto Kant de Lima.

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    Trata-se, portanto, de um livro que se insere no projeto editorial que aABA vem desenvolvendo h vrias gestes e que tem como objetivo dar visibi-lidade a estudos e reflexes de vanguarda feitas pela antropologia brasileira. Des-tacamos tambm que neste sentido a ABA editou dois vdeos etnogrficos: Muitaterra para pouco ndio de Bruno Pacheco de Oliveira e Terra de Quilombos: uma dvidahistrica de Murilo Santos.

    Este livro d uma ampla viso das principais abordagens brasileiras sobrea temtica dos laudos periciais antropolgicos, auxiliando cientistas sociais e pro-fissionais da rea do Direito que se confrontam com a sistemtica solicitao deestudos para elaborao de laudos que contemplem a identificao tnica paradelimitao territorial e anlise de impactos scio-ambientais de projetos de de-senvolvimento.

    Alm de ser uma importante fonte de consulta para antroplogos e ope-radores do Direito envolvidos com a elaborao de laudos periciais, este livrotraz importantes contribuies tambm para os professores que ensinam antro-pologia. Ensino que feito hoje no Brasil em quase cinqenta carreiras de gradu-ao, entre elas os cursos de Direito. Ensino que tambm fruto do frtil dilo-go entre a ABA e o Ministrio Pblico Federal, uma vez que foi recentemen-te includo, em 2004, como contedo obrigatrio no curriculum mnimodos cursos de Direito.

    Como livro texto, esta coletnea ser, tambm, de grande valia em cursosde metodologia de pesquisa de antropologia nos cursos de graduao em Cin-cias Sociais e ps-graduao em Antropologia, uma vez que so raras as refern-cias bibliogrficas de fcil acesso sobre esta temtica que, como bem lembra IlkaBoaventura Leite na introduo deste livro, remete a um modelo de antropolo-gia conhecido como antropologia aplicada, prtica da disciplina que tem sidocriticado h vrias dcadas por diferentes correntes tericas no campo da disci-plina por suas implicaes com o perodo colonial.

    O mrito deste livro no se resume a consolidar um tema que se tornaprioritrio para o conhecimento e as prticas antropolgicas, mas, sobretudo ode reunir olhares de especialistas que conjugam saberes antropolgicos e jurdi-cos a memria coletiva de comunidades tradicionais no contexto brasileiro.

    O livro est dividido em quatro partes.

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    Na primeira parte esto publicados textos apresentados no histrico En-contro de Ponta das Canas, seminrio realizado em 2000 no qual foram definidos osprincipais parmetros tericos, ticos e tcnicos que tm norteado a elaboraode laudos periciais nos ltimos cinco anos. Nesta parte temos as intervenes dosantroplogos Ilka Boaventura Leite, Silvio Coelho dos Santos e Ruben GeorgeOliven e da ento sub-procuradora da sexta cmara Procuradoria Geral daRepublica responsvel pelas questes referentes a minorias tnicas, Ela WieckoWolkmer de Castilhos.

    Na segunda parte, intitulada Laudos de Identificao tnica e Territrios Tradici-onais, esto publicados artigos de Miriam Chagas, Dayse Barcellos, Jos CarlosGomes dos Anjos, Jos Mauricio Arruti, Miriam Furtado Hartung e OsvaldoMartins de Oliveira. Cada um deles relata uma experincia de identificaoterritorial de quilombo, problematizando os impasses, limites e avanos tericos,ticos e polticos com os quais se defrontaram nestas experincias.

    Na terceira parte, Laudos sobre impactos ambientais e projetos de desenvolvimento,Maria Dorothea Post Darella, Flavia Cristina de Mello e Ricardo Cid Fernandescontam suas experincias na elaborao de laudos em comunidades indgenasguarani e kaingang, Paula Colmegna e Marcelo Veiga Bekhrausen trazem refle-xes tericas sobre a antropologia do desenvolvimento e sobre o princpio daproporcionalidade no Direito.

    Na quarta parte, tica e Interveno, Eliane Cantarino ODwyer, Elaine deAmorim Carreira e Simone Becker problematizam questes como o lugar doantroplogo no dilogo interdisciplinar necessrio para a elaborao de laudos eas implicaes ticas deste gnero de texto antropolgico.

    O livro traz ainda em seus anexos, importantes documentos que certa-mente podero instrumentalizar antroplogos e operadores de direito que atu-am nestas questes: o convnio assinado entre a ABA e o Ministrio PublicoFederal, a Carta de Ponta das Canas e oficio da ABA ao ministro chefe da casacivil do governo Luis Incio Lula da Silva em 2003.

    A publicao de Laudos Periciais Antropolgicos em Debate acontece nummomento onde os antroplogos brasileiros encontram-se frente a novos desafi-os epistemolgicos e polticos, numa conjuntura onde as demandas de movi-mentos sociais tm recebido especial ateno do Estado. Neste contexto, a ABA

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    tem sido chamada para dialogar e propor polticas pblicas relativas a gruposque tradicionalmente tem estudado.

    Se, por um lado a ABA conquista hoje um dos lugares pelo qual semprelutou, o reconhecimento estatal de sua expertise acadmica no campo da diversi-dade cultural, de outro, a associao se defronta com novos desafios ticos arespeito dos usos polticos de pesquisas antropolgicas pelo Estado e por movi-mentos sociais. Neste contexto, h uma grande expectativa de que estes estudosrealizados por demandas estatais e/ou de movimentos sociais venham a darsubsdios para a definio de identidades e direitos.

    Estes so os temas abordados neste livro por antroplogos de reconheci-da competncia em suas reas de atuao. por isto que recomendamos sualeitura.

    Miriam Pillar Grossi Presidente ABA Gesto 2004/2006Gustavo Lins Ribeiro Presidente ABA Gesto 2002/2004

  • INTRODUO

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    OS LAUDOS PERICIAIS -UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

    Ilka Boaventura Leite

    Um olhar retrospectivo sobre os principais temas desenvolvidos nos en-contros nacionais e regionais da antropologia brasileira, sobretudo na ltima d-cada, revela a crescente importncia da questo dos laudos principalmente osque envolvem sociedades indgenas, populaes tradicionais e impactos scio-ambientais e de projetos de desenvolvimento. Largamente discutido eproblematizado, o papel da percia antropolgica inclui desde patrimnio cultu-ral, questes fundirias, direitos humanos, justia, sade e medicina, passandopor polticas pblicas, territrio, nao, etnicidade, violncia, conflitos e religio,at movimentos sociais, preconceito racial, gnero, infncia, adolescncia e pes-quisa de campo. Inmeros grupos de trabalho passaram a considerar a questodos laudos, ainda que indiretamente, como um desdobramento inevitvel daspesquisas e como parte do processo de aprofundamento e especializao emalguns temas de relevncia social e poltica.

    A percia antropolgica consolidou-se no cenrio da antropologia brasi-leira nas duas ltimas dcadas e j constitui uma realidade profissional. Antes,praticamente no havia discusso sobre percia. Quando muito as discussessurgiam de modo perifrico no debate acerca do trabalho de campo e tica,principalmente em torno do relacionamento entre profissional e grupo pesquisado.

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    A atividade pericial insere-se no cenrio de nossa antropologia em umcontexto muito especfico e, ao introduzir aspectos ligados a diretivas e parceriasgovernamentais, reedita questes epistemolgicas e ticas que, para muitos, po-dem soar descontextualizadas, estranhas e at extemporneas1 . Em seusprimrdios, praticada fora do circuito acadmico e para atender a demandasdos governos coloniais, a antropologia brasileira viveu o captulo mais sombriode sua histria, sendo alvo de crticas contundentes. Alguns profissionais foramacusados de espionagem ou de priorizarem condies favorveis a suas pesqui-sas, financiamentos e apoios oficiais2 , em detrimento das populaes pesquisadas.Criticada por seus prprios praticantes como omissa e colaboracionista, a ativi-dade pericial em antropologia foi radicalmente contestada por um sem-nmerode antroplogos que, nos anos seguintes, posicionaram-se abertamente contra aviolao dos direitos humanos por governos autoritrios e interesses privados.Representando esta vertente, Roberto Cardoso de Oliveira enfatiza que a questotica se impe como algo subjacente s noes de progresso e de desenvolvi-mento , portanto, um aspecto que abrange qualquer profissional e no apenasos antroplogos. Seu lugar consubstancia-se em um Estado de Direito, em umprojeto de sociedade democrtica e, para alcan-lo, no convvio com as diferen-as o que significa, em ltima instncia, o pluralismo cultural3 . Nas duas ltimasdcadas, a relao que a Antropologia estabeleceu com o campo do Direito representada principalmente por esta corrente, e foi atravs dela que a perciaveio a ocupar papel destacado.

    Pesquisas antropolgicas com nfase no respeito diversidade culturaldespertaram a crescente ateno de juristas e administradores, antes mesmo daAssemblia Nacional Constituinte de 1988, mas tal colaborao se materializou apartir da efetiva redemocratizao do pas4 . Grande parte dessas pesquisas foi1 Para uma discusso detalhada deste contexto, ver: Oliveira Filho, Joo Pacheco. O antroplogo comoperito: entre o indianismo e o indigenismo. In: LEstoile, Benoit de, Federico Neiburg e Ligia Sigaud.Antropologia, imprios e estados nacionais. Rio de Janeiro: Relume Dumar: FAPERJ, 2002, p.253-277.2 Para uma reconstituio deste debate, incluindo a clebre participao de Franz Boas nos EstadosUnidos, ver: Laraia, Roque. tica e Antropologia algumas questes. In: Leite, Ilka Boaventura (org.) ticae Esttica na Antropologia. Florianpolis, PPGAS/CNPq, 1998, 136p.3 Ver Oliveira, Roberto Cardoso. Prticas Intertnicas e Moralidade. In: Desenvolvimento e Direitos Humanos:a Responsabilidade do Antroplogo. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1992, p.55-67.4Uma prtica antropolgica comprometida com um projeto de sociedade mais tolerante e democrticaj se fazia presente desde seu perodo fundacional. Ver: Peirano, Mariza. O antroplogo como cidado.In Uma Antropologia no Plural: Trs experincias contemporneas. Braslia, DF, Editora Universidade de Braslia,1992. p. 85-104.

    OS LAUDOS PERICIAIS ANTROPOLGICOS - UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

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    disponibilizada aos grupos pesquisados e utilizada na definio dos princpiosorganizacionais desses grupos, bem como de seus territrios, particularidades epleitos. Operadores do Direito e administradores pblicos, passaram a recorrers pesquisas antropolgicas e a solicitar pareceres, inaugurando uma fase de es-treito relacionamento entre Antropologia e Direito.

