Legalização e descriminalização do aborto no Brasil

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Texto apresentado no Seminário Nacional Realidade do Aborto no Brasil, organizado pelos Grupos: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde ECOS Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana GELEDÉS Instituto da Mulher Negra, São Paulo, 1991. Este documento faz parte, também, do Projeto CEPIA Aborto: Um Debate Público, apoiado pela Fundação MERK. LEILA DE ANDRADE LINHARES BARSTED Legalização e descriminalização 10 anos de luta feminista 1. Ver aesse respeito Halimi, Gisèle - la Cause des Fem- mes: Bernard Grasset, Paris, 1973. A questão do aborto no Brasil surge no bojo de um movi- mento social cuja história se inicia no interior de uma socieda- de marcada por uma ditadura militar extremamente represso- ra. Já no contexto de sociedades capitalistas modernas e de- senvolvidas, onde o feminismo com a proposta de alargar os horizontes democráticos, incorporando as mulheres ao ideá- rio da igualdade, o direito ao aborto é conquistado com o re- conhecimento do direito à autonomia individual ] e como contestação ao poder do Estado em legislar sobre questões da intimidade do indivíduo. Ele se constitui na expressão mais radical da liberdade do cidadão perante o Estado. Em contraposição, no Brasil, na década de 70, não se tra- tava de ampliar a democracia, mas, sim, de conquistá-la. Igual- dade, liberdade, autonomia do indivíduo, cidadania, delimita- ção do poder do Estado não faziam parte de nossa tradição política. Não eram, no entanto, idéias fora do lugar. Repre- sentavam reivindicações dos mais diversos segmentos da socie- dade. Dessa forma, como uma espécie de reação não arma- da à extrema repressão política, o feminismo, assim como ou- tros movimentos sociais, surge e se fortalece, no período autori- tário, trazendo novas demandas sociais e questionando as rela- ções de sexo e raça, dentre outras, que, até então, estavam ofuscadas e englobadas na questão das classes sociais. ANO 0 1 04 2 Q SEMESTRE P.P. 1040 130

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Texto apresentado no Seminário NacionalRealidade do Aborto no Brasil, organizado pelos Grupos:—Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde—ECOS Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana—GELEDÉS Instituto da Mulher Negra, São Paulo, 1991.Este documento faz parte, também, do Projeto CEPIAAborto: Um Debate Público, apoiado pela Fundação MERK.

LEILA DE ANDRADE LINHARES BARSTED

Legalização edescriminalização

10 anos de luta feminista

1. Ver aesse respeito Halimi,Gisèle - la Cause des Fem-mes: Bernard Grasset, Paris,1973.

A questão do aborto no Brasil surge no bojo de um movi-mento social cuja história se inicia no interior de uma socieda-de marcada por uma ditadura militar extremamente represso-ra. Já no contexto de sociedades capitalistas modernas e de-senvolvidas, onde o feminismo com a proposta de alargar oshorizontes democráticos, incorporando as mulheres ao ideá-rio da igualdade, o direito ao aborto é conquistado com o re-conhecimento do direito à autonomia individual ] e comocontestação ao poder do Estado em legislar sobre questõesda intimidade do indivíduo. Ele se constitui na expressão maisradical da liberdade do cidadão perante o Estado.

Em contraposição, no Brasil, na década de 70, não se tra-tava de ampliar a democracia, mas, sim, de conquistá-la. Igual-dade, liberdade, autonomia do indivíduo, cidadania, delimita-ção do poder do Estado não faziam parte de nossa tradiçãopolítica. Não eram, no entanto, idéias fora do lugar. Repre-sentavam reivindicações dos mais diversos segmentos da socie-dade. Dessa forma, como uma espécie de reação não arma-da à extrema repressão política, o feminismo, assim como ou-tros movimentos sociais, surge e se fortalece, no período autori-tário, trazendo novas demandas sociais e questionando as rela-ções de sexo e raça, dentre outras, que, até então, estavamofuscadas e englobadas na questão das classes sociais.

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A luta pelo direito ao aborto no Brasil tem no seu cernea radicalidade da contestação contra a interferência do Es-tado no corpo feminino, contra a disciplinação moral e reli-giosa sobre este mesmo corpo por parte dos setores religiosose contra o moralismo da sociedade em geral e dos setoresde esquerda, em particular, que viam nessa questão do abor-to um viés divisionista e pouco relevante socialmente.

Um olhar retrospectivo sobre a trajetória da luta pelo di-reito ao aborto, no Brasil, permite resgatar alguns pontos.

A problemática do aborto foi, ao longo da década de80, articulada com várias outras questões que lhe deram legi-timidade, a partir de diferentes discursos.

Em primeiro lugar, o direito ao aborto foi defendido co-mo um direito inerente à autonomia da vontade do indivíduoquanto a questões que dizem respeito a seu corpo. Síntesedessa postura é o slogan Nosso Corpo Nos Pertence. A radi-calidade dessa posição se contrapõe aos diversos poderes

do aborto no Brasilque se instauraram, historicamente, sobre os corpos de ho-mens e mulheres e, mais particularmente, sobre os corpos fe-mininos.

A defesa do direito ao aborto teve como argumento,também, a questão da proteção à saúde da mulher. Sen-do o aborto um dado da realidade, face às situações eco-nômicas e sociais ou face a uma espécie de cultura femini-na que inclui a prática do aborto na vivência do ciclo re-produtivo das mulheres, evidenciava-se a necessidade defazer com que, através da legalização, as sequelas doaborto clandestino fossem eliminadas e a proteção à saú-de da mulher fosse um valor maior do que a proteção auma vida em potencial.

A partir do argumento do direito à saúde, destacava-seuma preocupação social. As maiores vítimas de sequelas deabortamentos clandestinos são as mulheres pobres. Nesse senti-do, a posição contrária à legalização do aborto foi considera-da como uma postura conservadora, reacionária, que penaliza-va exatamente as mulheres das classes populares que não dis-põem de recursos para terem acesso às clínicas clandestinasque oferecem um padrão de atendimento seguro.

Outra questão que se articula à defesa do direito aoaborto é o avanço da ciência na detecção das anomaliasfetais. De fato, quando, em 1940, o legislador se preocupouem criar permissivos legais por motivo da honra da gestanteou preocupado com a sua vida, ainda não existiam os mo-

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demos exames pré-natais que possibilitam aferir com grandeprecisão a existência de anomalias fetais graves que inviabili-zam a vida plena do nascituro.

A questão do aborto foi articulada, finalmente, com aimplementação de um sistema de assistência integral à saú-de da mulher, que lhe possibilite receber orientação e teracesso a serviços e métodos contraceptivos que diminuam aincidência do aborto.

Colocava-se, ainda, a necessidade de se desvincular aquestão do aborto da questão exclusivamente religiosa, assu-mindo o Estado uma posição laica a esse respeito.

Essas posturas se refletiram nos diversos projetos e ante-projetos de lei, ao longo da década de 80 e início dos anos90. Legalização ampla ou legalização restrita e gradualista fo-ram as posições colocadas pró-direito ao aborto, em oposi-ção à postura dogmática da Igreja Católica de total crimina-lização do aborto, mesmo das indicações já previstas em leicomo lícitas.

Na busca de alianças, o movimento de mulheres se de-parou com os limites de seus apoios face às conjunturas políti-cas do país e à dificuldade da sociedade em polemizar comquestões da sexualidade. Se alguns setores da Ordem dos Ad-vogados do Brasil, como, por exemplo, a Seccional do Rio deJaneiro, se posicionaram ao lado do movimento de mulheres,a cúpula nacional dessa instituição preferiu não se posicio-nar. O mesmo ocorreu com os Conselhos Regionais de Medi-cina - poucos foram os aliados, poucos, os opositores e mui-tos, os silenciosos. Alguns partidos políticos incluíram em suasplataformas a defesa do direito ao aborto. Mas no nível da ar-ticulação partidária, para tornar viável esse direito, a atua-ção dos partidos aliados foi fraca. Os aliados foram, na verda-de, indivíduos- advogados, parlamentares ou médicos, enão as instituições. Parlamentares aliados ao movimento demulheres, a partir de posições ideológicas a esse respeito, tor-naram-se os porta-vozes dos diversos projetos legislativos. Emrelação aos médicos, o mesmo pode ser dito. Poucos assumi-ram corajosamente a defesa desse direito, quer em sua for-ma mais ampla, em nome da autonomia da mulher, quer emsua forma mais restrita no que se refere às anomalias fetais.Somente no início da década de 90, o Conselho Federal deMedicina assume, publicamente, enquanto instituição, a de-fesa do aborto por anomalia fetal grave.

Por outro lado, os opositores não foram tantos, embo-ra poderosos: a Igreja Católica, através de sua rede nacio-nal de púlpitos e de sua influência na grande imprensa enos setores governamentais; os parlamentares evangélicosatravés de seus mandatos legislativos; alguns setores da im-prensa mais conservadora e alguns Conselhos Regionaisde Medicina.

A década de 90 apresenta alguns opositores novos. Deum lado, as dissensões do próprio movimento de mulheres, apartir da crítica às novas tecnologias reprodutivas e à influên-cia da visão fundamentalista que surge nos movimentos de

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mulheres no nível internacional.-De outro lado, alguns juristasde renome que, pela grande imprensa, se posicionam contrao direito ao aborto.

As iniciativas, no início dos anos 90, de alguns grupos fe-ministas de manterem acesa a discussão sobre o aborto e de-finir estratégias de ação, inauguram, em novo período, a ve-lha polêmica sobre o direito da mulher de optar, ou não, pe-la maternidade.

1. Cf. Falconi, Flavio R.M., emTese de Mestrado apresenta-da à USP, em 1970.

2. Cf. Martine, George, emtrabalho realizado para o CE-LAN - Centro Latinoamerica-no de Demografia, Santiago,Chile, 1975.

