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LEGENDA SOBRE A ORIGEM DA ORDEM
Introdução
A Legenda de origine Ordinis fratrum Servorum Virginis Mariae (doravante
LO), título acrescentado pelo copista no final do escrito, ou também Introdução à
Legenda beati Philippi servorum beataer Virginis Mariae, como reza o título original,
narra a história dos primórdios da Ordem dos Servos de Maria: a experiência do grupo
inicial dos Sete Fundadores, de 1233 a 1249/51, e a evolução que seguiu até 1267,
início do governo geral de São Filipe Benizi.
A LO chegou até nós através de um único manuscrito, guardado mp
Arquivo Geral da Ordem dos Servos de Maria em Roma. Trata-se de uma cópia, já que
em vários pobntos aparecerem erros cometidos pelo copista. O manuescrito é do século
XIV, mais precisamente, talvez, de 1375, quando, em Florença, foi comprado o
pergaminho para copiar o “caderno sobre o início da Ordem” (F. Tozzi, Libro degli
spogli segnato A, do ano de 1375).
A redação do escrito, assim como chegou até nós, deve ter sido levada a cabo
pouco tempo depois de 1317, como o próprio autor confirma, quando diz. “Este ano
realizou-se a transladação, de um lugar para outro, do corpo de um desses nossos pais.
Sem mérito nenhum de minha parte, a bondade divina dispôs que eu estivesse
presente” (LO, 4). Trata-se da transladação do corpo de São Filipe Benizi, realizada
em Todi em 1317, precisamente no dia 10 de junho, como o atesta a o nº 33 da Legenda
“toscana” ou “vulgata” do mesmo santo. Quem estava presente na transladação era frei
Pedro de Todi, prior geral de 1314 a 1344. A ele é geralmente atribuída a autoria da
obra, embora tenham sido levantados também outros nomes.
O texto divide-se claramente em três partes:
A. Parte introdutória: compreende o proêmio e os capítulos I-II (nº 1-14),
centralizada na figura de São Filipe Benizi e suas relações com a Ordem, da qual se
enfatizam a grandeza e os compromissos que derivam do fato de ter sido fundada
diretamente por “Nossa Senhora”.
B. Parte central: compreende os capítulos III-XII (nº 15-49), que constitui uma
verdadeira Legenda de origine e descreve, sem nenhuma referência a datas ou a
pessoas, o caminho espiritual e as primeiras realizações do grupo inicial dos Servos de
Maria.
C. Terceira parte: compreende os capítulos XII-XV (nº 50-62), de caráter
prevalentemente histórico, que retoma o discurso interrompido no capítulo II. Enfoca a
ação de São Pedro de Verona no crescimento do grupo inicial da Ordem nos anos de
1244-1245 e descreve as etapas da sua gradual consolidação como comunidade
juridicamente reconhecida, até 1267, baseada nas concessões pontifícias emanadas a
partir de 1255, que refletem a estrutura que a Ordem havia assumido depois da
aprovação de Bento XI, com a bula Dum levamus (1304).
Como se vê, a obra contém algo mais do que aquilo que poderíamos esperar se
levássemos em conta só o título. Mas, como já dissemos, esse não é o verdadeiro título
da obra. Foi acrescentado no final do escrito pelo amanuense que copiou o códice que
chegou até nós.
A LO é mais do que uma história sobre as origens da Ordem. De fato, na
introdução (nº 1-6), o autor afirma que pretende recolher os exemplos dos “pais” da
Ordem, o mais ilustre dos quais é São Filipe Benizi: sobre ele, propõe-se escrever em
seguida uma Legenda que, na realidade, não chegou até nós.
A LO é, pois, uma obra composta, que coloca lado a lado a figura de São Filipe
e as origens da Ordem, com o objetivo de mostrar esta tese: a Ordem foi diretamente
fundada pela Virgem Maria. Para isso, ela se serviu de sete homens particularmente
dotados com os sete dons do Espírito Santo e quis que esta Ordem, “sua” a título
especial, fosse ilustrada pela doutrina e pela santidade de São Filipe. Por isso, dispôs
que a Ordem começasse no mesmo ano em que nasceu o santo, isto é, em 1233, e que
estivesse já estruturalmente consolidada quando Filipe entraria, isto é, em 1254. Para
confirmar essa tese, feita mais aceitável pela acomodação de datas e fatos, o autor traz
o testemunho de um dos Sete, Santo Aleixo, de quem descreve a vida e o momento da
morte, ocorrida em 1310.