    Uma rpida retrospectiva da prtica antropolgica das ltimas dcadasrevela inmeras iniciativas de dilogo e parceria com o campo jurdico. Tal inter-cmbio teve origem nas questes relacionadas as sociedades indgenas e esten-deu-se mais tarde s demais reas de especialidade.

    Nossa proposta, aqui, a de recuperar alguns eventos mais significativosda fase recente da atividade profissional, na qual esto inseridos os laudos perici-ais antropolgicos, tema central deste livro.

    Os anos 80 do Sculo XX consagraram, no bojo da redemocratizao doPas e aps quase trinta anos de regime militar, as reivindicaes de grupos tni-cos, minorias e excludos sociais. Levadas Assemblia Nacional Constituinte,tais reivindicaes foram inscritas em vrios artigos da Constituio Federal de1988, mormente naqueles que tratam de direitos essenciais vida, ao reconheci-mento e proteo do patrimnio histrico-cultural e aos direitos territoriais. ,sobretudo, nesta conjuntura histrica que a percia antropolgica se consolida,pelas contribuies apontadas nas pesquisas etnogrficas. Fica evidente que otrabalho do antroplogo perito no se constitui num mero parecer tcnico, masreflete uma preocupao central: o aprofundamento resultante da pesquisa decampo etnogrfica, elaborado na vivncia in loco e que busca realar o ponto-de-vista dos grupos pesquisados. Os instrumentos consagrados pela prtica an-tropolgica adquirem, neste caso, um lugar privilegiado na interlocuo com ocampo e com os profissionais do Direito, nas aes necessrias reviso consti-tucional que se inicia desde a promulgao da Carta Magna.

    Entre 1986 e 19885 , a Associao Brasileira de Antropologia firmou umacordo com a Procuradoria Geral da Repblica. Pelo acordo, a ABA passaria aindicar antroplogos para a realizao de laudos periciais em processos ligadosprincipalmente a questes indgenas. Antroplogos com formao especializadapassaram a colaborar com trabalhos qualificados desde ento como tcni-

    5 Gesto de Manuela Carneiro da Cunha.

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    cos em processos judiciais, numa conjuntura marcadamente de esforo dereorganizao jurdica e institucional do pas, tendo em vista a modificao dasprticas legais e estruturas administrativas autoritrias implantadas pelos gover-nos militares precedentes (1964/1985) (Oliveira Filho, 2002:254).

    Em 1990, em Florianpolis, durante a Reunio Brasileira de Antropolo-gia, pela primeira vez formou-se um grupo de trabalho para debater a questodos laudos antropolgicos, coordenado pela antroploga Maria Hilda Paraso.Na nova conjuntura, a demanda pelos laudos se estendeu do campo jurdicopara o campo administrativo e antroplogos passaram a integrar os quadrostcnicos da FUNAI, auxiliando na delimitao das terras indgenas6 .

    Em 1991 aconteceu em So Paulo o seminrio Percia Antropolgica emProcessos Judiciais, promovido pela ABA, Comisso Pr-ndio e Departa-mento de Antropologia da Universidade de So Paulo (USP), com a presena deantroplogos, juristas e procuradores do Ministrio Pblico Federal. Um livrocom o mesmo ttulo foi publicado pela ABA7 na gesto seguinte8 , centrando-senas disputas judiciais que ocorriam poca envolvendo terras indgenas. Nolivro, Roque Laraia, ex-presidente da ABA e um dos organizadores do semin-rio, informa que os primeiros laudos periciais produzidos no Brasil datam dadcada de 1970, sendo seus autores Virgnia Valado e Bruna Francheto. Segun-do Laraia, nessa primeira etapa j era possvel dimensionar a grande responsabi-lidade conferida aos antroplogos e as dificuldades decorrentes de traduzir emtermos jurdicos o conhecimento antropolgico. Consolidava-se o reconheci-mento oficial do antroplogo como um agente capaz de produzir laudos com afinalidade de municiar processos jurdicos e administrativos, fazendo ressoar nointerior da disciplina novas questes de ordem tica, terica, metodolgica. Afi-nal, a antropologia estava diante da ampliao do conceito de Justia. No mes-mo seminrio iniciou-se uma ampla e polmica discusso, sobre a elaborao deum laudo por solicitao da parte contrria hiptese que confronta diretamen-te o disposto no Cdigo de tica da ABA, criado nos anos 50 e revisto na

    6 Registre-se que esta incluso no aconteceu sem dificuldades e grandes riscos para a atividade depesquisa antropolgica. Ver: Oliveira Filho, 2002:254.7 A Percia antropolgica em processos judiciais. Organizao: Orlando Sampaio Silva, Ldia Luz, Ceclia MariaViera Helm. Florianpolis, Ed. da UFSC, 1994, 146p.8 Gesto de Silvio Coelho dos Santos.

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    dcada de 80, aps o perodo de exceo implantado dos sucessivos governosmilitares.

    Silvio Coelho dos Santos9 relata que a ABA, em sua fase de criao, entreos anos de 1950 e 1960, congregava um pequeno grupo de aproximadamentetrinta pessoas. Na dcada de 1980, impulsionada pela dinmica dos cursos deps-graduao e o aumento no nmero de associados (mais de mil, atualmente),a entidade passou por um perodo de reorganizao e alcanou maiorrepresentatividade. As questes que abrangem a prtica profissional passaram aincluir no apenas aqueles que lecionavam ou faziam pesquisa na universidade,mas tambm aqueles que desempenhavam outras atividades profissionais. Em1978, apenas os professores movidos por interesses de pesquisa se dispunham aemitir pareceres os temas eram os territrios indgenas e os impactos de proje-tos de desenvolvimento sobre tais territrios. Ligados s universidades, essespareceristas no se manifestavam na condio de profissionais independentes oparecer expressava suas concluses, mas principalmente a posio das institui-es a que se achavam vinculados. Isto efetivamente mudou e nas dcadas se-guintes o campo profissional se expandiu, com antroplogos atuando em ONGs,realizando consultorias e ocupando funes em rgos governamentais. exata-mente nesse campo profissional vasto e diversificado por temas, reas de interes-se e espaos institucionais diversos que os laudos periciais antropolgicos adqui-rem um espao prprio de discusso. Isto trouxe, evidentemente, novos desdo-bramentos no que se refere aos papis, expectativas e performances, bem distintasdas situaes das pesquisas etnogrficas anteriores, exigindo tambm novos cri-trios de qualidade cientfica e tica dos trabalhos.

    No mesmo perodo a legislao tambm mudou, estabelecendo, aobrigatoriedade dos estudos de impacto scio-ambiental. Definiu-se tambmque caberia s empresas arcar com os custos decorrentes dos estudos de impac-to. Assim surgiram empresas e consultorias especializadas na avaliao de impac-tos e procedimentos compensatrios. Equipes multidisciplinares passaram a co-ordenar as percias, interferindo inclusive nas concluses elaboradas pelos antro-plogos, o que gerou constrangimento para muitos.

    A demarcao de terras indgenas e a criao de novas unidades de con-9 Santos, Silvio Coelho dos. Notas sobre tica e Cincia. In: Leite, Ilka Boaventura (org.) tica e Esttica naAntropologia. Florianpolis, PPGAS/CNPq, 1998, p.83-88.

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    servao ambiental foram, do mesmo modo, inovaes legislativas deste pero-do. Na verdade, estas eram condies para os investimentos do Banco Mundiale da Comunidade Econmica Europia, forando o governo brasileiro a alterarsua dinmica de atuao a fim de garantir as contrapartidas exigidas pelas agnci-as internacionais. Depois da ECO-92 intensificou-se o programa de demarcaode terras indgenas e aps a Conferncia de Durban ganhou destaque a questodas terras dos remanescentes das comunidades de quilombos, descritas no artigo68 do ADCT da Constituio Federal.

    Nesse cenrio surge a figura do antroplogo perito, com atuao junto aoMinistrio Pblico Federal, que se valer de antroplogos com atuao nas uni-versidades e de profissionais contratados mediante concurso pblico para asses-sorar diretamente os procuradores em inquritos e processos judiciais. Mesmocontando com um quadro prprio de analistas periciais, as procuradorias re-correm ao acordo de cooperao tcnica firmado com a ABA quando se faznecessrio o concurso de um especialista.

    Entre 1994 e 1996, durante a gesto de Joo Pacheco de Oliveira frenteda ABA, a percia, at ento restrita quase que exclusivamente s terras indgenas,passou a incluir as terras e o patrimnio das comunidades remanescentes dequilombos, bem como a dimensionar o impacto sofrido por tais grupos frente aquestes scio-ambientais e a grandes projetos de desenvolvimento.

    Na dcada de 1990 ganha corpo a noo de um Brasil pluritnico epluricultural, sendo registradas intensas discusses antropolgicas sobre cidada-nia, direitos humanos, justia e diversidade cultural10 . A ABA teve atuao decisi-va nessa fase, especialmente no que ser refere ao dilogo com operadores doDireito, legisladores, representantes de indgenas e de quilombolas e com as pro-curadorias federais e estaduais. Este contexto crucial para se avaliar a importn-cia dos laudos periciais e do debate instaurado no seio da comunidade cientficasobre o papel da percia antropolgica.

    Em 1998, durante a XXI Reunio Brasileira de Antropologia, em Vitria,o grupo de trabalho sobre Terra de Quilombos foi palco do primeiro embateentre antroplogos, arquelogos e historiadores acerca dos laudos e pareceres

    10 Dentre os vrios trabalhos publicados, ver: Oliveira, Roberto Cardoso de e Luis Roberto Cardoso deOliveira. Ensaios Antropolgicos sobre Moral e tica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

    OS LAUDOS PERICIAIS ANTROPOLGICOS - UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

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    contra nos processos de identificao tnica. No caso em questo, a equipecontratada pela empresa, composta principalmente por arquelogos, manifes-tou-se contrria pretenso dos moradores da localidade de serem reconheci-dos, nos termos do Artigo 68 da CF, como remanescentes de quilombos. Oprincipal desdobramento deste laudo contra, como passou a ser conhecido,foi a intensificao do debate sobre os limites do trabalho de percia e sobre opapel do antroplogo na identificao, classificao ou manifestao acerca daidentidade de grupos sociais com voz prpria, com um saber acerca de simesmos, com formas organizativas e com plena capacidade de expresso. Emoutras palavras, um debate sobre at onde o trabalho do antroplogo contribuisem abandonar o rigor conceitual, a tica e a vigilncia metodolgica prprios dadisciplina. Vrias armadilhas foram apontadas, inclusive a da enorme expecta-tiva gerada no contexto de um complexo jogo de presses, negociaes, confli-tos e disputas entre diferentes grupos sociais e que redunda, via de regra, ematribuir ao perito o papel de rbitro. Os antroplogos presentes manifestaram-secontrrios desconstituio da expectativa de direito gerada pelo laudo contrae reafirmaram a responsabilidade social embutida na prtica da pesquisa antro-polgica, sobretudo a de tornar juridicamente compreensveis as noes de di-reito erigidas por grupos sociais historicamente sem acesso justia.