3. Ver jornal Opinião, n 9 19,de março de 1973.

AntecedentesA problematização do aborto, enquanto fato social, te-

ve início, na década de 70, com a realização de alguns estu-dos acadêmicos, na área de saúde pública. Dentre esses tra-balhos destacam-se os de Milanesi (1970), Falconi (1975) eMartine (1975).

O trabalho de Milanesi 2 considerava o aborto provoca-do ou voluntário como um problema de saúde pública, des-tacava a incidência de hospitalizações em conseqüência deseqüelas e indicava as práticas rudimentares de abortamen-to provocado. Segundo a autora, face à alta incidência doaborto provocado, havia uma institucionalização informaldeste recurso e uma grande participação de médicos nosprocedimentos de abortamento. Nesse sentido, dentre suasconclusões, sugeria um maior rigor quanto ao cumprimentoda ética profissional dos médicos.

Falconi 3 procurou destacar a relação entre abortoprovocado e incidência de hospitalização em decorrênciade seqüelas e se posicionou, tal como Milanesi, por ummaior rigor legal para desestimular a prática do aborta-mento voluntário.

Martine4 teve como perspectiva pesquisar os comporta-mentos sobre o planejamento familiar e constatou, por sua al-ta incidência, que a prática do aborto era quase que a úni-ca acessível às mulheres de baixa renda.

Em que pese o caráter disciplinador das duas primeiraspesquisas, tais estudos revelaram e divulgaram, pela primeiravez, dados estatísticos sobre a incidência do aborto nas ca-madas populares. No entanto, seus resultados ficaram cir-cunscritos ao público médico e acadêmico.

Ainda na década de 70, o jornal Opinião5 publicou al-gumas matérias sobre feminismo, dentre elas um artigo emdefesa do aborto voluntário e outro esclarecendo as novas eseguras técnicas de abortamento.

No entanto, tanto as questões do feminismo, quanto aquestão específica do aborto eram, ainda, temas considera-dos transplantados de outros contextos sociais. Na realidade,a questão do aborto, enquanto tema político, surge de for-ma tímida no cenário público a partir da eclosão do movi-mento feminista no Brasil.

De fato, em 1975, dentro de uma conjuntura política esocial de intensa repressão, um grupo de mulheres organizou,no Rio de Janeiro, durante uma semana, um seminário sobreo papel e o comportamento da mulher na sociedade brasilei-

2. O trabalho de Milanesi,Maria Lucia foi apresentadocomo Tese de Doutoramen-to, na USP, em 1968 e, poste-riormente, publicado sob o ti-tulo O Aborto Provocado.

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6. O grupo organizador des-se Seminário era formadopor Mariska Ribeiro, Leila Li-nhares Barsted, Branca Mo-reira Alves, Elice Munerato,Berenice, Minam Compelia,Maria Luiza Heilborn, MariaHelena Darcy, Maria da Glo-ria Yung, dentre outras.

7. É interessante destacarque a integra do manifestoaprovado nesse semináriofoi reproduzida na revista SE-DOC - Serviço de Documen-tação, órgão de divulgaçãocatólica, administrado pelaeditora Vozes do Rio de Ja-neiro, RJ, 1975.

ra, sob os auspícios da ONU e da ABI - Associação Brasileirade imprensa ó . Trazendo à tona a especificidade da questãoda mulher, o seminário representou um esforço de diagnosti-car a condição feminina no país e constituiu-se no primeiromomento do debate público sobre o feminismo no Brasil.

O documento final do seminário apresenta uma análisesucinta da condição da mulher em nosso país, tomando co-mo parâmetro as questões do trabalho, da saúde física emental, da legislação, dos estereótipos e papéis sexuais, daeducação, da discriminação racial, dentre outros. Tendo emvista a participação quase unânime de mulheres com militân-cia em grupos de esquerda na organização do seminário ena elaboração desse documento, é inequívoca a intençãodesse grupo organizador em dialogar com os outros gruposde oposição à ditadura, de se legitimar como mais um movi-mento de contestação ao regime militar. Essa aliança políti-ca, que envolvia, inclusive, os grupos católicos, explica, emgrande parte, o destaque dado às questões do trabalho, ocuidado na omissão da expressão feminismo e a ausência dereferência à questão do aborto no documento final (apesarde haver referência ao homossexualismo)7.

O estatuto do Centro da Mulher Brasileira do Rio de Ja-neiro, criado quase que imediatamente após o seminário de1975, não imprimia, igualmente, as palavras feminismo ou fe-minista em seu texto e, muito menos, fazia qualquer referên-cia ao aborto.

Nesse primeiro momento, duas tendências se definiramnos grupos de mulheres: de um lado, a pauta de reivindica-ções priorizava a luta jurídica e trabalhista, bem como a lutapor creche. Esses eram os temas dos jornais do movimento co-mo Nós Mulheres, Brasil Mulher e os boletins do Centro da Mu-lher Brasileira do Rio de Janeiro. Como pano de fundo neces-sário a esses temas, havia sempre a referência às questõesmacro da sociedade que iam desde o arrocho salarial até aconstrução da Transamazônica. Outra tendência enfatizavaa questão da sexualidade, do aborto, da contracepção e acrítica à assimetria sexual na sociedade e na organização dafamília. Embora as duas tendências tivessem vínculos com osmovimentos políticos de esquerda, apenas a primeira eraconsiderada política.

A existência dessas distintas formas de encaminhamen-to do feminismo pode, de forma ainda exploratória, ser reme-tida aos impasses e questões colocados pela ditadura, emplena vigência do AI-5 : sonegação de direitos, repressão po-lítica, censura, arrocho salarial, suspensão do habeas corpus,dentre outras. Tais questões informavam as militantes dessemovimento, que temiam ser definidas como alienadas se seafastassem das discussões priorizadas pelos grupos de oposi-ção ao regime militar.

Refletindo sobre esse receio que as feministas tinham deser consideradas alienadas por seus grupos de origem, Maris-ka Ribeiro (1986) explica porque Celso Furtado, ministro dogoverno deposto de João Goulart, que, em 1975, vinha ao

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8. Mariska Ribeiro é coorde-nadora no IDAC, da área desaúde reprodutiva da mu-lher, membro do Grupo CE-RES, e fundadora, em 1975,do movimento feminista noRio de Janeiro. Sobre a ne-cessidade do movimento fe-minista se legitimar junto aossetores de esquerda, ver,também, GOLDBERG, Annet-te (1982) e BARSTED, Leila Li-nhares (1985).

9. GOLDBERG (1982).

Brasil pela primeira vez, após exílio na Europa, foi convidadopara fazer o discurso de encerramento do seminário patroci-nado pela ONU e pela ABI:

"Se o assunto mulher e a bandeira da ONU nos traziamlegitimidade junto à repressão da direita, era preciso, tam-bém, legitimarmo-nos junto aos movimentos de esquerda,aos quais parecia inaceitável que, num país como o Brasil,onde a luta social agonizava sufocada pela ditadura, a lutaespecífica das mulheres pudesse ser considerada passível dediscussão. Qualquer movimento de mulheres que não re-cheasse sua plataforma de reivindicações gerais ligadas aotrabalho, à miséria, às questões socio-econômicas e políticasdo país seria considerado inoportuno, inconveniente e divisio-nista. Celso Furtado foi, portanto, um álibi de que as feminis-tas lançaram mão para, assim, canhestramente, pedindopassagem daqui e dali, botar, pela primeira vez, o seu blocona rua. Bloco esse que, para surpresa de todos, despertoumais interesse e adesões do que se faria esperar ..."8.

No que concerne às questões específicas da condiçãofeminina, outro impasse se colocava. O que era mais impor-tante: a luta pelo direito à creche ou pelo direito ao aborto?A postura ideológica da esquerda e a necessidade de umagrande frente única contra a ditadura geravam questões in-sólitas - teriam as mulheres operárias preocupações com asua sexualidade ou o prazer sexual era tema apenas para asmulheres burguesas e intelectuais?

Nesse sentido, Goldberg 9 destaca como alguns escritoresde esquerda, entre eles Paul Singer, já tinham dado sua opiniãoa esse respeito. Em 1973, em artigo publicado no jornal Opinião,Singer destacava que "... apenas um pequeno grupo de mulhe-res de classe média e alta pode identificar como sua a proble-mática levantada pelos movimentos feministas dos países de-senvolvidos (...) O movimento feminista no Brasil terá que se colo-car como problema vital o do trabalho da mulher (...)".

No Rio de Janeiro, o Centro da Mulher Brasileira evitavaposicionar-se oficialmente em relação ao aborto (para nãoter problemas com a Igreja Católica, grande aliada na lutacontra a repressão) e em relação ao planejamento familiar(para não entrar em divergências com a esquerda), apesarde muitas de suas associadas terem posições abertas a res-peito de ambas as questões.

De certa forma, o movimento feminista, na década de70, deparou-se com alguns problemas que diziam respeito asua identidade:

- deveria se subordinar aos aliados de esquerda e res-tringir suas demandas às questões do trabalho, creche eigualdade legal ou deveria se manter autônomo, com posi-ções independentes e ampliar seu leque de reivindicações in-cluindo as questões da sexualidade, da contracepção, doaborto e da violência contra a mulher ?

- deveria encampar em seus encontros e pronuncia-mentos apenas as lutas gerais ou deveria lutar para a legiti-mação de temas específicos ?

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10. Ver a esse respeito Mu-lheres em Movimento, váriasautoras, Editora Marco Ze-ro/MAC, RJ, 1981. Este livro ea transcrição do encontrodo movimento de mulheres,realizado por um grupo defeministas, no Rio de Janeiro.Neste encontro, buscou-se oconsenso, entre os diversosgrupos, de vários estadosbrasileiros, quanto à releván-cia de todos os temas e ti-pos de trabalhos que o movi-mento de mulheres realiza-va, superando-se a visãoexistente entre temas priori-tários e temas não-prioritá-rios.