Portanto, o escrito que temos não é uma simples Legenda de São Filipe, como
quer dar a entender o título inicial, nem uma Legenda sobre a origem da Ordem, como
diz a última frase. Uma análise acurada do conteúdo, do léxico e da morfologia nos
mostra uma estratificação complexa do texto, no qual o escritor final incluiu
documentos mais antigos, citando-os literalmente ou interpolando-os, segundo o caso.
Esse tipo de redação explica a diferença de estilo e de linha teológica existente
entre as várias partes da LO, as diferenças no modo de referir-se à Escritura, aos
Santos Padres e às fontes narrativas, bem como as repetições, contradições e
acomodações forçadas.
Com os estudos feitos sobre o texto foi ficando cada vez mais claro que,
numa moldura típica do século XIV, encaixa-se um escrito mais antigo que remonta a
um período de pouco posterior à experiência comunitária dos Sete, que culmina com
sua vida em Monte Senário.
Esse núcleo mais antigo, a Legenda de origine propriamente dita,
focaliza a experiência religiosa dos “homens ilustres, nossos pais”, desde o tempo em
que viviam no mundo (capítulo II, nº 20-21), passando pela descrição de sua amizade e
do afastamento do mundo (capítulo VI, nº 29-31), de sua vida comunitária fora das
portas de Florença e em Monte Senário (capítulos VII-XI, nº 34-45), da decisão de
admitir outros irmãos e de abrir novos conventos (capítulo XII, nº 46-49).
Essa seção do século XIII apresenta não só uma diferença de léxico, mas
principalmente de visão teológica e espiritual. Trata-se de uma visão teocêntrica, baseada
no itinerário penitencial e contemplativo dos iniciadores da Ordem, que começa com um
ato de dedicação à “Rainha do céu, a gloriosíssima Virgem Maria, medianeira e
advogada” (nº
18) e prossegue na busca, como Abraão, do monte santo, onde aconteceria o
encontro com Deus, e por meio dele, com os irmãos. A referência à Escritura é constante e
original, embora alguns textos citados sejam comuns no contexto literário e religioso da
época, e permite penetrar mais a fundo no coração da vida monástica vivida em Monte
Senário.
Só nessa seção se fala de Monte Senário. O autor lhe dá o nome de “Sonário”
(nº 41) ou “Sonaia” (nº 42), mas sabia que era popularmente chamado de Monte
Asinário, que ele considera uma corruptela do nome original. Os documentos
disponíveis dos anos
1241-1256 mostram justamente esta situação: usa-se o nome de Monte Asinário
nos documentos externos à Ordem dos Servos e usa-se o nome peculiar e significativo
de Monte Sonaio, Sonaia e Sonário nos documentos referentes à Ordem. Depois de
1256 não se menciona mais o monte na documentação da Ordem. Por isso, o fato de o
escritor dessa seção central da LO se mostrar tão bem informado sobre as várias
formas do mesmo nome e de conhecer diretamente o lugar, significa que a seção é
muito antiga. Monte Senário está em plena vitalidade: do alto do monte propaga-se o
eco da vida santa dos homens ilustres que aí moram e para o alto do monte acorrem
pessoas desejosas de ser iluminadas pela luz da sua vida ou até mesmo de compartilhar
concretamente da sua experiência.
Um clima espiritual diferente respira-se nas partes que são atribuídas ao redator
final da LO, isto é, no proêmio e nos capítulos I-II, parte do III, nos dois últimos
(XIII-XV) e nos capítulos de ligação (IV-V e VII). É aqui que aparece como centro de
tudo a ação da Virgem Maria e os principais eventos da vida de São Filipe, o grande
modelo apresentado à imitação de todos os Servos de Maria.
Portanto, o escritor final do século XIV incorpora ao seu trabalho fontes
narrativas anteriores, que remontam a uma época próxima às origens. Ele afirma
ter feito acuradas pesquisas, entrevistando frades que viveram essa época, em especial,
frei Aleixo, um dos Sete, do qual obteve muitas notícias sobre as origens da Ordem.
Tais notícias, ele as havia escrito numa folha, que lamentavelmente foi perdida (nº 26).