    A questo dos laudos ganhou impulso redobrado a partir de 2000, duran-te a gesto de Ruben Oliven como presidente da ABA, quando foi renovado oacordo de cooperao tcnica com a Procuradoria Geral da Repblica. Ocorreuuma intensa discusso sobre a percia antropolgica, apontando para a necessida-de de reunir antroplogos com experincia em diversos tipos de percia, a fim deconsolidar a base de atuao desses profissionais e da prpria ABA. Atenta aoaumento significativo da demanda por laudos para orientar processos adminis-trativos e judiciais, a ABA promoveu em Florianpolis, no ano 2000, em parceriacom o NUER11 , uma Oficina sobre Laudos Antropolgicos e cujo resultadoconsolidou-se em um documento de trabalho intitulado Carta de Ponta dasCanas. Este documento, elaborado para servir de parmetro ao Protocolo deCooperao Tcnica que a ABA firmaria, no incio do ano seguinte, com a Pro-curadoria Geral da Repblica, foi encaminhado comunidade cientfica e se

    11 Ncleo de Estudos de Identidade e Relaes Intertnicas do Departamento de Antropologia e doPrograma de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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    tornou referncia para as atividades de percia realizadas a partir de ento. AOficina contou com a participao de antroplogos das procuradorias da Rep-blica dos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, da 6 Cmara doMinistrio Pblico Federal (DF), das ONGs Ana e Koinonia, das universidadesfederais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran e Fluminense e dos mu-seus antropolgicos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, alm de repre-sentantes da FUNAI.

    Os participantes da Oficina relataram suas experincias na elaborao derelatrios, pareceres e laudos periciais antropolgicos e discutiram alguns pontosapresentados previamente como roteiro de discusso:

    z Paradigmas o campo terico, conceitual e os interlocutores discipli-nares;

    z Aspectos Tcnicos o trabalho de campo, o recorte e contedo, aliteratura, a estrutura do documento;

    z tica lei, autoridade e saberes, traduo/interpretao e a ao polti-ca, polticas de indenizao e aes compensatrias, gesto do campo e do mer-cado de trabalho.

    Aps a troca de experincias e a sistematizao dos principais pontos rela-cionados percia, os participantes dividiram-se em grupos para aprofundar asquestes a partir de trs eixos temticos: laudos sobre delimitao territorial,laudos sobre identificao tnica e laudos sobre impactos scio-ambientais egrandes projetos.

    Reunidos em torno desses temas, os trs grupos debateram e formularamconsideraes para balizar futuros pareceres, relatrios e laudos. Definiu-se queo documento final resultante da Oficina teria no um papel normativo, mas o deum documento de trabalho a ser utilizado como parmetro inicial para nortearas discusses e a relao dos profissionais com os campos jurdico e administra-tivo. Uma plenria final consolidou o documento e o batizou com o nome dolocal que sediou o encontro, o balnerio de Ponta das Canas, em Florianpolis.Um grupo de trabalho foi instalado pela diretoria da ABA para levar adiante odebate sobre laudos periciais antropolgicos e agregar novos interessados notema.

    Desde a Oficina de Laudos e a publicao da Carta de Ponta das Canas,

    OS LAUDOS PERICIAIS ANTROPOLGICOS - UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

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    em janeiro de 2001, continuou aumentando a demanda por laudos antropolgi-cos e a indicao de peritos, por parte da ABA, para assessorar o MinistrioPblico em suas demandas tanto que foi oficialmente renovado, em abril de2001, o acordo de cooperao tcnica com o MPF, durante o IV EncontroNacional sobre a Atuao do Ministrio Pblico Federal na Defesa das Comuni-dades Indgenas e Minorias, ocorrido em Florianpolis.

    O grupo de trabalho sobre Laudos Antropolgicos, que coordenamosno binio 2000-2001, promoveu sistematicamente, no mbito dos eventos orga-nizados pela ABA, discusses nesse campo. So exemplos um grupo de trabalhona IV Reunio de Antropologia do Mercosul (Curitiba, 2001) e o Frum dePesquisa sobre Laudos realizado na 23 Reunio Brasileira de Antropologia (Gra-mado, 2002). Tambm em 2002 os laudos antropolgicos foram debatidos nosimpsio A Antropologia Extramuros, coordenado por Eliane CantarinoODwyer, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niteri. Em 2003teve lugar o Curso de Laudos Periciais, durante a ABANNE, em So Lus doMaranho, que ministramos juntamente com Alfredo Wagner Almeida. Durantea V Reunio de Antropologia do Mercosul, ocorrida em Florianpolis, em 2004,o grupo de trabalho sobre laudos periciais da ABA, coordenado por ElianeCantarino ODwyer e Jos Augusto Sampaio, buscou atualizar as discusses e,no mesmo evento, coordenamos um curso sobre laudos com trs outros colegas atividades que serviram para reeditar, em sua estrutura organizativa, os eixostemticos apontados na Carta de Ponta das Canas. Estes trs eixos temticosseguiram dominando o campo de discusses sobre a produo de laudos e sedesdobraram em novos patamares de complexidade.

    Aps a Oficina, a atividade pericial definiu-se mais claramente perante acomunidade cientfica, preocupada em consolidar um padro de atuao com-patvel com os princpios que instituram a Antropologia como disciplina e emgarantir uma permanente reflexo crtica sobre os procedimentos, os limites e aspossibilidades da pesquisa etnogrfica. O contexto mais amplo da percia e aatuao dos diferentes atores sociais, assim como as questes que envolvem ex-pectativa de mediao ou de arbitragem, vm preocupando de forma crescenteos antroplogos.

    Eis alguns aspectos que permeiam o debate sobre os trs eixos temticosapontados pela Carta de Ponta das Canas:

    Ilka Boaventura Leite

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    1) Laudos sobre delimitao territorial (terras indgenas e dequilombos) desde a edio do Decreto 1.775/96, a participao de antrop-logos nos relatrios de identificao e delimitao de terras indgenas reveste-sede maior complexidade e jovens profissionais tm acumulado experincias aindasem a devida sistematizao e discusso. O mesmo acontece em relao s terrasde quilombos. Alguns trabalhos publicados recentemente procuram demonstrarque a definio dos limites territoriais por demais complexa, j que estes limitesso fluidos em funo at dos antigos processos histricos atravs dos quais seestabeleceram. A identificao de terras de quilombos, por sua vez, aps umperodo de maior produo de laudos, ao final da dcada de 1990, viu-se estag-nada por impasses de ordem administrativa ou jurdica que no deixam de de-mandar, tambm, a ateno de peritos antroplogos quanto s perspectivas desua regulamentao e a continuidade dessa produo profissional. Com o De-creto 4.887, que explicita a necessidade de relatrios para identificao das terrasde quilombos a serem tituladas, agora sob a responsabilidade do INCRA, algunsconvnios envolvendo percias foram assinados com ncleos de pesquisa de uni-versidades federais. Somando-se alguns nmeros divulgados sobre a atual de-manda por laudos de delimitao territorial, o total chegava a cerca de 150 paraterras indgenas (dados de 2002) e a 80 para terras de quilombos (dados de2005). Isto representa um esforo de grande envergadura. Se considerarmos oslaudos sobre patrimnio cultural, questo ambiental. sade, entre outros, repre-sentar, nos prximos anos, que mais da metade do nmero de profissionaisfiliados ABA estar envolvida em atividade de percia.

    2) Laudos sobre Identificao tnica impulsionados por demandasde comunidades tnicas em busca de reconhecimento oficial e de incluso empolticas pblicas, estudos sobre identificao tnica ganharam, administrativa oujuridicamente, o carter de percia. Esse carter, problematizado em discussesda ABA desde o seminrio A Percia Antropolgica em Processos Judiciais, de1991, distancia-se hoje da esfera administrativa estatal, mas marca crescente pre-sena em processos judiciais, o que impe e renova a necessidade de discuti-lo afundo. Uma variante cada vez mais requisitada desses estudos a do processopenal em que se verifica a imputabilidade criminal de indivduos pertencentes agrupos etnicamente diferenciados ou a de quem atente contra o direito coletivode tais grupos.

    OS LAUDOS PERICIAIS ANTROPOLGICOS - UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

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    3) Estudos de Impacto Scio-ambiental e Grandes Projetos defi-nidos via de regra como de impacto ambiental, estes estudos tm seu com-ponente social ainda pouco sistematizado e insuficientemente caracterizado,embora as demandas de segmentos sociais impactados, sobretudo por grandesobras de infra-estrutura, exijam sua adequao a estas exigncias. Aqui, a deman-da pelo trabalho pericial do antroplogo se faz em mbitos muitas vezes perif-ricos, como no caso do licenciamento de obras que no permitem mais umquestionamento tcnico efetivo e oferecem condies de trabalho inadequadas. Os laudospericiais para instruo de aes judiciais indenizatrias por impactos e prejuzos causadospor grandes obras so uma promissora vertente nesse campo temtico.

    Os laudos periciais constituem uma atividade e um gnero narrativo textu-al distintos dos j consagrados na academia: monografias, dissertaes, teses,artigos e ensaios. Enquanto relatrios de pesquisa antropolgica produzidos parasubsidiar processos jurdicos e administrativos, os chamados laudos vm sen-do requisitados em contextos especficos, principalmente em situaes-limite quegeralmente envolvem conflitos. So dirigidos a juzes, procuradores, advogadosou administradores para a tomada de decises concretas, cujos desdobramentospodem alterar a vida de sociedades inteiras. Quem solicita um laudo pericialbusca ou espera que o documento possua elevado grau de exatido tcnico-cientfica, de modo a dirimir dvidas e propiciar medidas com desdobramentosmltiplos. Os laudos so, portanto, documentos produzidos com finalidadespreviamente estabelecidas, dirigidos a uma audincia restrita, dotados de regrasdeterminadas pelas instncias onde iro tramitar e podem ser submetidos a anli-ses e avaliaes bastante especficas. Seu destino ou trajetria est previsto noprocesso ou inqurito e todas as partes envolvidas tm livre acesso a ele. Comoregistra Oliveira Filho (2003:273), tais particularidades de modo algum anulamou desqualificam o laudo enquanto fonte de conhecimento e nem o remetemnecessariamente ao exerccio de papis exteriores ou apensos condio de an-troplogo. Ao contrrio, sua especificidade aponta para questes tericas emetodolgicas complexas e instigantes para o desenvolvimento da prpria disci-plina. Atuando em sintonia com outros profissionais, dialogando com outroscampos de saber, o antroplogo perito deve ser um especialista em sua rea depesquisa e a partir desta competncia reconhecida que escolhido para executarsua tarefa.