11. Dentro do programa dedotações para pesquisa so-bre a mulher, da FundaçãoCarlos Chagas, em 1978, oGrupo CERES (Branca Morei-ra Alves, Mariska Ribeiro, lei-a Linhares Barsted, Jacqueli-ne Pitanguy e Sandra Azere-do) realizou uma pesquisasobre a identidade social esexual da mulher, entrevis-tando mulheres de distintossegmentos sociais e faixasetárias, abordando, dentreoutros temas, a questão doaborto. Esse trabalho foi pu-blicado sob o titulo de Espe-lho de Vénus: Identidade So-cial e Sexual da Mulher, Edi-tora Brasiliense, SP, 1981.

- deveria posicionar-se sobre a sexualidade, o aborto ea contracepção de imediato ou transferir para um futuro dis-tante o tratamento destas questões, preservando a aliançacom a Igreja e com a esquerda em torno das questões ge-rais?

- afinal, que alianças fazer, que alianças questionar, atéonde preservá-las, quais os limites das concessões?

As contradições do movimento na definição de umaidentidade se explicitaram em fins da década de 70 em di-versos encontros e publicações por todo o Brasil. Como, porexemplo, em 1978, no Rio de Janeiro, quando um grupo defeministas rompeu com o Centro da Mulher Brasileira e lan-çou um manifesto reivindicando espaço para os temas-tabu,dentre eles as questões da sexualidade e do aborto.

A descompressão política do regime autoritário possibili-tava, por outro lado, uma maior democratização dentro dosgrupos de esquerda, permitindo que o movimento feministaassumisse questões não privilegiadas por sua ala política. Ademocratização do espaço interno permitiu que todas asquestões passassem a ter a mesma legitimidade, abolindo-seas clássicas prioridades lo . Dessa forma, a década de 80 en-contra o movimento feminista aberto a assumir publicamentea questão do aborto.

Evidentemente, em termos cronológicos, o processo sedeu de forma diferenciada nas distintas regiões do Brasil.Mas, de um modo geral, foi somente a partir dos anos 80 quea questão do aborto passa a ser discutida, publicamente, pe-lo movimento feminista.

Deve-se destacar que, quando em 1975, o deputadoJoão Menezes apresentou ao Congresso Nacional um proje-to de descriminalização do aborto, as manifestações públi-cas das feministas foram discretas, não se registrando nenhu-ma campanha de apoio.

A partir de 1980, por diversos meios, o movimento femi-nista deflagrou o debate sobre o aborto. Artigos em jornais erevistas da grande imprensa e imprensa alternativa, livros, te-ses, seminários, conferências, panfletagens nas ruas, entrevis-tas na televisão, pressão sobre os partidos progressistas e so-bre candidatos as eleições legislativas caracterizaram essanova fase de luta pelo direito ao aborto.

A década de 80: O Debate Público sobre o AbortoA camisa de força em torno do movimento feminista no

que concerne ao aborto, tecida pela aliança com setoresde esquerda e da Igreja Católica, foi sendo afrouxada no fi-nal dos anos 70. De fato, já em 1978, pesquisas realizadas porferninistas 11 destacavam a questão do aborto na vivência dasexualidade feminina não como uma exceção, mas comoum dado da realidade.

Assim, a década de 80 inicia-se com uma atitude maisofensiva do movimento feminista sobre o assunto.

A prisão, no Rio de Janeiro, em 1980, de pacientes, en-fermeiras e médicos, em uma clinica em Jacarepaguá, acu-

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12. Cf. MELLO e GIOVANNI(1983).

13. Cf. MELLO.

14. Artigo publicado no Jor-nal do Brasil, em 1981, sob otitulo "O Aborto - Direito deOpção".

sados da prática do aborto, levou um grupo de feministas afazer manifestações na porta da delegacia e em frente aoPalácio da Justiça, no centro da cidade 12 . Tal manifestaçãoteve grande repercussão na imprensa e foi manchete nosprincipais jornais do Rio de Janeiro.

A esse respeito Hildete Pereira de Mello 13 descreve: "... apartir deste fato, foi organizada uma campanha nacional pe-la descriminalização do aborto. A estratégia seguinte foi a deredigir um panfleto: 'Mulheres, chegou a hora de luta peloaborto livre' que passou a ser distribuído, semanalmente, nasfeiras livres. Tais panfletagens permitiram às militantes feminis-tas conhecer a reação da maioria silenciosa das mulheres, fa-ce à questão".

Sobre esse mesmo fato, também em 1981, em artigopublicado no Jornal do Brasil, de grande circulação nacio-nal, Jacqueline Pitanguy 14 defendia o direito ao aborto co-mo um direito de opção da mulher.

Essa ofensiva dos grupos feministas, de levar a questãodo aborto para as ruas e para a imprensa, significava umaruptura consciente com alguns tradicionais aliados na lutacontra a ditadura, dentre eles a Igreja Católica. A reação daIgreja veio sob a forma de diversos artigos na grande impren-sa, acenando com a excomunhão para aquelas que defen-dessem o aborto.

Coincidentemente, esse processo corre em paralelocom a grande mobilização nacional pela redemocratizaçãodo país e com a revitalização dos movimentos sociais queaportavam à sociedade novas demandas, questões e formasde encaminhamento,

As ações para trazer a público a questão do aborto ga-nharam as ruas, Em frente a uma igreja, no bairro de Copaca-bana, e em terminais de ônibus, no Rio de Janeiro, feministasentrevistavam a população e pediam seu posicionamentoatravés de voto a ser depositado em urnas. Duas questões fo-ram colocadas nessa consulta popular;

a) você é contra ou a favor do aborto?b) você acha que uma mulher que faz aborto deve serpresa?A avaliação das respostas revelou duas posições:1) a maioria se posicionou contra o aborto;2) a quase totalidade dos entrevistados (homens e mu-lheres) se posicionou contra a punição legal da práticado aborto.A censura social ao aborto restringia-se a uma censura

moral e religiosa, mas não a uma censura legal pelo Estadoexpressa em prisão.

Tal resultado permitia a inferência de que, apesar decensurado socialmente, o aborto se constituía num compor-tamento desviante sem indicação de punição legal, com im-plicações éticas, morais ou religiosas, não necessitando, pois,ser tutelado pelo Estado.

Para as feministas que participaram desse processo fica-va claro que a palavra de ordem não era a defesa do abor-

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15. PRADO (1980).

to, mas a defesa da sua descriminalização. Deixar de ser con-siderado crime previsto no Código Penal.

Nesse mesmo ano, de 1980, o drama de J., menor de 12anos e de sua mãe Cícero, ganhou espaço na imprensa ca-rioca. O Jornal do Brasil, O Dia, O Fluminense e O Globo noti-ciavam que, estuprada pelo padrasto, a menor J. não conse-guira permissão médica para fazer o aborto previsto por lei.Tal fato evidenciou outra realidade - mesmo nos casos previs-tos por lei como situações não puníveis (gravidez resultantede estupro e gravidez que acarrete risco de vida para amãe), a prática do aborto era negada pelo poder médico.Essa constatação fez parte de um pungente libelo dos advo-gados de J., enviado à imprensa, quando nada mais se po-dia fazer face ao final da gestação da jovem. A história de Cí-cera e de sua filha J. foi acompanhada e, posteriormente, re-latada em livro por Danda Prado15.

A transcrição de partes desse libelo dos advogados per-mite avaliar as dificuldades de se fazer alianças com os médi-cos na questão da defesa do direito ao aborto. Na carta, osadvogados Jair Leite Pereira e Ronaldo Ferlich de Sá, a propó-sito de notícia publicada pelo jornalista Ibrahim Sued, no jor-nal O Globo, a respeito do novo projeto de lei do deputadoJoão Menezes de ampliação dos permissivos legais nos casosde aborto provocado, manifestam-se com ceticismo e nar-ram a incrível trajetória de J. e sua mãe peio direito ao abor-to legal garantido desde 1940:

" nós não temos dúvida quanto à boa intenção do de-putado João Menezes (...) quer o deputado que sejam incluídasna lei, além da não punição do médico que praticar o abortonecessário e o sentimental (...), essas formas dirimentes estendi-das ao aborto para impedir o nascimento de seres defeituosose o praticado na mãe pobre. Louvável o projeto (...) porém, naprática, não funcionará porque os médicos recusam, perempto-riamente, praticar o aborto em gravidez resultante de estupro,quanto mais no caso da criança que possa vir a nascer defei-tuosa ou, mais ainda, no caso da mãe pobre (...). Procuradospor uma senhora que se.queixava de ter seu companheiro(...)mantido, sob violência, durante meses, relações sexuais comsua filha J., de 13 anos de idade, vindo finalmente a engravidá-la, dativamente tomamos as providências cabíveis que culmina-ram com a condenação de Messias (...) a 3 anos e 9 meses dereclusão (...). Entramos em contato com médicos do hospital Mi-guel Couto, Souza Aguiar e, até mesmo, das Pioneiras Sociais. Fi-camos desiludidos.

Apesar de um despacho de extrema clareza do Juiz lia-mar Barbalho, em que dizia que o médico que fizesse aquelaminicesariana não seria punido, ninguém quis fazê-la.

Sempre a mesma alegação e o mesmo temor - ficar comfama de aborteiro. Finalmente, fomos parar no hospital centraldo Inamps (...). Exigiram documentação. Atendemos. Xeroco-piamos e autenticamos todo o processo, inclusive com o despa-cho do juiz ttamar Barbalho, titular da 21° Vara Criminal, em queafirmava que o médico não sofreria punição.

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16. Ver o teor integral da car-ta dos advogadados de Cí-cero e de sua filha J. no livrode Prado, Dando (1980),pág. 123 a 125.

17. Ed. Cortez, SP, 1980.

Depois apareceu outro óbice. O chefe da maternidadenos comunicou que deveria haver autorização do juizado demenores, exigência esta imposta pelo Conselho Regional deMedicina, que havia sido consultado.