Cita também outra fonte muito importante para a reconstrução das origens, intitulada
De origine Ordinis, escrita por São Filipe, mas esse documento também acabou sendo
perdido por motivos desconhecidos ou até mesmo por descuido dos frades (nº 13 e 14).
Na realidade, o autor sabe da existência de tal escrito, que ele utiliza na sua obra e que,
mui provavelmente, deve ser identificado com a parte mais antiga da LO.
É sua intenção produzir uma obra que possa oferecer uma visão sintética das
origens e do desenvolvimento da Ordem. Evocando, todo momento, a ação direta da
Virgem Maria, o compromisso do serviço mariano, a figura de Filipe e o testemunho de
frei Aleixo, ele procura harmonizar o caráter mariano já adquirido pela Ordem no início
do século XIV com os elementos primitivos essenciais. Desse esforço de releitura da
inspiração originária da Ordem, feita à luz das novas circunstâncias históricas, brota
uma obra de grande envergadura, expressão de uma personalidade religiosa muito rica,
competente no campo teológico e filosófico, e preocupada em manter na Ordem a
fidelidade a uma vida santa, da qual os seus ilustres pais são modelos insuperáveis.
Edições
- Legenda de iorigine Ordinis fratrum Servorum Virginis Mariae auctore incerto
1317, ed. A. MORINI, in Monumenta OSM, I, Bruxelles 1897, p. 55-105
(introdução, p. 55-60; texto, p. 60-105).
- A. M. ROSSI, Codice mariano: La “Legenda de origine Ordinis Sevrorum
Virginis Mariae”. Versione, commento e testo, Roma 1951 (texto, p. 99-152).
- [E. M. TONIOLO], La “Legenda de origine Ordinis” dei Servi di Maria, texto
latino e tradução italiana por D. PIERACCIONI, Roma 1982.
Bibliografia
- F. DAL PINO, I frati Servi di santa Maria dalle origini all'approvazione, I, p. 239-
439.
- F. A. DAL PINO, I “viri gloriosi parentes nostri” fondatori dell’Ordine dei Servi,
in Spazi e figure lungo la storia dei Servi di santa Maria (sec. XIII-XX), Roma
1997, p. 449-526.
- P. M. GRAFFIUS, Quale immagine dei Sete Santi dalla “Legenda de origine
Ordinis”, in I Sette Santi nel primo centenario della canonizzazione (1888-1988).
Encontro de estudos promovido pela Pontifícia Faculdade Teológica Marianum em
colaboração com o Instituto Histórico OSM, Roma, 3-8 de outubro de 1988.
Publicado por E. PERETTO, Roma 1990, p. 218-255 (Scripta Pontificiae facultatis
theologicae “Marianum”, 42, nova series, 14).
- D. M. MONTAGNA, Nuove ricerche filologiche sulla “Legenda de origine
Ordinis fratrum Servorum”. Due citazioni dell’Etica di Aristotele (LG, 19), “Studi
Storici OSM”, 27 (1977), p. 165-168; Echi di esperienza monastica a Monte
Senario nel Duecento (rilettura della “Legenda de origine Ordinis fratrum
Servorum”), “Studi Storici OSM”, 29 (1979), p. 233-240.
- P. M. SUÁREZ, Spiritualità mariana dei frati Servi di Maria nei documenti
agiografici del secolo XIV, “Studi Storici OSM”, 9 (1959), p. 126-129 e passim; 10
(1960), p. 1-41.
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LEGENDA*
SOBRE A ORIGEM
DA ORDEM DOS SERVOS DE MARIA
Em louvor da Virgem Maria [Mãe] de Cristo Jesus
Introdução à "Legenda" do bem-aventurado Filipe
dos Servos da Santa Virgem Maria**
1. Louvemos os homens gloriosos1
que, com suas santas palavras e exemplos, nos geraram na Ordem. Eles são, depois de Deus2, os nossos pais, aqueles que, tomados de cuidados por nossas vidas, proveram o alimento espiritual com o qual seríamos suficientemente nutridos, e transmitiram-nos o conhecimento, a arte e a ciência. Assim, nos apontaram o caminho mais seguro para alcançar a vida santa.
Humildes de coração3, ofereceram-se a Deus em nossa Ordem com todos os seus
pensamentos, palavras e obras. Escolhendo o caminho da verdade4, viveram
incansavelmente segundo os seus preceitos, e consagrando livremente toda a sua vida ao
Senhor, fizeram com que nossa Ordem - em seu tempo - fosse do agrado de Deus e da
bem-aventurada Virgem Maria.