    Ilka Boaventura Leite

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    O FRUM SOBRE LAUDOS: A PERCIA ANTROPOLGICA EM DEBATE

    A primeira mesa do Frum de Pesquisa sobre Laudos da 23 ReunioBrasileira de Antropologia, realizada em 2002, em Gramado (RS), discutiu odocumento da Oficina realizada em dezembro de 2000. A primeira parte destelivro traz, portanto, a ntegra da Carta de Ponta das Canas e os comentrios dosparticipantes, na seguinte ordem: Ilka Boaventura Leite, coordenadora da Ofici-na; Ela Wieko de Castilho, coordenadora da 6 Cmara do Ministrio PblicoFederal; Silvio Coelho dos Santos, professor aposentado da UFSC e coordena-dor do NEPI, e Ruben George Oliven, presidente da ABA na ocasio. Buscou-se, na medida do possvel, manter o tom original dos comentrios feitos durantea sesso de abertura do Frum, com uma reviso realizada pelos autores a partirda transcrio das gravaes originais.

    O primeiro depoimento, de nossa autoria, abre o evento e a mesa-redon-da sobre a Carta de Ponta das Canas. A partir das anotaes feitas durante aOficina de 2000, buscamos contextualizar o evento que deu origem ao docu-mento e resgatar alguns momentos mais significativos, destacando a efetiva par-ticipao das procuradorias e da 6 Cmara nas sesses, sobretudo no que dizrespeito s percias solicitadas pelo MPF at aquele momento. Ao incluir antro-plogos em seu quadro permanente de profissionais, o MPF iniciou um dilogoinstitucional efetivo e indito at ento entre Antropologia e Direito. Atuando emquestes ligadas ao meio ambiente, ao patrimnio histrico, educao, sade,aos direitos de grupos tnicos e at de consumidores, essa nova modalidade deassessoria aos operadores jurdicos tem facultado a participao de antroplo-gos em instncias de grande relevncia social.

    A dra. Ela Wieko de Castilho, coordenadora da 6 Cmara, debateu odocumento dos antroplogos e referiu-se fora do princpio que est apro-ximando a Antropologia do Ministrio Pblico Federal. Destaco de seus comen-trios o trecho em que ela confirma as duas principais modalidades de consultoriae assessoria da Antropologia a de mbito administrativo e a de mbito judicial, cada uma implicando em modalidades diferentes de percia antropolgica.Para a procuradora, esta aproximao inicial entre Direito e Antropologia aindano define claramente o papel reservado a cada um dos campos e nem o raio deao preciso de cada um, mas alerta que a formao atual no habilita o antro-

    OS LAUDOS PERICIAIS ANTROPOLGICOS - UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

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    plogo a substituir o operador jurdico. O mesmo podemos dizer do graduadoem direito. O debate sobre as novas modalidades de atividade vem subsidiarprticas ainda pouco discutidas nos contedos da formao atual em ambos oscampos. A grade curricular de formao na rea de Antropologia no contem-pla qualquer disciplina da rea do Direito. no cenrio das prticas e em confor-midade com os desafios encontrados que a atividade de percia vai paulatina-mente encontrando seu lugar e acolhida no campo jurdico, relacionando-secom novas atribuies, muitas vezes at contrrias aos preceitos tericos e ticosconsagrados nos contedos antropolgicos tradicionais. Este um problemaimportante a ser enfrentado no front das percias. Ela Wieko, afirmar que o antro-plogo vem sendo chamado a dar respostas de valor absoluto quando otrabalho almeja alcanar o possvel relativismo. Outro ponto que permeou odebate foi o das fronteiras entre as disciplinas e competncias, em campos cadavez mais imbricados. Qual o raio de competncia do Direito e da Antropologia?Cabe Antropologia produzir juzos ou sua contribuio est em contextualiz-los, em abord-los como um dos sistemas legais vigentes nas sociedades huma-nas?

    Silvio Coelho dos Santos, em seu depoimento sobre a Carta de Ponta dasCanas, destaca as diferentes nuances ticas do campo jurdico e do campo antro-polgico. A fluidez e amplitude das posies assumidas pelos profissionais doDireito contrastam com as de um campo mais restrito e controlado pelos paresda Antropologia, num desfecho que se traduz por vezes em ticas opostas einconciliveis. A forte demanda pelas consultorias e assessorias antropolgicasdemonstra que o quadro hegemnico em que se insere a produo antropolgi-ca at o momento tende a se alterar, colocando em xeque os princpios ticosexpressos no Cdigo da ABA. Nesse sentido, Santos identifica a Carta como umguia complementar ao atual Cdigo de tica, no apenas para antroplogosmenos experientes, mas como um ponto de inflexo para profissionais comdistintos graus de formao e diferentes especialidades. Silvio chama atenopara o que considera uma modalidade de ao burocrtica que anula o dilogoaberto pelos laudos, ou seja, quando os administradores, procuradores ou juzesoptam pelo arquivamento do laudo, ignorando todos os argumentos e docu-mentos nele contido, transformando-os, neste caso, em peas ineficazes e incuaspara o grupo em questo. Este , sem dvida o grande risco e um dos motivos

    Ilka Boaventura Leite

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    pelos quais o antroplogo(a) no pode distanciar-se do processo depois da conclu-so do mesmo. O dilogo com os grupos envolvidos e com os setores adminis-trativos e/ou judicirios, instncias onde tramita o processo ser tanto necessrioquanto inevitvel.

    Ruben George Oliven, na condio de presidente da ABA, deu todo oapoio necessrio ao Frum de Debates sobre Laudos, participando inclusive dodebate sobre a Carta. Em sua interveno, ele procurou contextualizar o papelda Associao junto comunidade cientfica e ao Ministrio Pblico Federal,representando este ltimo um quarto Poder no bojo da sociedade civil. Oliventambm salientou a colaborao entre estas duas instituies visando efetivaconsolidao da democracia no Brasil.

    Nas trs partes seguintes do livro encontra-se um conjunto de artigos rela-tando experincias concretas de percia e os contextos em que o conhecimentoantropolgico dialoga diretamente com diferentes atores sociais e com o PoderPblico. De modo geral, todos abordam questes comuns e em diversos mo-mentos dialogam entre si e com a Carta de Ponta das Canas. Os assuntos sorecorrentes em experincias de pesquisas diversas que incidiro sobre os trseixos apresentados na primeira parte desta Introduo. Procuramos manter amesma organizao anterior das comunicaes, tal qual aconteceu no Frum,realando inclusive os eixos temticos na seqncia em que foram apresentados.Exceo foi o terceiro bloco, sobre tica e Interveno, integrado por artigos decunho mais genrico e produzidos posteriormente, em atividades organizadaspelo grupo de trabalho da ABA. possvel perceber o forte entrecruzamento detemas e de problemticas, o que garante uma confluncia de questes que contri-buir significativamente para futuros trabalhos de percia antropolgica.

    Na ltima parte, os Anexos, reproduzimos alguns importantes documen-tos sobre percia elaborados pela comunidade de antroplogos e que tiveram oapoio da ABA.

    OS LAUDOS PERICIAIS ANTROPOLGICOS - UM NOVO CENRIO NA PRTICA ANTROPOLGICA

  • PRIMEIRA PARTE

    A CARTA DE PONTA DAS CANASEM DEBATE

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    OFICINA SOBRELAUDOS ANTROPOLGICOS

    DOCUMENTO DE TRABALHO DA OFICINA SOBRE LAUDOSANTROPOLGICOS REALIZADA PELA ABA E NUER/UFSC EMFLORIANPOLIS DE 15 18 DE NOVEMBRO DE 2000.

    Entre os dias 15 a 18 de novembro de 2000 aconteceu em Ponta dasCanas, Florianpolis, a Oficina sobre Laudos Antropolgicos, realizada pelaAssociao Brasileira de Antropologia e organizada pelo NUER- Ncleo deEstudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas da UFSC, com apoio da Fun-dao Ford.

    A Oficina de Laudos teve como principal objetivo a formulao deparmetros necessrios implementao do Acordo de Cooperao Tcnicavisando a elaborao de laudos periciais antropolgicos, a ser assinado entre aAssociao Brasileira de Antropologia e a Procuradoria Geral da Repblica. Paraisto considerou-se a importncia inicial do debate entre antroplogos e a trocade experincias j consolidadas. O encontro resultou na formulao de questes,que foram sistematizadas no presente texto, para que seja amplamente divulgadoe discutido entre os profissionais da Antropologia, com a inteno de iniciar eestimular o debate sobre o assunto.

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    PARTICIPANTES:

    Coordenadores: Ruben George Oliven (Presidente da ABA) e IlkaBoaventura Leite (NUER-UFSC)

    Convidados: Ana Flvia Moreira Santos (Procuradoria da Repblica MG); Angela Maria Batista (Ministrio Pblico Federal DF); Elaine de AmorimCarreira (Ministrio Pblico Federal - DF); Eliane Cantarino ODwyer (Universi-dade Federal Fluminense); Jos Augusto Laranjeiras Sampaio (Universidade daBahia); Jos Maurcio Andion Arruti (Koinonia); Jos Otvio Catafesto de Souza(UFRGS); Maria Dorotha Post Darella (Museu Antropolgico da UFSC); MariaFernanda Paranhos de Paula e Silva (Ministrio Pblico DF); Marco PauloFroes Schettino (Funai); Miriam Chagas (Mistrio Pblico Federal RS); NoraldinoCruvinel (Funai); Sheila Brasileiro (Ministrio Pblico Federal BA); Miriam Fur-tado Hartung (UFPR); Raquel Mombelli (NUER/UFSC); Silvio Coelho dosSantos (UFSC); Walmir Pereira (Museu Antropolgico do Rio Grande do Sul)

    DINMICA DO TRABALHO:

    Inicialmente os participantes fizeram um relato de suas experincias naelaborao de relatrios, pareceres e laudos periciais antropolgicos seguindo-seuma discusso sobre os pontos apresentados previamente como roteiro de dis-cusso, que foram os seguintes:1-Paradigmas (o campo terico, conceitual e osinterlocutores disciplinares); 2-Aspectos Tcnicos (o trabalho de campo, o recor-te e contedo, a literatura, a estrutura do documento); 3- tica (lei, autoridade esaberes; traduo/interpretao e a ao poltica; polticas de indenizao e aescompensatrias; gesto do campo e do mercado de trabalho). Como continui-dade dos trabalhos desta primeira sesso, prosseguiu-se pela retomada do rotei-ro atravs de um debate mais geral, sobre tica, envolvendo as principais ques-tes levantadas nesta primeira parte; e em seguida, a partir de um levantamentoprvio sobre a qualificao das experincias dos participantes, o grupo subdivi-diu-se em trs para aprofundar os itens 1 e 2 do roteiro: 1- Laudos sobre Iden-tificao tnica; 2- Laudos sobre Territrios Tradicionais; 3- Laudos sobre Im-pactos Scio-ambientais. Os grupos procuraram aprofundar o debate, sistemati-zando os pontos principais em forma de consideraes e recomendaes paraservirem de parmetros para os futuros trabalhos envolvendo relatrios de iden-tificao e laudos periciais. Concluiu-se que o documento final resultante da ofi-

    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    cina no teria um papel normativo, mas seria um documento de trabalho a serutilizado principalmente como um parmetro inicial, a nortear as prximas dis-cusses e os antroplogos nas suas relaes com o campo jurdico e o adminis-trativo. Para isto foi criado pela Diretoria da ABA ali presente, um Grupo deTrabalho sobre Laudos Periciais Antropolgicos que dever dar continuidade aodebate, reunindo novos interessados no tema em questo.