Fizemos ver ao médico que o juiz de menores não pode-ria autorizar o aborto, pois, além da menina não ser menor in-fratora nem abandonada, casos afeitos àquele juízo, pois onosso legislador não assentiu à tese do abortamento, apenasdeixou de punir o médico que pratica o aborto naqueles ca-sos, Mas o Inamps foi taxativo: sem o Juizado de Menoresautorizar, nada faremos, é ordem do Conselho Regional deMedicina. Corremos ao juizado. Veio a certidão. O ínclitojuiz Campos Neto informava que o caso não estava sobsua alçada, pois J FO não era menor infratora nem menorabandonada.

Então, o diretor mostrou medo da fama de aborteiro.'Eu não faço... só se algum colega quiser fazer'. Ninguémquis, pois poderia ficar com fama de aborteiro.

No dia 6 de agosto de 1980 (...) nasceu no hospital doAndaraí um menino.., a mãe ainda não tem 14 anos... Uma li-ga feminista auxiliou JF0 nos últimos meses de gestação. (...).Chegamos à conclusão, enfocando o problema sob o ângu-lo da vitimologia que, no Brasil, quando alguém engravidarem conseqüência de estupro e quiser resolver o problemapor caminhos legais, estará incluído numa nova figura, den-tro do fenômeno vitimológico: o triângulo vitimai - ou seja, oestuprador vai ser vítima do sistema prisional, a mulher vítimalegal do estupro, e a criança vai ser vítima da miséria.

Só há, então, uma solução: a descriminalização doaborto. Sejam suas cinco formas extirpadas na nossa legisla-ção penal. Pedimos bola preta para os médicos que têm me-do da fama de aborteiro"16.

Essa avaliação dos advogados, tão atualizada aindaem 1991, faz parte do debate que se instaurou no movimentode mulheres em torno das táticas de luta pelo direito ao abor-to: descriminalização ou ampliação dos permissivos legais eluta pela garantia do atendimento na rede pública hospitalardos casos já previstos em lei e os que vierem a ser ampliados.

Por outro lado, a carta dos advogados destaca a posi-ção conservadora e contrária ao texto legal do Conselho Re-gional de Medicina do Rio de Janeiro e dos médicos inutil-mente procurados. Tal posição explica porque, mesmo noscasos de abortamento permitidos por lei, as mulheres procu-ram as clínicas clandestinas, vivenciando situações de ilegali-dade.

Também em 1980, em São Paulo, a questão do abortofoi deflagrada pela Frente de Mulheres Feministas que publi-cou o livro O que é o aborto? de autoria de Carmem Barrosoe Maria José Carneiro da Cunha l 7 . Neste livro, procura-se tra-tar o aborto por diversos ângulos: social, moral, legal, demo-gráfico, apresentando-se dados sobre os aspectos médicosdo abortamento, técnicas utilizadas e depoimentos de mulhe-res que o praticaram. O livro destaca que:

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"... os grupos feministas brasileiros, ao reivindicar a legali-zação do aborto, tem enfatizado que esta é apenas uma en-tre as reivindicações feministas que incluem uma transforma-ção geral da sociedade, de modo a não sonegar a nenhu-ma mulher seu direito a condições humanas de existência pa-ra si e para os filhos que deseja ter. Este direito inclui o acessoàs informações sobre os métodos anticoncepcionais, de mo-do que as mulheres possam optar devidamente assistidas porginecologistas por aquele que mais lhe convier. Para tanto, énecessário garantir, através da expansão de postos de saúdegratuitos e controlados pela comunidade, que as mulherespobres também possam recorrer às informações e à assistên-cia médica no tocante à utilização de anticoncepcionais. Sóassim é possível eliminar uma das causas da gravidez indese-jada que é o desconhecimento de anticoncepcionais ade-quados e a impossibilidade financeira de adquiri-los (...) Nin-guém propõe que o aborto substitua os métodos anticoncep-cionais...".

Mais adiante, as autoras afirmam que "... é razoável su-por que a legalização do aborto pode contribuir para a me-lhoria das condições de saúde das mulheres, especialmenteas pobres, que, atualmente, põem em risco suas vidas ao pra-ticar o aborto em condições extremamente precárias. Nestesentido é que se afirma que opor-se à sua legalização signifi-ca assumir uma posição conservadora que resulta na manu-tenção de mais um privilégio para as classes economicamen-te mais favorecidas".

A postura da Frente de Mulheres Feministas de São Pau-lo, endossando o trabalho de Barroso e Cunha, traz à tonaduas questões: de um lado, articula-se a problemática doaborto ao conhecimento e acesso aos métodos anticoncep-cionais; por outro, articula a problemática do aborto às con-dições de vida das mulheres das classes trabalhadoras. Comessa última articulação, as autoras dialogam claramentecom os setores de esquerda que se mantinham indiferentes àquestão do aborto provocado, ou mesmo contrários e omis-sos quanto à demanda feminista por sua legalização.

Ao lado de uma visão do aborto como um direito à au-tonomia da mulher, expresso no slogan 'Nossos Corpos NosPertencem', o livro de Barroso e Cunha encara a luta pela le-galização do aborto como objetivando "... evitar a morte eas graves lesões físicas que sofrem inúmeras mulheres quepraticam o aborto clandestino".

Em 1980, o deputado João Menezes, que, em 1975,apresentara projeto de descriminalização do aborto ao Con-gresso Nacional, submete à apreciação do poder legislativofederal projeto de ampliação dos permissivos legais comduas novas indicações: casos de anomalia fetal e a situaçãosocial da mulher gestante.

Antecipando-se ao resultado da votação do projeto noCongresso Nacional, a revista Visão, de 11 de agosto de1980, prenunciava que o projeto "„. será combatido vigorosa-mente pela Igreja Católica. A campanha anti-aborto se ba-

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19. Autora do ante-projetoque redundou na denomina-da lei do Estatuto Civil daMulher Casada, ampliando,em 1962, os direitos da mu-lher no Código Civil brasilei-ro, Romy Medeiros da Fonse-ca foi a pioneira, no movi-mento feminista, o levantara bandeira de luta pelo direi-to ao aborto.

20. FONSECA (1982).

18. Cf. revista Visão, de 11de agosto de 1980.

21. Mulherio, julho/agostode 1982, matéria intitulada"Cresce a Campanha pelaLegalização do Aborto".

seja na tese de que é crime tirar a vida do feto para atenderdesejos dos pais. A campanha pró-aborto se baseia na tesede que cabe ao casal, sobretudo à mulher, decidir se deveou não ter um filho. Além disso, há a realidade dos abortos ile-gais, com risco de vida para a mulher, que só terminariamcom a sua legalidade"18.

Apesar de igualmente rejeitado, esse projeto colocoupara o movimento feminista a necessidade de empreen-der a luta legislativa seja pela descriminalização, seja pelaampliação dos casos permitidos. De um lado, esse duploencaminhamento pode ser visto como estratégia para sealcançar a curto ou a longo prazos um mesmo objetivo - odireito ao aborto como expressão da autonomia da mu-lher sobre o seu corpo. Por outro lado, esse duplo encami-nhamento refletia posições ideológicas distintas. Se a ques-tão do aborto, nessa época, era assumida como um temaprioritário para o conjunto do movimento feminista, na reali-dade alguns grupos de mulheres temiam assumir politica-mente um encaminhamento considerado mais radical, pe-la descriminalização.

As defensoras da descriminalização propunham a retira-da dos artigos incriminadores do Código Penal, mantendo-se, apenas, o artigo 125 que criminaliza o aborto provocadosem o consentimento da gestante.

As defensoras de uma posição gradualista propunhama ampliação dos permissivos legais, para além dos já previs-tos no Código Penal, considerando que não havia clima polí-tico para conquistas mais amplas.

É nesse clima que as feministas tentam criar aliançascom setores da sociedade, como, por exemplo, a Ordemdos Advogados do Brasil.

Assim, em 1982, a advogada Romy Medeiros da Fonse-ca, lutadora histórica 19 pelos direitos da mulher e autora doante-projeto do estatuto civil da mulher casada, de 1962,apresentou, na conferência nacional da OAB, uma tese de-fendendo a descriminalização do aborto20.

Aprovada em comissão, a tese não foi, todavia, subme-tida ao plenário da conferência, conforme procedimento es-tatutário, por decisão do então presidente do conselho fede-ral da OAB, deputado Bernardo Cabral, que, avaliando quea tese seria rejeitada na plenária, aconselhou sua autora e asdemais advogadas feministas a, taticamente, retirarem-na,apresentando-a em outra ocasião. Tal conselho foi aceito eas advogadas feministas assumiram, à época, a proposta delevar a tese sobre a descriminalização do aborto para as sec-cionais estaduais da OAB.

Em relação a essa conferencia, o jornal Mulherio 21 , de1982, descreve: "... a polêmica quase terminou em luta corpo-ral (...) alguns juristas acusaram a autora da tese de dividir asatenções e tentar rachar a OAB". Em entrevista ao mesmo jor-nal, Romy declarava que "... o aborto bate nas batinas dospadres e para a OAB problema do povo é só Constituinte. Eas mulheres que morrem, não são povo ?"

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22. Mulherio, julho/agostode 1982, matéria intitulado"Rio: A Busca da Forma Femi-nina de Fazer Política.

23. Na ocasião, dentre essespartidos, destacavam-se oPMDB e o PT.

24. Esse trabalho apresentaos resultados de uma pesqui-sa que Hildete Pereira deMello e Maria Teresa indianiapresentaram à FundaçãoCarlos Chagas, contandocom o apoio dessa institui-ção dentro do programa dedotações para pesquisas so-bre a mulher.

Zulaiê Cobra Ribeiro, advogada de São Paulo, presenteà conferência, observa para Mulherio que "... enquanto se dis-cutiam teses sobre Lei de Segurança Nacional, Constituinte,justiça agraria, direitos trabalhistas, havia consenso. Mas,quando chega a hora de se falar em igualdade legal entreos sexos („.), a conversa muda de tom e se fala da proteçãoà vida do feto, mas não se levam em conta as milhares de mu-lheres que morrem ou ficam mutiladas em conseqüência doaborto clandestino que vem ocorrendo em grande escala".