Com suas súplicas, mereceram obter do Senhor que, no futuro, quando eles não mais
existissem, a Ordem se perpetuaria, segundo a vontade de Deus, com a presença de
religiosos perfeitos.
Esses homens ilustres, nossos Pais, agradaram ao Senhor e à bem-aventurada Virgem
Maria por suas obras e por seu dedicado serviço benignamente aceito. Estamos
certos disso, porque o Senhor, quando vivos, os ornou com muitas virtudes e milagres; no
momento da morte, mostrou, com sinais e prodígios, que suas almas lhe eram muito
queridas; e, após a morte, provou com toda certeza que estão com Ele na glória eterna,
graças aos seus méritos e prodígios.
2. Nós, portanto, considerando as palavras e os exemplos com os quais nossos
*Em português, a palavra “legenda” é mais usada para significar “lenda, letreiro ou inscrição, partido etc.”, mas ela
foi mantida no título e ao longo do presente texto. Segundo o Novo Dicionário Aurélio, de Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira, o vocábulo, derivado do latim legenda (=coisas que devem ser lidas) e significa também “relato da
vida do santos”, que é o nosso caso (nota do tradutor).
**A Legenda de origine Ordinis fratrum Servorum Virginis Marie (doravante LO), na intenção do autor, não é uma
narração completa em si mesma, mas antes uma "Introdução ou Proêmio" à "Legenda" de São Filipe Benizi, o primeiro e
mais célebre santo das nossas origens. O título não é do autor, mas - como já acenamos - é constituído pelas palavras finais
do copista.
1 A LO, como outras "Legendas" medievais análogas, começa com as palavras de Eclo 44, 1ss: o elogio aos pais do
povo eleito torna-se elogio aos nossos Pais e se repete freqüentemente ao longo do texto. "Elogiemos os homens
ilustres, nossos antepassados, em sua ordem de sucessão. O Senhor criou uma imensa glória e mostrou sua grandeza
desde os tempos antigos. Homens ricos e dotados de recursos, vivendo em paz em suas habitações. Todos foram
honrados por seus contemporâneos e glorificados já em seus dias... Eis os homens de bem, cujos benefícios não foram
esquecidos. Na sua descendência eles encontram uma rica herança, sua posteridade. Os seus descendentes ficam fiéis
aos mandamentos e também, graças a eles, os seus filhos. Para sempre dura a sua descendência; e a sua glória não
acabará jamais" (Eclo 44,1-2.6-7.10-13). 2 Eclo 1,3 (Vulgata): “Quem poderá explorar a Sabedoria de Deus que existe antes de todas as coisas?”.
3 Mt 11,29. O advérbio coraliter (cordialmente), de derivação latina e provençal, de uso freqüente na literatura
italiana do século XIII, aparece dez vezes na LO e designa quer o coração da pessoa quer os laços íntimos que unem os
membros de uma comunidade que se tornaram “um só coração”. 4 Sobre o “caminho da verdade” cf. Sl 119,30; Tb 1,3; Sb 5,6; 2Pd 2,2
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Pais nos geraram espiritualmente, e sabendo que, com sua vida, eles agradaram ao Senhor e fizeram que também a nossa Ordem fosse do agrado dele, moldemos filialmente a nossa conduta, nas palavras e nas ações, segundo os seus exemplos, de modo que todos percebam que eles deixaram filhos à sua semelhança5.
Será, então, evidente que, seguindo os seus exemplos, nós conservaremos a humildade
de coração em todas as nossas ações. Escolhendo o caminho da verdade, viveremos
segundo os seus preceitos. Consagrando livremente a nossa vida ao Senhor, tornaremos
aceitos a Deus e a Nossa Senhora nossas pessoas e nossa Ordem. E, sendo assíduos na
oração, obteremos do Senhor que a Ordem se mantenha sempre fiel ao Espírito.
Nossos Pais nos deixaram um modelo de vida a ser seguido por nós que viemos
depois deles. Nós também, deixando igual exemplo aos que nos sucederem na Ordem, os
levaremos a agir da mesma maneira em relação aos seus sucessores; e estes, em relação a
outros; e assim por diante.