    A seguir, o documento elaborado na Oficina:

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    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

    Os antroplogos reunidos entre os dias 15 e 18 de novembro de 2000 emPonta das Canas, Florianpolis, a convite da Associao Brasileira de Antropolo-gia e do NUER/UFSC, concluram que:

    A aceitao, pelos antroplogos, da realizao de um laudo, parecer ourelatrio dever estar condicionada explicitao dos seguintes pontos:

    1- Sobre a autoria, atentar para:a- Suas implicaes jurdicas e administrativas.b- Os limites s suas reapropriaes posteriores (que podem agregar novas

    responsabilidades jurdico-administrativas).

    c- Os limites aos trabalhos de resumo ou copy-desk do texto original.

    d- As condies e garantias de sua publicizao.

    2- Sobre as condies de trabalho:a- A realizao do laudo dever estar condicionada ao acordo prvio e

    explicitao de prazos e oramentos.

    b- Os prazos e recursos devero prever o tempo necessrio ao trabalho decampo, pesquisa documental e redao do trabalho.

    c- Os valores do pr-labore podero seguir uma tabela proposta pela ABA.

    3- Sobre a responsabilidade social do antroplogo:a- Tendo em vista as peculiaridades do trabalho antropolgico, a empatia e

    os longos perodos com os grupos estudados e principalmente a sua vo-cao crtica, a ABA, como associao cientfica e profissional reconhecidapelo engajamento na luta contra a discriminao, deve manifestar-se sobreas acusaes de suspeio ao trabalho dos seus associados que lhes impe-am de desempenhar as suas atividades caractersticas e pertinentes.

    b- Devero receber a ateno da Comisso de tica da Associao os casos

    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    de comprovada evidncia de prejuzo a um grupo social e/ou de antro-plogos associados da ABA, principalmente quando ocasionado por umexerccio de trabalho inadequado.

    4- Sobre o controle da qualidade dos trabalhos realizados:a- Tendo em vista este Acordo de Cooperao Tcnica e as preocupaes

    prprias da ABA com relao composio de seus quadros, recomen-da-se que o Ministrio Pblico Federal e outros operadores da justia inte-ressados em percias ou pareceres antropolgicos recorram em primeirolugar indicao de nomes por esta entidade e esta dever fazer sua indi-cao a partir do seu corpo de scios efetivos.

    b- A ABA ficar responsvel pela devida disponibilizao dos trabalhos parao seu conjunto de associados entendendo-se que a divulgao o nicomeio de estabelecer um controle de qualidade sobre tais trabalhos.

    CONSIDERAES:

    Considerando que:

    z um dos maiores problemas no relacionamento dos antroplogos com asdemandas do campo jurdico e administrativo est na alteridade entre taiscampos conceituais, profissionais e ideolgicos. Esta alteridade apresenta-sefreqentemente atravs da dualidade entre 1-produzir julgamentos ou produ-zir inteligibilidade; 2- produzir verdades ou produzir interpretaes; 3- operaruma hermenutica do cdigo legal para aplicao objetiva de um ordenamentojurdico nacional ou realizar descries densas da realidade local, que dificil-mente podem fugir de suas aplicaes contextuais;

    z as tenses constantes e inevitveis entre estes dois campos profissionais par-te das ferramentas prprias de cada um, expressando diferentes poderes,ainda que desiguais;

    z no h porque buscar eliminar essa tenso, j que a alternativa a ela seria asimples adequao leia-se subordinao de um saber ao outro, que elimi-naria a possibilidade do ordenamento jurdico nacional e dos aparelhos esta-tais serem transformados pelo confronto com os diferentes ordenamentos

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    jurdicos sociais e polticos subordinados, com a diversidade de concepesque devem dar origem a uma mais larga diversidade de direitos;

    z o trabalho do antroplogo no como o de um detetive ou de um juiz, nempretende desvelar uma verdade ou produzir um juzo ponderado em tornode diferentes posies; mas sim o de traduzir uma realidade no imediata-mente compreensvel, particularmente pela cultura jurdica;

    z o valor dessa inadequao diz respeito s prprias condies de instituiodesse dilogo, da capacidade do antroplogo e do operador da justia ouadministrador compreenderem-se mutuamente. Algumas vezes a desejveltenso encoberta por uma incompreenso sendo necessrio, portanto, ob-servar certos procedimentos e cuidados para que o dilogo possa existir e,eventualmente, o plano de tensionamento mais fundamental possa ser com-preendido pelas partes envolvidas;

    z na elaborao destas demandas, tem-se atribudo ao antroplogo o papel deum classificador externo que, de modo naturalizado, identifica as unidadessociais e culturais, sendo portanto necessrio romper com os preceitospositivistas que fundamentam esta demanda;

    z o saber antropolgico se define pelo dilogo, pela traduo e explicitao decategorias e discursividades nativas, sendo capaz de relacionar as categoriastnicas juridicamente formalizadas com as categorias e circuitos de relaesprprios aos grupos sociais e aos contextos culturais investigados;

    z o processo de reconhecimento de grupos tnicos indgenas ou de remanes-centes de quilombos para fins de aplicao de direitos constitucionais temproduzido, por parte de rgos do Estado, a demanda por peas tcnicasantropolgicas de identificao tnica e tais demandas tm sido geradas apartir de contextos conflitivos;

    z nestes contextos, a reivindicao de uma identidade tnica e social tem sidoassociada a uma suspeita de manipulao instrumental, pelos atores sociais, decategorias identitrias contempladas por direitos constitucionais;

    z a experincia tm demonstrado que as manifestaes de auto-atribuio tni-ca no tm assegurado, por si s, o reconhecimento de direitos diferenciadospor parte do Estado Brasileiro;

    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    z necessrio considerar e respeitar, quando da implantao de Unidades deConservao, a existncia de populaes ali anteriormente residentes e comdireitos inequvocos sobre as terras que ocupam;

    z nestes casos, importante considerar tambm a especificidade e complexida-de dos Estudos de Impacto Scio-ambiental (EISA) e dos Relatrios deImpacto no Meio Ambiente (RIMA), relativos a projetos de desenvolvimen-to econmico no pas previstos pela Resoluo 01/86 e Resolues 09 e 10/90 respectivamente, do CONAMA (denominados Estudos de Impactoambiental e Programas Bsicos Ambientais), referentes a populaes etnica-mente diferenciadas.

    RECOMENDAES:

    Recomenda-se:

    1- Quanto s condies de estabelecimento do dilogo:z ter claro qual o fato ou objeto de interesse da justia ou da instituio

    solicitante;

    z conhecer e entender os quesitos ou disposies normativas que o operadorda justia ou administrador est solicitando que o antroplogo responda,com relao quele fato ou objeto;

    z compreender qual a relao jurdica ou o fato administrativo que d origem demanda;

    z avaliar criticamente a demanda apresentada pelo operador da justia ou ad-ministrador, com vistas a eventualmente corrigir sua formulao, recus-losou sugerir outros, mais adequados ao problema, quando corretamente for-mulado do ponto de vista antropolgico. Isso deve ser feito, preferencial-mente, por meio de um dilogo direto com o agente solicitante;

    z condicionar a aceitao do trabalho ao xito dessa negociao em torno dascondies de estabelecimento do dilogo.

    2- Quanto compreenso do discurso antropolgico nos documentos:

    z definir claramente os procedimentos, assim como as bases tericas que orien-taram a realizao do documento. Em sua demanda, os operadores da justia

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    e administradores recorrem ao antroplogo como um cientista social e nesseestatuto, o antroplogo deve deixar claras as bases de sustentao do seutrabalho do ponto de vista de sua disciplina;

    z ser minucioso e sistemtico na explicitao das razes que levaram apresen-tao das informaes selecionadas, tendo em vista os objetivos do docu-mento. Isso aponta para a necessidade de objetividade das respostas ou dosmovimentos inter-relativos constantes do documento. A sua diferena comrelao a uma leitura livremente acadmica da mesma questo est nessa eco-nomia a que ela deve responder, restringindo, na medida do possvel, a rique-za etnogrfica aos limites da demanda;

    z gerar um formato que hierarquize as partes constantes da argumentao;

    z dedicar uma parte do documento a responder objetivamente demanda,sumariando o argumento central que justifica a resposta dada e remetendo ademonstrao etnogrfica da resposta parte correspondente no corpo dodocumento;

    z nunca desconhecer um item da demanda que foi originalmente aceito duranteas primeiras negociaes. Caso o trabalho de realizao do documento revelea sua inadequao, ela deve ser igualmente demonstrada etnograficamente;

    z explicitar sistematicamente o contedo das noes utilizadas no texto quefujam ao seu sentido dicionarizado ou que agreguem contedos de naturezapropriamente antropolgica.