De 1982 até hoje, o conselho federal da Ordem dos Ad-vogados do Brasil omitiu-se, enquanto instituição, a posicio-nar-se favoravelmente ao aborto, em que pese a experiên-cia internacional por um direito penal menos repressor. Ape-nas vozes isoladas de algumas seccionais da OAB, como ado Rio de Janeiro, e de alguns advogados, se posicionarama favor da descriminalização ou da ampliação dos permissi-vos legais em caso de aborto.

A percepção de que, com a redemocratização dopaís, tanto a descriminalização quanto a proposta gradualis-ta seriam decisões do Congresso Nacional, levou as feminis-tas a iniciarem, em 1982, um diálogo com os partidos políti-cos e, principalmente, com as candidatas femininas às elei-ções convocadas para aquele ano.

Esse diálogo foi registrado pelo jornal Mulherio 22 que en-trevistou as candidatas Lucia Arruda (PT-RJ), Heloneida Stu-dart (PMDB-RJ), Maria Tereza Amaral (PDT-RJ), Ruth Escobar(PMDB-SP), Olara Sharf (PT-SP) e Lidice da Mata (PMDB-BA). Atodas foi pedida a posição a respeito do aborto e, apesar dealgumas nuances, todas foram favoráveis à sua legalização,alegando a preocupação com a saúde da mulher, em espe-cial da mulher pobre.

Também em 1982, foi formado o Alerta Feminista Para asEleições, no Rio de Janeiro, constituído por diversos grupos demulheres que, numa postura supra-partidária, encaminhava asdemandas femininas aos partidos políticos, destacando a reivin-dicação pela legalização do aborto. Alguns desses partidos23incluíram essa demanda em suas plataformas políticas.

Para as feministas do Rio de Janeiro, os argumentos fa-voráveis à legalização do aborto foram fortalecidos pela pes-quisa de uma feminista, Hildete Pereira de Mello24 que levan-tou junto aos hospitais do lnamps a realidade das mulheresquanto às seqüelas do aborto provocado, realizado em situa-ção de clandestinidade, Nas suas reivindicações, as feminis-tas do Rio de Janeiro lutavam pela descriminalização doaborto até as primeiras doze semanas de gestação e orienta-ção para que o mesmo não fosse compreendido como mé-todo contraceptivo.

Cano de 1983 é marcado, no que diz respeito à luta pe-la legalização do aborto, por uma série de acontecimentos.

Em março de 1983, no Rio de Janeiro, foi realizado umencontro sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto,organizado pela Casa da Mulher do Rio de Janeiro, GrupoCeres, Coletivo de Mulheres do Rio de Janeiro, Projeto Mulher

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25. Nos painéis que trataramdo aborto, participaram, co-mo expositores, Martha Su-plicy (sexóloga), Helio Agui-naga (médico), ChristianGauderer (médico), HildetePereira de Mello (economis-ta), Eliane Labra (cientista so-cial), Dando Prado (escrito-ra), Leny Silverstein (antropó-loga), Mirian Fauri (médica),Zuleika Alembert (jornalista),Eunice Michillis (senadora),Cristina Tavares (deputadafederal) e Nilo Batista (advo-gado criminalista). Rosange-la Giovanni, que, em seu tra-balho, se reporta a este en-contro, destaca a opiniãode Carmem da Silva, umadas presentes, expressa emartigo, na revista Cláudia, de26 de junho de 1983, "... va-mos obter um direito que nin-guém quer usar, mas dequalquer modo nos é devi-do. Assim como obtivemos odivórcio, embora todo mun-do prefira que seu casamen-to de certo. Assim como o di-reito de usar óculos ou mule-tas, de amputar um membrograngrenado ou fazer umaponte de safena. Perspecti-va que ninguém deseja parasi, mas liberdade de que, sur-gindo a necessidade, nin-guém nos pode razoavel-mente privar'.

26. Mulherio, maio/julho de1983. No número anterior, demarco/abril, esse jornal des-tacava o seminário afirman-do que "... tiraram do tabu adiscussão pelo direito aoaborto".

do IDAC e Grupo Mulherando. O objetivo desse encontroera, segundo seu documento de avaliação, "... trazer ao de-bate a polêmica questão do planejamento familiar e doaborto através de distintos enfoques e opiniões (...). conside-ramos importantíssimo que o movimento de mulheres no Brasilpasse a ter uma posição definida quanto ao planejamentofamiliar e ao aborto através de um amplo debate isento depreconceitos (...). Esse debate nos parece necessário e opor-tuno por dois motivos, dentre outros: a) para este ano (1983)está na pauta de discussão do poder legislativo, por propos-ta do poder executivo, a reforma do atual Código Penal bra-sileiro, que incrimina a prática do aborto voluntário: b) nos últi-mos anos, e no atual, de forma mais explícita, o poder legisla-tivo vem-se manifestando em relação a uma política demo-gráfica(...). Torna-se fundamental que o movimento de mu-lheres no Brasil possa se manifestar, não apenas através deposições isoladas dos grupos, mas, principalmente, atravésde um consenso".

Esse encontro constituiu-se num marco do debate públi-co sobre o aborto face ao seu caráter de reunião nacional.De fato, durante três dias, trezentas mulheres, representantesde 57 grupos de todo o país (apenas Pará, Maranhão e Sergi-pe não se fizeram representar) e parlamentares (senadores,deputados federais e estaduais e vereadores) se reuniram pa-ra debater o ternário do encontro que destacava a questãodo aborto provocado em dois painéis. Os expositores dessespainéis se constituíam em pessoas de grande representativi-dade em suas áreas profissionais25.

Segundo o jornal Mulherio26, "... as discussões foram mar-cadas pela diversidade de posições, não faltando, inclusive,uma representante do governo, a senadora Eunice Michillis,PDS-AM ...".

Para Mulherio "... o mais importante, contudo, foi a ma-turidade do debate, que abriu a luta comum em torno da ne-cessidade de as mulheres terem controle de seu próprio cor-po". Nessa ocasião foi lançado o dia 28 de setembro comoDia Nacional da Luta Pelo Direito ao Aborto.

As discussões que se seguiram às exposições dos confe-rencistas e à exibição do filme de Eunice Gutman Vida de Mãe é Assim Mesmo?, sobre o aborto, destacaram consensose divergências. Ficaram expostas algumas confusões concei-tuais. Descriminalizar era a mesma coisa que legalizar? Seriaoportuno lançar de imediato uma campanha nacional sobreo direito ao aborto? Os homens deveriam ser ouvidos? Essasdúvidas apontavam para a necessidade de aprofundamen-to da questão do aborto no interior do próprio movimento, le-vando-se em conta as defasagens do processo de discussãoentre os grupos do Rio de Janeiro e São Paulo, de um lado, eos demais grupos dos outros estados. Mas, mesmo assim, aproposta do Dia Nacional pelo Direito ao Aborto foi assumidapor quase unanimidade.

No documento final do encontro, de inspiração de Zulei-ka Alembert, da Frente de Mulheres Feministas de São Paulo,

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27. Ver a esse respeito MEL-LO e GIOVANNI (1983).

28. SUPLICY (1983)

29. Cf. Mulherio, janeiro/feve-reiro de 1983.

com a legitimidade de militante de esquerda e feminista, in-cluiu-se a demanda pelo "... direito ao aborto como últimamedida para resolver o caso de uma gravidez indesejada.Ampla campanha de esclarecimento sobre a questão doaborto deveria ser feita incluindo os perigos que ele acarretapara a saúde da mulher, se realizado sem assistência médi-ca. Sua gradativa liberação deverá compreender total assis-tência ginecológica gratuita, incluindo-se a prática do abor-to nos serviços de assistência médica oferecida pela previ-dência social. Somente uma política assim considerará a mu-lher como sujeito e não objeto. E, por isso mesmo, será elaapoiada e defendida, pois, mais do que nunca, estamosconscientes: nosso corpo nos pertence!"

Esse encontro serviu de estímulo para os grupos envolvi-dos na sua organização imprimirem, em maio de 1983, um bo-letim sobre questões de saúde, sexualidade e aborto27 . Esseboletim foi denomidado de Sexo Finalmente Explícito, tendouma tiragem de 5.000 exemplares. O jornal defendia a descri-minalização do aborto e divulgava questões relativas à con-tracepção dentro da perspectiva da defesa dos direitos re-produtivos.

Também em 1983, Martha Suplicy28 lança o livro Conver-sando sobre Sexo, a partir da experiência de seu programade grande audiência na TV Globo. No livro, Martha Suplicytrata da luta pela legalização do aborto, elenco os tipos deaborto e destaca a posição religiosa. O tema do aborto é tra-tado de forma não preconceituosa. Curiosamente, o livro foieditado por uma editora católica, a editora Vozes.

Em 1983, o jornal Mulherio publica diversas matérias so-bre aborto. No número de janeiro/fevereiro, traz um artigo deCarmem Barroso sobre planejamento familiar, onde a autoradeclara que: ",.. pelos mesmos motivos que não interessa aoscontrolistas a plena disseminação dos métodos que depen-dam da vontade de ter filhos, também não lhes interessa tor-nar o aborto mais seguro e accessivel, através de sua descri-minalização. Permanecendo ilegal, o aborto representa umsério risco para as mulheres que decidem interromper umagravidez que não conseguiram evitar..."

Também, em 1983, a Casa da Mulher de São Paulo, oCIM - Centro de Informação da Mulher, o SOS-Sexualidade ePolítica, o Pró-Mulher, a União de Mulheres, a Frente de Mu-lheres Feministas, o Grupo Ação Lésbico-Feminista, o Grupodo Conselho Estadual da Condição Feminina definiram umapauta de reivindicações que incluía:

"... aborto livre e gratuito para as mulheres que o deseja-rem quando não conseguirem evitar uma gravidez indeseja-da. Orientação à mulher para que o aborto não seja entendi-do como método contraceptivo. Enquanto existir aborto clan-destino, atendimento condigno à mulher que necessite dehospitalização por causa de complicações de um aborto aro-vocado".29

Nesse mesmo sentido, no Rio de Janeiro, foi enviado aogoverno do Estado um documento, assinado por entidades e

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30. Idem.