Se nós e os frades que se sucederem uns aos outros na Ordem cumprirmos o que acabamos de dizer, a Ordem será grandemente beneficiada. E, como conseqüência, Nossa Senhora experimentará grande alegria ao ver-se tão admiravelmente consolada por seus Servos6. Agindo assim, haveremos de honrá-la com o nosso serviço que mostrará quanto ela seja digna da nossa veneração. E mais: por causa disso, Nosso Senhor será induzido a enriquecer a nossa Ordem com dons e graças espirituais,
mostrando assim que a Ordem lhe é agradável.
Além disso, os que vierem do mundo para a nossa Ordem, como à sexta cidade de refúgio7, encontrando sempre nos frades tais palavras e exemplos de vida, haverão de perseverar nela, atraídos pela doçura do seu exemplo e ensinamento. Jamais ousarão nem tentarão afastar-se de fato ou intencionalmente desta cidade de refúgio, a não ser quando, no fim da vida, sua alma, morta para o mundo e para o pecado e levada para a vida sem fim pelo próprio Cristo, Sumo Sacerdote8, mediante a morte corporal, será restituída à liberdade plena.
3. Embora me considere indigno dessa tarefa, e confiando apenas na proteção dos
nossos Pais e na ajuda do Senhor, senti-me na obrigação de pesquisar, com todas as
minhas forças, tudo o que diz respeito à sua dulcíssima vida e, com minhas modestas
capacidades, colocá-lo por escrito e transmiti-lo aos que quiserem progredir na perfeição,
para deixar uma recordação perene dos mesmos a todos os que vierem depois de nós.
Isso para que, vindo a faltar os que conviveram com esses santos homens e que
conheceram suas palavras, obras e virtudes, jamais se apague da memória dos frades da
nossa Ordem a lembrança deles, mesmo quando, mortos esses frades, não haja mais
ninguém que saiba e consiga narrar com exatidão alguns fatos da sua vida.
5 Eclo 44,10-13.
6 A LO inspira-se aqui no segundo livro dos Macabeus (7,6), que narra o martírio dos sete irmãos (note-se a analogia do
número sete). Enquanto o primeiro irmão é cruelmente assassinado, os outros seis animam-se uns aos outros ao heroísmo:
"O Senhor Deus nos observa e tem realmente misericórdia de nós, conforme Moisés declarou no seu cântico: Ele se
consolará nos seus servos" (texto segundo a Vulgata). A LO contempla a Virgem Maria que se alegra com os seus santos
Servos. 7 Na "Terra Prometida" seis eram as "cidades de refúgio" estabelecidas por Deus para que, se alguém cometesse
involuntariamente algum homicídio, pudesse nelas encontrar asilo, como o descreve em detalhes o livro dos Números
(35,9-15). Na Idade Média, as Ordens religiosas consideravam seus conventos como cidades de refúgio espiritual, onde os
pecadores arrependidos podiam encontrar a absolvição e onde todos podiam usufruir a paz de Deus. A LO enfatiza que
nossa Ordem não é uma cidade de refúgio qualquer, mas a "sexta", isto é, o último lugar de salvação estabelecido por
Deus. Sobre a “cidade de refúgio” cf. Nm 35,5; Dt 19,1-10; Js 20,1-3. 8 Hb 4,14-15; 9,11.
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Levaram-me a assumir essa empresa a veneração e o profundo amor que tenho e sinto
o dever de ter para com eles, como alguém que já experimentou em si mesmo não
poucos favores de sua intercessão. Convenceram-me também o proveito que a Ordem terá
e o desejo de todos os frades, os quais, como me consta, buscam avidamente essas
notícias. Espero com isso, graças a seus méritos e intercessão, alcançar e obter do Senhor a
graça da vida eterna para a minha alma. Reconheço-me incapaz e indigno de uma empresa
desse gênero, mas confio na proteção dos Pais e na bondade do Senhor.
Dessa forma, nossos frades poderão encontrar na Ordem mesma informações sobre a vida daqueles que não conheceram pessoalmente. E confrontando, como num espelho puríssimo9, o interior de sua alma com a vida deles, saberão manter e conservar zelosamente o que houver de bom e, com lágrimas de arrependimento, afastar logo o que houver de errado.
4. Há também um motivo espiritual que me levou a assumir essa tarefa, embora reconheça minha pequenez e indignidade. Devendo-se nesse mesmo ano transladar o corpo de um dos nossos Pais10
e tendo eu participado pessoalmente, por bondade de Deus, embora não o merecesse, de todo o rito da transladação, Deus realizou então, por intercessão do Santo, muitos milagres que a seguir narrarei.