    3- Quanto aos relatrios de identificao tnica:z entende-se como grupo etnicamente diferenciado toda coletividade que, por

    meio de suas categorias de representao e formas organizacionais prprias,se concebe e se afirma como tal;

    z os grupos tnicos manifestam-se a partir da declarao de uma origem co-mum presumida e destinos compartilhados;

    z as categorias sociais de identidade tnica apresentam uma concomitanteterritorial, definida por referncias compartilhadas de ordem fsica, simblicae cosmolgica;

    z a verificao das categorias tnicas e sociais de identidade deve se fundamen-

    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

  • 39

    tar na investigao etnogrfica, em precedncia sobre a busca de possveisreferncias histrico-documentais e arqueolgicas;

    z tais representaes e formas organizacionais tm expresso fundamental narealidade presente do grupo, devendo pois ser explicitados na investigaoetnogrfica;

    z os assim chamados relatrios de identificao tnica no tm carter de ates-tado, devendo ser elaborados como diagnoses das situaes sociais investigadas,que orientem e balizem as intervenes governamentais na aplicao dos di-reitos constitucionais.

    4- Quanto aos laudos sobre territrios tradicionais:

    z as concepes prprias s formas de auto-definio sociocultural do grupodevem ser identificadas, bem como a sua percepo do espao, os usos evalores;

    z as categorias jurdicas relativas posse e aos direitos territoriais que esto nadefinio da demanda devem ser descritos pormenorizadamente;

    z mapear o campo de relaes que est em jogo na situao social sobre a quale na qual o documento produzido, explicitando as posies dos diferentesatores que esto influenciando na definio de uma resposta aos itens. Issoguarda, em primeiro lugar, a objetividade da resposta dada, assim como a suanatureza social e, nesse sentido, conjuntural;

    z promover ampla discusso com o grupo para definir uma posio clara so-bre os limites do territrio em questo, ou sobre a impossibilidade de definirtais limites no momento, observando-se os parmetros constitucionais e le-gais vigentes;

    z justificar cada limite da rea identificada, documentando etnograficamente asrazes que sustentam tais posies identificadas, as posies tomadas em cam-po por parte do pesquisador e do grupo que alvo de investigao;

    z explicitar os conceitos internos ao trabalho antropolgico e ao dilogo com ocampo jurdico que relacionem-se com a aplicao do preceito constitucionalde territrio tradicional, alertando para os seus efeitos.

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    5- Quanto aos laudos de impacto scio-ambiental:

    z formular e aperfeioar um roteiro/sugesto que contemple: a) acontextualizao da realidade que envolve o estudo; b) a explicitao dametodologia utilizada, inclusive na pesquisa de campo, bem como a definiodos termos especficos; c) a necessidade de objetividade na argumentao,que dever ser centrada em torno do possvel impacto global do empreendi-mento; d) o dimensionamento dos danos tanto morais quanto fsicos dosimpactados; e) a apresentao de medidas mitigadoras e indenizatrias tantopara o projeto oficial quanto para o alternativo, ambos propostos pelo em-preendedor;

    z condicionar as licenas prvia e de instalao do empreendimento ao cumpri-mento das medidas mitigadoras e indenizatrias apontadas no estudo de im-pacto scio-ambiental;

    z sobre a realizao do Programa Bsico Scio-ambiental (PBSA) previsto pe-las Resolues 09 e 10/9 do CONAMA, garantir a participao do profissi-onal ou da equipe formuladora do EISA em todo o processo demonitoramento do PBSA que envolve o perodo anterior instalao daobra, o incio de sua operao, at o perodo posterior a ser definido noprprio PBSA;

    z aprofundar e apresentar, atravs de GT especfico da ABA, subsdios para aelaborao de estudos de impacto scio-ambiental abrangendo desde ter-mos de referncia, legislao, medidas de acautelamento e divulgao dostrabalhos;

    z incluir essas populaes e seu conhecimento tradicional no debate da matriaque envolve suas terras de ocupao e as unidades de conservao correlatas;

    z estimular a participao de antroplogos nos GTs interdisciplinares, no sen-tido de acompanhar a implementao da Lei 9985/2000, que institui o Siste-ma Nacional de Unidades de Conservao e o seu artigo 57, que versa arespeito da sobreposio terra indgena unidade de conservao no pas;

    z protocolar o EISA no Ministrio Pblico Federal e, se possvel, registr-lo emcartrio.

    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    Florianpolis, 18 de novembro de 2000

    1. Ana Flvia Moreira Santos (Procuradoria da Repblica MG)2. Angela Maria Batista (Ministrio Pblico Federal DF);3. Elaine de Amorim Carreira (Ministrio Pblico Federal - DF);4. Eliane Cantarino ODwyer (Universidade Federal Fluminense);5. Ilka Boaventura Leite (NUER-UFSC)6. Jos Augusto Laranjeiras Sampaio (Universidade da Bahia)7. Jos Maurcio Andion Arruti (Koinonia);8. Jos Otvio Catafesto de Souza (UFRGS);9. Marco Paulo Froes Schettino (Funai);10. Maria Dorotha Post Darella (Museu Antropolgico da UFSC);11. Maria Fernanda Paranhos de Paula e Silva (Ministrio Pblico DF);12. Miriam Chagas (Mistrio Pblico Federal RS);13. Miriam Furtado Hartung (UFPR);14. Noraldino Cruvinel (Funai);15. Raquel Mombelli (NUER/UFSC);16. Ruben George Oliven (Presidente da ABA)17. Sheila Brasileiro (Ministrio Pblico Federal BA);18. Silvio Coelho dos Santos (UFSC);19. Walmir Pereira (Museu Antropolgico do Rio Grande do Sul)

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    MOMENTOS DA REUNIO

    Silvio, Ilka, Jos Augusto, Sheila e Walmir

    Jos Otavio, Eliane, Dorotha, Miriam e Ruben

    Noraldino, ngela, Elaine e Maria Fernanda

    A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    Jos Maurcio, Raquel e Miriam Chagas

    Ana Flvia, Miriam e Jos Augusto

    Ruben, Ilka e Ela Wieko.

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    DEBATENDO A CARTA DE PONTA DAS CANAS

    Ilka Boaventura Leite*

    O Frum Especial Sobre Laudos Periciais Antropolgicos teve lugar na 23 Reu-nio de Antropologia, em Gramado (RS), onde aconteceu a primeira sesso dedebates sobre a Carta de Ponta das Canas, documento de trabalho elaborado emFlorianpolis, no ano 2000, e que coroou um longo processo de discusso sobreo acordo de cooperao tcnica entre a Associao Brasileira de Antropologia(ABA) e o Ministrio Pblico Federal (MPF). Foram convidados a procuradoraEla Wiecko de Castilho, da 6 Cmara do MPF, e os antroplogos Jos AugustoLaranjeiras Sampaio da ANAI/Bahia; Eliane Cantarino ODwyer, da Universi-dade Federal Fluminense (UFF); Silvio Coelho dos Santos, professor emrito daUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Ruben Oliven, da Universida-de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da ABA.

    A chamada Carta de Ponta das Canas praia da Ilha de SantaCatarina em que foi redigido o documento visa ancorar um amplo debateentre antroplogos, operadores jurdicos e administradores, debate que se ini-ciou com o seminrio Percia Antropolgica em Processos Judiciais, realizadoem 1991 na Universidade de So Paulo (USP), durante a gesto de Roque de

    * Antroploga, Universidade Federal de Santa Catarina, coordenadora do NUER/UFSC e do Grupo deTrabalho sobre Laudos Antropolgicos da ABA (2000/2002).

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    Barros Laraia12 na presidncia da ABA. Verificamos que tal debate avanou,registrando novos aspectos que se agregaram ao cenrio da antropologia brasi-leira na ltima dcada.

    Durante a Oficina debatemos longa e intensamente as experincias de cadaparticipante na produo de laudos periciais antropolgicos em aes civis, ad-ministrativas e criminais envolvendo grupos tnicos, questes ambientais epatrimnio cultural, em diversas regies do Brasil.

    O pr-requisito era possuir experincia pericial capaz de balizar e nortearos debates. Foram convidados antroplogos vinculados a universidades pbli-cas, museus, fundaes e outras agncias governamentais, alm de representantesdas procuradorias regionais e da 6 Cmara do Ministrio Pblico Federal.

    Organizada pelo Ncleo de Estudos sobre Identidade e RelaesIntertnicas da Universidade Federal de Santa Catarina (NUER/UFSC), a Ofici-na, bem como o documento dela exarado, caracterizou um momento importan-te na discusso sobre a elaborao dos laudos e a relao dos antroplogos como Ministrio Pblico, na medida em que algumas questes se revelavam cruciaispara o trabalho antropolgico e sua insero no campo jurdico. Em certa medi-da, a Carta de Ponta das Canas estabeleceu parmetros sobre o papel do profis-sional de antropologia na elaborao de laudos uma questo fundamental, jque os antroplogos, at ento, no tinham um referencial objetivo para pautarseu trabalho nessa rea. Existia apenas o Cdigo de tica da ABA, redigido emoutro momento, quando a questo dos laudos ainda no se constitua numamodalidade de produo na prtica antropolgica.

    O livro Percia Antropolgica em Processos Judiciais, publicado em1994, representou um avano significativo na questo dos laudos, mas restaramainda dvidas e controvrsias. Naquele momento, o NUER desenvolvia o proje-to O acesso terra e a cidadania negra: expropriao e violncia no limite dosdireitos, financiado pelo CNPq e pela Fundao Ford. O principal objetivo doprojeto era o da elaborao de trs laudos sobre terras de quilombos na RegioSul do Brasil, um deles envolvendo a Comunidade de Casca, no Rio Grande doSul, objeto de uma Ao Civil Pblica o que nos inseria diretamente em um

    DEBATENDO A CARTA DE PONTA DAS CANAS

    12 Os depoimentos foram publicados em: Silva, Orlando Sampaio; Luz, Ldia; Helm, Ceclia Maria Vieira.Percia Antropolgica em Processos Judiciais. Florianpolis: ABA, 1994.

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    dilogo com a Procuradoria da Repblica naquele Estado.

    Sentimos, ento, necessidade de nos inteirarmos de outros processos judi-ciais similares em curso no pas, sobretudo para compreender o alcance dasatribuies e responsabilidades de um antroplogo em questes de tal vulto, cujoparmetro legal (no caso, a regularizao do Artigo 68 do ADCT da Constitui-o Federal) nem sequer fora concludo o que tornava a percia o prprioamparo legal para a ao.

    A Carta de Ponta das Canas resultou de um dilogo entre antroplogosde vrias reas, que trabalhavam com sociedades indgenas, comunidades negrase questes ambientais ou seja, nos colocou diante do desafio de estabelecer umdenominador comum capaz de fazerem convergir os aspectos mais recorrentesna prtica profissional. Foi na questo das terras indgenas que os peritos acumu-laram mais experincia, mas naquele momento novas questes apontavam paraum tratamento amplo, uma verdadeira oportunidade de unir uma antropologiafragmentada por seus prprios objetos e abordagens tericas e temticas.