31. Cf. Veja, de 16 de no-vembro de 1983, pag. 74 0 Is-to É, de 29 de junho de 1983,pág. 42.

32. Cf. Mulherio, maio/junhode 1983, em matéria sob o ti-tulo "Congresso Discutirá oAborto".

grupos de mulheres, comissões de sindicatos e de movimen-tos partidários (PDT, PMDB e PT), com sugestões nas áreas desaúde, educação, violência e dupla jornada de trabalhoque demandavam "... orientação à mulher no que diz respei-to ao aborto: indicações, conseqüências, riscos, atendimentopsicológico, cuidando para que ele não seja entendido co-mo método contraceptivo"30.

Em 1983, a revista Veja publicou uma matéria intitulado"Brasil, campeão de abortos" e a revista Isto É noticiava asconclusões de uma mesa redonda, na universidade de Cam-pinas, São Paulo, onde se concluía que "... nenhuma políticaa esse respeito (planejamento familiar) deve passar ao largoda questão do aborto. Calcula-se que pode alcançar 4 mi-lhões o número de abortos praticados anualmente no país,na clandestinidade. A descriminalização do aborto deveriaser submetida a um plebiscito, acreditam os especialistas reu-nidos na Unicamp"31.

Fato marcante, nesse ano de 1983, foi o projeto, apre-sentado ao Congresso Nacional pela deputada federal Cristi-na Tavares (PMDB-PE), tratando da ampliação das possibilida-des legais de realização do aborto. Como justificativa do pro-jeto, a deputada apontava a necessidade de por fim à indús-tria do aborto, responsável por tantas mortes e acidentes ci-rúrgicos.

Segundo o jornal Mulherio 32, Cristina não pretende des-criminalizar o aborto, por considerar que essa opção é muitopolêmica, mobilizando opiniões "díspares e apaixonadas". Emvez disso, ela escolheu o caminho de "ampliar os aspectos le-gais das indicações permissivas do aborto."

Para Mulherio, "os grupos de mulheres receberam muitobem o projeto". Algumas deputadas federais entrevistadaspor esse jornal, como 'vete Vargas (PTB-SP), Rita Furtado (PDS-RO) e Bete Mendes (PT-SP), se posicionaram favoravelmenteao projeto.

lvete Vargas chega a afirmar que "é absolutamentelegítimo lutarmos para que o aborto não seja penalizado.Posso assegurar que o PTB vai votar nesse sentido, pois pe-nalizar o aborto é uma forma absurda de incriminar a mu-lher e impedir que ela assuma seu próprio corpo. E um atitu-de reacionária".

Rita Furtado declara que "é preciso liberalizar, abrir, de-mocratizar a legislação relativa ao aborto".

Bete Mendes, por sua vez, afirmava: "Quando o Con-gresso discutir o aborto vai tratar da saúde da população - aparte da população que está nessa situação de aborto crimi-noso, de processos artesanais rudimentares, a populaçãoque não sabe sequer o corpo que tem, que não conhece opróprio corpo".

Em 1985, no estado do Rio de Janeiro, por iniciativa dadeputada Lúcia Arruda (PT-RJ), feminista atuante, a Assem-bléia Legislativa aprovou a lei n Q 832/85, que obrigava a redepública de saúde do estado a prestar atendimento à mulhernos casos de aborto permitidos pelo Código Penal.

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33. Esse documento foi ela-borado pelo gabinete da de-putada Lucia Arruda e seconstitui num dossiê sobre aelaboração, aprovação e re-vogação da referida Lei. Areferência que, neste docu-mento, se faz ao ConselhoRegional de Medicina do es-tado do São Paulo encontracorrespondência na posiçãoassumida por esse Conselhoem relação ao aborto. Em1984, o CRMSP elaborou otrabalho A Questão do Abor-to Legal no Brasil, incorpo-rando os subsídios do movi-mento feminista.

34. Dentre os livros e artigospublicados, destacamos: otrabalho do IDAC, Coordena-do por Mariska Ribeiro (Ter Fi-lhos Uma Escolha Conscien-te, (1986); artigos na revistaImpressões, Rio de Janeiro,1987, artigos publicados naFolha de S. Paulo, por Car-mem Barroso (1987 e 1989),Anésia Pacheco Chaves eSilvia Pimento' (1987); artigode Silvia Pimento' (1988) pu-blicado na revista Veja; tra-balho do Dr. Thomaz Golloppublicado na Revista Brasilei-ra de Genética, em 1987,etc. Dentre os encontros des-tacamos: Encontro Interna-cional do CEDAW, em SãoPaulo, em 1987; SeminárioNacional dos Direitos Repro-dutivos, São Paulo, 1987; Sim-pósio Internacional Christop-her Tietze "A Saúde da Mu-lher no Terceiro Mundo", noRio de Janeiro, em 1988; En-contro Nacional Saúde daMulher, Brasília, 1989, etc.

35. Ver MELLO, in revista Im-pressões.

A lei teve curta vigência e o episódio de sua revogaçãorepresenta, de forma explícita, que apesar de o advento dosistema republicano no Brasil ter separado a Igreja do Estado,o poder dessa instituição religiosa atua, ainda hoje, em íntimarelação com o Estado em matéria concernente às questõesde moralidade e sexualidade.

A lei n° 832/85 foi revogado por iniciativa do governa-dor do Estado que encaminhou pedido, nesse sentido, àAssembléia Legislativa face aos apelos do cardeal EugênioSanes.

A cúpula da Igreja Católica, no Rio de Janeiro, defla-grou intensa campanha contra tal lei. Distribuiu nas paró-quias, para ser lida em todas as missas de domingo que ante-cederam à votação do pedido de revogação da lei, umacarta onde repudia a norma legal afirmando que obrigavaos serviços médicos a praticarem o crime de aborto. A mes-ma campanha foi levada a efeito nas estações de rádio.

Nessa polêmica, o Conselho Regional de Medicina doestado do Rio de Janeiro também se colocou contra a lei ng832/85.

Em documento divulgado pelo gabinete da deputadaLúcia Arruda, em 1985, relatando o processo de revogaçãodaquela Lei, consta que o Conselho Regional de Medicinado Estado de São Paulo "... defendeu uma posição de abertu-ra ao propor à sociedade um amplo debate sobre o aborto(...). O CRM de São Paulo vê a atual legislação sobre o assun-to ultrapassada (...), acha que o aborto deve ser legal não sónos casos de gravidez em que haja risco de vida para a ges-tante, mas quando a gravidez colocar em risco a saúde damulher (...). Os conselheiros também são favoráveis à realiza-ção do aborto nos casos em que o feto for portador de doen-ças prejudiciais ao seu desenvolvimento ou acometido deafecções genéticas graves ...". O mesmo documento desta-ca as manifestações de apoio à lei n Q 832/85, dentre elas ado presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, secçãodo Rio de Janeiro, Dr. Nilo Batista, da comissão feminina des-ta mesma seccional, de representantes do poder legislativode diversos estados e municípios e de mais de 60 grupos dife-rentes da sociedade civil, incluindo grupos de mulheres, asso-ciações profissionais de diversos estados como Rio de Janei-ro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Ceará, Santa Cata-rina, Espírito Santo e, até mesmo, do município de São Félixdo Araguaia, no Mato Grosso.33

De 1983 a 1987, a questão do aborto se mantém no de-bate público através de artigos na grande imprensa nacio-nal, como o Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, revista Veja,publicações médicas, publicações do movimento de mulhe-res, publicações de organizações não-governamentais, deencontros e simpósios nacionais e internacionais e é tratada,até mesmo, em publicação oficia134.

Em 1985, o jornal Sexo Finalmente Explícito 35 , sob a man-chete "Venceu a Hipocrisia", noticia que "no dia 31 de maio,a comissão de constituição e justiça, da Câmara dos Deputa-

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35A. GOLLOP (1987).

36. PRADO (1987).

37. MIMAR° (1987).

dos, rejeitou por 10 votos a 3 o projeto de autoria da deputadaCristina Tavares que ampliava a despenalização do aborto",acatando o voto do relator deputado Hamilton Xavier (PDS-RJ).

Em 1986, é definida pelo Inamps, Ministério da Saúde eConselho Nacional dos Direitos das Mulher - CNDM, comapoio dos grupos feministas, uma política de atenção inte-gral à saúde da mulher, conhecida como PAISM - Programade Assistência Integral à Saúde da Mulher. Esse programatem como um dos seus objetivos "evitar o aborto provocadomediante a prevenção da gravidez indesejada". Partia-se dopressuposto de que a orientação e o acesso aos métodoscontraceptivos se constituíam em processos preventivos àprática do aborto provocado.

Em 1987, realizou-se, em São Paulo, o seminário nacio-nal dos Direitos Reprodutivos, organizado pelo Coletivo deMulheres Negras, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde,Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo e pe-la Dra. Elza Berquó, do CEBRAP.

Esse seminário constou de três grandes sessões, abor-dando: a questão da reprodução; critérios para a produçãode pesquisas e para a utilização de contraceptivos; e avan-ços científicos na detecção de anomalias fetais.

Essa última sessão provocou a discussão sobre o aborto,não incluído como tema autônomo na agenda do seminario.Discorrendo sobre os avanços científicos na detecção deanomalias fetais, o Dr. Thomaz Gollop35A , da Universidade deSão Paulo, sugeriu a inclusão de um terceiro permissivo legalpara a prática do aborto necessário, previsto no artigo 128,do Código Penal, com o seguinte texto:

"Não se pune o aborto praticado por médico:III - Quando for diagnosticada doença fetal grave eincurável".Na mesma sessão, Dando Prado 36 , se posicionando so-

bre os avanços da ciência na detecção da má formaçãocongênita, fez advertências críticas quanto às possibilidadesanti-éticas desses avanços e considerou que o único valor daproposta de lei sobre aborto com indicação embriopatica "...a partir do angulo da integridade e autonomia das mulheres,reside no fato de ampliar o leque de possibilidades de aborta-mento, como etapa tática para alcançar, dentro de uma es-tratégia de luta, a liberação mais ampla dos casos permitidosna lei para a interrupção da gravidez".

Participando do mesmo seminário, o padre Júlio Muna-ro37 colocou a posição da Igreja Católica, contrária, porquestão de dogma, à indicação de aborto por anomalia fe-tal e definindo que "... a mulher ou o casal que decidir fazer oexame pré-natal com a intenção de tirar a vida do feto casose revele portador de deformação ou doença grave, proce-de contra uma pessoa e, conseqüentemente, contra seu di-reito à vida. A mesma afirmação vale para o profissional ourepresentante de instituições que se atreva a isto."

O relatório desse seminário, em especial da sessão so-bre "Avanços Científicos na Detecção de Anomalias Fetais"

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38. Ver DOM (1989).

39. Cf. GOMES, Nilce. In revis-ta Impressões.

40. Esse filme foi amplamen-te divulgado nas principaisredes de TV do pais e motivode matéria em jornais e re-vistas de grande circulaçãonacional.

registra a acesa polêmica entre os participantes sobre aquestão do aborto. O debate entre o padre Munaro e asfeministas indica a impossibilidade de diálogo quando umdos lados tem como argumento de autoridade um dogmareligioso.

Ficou claro, também, como a Igreja Católica no Brasil,em particular nas questões que envolvem a sexualidade, tempoder de influenciar e definir a posição do Estado. Essa in-fluência, no entanto, não se faz sem contradições e sem for-ças oponentes.

Prova disso foi a edição do Programa de AssistênciaIntegral à Saúde da Mulher - PAISM, de 1 986, que incluiuações relativas à orientação e oferta de serviços na ques-tão da contracepção. Outro exemplo, embora não legisla-do ainda hoje, diz respeito à reforma do Código Penal. Defato, em 1987, foi autorizada pelo Ministro da Justiça, PauloBrossard, a publicação, no Diário Oficial, do ante-projetodo Código Penal - parte especial, elaborado em 1983, porcomissão oficialmente designada para tanto. Na parte re-lativa aos crimes contra a vida, o texto do ante-projeto, noreferente ao abortamento, amplia a exclusão da ilicitude,com "a hipótese de o nascituro apresentar graves e irre-versíveis anomalias físicas ou mentais" 38 . Dessa forma, o artigo128 do Código Penal passaria a vigorar com a inclusão dochamado aborto piedoso.

Em 1987, com o início dos debates sobre a elaboraçãoda nova Constituição, os grupos de mulheres passam a se arti-cular nacionalmente para definir uma estratégia sobre o direi-to ao aborto junto aos parlamentares constituintes. Num pri-meiro momento, as feministas pretendiam que o direito aoaborto fosse declarado na nova Carta. Em oposição a essaproposta, a Igreja Católica e os deputados evangélicos pre-tendiam que o aborto fosse declarado crime.

Gomes de Souza 39, que acompanhou como membroda equipe técnica do Conselho Nacional dos Direitos da Mu-lher, as discussões do processo constituinte relativas às ques-tões da mulher, relata essa polêmica:

"Quanto à defesa da descriminalização do aborto, tam-bém houve polarização. De um lado, as feministas favoráveisà descriminalização ou, em ultimo caso, à não inclusão notexto constitucional de artigos que o penalizassem. Do outrolado, as correntes conservadoras, dentre as quais se sobres-saíam as religiosas. No primeiro relatório da sub-comissão dosDireitos e Garantias Individuais estava lá explicitamente: '... écrime o aborto diretamente provocado'. Depois, se transfor-mou em '... direito à vida desde a concepção até a mortenatural'. Este mesmo enunciado aparecia, também, nas sub-comissões de Saúde e Família.

Na sub-comissão da Família houve muita discussão. AIgreja, através de seus representantes, exibiu o filme ten-dencioso e feito por encomenda de anti-abortistas O GritoSilencioso40 , que gerou discussões em torno do bem e domal.

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Nós alertamos, mesmo os Constituintes mais conservado-res, sobre o retrocesso que um artigo desta natureza poderiaprovocar no Código Penal, onde, desde 1940, o aborto já épermitido em duas situações (...)".

Nilce Gomes de Souza relata, também, que, na comis-são do Homem e da Mulher, havia enunciados favoráveis àlegalização do aborto que declaravam: "Adquire-se a condi-ção de sujeito de direito pelo nascimento com vida" ou "... avida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebeu eresponsabilidade da mulher..." Avaliando os trabalhos da sub-comissão da Família, destaca que ",.. marcaram forte presen-ça as entidades religiosas católicas (através da CNBB) eevangélicas. Além destas, falavam representantes de organis-mos oficiais e de movimentos de mulheres. (...) Os debates fo-ram marcados pelo caráter ideológico e político das diferen-tes concepções sobre a proteção à vida, sendo o aborto,uma vez mais, o tema mais polêmico desta sub-comissão".

Nessa medição de forças, as feministas adotaram o posi-cionamento de lutar para que a questão do aborto não fossetratada no texto constitucional, deixando a proposta de sua le-galização para o momento de revisão da legislação criminal. Olobby feminista, organizado pelo Conselho Nacional dos Direitosda Mulher e grupos autônomos de todo o país, conseguiu modi-ficar a redação proposta pelos grupos religiosos para o artigo5Q, da Constituição federal, que previa "a inviolabilidade do di-reito à vida desde a concepção". A forma final deste artigo, talcomo consta do texto constitucional refere-se tão-somente à "in-violabilidade do direito à vida, à liberdade

Atuando como órgão de mobilização nacional das mu-lheres, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM,organizou, em 1989, em Brasília, o encontro nacional Saúdeda Mulher - Um Direito a ser Conquistado, realizado em de-pendências do Congresso Nacional. A pauta do Encontroabarcou questões ligadas à morbidade e mortalidade mater-na, assistência ao parto, o problema da cesariana, as ques-tões da contracepção, da esterilização e do aborto.

O tema do aborto foi tratado em um painel específico,sob as óticas da ética, da política, da lei e da medicina. Mé-dicos de renome nacional, como José Aristodemo Pinotti eThomas Gollop, definiram uma posição favorável ao aborto,posicionando-se pela necessidade de um debate. Dois depu-tados federais, José Genoino (PT-SP) e Luiz Alfredo Salomão(PDT-RJ), apresentaram suas posições favoráveis ao direito aoaborto, expressas em dois projetos de lei nesse sentido.

Como conclusão, o CNDM elaborou a Carta das Mulhe-res em Defesa de seu Direito à Saúde, onde, no que se refereao aborto, afirma-se que:

"I. o aborto voluntário deve ser considerado um proble-ma da saúde da mulher;

2. é preciso a imediata revogação de todos os artigos doCódigo Penal que definem o aborto como crime, considerando-se que a Constituição em vigor, em seu artigo 196, determinaque a saúde é um direito de todos e um dever do Estado;

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3. o aborto voluntário deve ser atendido pela rede públi-ca de serviços de saúde no âmbito federal, estadual e muni-cipal.

4. é urgente a elaboração de um ante-projeto de leicontemplando os seguintes princípios:

a) o mulher tem o direito de interromper a gravidez;b) o Estado é responsável pela assistência integral à saú-

de da mulher na rede pública, tendo em vista seu direito deconceber, evitar a concepção e interromper a gravidez;

c) o dia 28 de setembro é o Dia Nacional de Luta pelaDescriminalização do Aborto."

A década de 80 pode ser considerada como uma dé-cada de luta pelo direito ao aborto, como um período de in-tensa mobilização do movimento de mulheres sobre sua saú-de e direitos reprodutivos, articulando essas questões com acidadania feminina. Defendendo a autonomia das mulheres,com o slogan Nosso Corpo Nos Pertence, ou a sua saúde, omovimento de mulheres tornou o aborto uma questão políti-ca, capaz de gerar adesões e reações, mas impossível de serignorada.

A pressão dos setores religiosos foi contínua; ora discre-ta, nos bastidores da política, ora mais ofensiva, através deum intenso marketing na grande imprensa ou de poderosolobby junto aos congressistas e setores governamentais emgeral. No entanto, é importante assinalar que o mais notáveldo processo desencadeado pelas feministas na luta pelo di-reito ao aborto foi a sua capacidade de defender esse direi-to de forma solitária. As mulheres deflagraram, sozinhas, umdebate público com uma radicalidade e persistência inegá-veis. De fato, os aliados foram poucos. Os Conselhos Regio-nais de Medicina, com algumas exceções, o Conselho Fede-ral da Ordem dos Advogados do Brasil, os sindicatos e cen-trais de trabalhadores, a intelectualidade progressista do paísse mantiveram indiferentes à luta feminista, quando não con-trários a ela.

O Congresso Nacional não aprovou nenhum dos proje-tos apresentados sobre a matéria do aborto, em que pese arepresentatividade política de parlamentares como CristinaTavares, José Genoino e Luiz Alfredo Salomão.

As feministas encontraram aliados e conseguiram vitó-rias legais nas questões do trabalho, direitos civis, assistênciaà saúde e, até mesmo, na questão do repúdio à violência do-méstica. Mas a luta pelo aborto esbarrou no moralismo, nomedo da Igreja, na batina dos padres.