    Os profissionais de antropologia se uniram no apenas em torno de as-suntos pontuais ou de casos especficos, mas de temas gerais apontados peloprprio roteiro da Oficina: conceitos, mtodos, princpios ticos e a regulariza-o da prtica profissional. De certa forma, a Oficina de Laudos sinalizou tam-bm um foco de tenso no relacionamento entre Antropologia e Direito. Atarefa de consolidar um documento-sntese cumpria tambm o papel de formu-lar parmetros futuros para mediao dos trabalhos, j que questes de ordeminterpretativa produziam impactos do ponto-de-vista da aplicao das leis e dassituaes vividas pelos grupos pesquisados. Todos os participantes concordaramsobre a importncia de explicitar o lugar do qual cada um falava, bem comoquestes decorrentes destas posies, pessoais e institucionais, e o lugar a serreivindicado no dilogo com o campo jurdico.

    A Carta de Ponta das Canas tambm explicitou a responsabilidade deduas instituies a ABA e o Ministrio Pblico como intermediadoras deconflitos envolvendo direitos de minorias e grupos tnicos. Neste sentido, o docu-mento tornou-se um divisor de guas, pois a ABA assumiu explicitamente aconduo do dilogo entre profissionais e instituies de governo.

    A etapa seguinte do debate aconteceu em Florianpolis, de 24 a 27 de

    Ilka Boaventura Leite

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    abril de 2001, no IV Encontro Nacional Sobre Atuao do Ministrio PblicoFederal na Defesa das Comunidades Indgenas e Minorias. Na mesma ocasio elocal ocorreu o Seminrio Nacional dos Analistas Periciais em Antropologia.

    Aps essa fase de intensos debates consolidou-se a interlocuo para aassinatura do acordo de cooperao tcnica entre a ABA e o Ministrio PblicoFederal, o que aconteceu em 9 de novembro de 2001. Pelo acordo, a ABApassou a indicar ao Ministrio Pblico os antroplogos peritos, buscando res-guardar minimamente os parmetros cientficos consensuados pela comunidadedos antroplogos em mais de trinta anos de prtica profissional. O acordo garantiutambm um padro de qualidade e o atendimento dos princpios apontados noCdigo de tica, constituindo-se, portanto, em um dispositivo preventivo, poispessoas sem formao na rea, no-filiadas Associao ou mesmo sem experi-ncia na produo de laudos reivindicavam espao no mercado de trabalho,colocando em risco a autoridade cientfica dos profissionais e as percias antro-polgicas realizadas no Brasil.

    A Carta de Ponta das Canas sinalizou o carter aberto do debate travadopela comunidade cientfica. Na formulao geral, o texto anuncia sua condiono-normativa, mas propositiva, ao apontar questes e problematizar aspectosde forma ampla e crtica. Neste sentido, o documento abordou tambm itensausentes dos debates anteriores, como metodologia de pesquisa, teoria e umatica prpria do campo etnogrfico. A Carta esclarece igualmente conceitos comoos de grupo tnico, identificao tnica, territorialidade, ocupao tradicional enfim, lana novas luzes sobre o campo conceitual que orienta as percias. Outroaspecto relevante o do trabalho de campo etnogrfico, reafirmado unanime-mente como o que define a prtica antropolgica e indissocivel, portanto, dasatividades de percia. Neste sentido, depreende-se da Carta uma sistematizaodas posturas terico-metodolgicas que remontam tradio de um campo deconhecimento que se constitui na virada do Sculo XIX para o Sculo XX.

    Outro aspecto que merece destaque a definio do que vem a ser umlaudo e compe o produto apresentado como um laudo. A Oficina deLaudos forneceu algumas respostas. Procuramos discutir amplamente sobre seesta uma questo meramente tcnica e sobre at que ponto, por exemplo, umlaudo antropolgico se diferencia de outros documentos com os quais nos fami-

    DEBATENDO A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    liarizamos na academia. O laudo outra modalidade de produo cientfica?Tudo indica que sim, pelas prprias condies de sua elaborao, pelo fato deinserir-se num processo, de fazer parte de um dilogo com outros campos esaberes, e de ser produzido mediante quesitos previamente elaborados. Consta-tou-se, durante a Oficina, que parte dos saberes sobre os processos de percia seencontravam em estado prtico, ou seja, ainda no se explicitava de formadicionarizada ou em textos que visassem sistematizar e levar a uma reflexo so-bre a experincia pericial. Grande parte das discusses girou em torno de defini-es capazes de abranger e conceituar a prtica de percia e a chamada peatcnica, ou seja, o laudo. Uma das definies mais discutidas foi a proposta porElaine Amorim, antroploga da 6 Cmara do MPF, que diferenciava percia,laudo e relatrio. A percia seria um parecer tcnico especializado, uma opiniofundamentada acerca de um determinado assunto e emitida por um especialistaaps a pesquisa. Sob tal tica, o laudo se constituiria na pea escrita em que oespecialista expe suas observaes sobre os estudos realizados e registra suasconcluses necessitando, para tanto, apresentar o mtodo pelo qual atingiu osresultados apresentados. Com o objetivo de responder a um conjunto de quesi-tos previamente explicitados pela instituio ou juiz solicitante sobre determina-do assunto, o laudo cumpriria a funo de orientar o processo administrativo oujurdico sobre o que est sendo solicitado. J o relatrio, a rigor, no seria resulta-do de percia, constituindo-se numa descrio ordenada, mais ou menos minuci-osa e at verbal, sobre aquilo que se testemunhou. Em tese no necessrio sercientista para fazer um relatrio, mas quando se trata de uma solicitao dirigidaa algum enquanto especialista, tal resposta pode ser concebida como um laudoe considerada, portanto, percia.

    Na continuidade das discusses, outros termos foram correlacionados atividade pericial: a vistoria, o exame, o depoimento e o testemunho expres-ses recentemente agregadas antropologia e que devem ser devidamentecontextualizadas luz deste campo e no sob o enfoque do campo jurdico deque se originam.

    Um segundo aspecto a destacar refere-se ao tempo transcorrido entre aelaborao do trabalho de campo, o laudo e o prprio processo em que ele estinserido. O critrio de seleo para escolher um antroplogo quase sempre oda competncia, somado ao fato do profissional trabalhar muitos anos naquela

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    rea ou com determinado tema, e de ter participado anteriormente de trabalhode campo no local. Como perito, ele acompanha cada etapa, as audincias pbli-cas, todo o processo envolvendo vrios atores sociais. Mas depois se inicia umafase que pode estender-se por at anos a fio sem que surja uma soluo jurdicaou administrativa para o conflito. Assim, dependendo do caso, o antroplogopode vincular-se por um longo perodo de tempo aos grupos pesquisados, oque invalida a noo de que seu trabalho meramente tcnico e de que ele vaiembora para casa to logo conclua a percia.

    Um terceiro ponto que vale sublinhar diz respeito forma como o con-tedo da percia considerado no processo. O antroplogo instado, por exemplo,a incluir em seu parecer medidas de proteo dos grupos atingidos e essas medi-das, por sua vez, podem dificultar ou adiar decises por muitos anos. Por outrolado, se desconsiderar tais medidas mitigatrias, o profissional pode ser respon-sabilizado por situaes imprevistas ou desdobramentos que venham a prejudi-car a comunidade-alvo do processo. Todas essas exigncias internas e externas aocampo periciado representam um pesado nus emocional, inclusive a recairsobre os ombros do antroplogo. Muitas vezes lhe cobrado um papel quaseque de rbitro, de algum que deve determinar o que e como se deve proceder.Embora suas concluses sejam fruto do contato com as comunidades pesquisadas,nem sempre tais grupos concordaro ou acolhero seu ponto-de-vista. Invaria-velmente encontramos situaes em que o papel do antroplogo super ousubdimensionado, o que implica, em ltima instncia, num desrespeito sua con-dio de especialista.

    Ainda gostaria de comentar acerca do cuidado com as fontes. A Carta dePonta das Canas enfatiza tambm essa questo: a apresentao dos documentoshistricos e cartoriais, a importncia de ter em vista que o laudo ser lido e relidopor todas as partes envolvidas e o fato de que ele vai se tornar, evidentemente,uma das peas fundamentais do processo. muito importante, pois, que sepossa extrair dos documentos o maior nmero de evidncias possveis, corro-borem o pleito ou no, discutindo-as e interpretando-as em todos os aspectosrelevantes.

    O quinto ponto a ser destacado o do lugar dos atores sociais envolvidosno conflito, principalmente em relao ao objeto da percia. As posies diver-

    DEBATENDO A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    gentes de tais atores, evidentes sobretudo nas audincias e negociaes ocorridasdurante o processo, devem ser registradas e se constituir em objeto de discussono laudo. O xis-da-questo a fronteira entre o trabalho tcnico-cientfico e otrabalho poltico. Em grande parte das percias, o antroplogo se v s voltascom diversas verses e atores, sendo instado a assumir uma posio ao mesmotempo em que tenta sistematizar tais verses que divergem inclusive no interiordo prprio grupo e torn-las inteligveis para o juiz.

    Finalmente, destaco a questo dos direitos autorais. Num laudo em que oantroplogo sintetiza informaes e subsdios fornecidos por um sem-nmerode profissionais agrnomos, engenheiros, historiadores, gegrafos, arquelo-gos etc. , que papel desempenham esses especialistas? O laudo pericial antro-polgico muitas vezes um documento-sntese. Caberia pens-lo, ento, comoum documento plurivocal e multidisciplinar? Um laudo pericial antropolgicono pode ser elaborado por um historiador, mas em muitos casos o historiadorcontribui para sua elaborao. Como isto pode ser dimensionado? O trabalhode campo um aspecto tcnico da elaborao do laudo e merece aprofundamentona medida em que nos habituamos a encarar tal trabalho de forma individual,autoral, sem considerar que se trata, em muitos casos, de uma atividade de equi-pe, introduzindo novos desafios e parmetros ticos tambm distintos.

    Por fim, arrolo um feixe de questes para o debate:

    1) Como disponibilizar as informaes? Em que momento, na elabora-o do laudo, o antroplogo pode divulgar as informaes de campo de que eledispe?

    2) Como encarar a questo da fidelidade em relao ao processo de con-flito que o antroplogo deve periciar?

    3) Qual deve ser a postura do profissional frente aos desdobramentospolticos de seu trabalho, quando ele pode vir a desempenhar, sem se dar conta,o papel de informante algo extremamente delicado no momento da elabora-o de um laudo?