A proposta dos grupos feministas para dar seguimentoao debate sobre o aborto definiu alguns alvos: persistir noapoio aos projetos liberalizantes no Congresso Nacional; in-fluir na elaboração das constituições estaduais, em 1989, nasleis orgânicas municipais, em 1990, e na proposta de altera-ção do Código Penal. Essa estratégia de diálogo com o Po-der Legislativo trouxe ganhos parciais, mas, também, arrefe-ceu o debate público sobre o aborto para outros setores dasociedade.

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A compreensão do processo atual sobre a luta pelo di-reito ao aborto impõe uma reflexão sobre o estado da legisla-ção brasileira.

A Questão do Aborto nos Anos 90: Impasses e Perspec-tivas

O início dos anos 90 apresenta algumas ações do movi-mento de mulheres pelo direito ao aborto. Dentre elas, desta-cam-se as pressões sobre as diversas câmaras municipais, emparticular nas capitais dos estados, para fazer incluir, nas leisorgânicas dos municípios, o direito ao atendimento nos servi-ços públicos de saúde, nos casos de aborto previstos em lei.Em muitos municípios, esse direito foi conquistado sem encon-trar a resistência da Igreja Católica manifestada, em 1985,contra a lei n Q 832/85, no Rio de Janeiro.

Adotou-se, formalmente, até com certa facilidade, o di-reito ao atendimento para o aborto legal, na rede públicade saúde, tanto no nível dos estados, como no nível munici-pal, em diversas regiões do país, particularmente, naquelasonde o movimento feminista participou do processo legislati-vo local.

Essas conquistas foram possíveis pelo princípio de quenormas municipais e estaduais podem ampliar direitos, desdeque não colidam com a legislação federal e, desde que, opoder legislativo local tenha competência prevista na Consti-tuição federal para legislar sobre a matéria.

Dessa forma, o Código Penal brasileiro não pode sercontrariado por legislação estadual ou municipal, porque acompetência para legislar em matéria penal é do poder le-gislativo federal. Na ausência de regulamentação da normafederal, os estados e municípios podem legislar para fazê-lo.No caso do aborto permitido por lei, foi possível, portanto, al-guns legislativos locais regulamentarem o artigo 128, garantin-do às mulheres o direito de realizarem o aborto em hospitaisda rede pública, gratuitamente.

A tática das feministas, em atuar legislativamente nos es-tados e municípios, permitiu criar uma regulamentação libe-ral para os casos previstos no artigo 128. No entanto, após oencontro nacional Saúde da Mulher - Um Direito a ser Con-quistado, realizado em Brasília, em 1989, por iniciativa doCNDM, a questão do aborto perde o caráter de questão prio-ritária pelos grupos de mulheres.

Até mesmo a grande demanda pela implementaçãodos PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mu-lher, não encontrou uma ofensiva maior pelos grupos de mu-lheres.

Na área da saúde da mulher, a grande questão, do iní-cio dos anos 90, se constituiu na denúncia à esterilização emmassa. A questão da esterilização, em que pesem dados efe-tivamente alarmantes quanto à sua magnitude, se constituinum debate, muitas vezes, marcado por posições pouco es-clarecedoras sobre o problema. Se, por um lado, os dadosestatísticos indicam índices excessivamente altos para a prati-

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ca da esterilização feminina, por outro lado, as causas dessefenômeno devem ser relativizadas. Sob pena de uma análisesimplista, não se pode resumir essa alta incidência à fraudecontra as mulheres ou, apenas, às orientações da política deajuste internacional.

É necessário elencar e analisar outros fatores que levamas mulheres a buscar esse método irreversível: a não-imple-mentação do PAISM, que, se efetivado, possibilitaria às mu-lheres terem acesso a anticoncepcionais não irreversíveis; asdificuldades sócio-econômicas encontradas pelas mulherespara viverem a sua maternidade; a penalização social que amulher-mãe sofre no mercado de trabalho e com a dupla jor-nada; a inexistência de creches e equipamentos sociais quepermitam criar filhos de forma digna; os novos padrões impos-tos pela mídia ou desejados pelas mulheres: a instabilidadedas relações amorosas face a uma diminuição do moralismoquanto à multiplicidade de parceiros ao longo da vida; as di-ferenciadas estratégias de sobrevivência e projetos de vida;a dificuldade de contar com a cooperação do parceiro naquestão da contracepção; as mensagens do movimento fe-minista, incentivando as mulheres a assumirem novos papéissociais no espaço público, e tantas outras motivações queprecisam ser pesquisadas para a compreensão do fenômenoda esterilização feminina no Brasil.

O certo é que o movimento de mulheres não investiumais em investigar e denunciar o quadro do aborto clandesti-no no Brasil, em acompanhar o destino dos projetos de lei,em organizar lobby junto ao Estado e à sociedade pelo direi-to ao aborto.

Esse aparente cansaço do movimento de mulheres,ou a mudança na definição de temáticas prioritárias no en-caminhamento de suas lutas, merece uma leitura maisatenta.

A questão da esterilização tem encontrado, por partede alguns grupos de mulheres, propostas de tratamento crimi-nalizante, mesmo quando a laqueadura for realizada com oconsentimento da mulher.

Essa posição é altamente problemática para a deman-da pelo direito ao aborto. Se criminalizada, a esterilizaçãocom o consentimento da gestante trará em seu bojo a per-manência da criminalização do aborto.

Por trás da luta pelo direito ao aborto, está uma ques-tão política e filosófica - o direito do cidadão, do indiví-duo, à autonomia da vontade sobre seu próprio corpo. Éem nome desse direito que não se pune, por exemplo, atentativa de suicídio, ou a greve de fome, respeitada, inclu-sive, pelo Código de Ética Médica. É em nome desse direi-to que muitos penalistas defendem a não incriminação dotoxicômano. São questões polêmicas que precisam ser con-sideradas.

Nesse sentido, a criminalização da esterilização comconsentimento da mulher é uma rejeição desse princípio daautonomia da vontade e significará a manutenção da crimi-

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nalização do aborto em todos os casos, exceto, talvez, na si-tuação de risco de vida para a gestante.

Por outro lado, a dificuldade de fazer avançar a ques-tão do aborto em geral e, em particular, a questão do abor-to por anomalia fetal, esbarra nas críticas que setores do mo-vimento de mulheres vêm fazendo às novas tecnologias re-produtivas. A tendência em questionar os parâmetros do de-senvolvimento científico confluem, também, para posiçõesde revalorização da natureza feminina, dos processos natu-rais, da ecologia humana. Essa tendência encontra pontosde convergência com a revitalização do fundamentalismooriental e ocidental.

Essas questões revigoram a necessidade de um debatepúblico sobre a ética da ciência, sobre o poder dos médicosna sociedade moderna, sobre a posição da mulher face aprocessos que, em último caso, incidem sobre seu corpo.

Por outro lado, essas questões podem gerar retrocessosquanto à importância do avanço científico ético e quanto àindependência conseguida pelas mulheres em não serem ob-jetos de um destino biológico inevitável, tanto para a con-cepção, quanto em relação à situação da infertilidade.

O poder da Igreja Católica na questão do aborto nãodiminuiu nem aumentou. Certamente, em situações específi-cas, como a visita do Papa, volta à tona, com vigor, a posi-ção de rejeição ao aborto. Sabe-se, no entanto, que gruposcatólicos leigos e religiosos têm discutido, no interior da Igre-ja, a questão do aborto dentro de uma postura não dogmáti-ca, procurando refletir sobre as condições de vida das mulhe-res e se posicionando, de forma aberta, quanto à sua legalização. É inegável o poder da Igreja Católica face a um Esta-do que não assume a sua laicização. Nesse sentido, emboraos corações e mentes das grandes massas da população,em especial das camadas mais pobres da sociedade, não es-tejam mais monopolizados pelo catolicismo, face ao avançoe intensa proliferação das crenças evangélicas, o grande in-terlocutor religioso do Estado é, ainda, a Igreja.

É importante destacar, também, que, na luto pelo direitoao aborto, as mulheres perderam um grande canal de articula-ção nacional que foi o Conselho Nacional dos Direitos da Mu-lher - CNDM. Apesar de continuar, formalmente, existindo, oCNDM acabou, de fato, em 1989, face ao processo de esvazia-mento e desmantelação daquele órgáo, empreendido pelo go-verno federal. Esse foi um duro golpe, pois, pela primeira vez, omovimento de mulheres no Brasil teve, no nível do poder fede-ral, uma representação direta que lhe possibilitou articular redesde apoio, de comunicação e de alianças nacionais.

Numa sociedade dominada pela midia, a ausência decanais de formação de opinião pública tem sido um dosgrandes impasses do movimento de mulheres no encaminha-mento de todas as suas reivindicações. Se, às vezes, a midiatem sido simpática à causa das mulheres, o acesso à grandeimprensa, em particular às redes de televisão, ainda é peque-no e intermitente.

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A percepção desse esmorecimento quanto à questãodo direito ao aborto tem levado alguns grupos de mulheres aretomar, na discussão interna e no debate público, as propos-tas e os projetos de legalização do aborto.

Essas iniciativas não se fazem sem reações. A grande im-prensa, ao lado dos tradicionais artigos assinados por mem-bros do clero católico, abre espaço para que figuras de reno-me se posicionem contra as propostas liberalizantes. Desta-que é dado a pesquisas que apontam para uma rejeição so-cial ao aborto.

Faz-se necessária, neste inicio da década de 90, umanova articulação pelo direito ao aborto, centrado nos seguin-tes pontos que o rico debate dos anos 80 destacou:

a) defesa da autonomia do indivíduo sobre seu corpo;b) preocupação com a saúde da mulher;c) preocupação com as mulheres pobres, vítimas doaborto clandestino;d) extensão e democratização dos avanços da ciênciana detecção das anomalias fetais;e) laicização do debate e do Estado.Essa articulação deve confluir para a elaboração de es-

tratégias e táticas consensuais que permitam tratar o direitoao aborto como uma demanda política, tendo, porém, co-mo pano de fundo, a percepção de que essa demanda decidadania se encontra inserida no contexto de uma socieda-de moralista, autoritária e discriminadora contra as mulheres.

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