    4) Quanto questo das arbitragens, o fato de o antroplogo colocar disposio seu saber especializado, sua experincia no trabalho de campo e napesquisa etnogrfica, visando auxiliar os operadores jurdicos em processos de

    Ilka Boaventura Leite

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    regularizao fundiria e no reconhecimento da noo de direito das comunida-des, significa ou no produzir julgamentos?

    Muito brevemente, procurei reforar alguns aspectos sensveis na aberturado Frum, ao lado de outros que sero destacados por nossos convidados.Como lembrete, uma verso da Carta de Ponta das Canas encontra-se disponvelna pgina da ABA. O documento tem gerado debates entre profissionais e estu-dantes, utilizado como matria curricular e se constitui em referncia para an-troplogos da FUNAI e do Ministrio Pblico. A Carta muitas vezes encaradacomo um documento normativo, quando na verdade ela um parmetro inicial,um mote para dar continuidade discusso, no uma cartilha para ser seguida aop-da-letra.

    DEBATENDO A CARTA DE PONTA DAS CANAS

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    A ATUAO DOS ANTROPLOGOSNO MINISTRIO PBLICO FEDERAL

    Ela Wiecko V. de Castilho*

    Boa tarde a todos. Venho aqui na qualidade de Coordenadora da 6 C-mara do Ministrio Pblico Federal. Talvez nem todos saibam de que se trata. AsCmaras de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal so rgosde integrao e de reviso do trabalho dos membros do Ministrio PblicoFederal, principalmente de primeira instncia. So seis cmaras. A 6 coordena erevisa a atuao referente a minorias tnicas.

    Minha exposio ter dois momentos. No primeiro farei uma avaliaosobre o convnio firmado em abril de 2001, entre a ABA e o MPF. No segundomomento falarei sobre algumas questes que tm emergido na produo delaudos antropolgicos a partir da Carta de Ponta das Canas. O Convnio temsido muito importante mais como um princpio na atuao do Ministrio Pbli-co Federal, do que realmente como fonte de produo e laudos e consultorias. preciso lembrar que antes desse convnio havia uma cooperao que remonta aofinal dos anos 80, incio de 90. No cheguei a resgatar exatamente a data. Naverdade foi esse instrumento anterior que introduziu o princpio, que continuamuito forte, da integrao do antroplogo no trabalho do Ministrio Pblico,isto , de chamar o antroplogo a participar do exerccio da nossa funo, prin-

    * Coordenadora da 6 Cmara do Ministrio Pblico Federal.

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    A ATUAO DOS ANTROPLOGOS NO MINISTRIO PBLICO FEDERAL

    cipalmente a funo de tutela coletiva, que a defesa do consumidor, das mino-rias, e toda atuao na rea da educao e da sade.

    A partir desse entendimento de que o antroplogo um profissional quepode ajudar-nos muito, houve a incluso no quadro de servidores do MPF doschamados analistas periciais em Antropologia. Hoje, temos analistas nas cidadesde Manaus, Porto Velho, Cuiab, Macei, Salvador, Rio de Janeiro, So Paulo(dois), Porto Alegre e Braslia. Em Braslia so quatro antroplogos na 6 Cma-ra, uma antroploga na 4 Cmara, que a cmara que cuida de meio ambientee do patrimnio histrico, e um antroplogo lotado na Procuradoria Federaldos Direitos do Cidado.

    Recentemente ns comeamos a prtica de contratar estagirios em An-tropologia. So trs estagirios que esto trabalhando em Braslia e uma expe-rincia que tem sido muito gratificante. H uma exigncia cada vez maior dosmembros do Ministrio Pblico Federal, que atuam no tema das minorias tni-cas, de querer assessoria de antroplogos. Nesse perodo em que eu estou traba-lhando na 6 Cmara deu para perceber o quanto colegas ficam at mesmoindispostos porque no dispem da assessoria de um antroplogo. Isto umanova realidade. H uns anos atrs, com certeza h dez anos atrs, os colegas noconsideravam importante essa assessoria. A exigncia se colocou primeiro naquesto indgena e, depois, na questo quilombola, percebendo-se tambm aexigncia em outras reas de atuao da tutela coletiva, como o caso de crianae adolescente, de portadores de necessidades especiais, de educao e sade, demeio ambiente. Ento, o primeiro ponto que eu quis colocar relativo a fora doprincpio que est puxando a Antropologia para dentro do Ministrio PblicoFederal.

    Quanto aos laudos e consultorias com base no Convnio, eu pedi para angela Baptista, que antroploga no MPF, para fazer uma lista. No consegui-mos fazer o levantamento de muitas situaes em que o Convnio tivesse sidoutilizado. Recordo do laudo que a Eliane Cantarino fez sobre trabalho escravono Acre, do laudo sobre quilombo no Rio das Rs, do Jorge Carvalho. Mas soda poca em que no havia o Convnio e no existia a 6 Cmara, mas a Secre-taria de Coordenao de Defesa dos Direitos Individuais e Interesses Difusos(SECODID).

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    Agora, nessa fase de 6 Cmara, e j sob o Convnio, posso indicar o casode Alcntara em que o Alfredo Wagner est fazendo a consultoria. Um outrocaso ainda no formalizado, mas j com a indicao de nome do profissionalpela ABA, o de Laranjinha no Paran. um caso criminal, e a antroplogaindicada a Kimio Tommasino. Temos um caso tambm que vai resultar numpedido de indicao para consultoria relativo aos Cinta Larga, uma situao muitodifcil que estamos enfrentando. O Joo Dal Poz, um antroplogo que tem umavivncia profunda com os Cinta Larga, vai nos dar essa assessoria. H um outrocaso referente ao quilombo do Carmo, em So Paulo. Agora esqueci o nome daantroploga.

    Alm desse procedimento em que a Procuradoria contrata o profissionalpara uma consultoria ou assessoria, existe a hiptese de ela fazer a indicao emsede judicial para que ele atue como perito. H duas espcies, portanto, de indica-o feita pela ABA: uma para assessoria no mbito administrativo e outra paraassessoria no mbito judicial. Nesse ltimo caso pouquinho diferente a buro-cracia do pagamento. Tambm gostaria de esclarecer que o nmero dessas indi-caes para percia, com base no Convnio com a ABA, foge do controle da 6Cmara. Por isso, no tenho condies de avaliar a quantidade de percias quetm sido feitas por conta do Convnio, quando no ocorre necessidade de efetu-ar algum pagamento pelo MPF.

    Agora vou falar um pouco sobre o Convnio como indutor da aproxi-mao de profissionais de Direito e da Antropologia. H dois modos de ver,duas perspectivas: a perspectiva do membro do Ministrio Pblico e a perspec-tiva do antroplogo. Acho que eu posso falar melhor sobre a primeira, masalgumas reflexes que tenho feito sobre a segunda encontraram respaldo no queouvi hoje pela manh e agora, da Ilka. Na perspectiva do membro do MinistrioPblico, quando ele se aproxima do antroplogo, quer na verdade o profissionalcapaz de resolver alguns problemas que ns, profissionais do Direito, no sabe-mos resolver. Que respostas queremos? Que diga para ns, juristas, quem ndio,quem remanescente de quilombo, que calcule os impactos culturais de umaobra projetada ou calcule os danos culturais causados por determinada obra,por determinada atividade. Queremos tambm que o antroplogo nos apresen-te alternativas de projetos de desenvolvimento para grupos tnicos desestruturados.Queremos tambm que o antroplogo diga como que ns devemos tratar os

    Ela Wiecko V. de Castilho

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    casos de divises internas, de conflitos, em quem que se deve acreditar, quemdevemos ouvir, o que devemos fazer, e queremos uma orientao com relaoaos conflitos externos, como se situar, como fazer articulaes para superar essesconflitos. Em suma, temos uma demanda muito grande. Dei alguns exemplos eesses exemplos, na maioria das vezes, dentro da 6 Cmara, esto direcionadospara a questo indgena. Entretanto, a interlocuo com o antroplogo, dentrodo Ministrio Pblico Federal, tende a crescer para outras reas. Na rea criminal,a compreenso da violncia, da criminalidade, do crime, necessita da interlocuocom a Antropologia. O problema que queremos chamar o antroplogo ecoloc-lo para atuar em nome do procurador, principalmente em reunies eaudincias pblicas. Por um lado, realmente o membro do MPF no pode estarpresente em todas as reunies, audincias, e ento algum deve represent-lo. Oantroplogo nos parece ser a melhor pessoa, o profissional mais habilitado, masisso pode ser questionvel.

    Entendemos que o antroplogo aquela pessoa que pode fazer a tradu-o do que est acontecendo, fazer entender o conflito. Isto nos ajuda, mas aca-bamos tambm querendo que o antroplogo faa a mediao do conflito. Agente tende a exigir do antroplogo, que servidor do MPF, atuar, intervir, assimcomo ns podemos intervir. Outro problema que o analista pericial do MPF chamado a atuar em questes muito diferentes, e em lugares diferentes. Entons temos, numa semana, a antroploga no Mato Grosso, na outra semana noAmazonas, na terceira semana no Nordeste. No Mato Grosso atua na questoindgena, no Nordeste vai atuar na questo quilombola e no Amazonas vai atuarem sade indgena. Dou os exemplos, lembrando das antroplogas da 6 Cma-ra e tudo que elas fazem ao mesmo tempo. Isso obriga o antroplogo a sergeneralista.

    Ora, eu tinha a idia de que o antroplogo dedicava a vida pesquisa deum objeto de estudo. Aquele que entendia dos Ticuna, dos Cinta Larga e tal.Hoje eu vejo os antroplogos do MPF (na FUNAI acontece o mesmo), tendoque entender de tudo ao mesmo tempo. Est surgindo um novo objeto deestudo, que parece ser as relaes do Ministrio Pblico com a sociedade. Colo-cando-me no lugar do antroplogo, parece-me que ele deve se sentir angustiado,porque chamado para dar respostas de valor absoluto e no relativo. Ora, orelativismo muito caro Antropologia. Hoje de manh, quando ouvi a fala do

    A ATUAO DOS ANTROPLOGOS NO MINISTRIO PBLICO FEDERAL

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    professor Roberto Cardoso de Oliveira, ele usou a palavra mal-estar na tica.Acho que isso se aplica aos antroplogos do Ministrio Pblico.

    Agora, algumas palavras sobre a Carta de Ponta das Canas. Fiz uma releituradela e me surpreendi com a sua atualidade, de como boa. Tudo que impor-tante est colocado a. Mas eu tenho uma percepo de uma questo, novamentepor intermdio dos antroplogos do Ministrio Pblico Federal e sobre ela gos-taria de dizer algumas palavras. Essa questo foi colocada pela Elaine CarreiraAmorim numa oficina que aconteceu recen