Vendo, pois, com meus próprios olhos, todas essas coisas, tomei a decisão firme de
pesquisar todas as notícias possíveis sobre a sua vida e milagres e colocá-las por escrito,
para que os frades tenham uma recordação perene de tão grande homem.
Na verdade, eu poderia, com razão, ser acusado de ingrato se, depois de ter recebido
dele uma graça especial e de ter visto com meus olhos tantos milagres, me recusasse a
fazê-lo, segundo as minhas capacidades. Já dizia São Gregório: "...[O amor haverá de
suprir] as forças que minha imperícia me negar"11.
Muitos homens ilustres, que ocuparam na Ordem o lugar de Pais de espírito e que
vieram antes ou depois daqueles que eu gostaria de propor como modelos, mereceriam
menção especial. Entretanto, justamente estes últimos, de preferência aos outros,
devem ser apresentados como modelo para os frades da nossa Ordem, porque, mais
que os outros, se distinguiram por suas virtudes, palavras e obras.
O primeiro modelo a ser apresentado à Ordem é o bem-aventurado Filipe. Mui
justamente ele ocupa o primeiro lugar entre todos. Ele viveu com fidelidade o seu
serviço a Nossa Senhora e cumpriu escrupulosamente, com todo o coração, os deveres
essenciais da Ordem. Seu exemplo é de estímulo para nós. Se considerarmos a sua vida
casta, encontraremos forças para dominar os instintos da carne. Se olharmos para a sua
pobreza, seremos levados a considerar como esterco12 todas as riquezas do mundo. Por
9 Sobre a imagem da santidade como espelho no qual a alma pode refletir sua situação real, cf. Gregório Magno,
Moralia sive Expositio in Iob, l.II, cap. I, n. 1 (in PL 75,553-554), do qual a LO tomou algumas expressões. Cf.
Agostinho, Esposizine sui salmi, 103, I, 4-6 (in Opere di sant’Agostino, ed. Latino-italiana, a cura di Cattedra Agostiniana
presso l’Augustinianum de Roma, XXVII, Roma 1976, p. 639-645); Discorso 49,5 (in Opere di sant’Agostino, XXIX,
Roma 1979, p. 933-934); e a conclusão da Regra, VIII, 2 (“Este livreto seja para vós como um espelho em que possais
vos refletir...”). 10 Trata-se da transladação do corpo de São Filipe Benizi, realizada em Todi em junho de 1317, trinta e dois anos
depois de sua morte. Foi esse dado histórico, confirmado por outros indícios do texto, que levou a fixar entre 1317 e
1318 a data da redação final da LO, ou pelo menos de uma parte da mesma, e atribuir a autoria da mesma, com muita
probabilidade, a frei Pedro de Todi. A Legenda “vulgata” de São Filipe, nº 33 (Monumenta OSM, II,
Buxelles 1898, p. 81) relata que a transladação se deu em 10 de junho de 1317. 11
Essa sentença de São Gregório Magno, que na LO aparece incompleta, encontra-se na Homilia 21 sobre os Evangelhos
(PL 76, 1169-1170) e diz: "Considero-me incapaz de realizar esta obra, mas o amor haverá de suprir as forças que minha
imperícia me negar". 12
Fl 3,8.
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fim, se considerarmos a sua obediência, nós também seremos levados a submeter o
nosso espírito ao Senhor.
5. Para obter informações completas e seguras sobre a vida do santo homem, segundo
o desejo meu e dos frades, procurei nesse mesmo ano visitar, na medida do possível, todos
os conventos da Ordem onde, como me fora dito, viviam frades que o tinham conhecido
ou tinham convivido com ele ou, então, o tinham acompanhado em suas viagens.
Falando, pois, com eles da forma mais completa possível sobre a vida dele, sua morte
e milagres, recolhi de viva voz de homens dignos de fé as poucas informações que ainda
tinham na memória. “Poucas", digo, em comparação com tudo o que realizou em
virtudes e milagres durante a vida.
A razão pela qual não me foi possível obter maiores informações a respeito dele foi
que, quando comecei as investigações, já se haviam passado trinta e dois anos desde
a sua morte. Por isso, poucos do seu tempo eu pude encontrar ainda vivos. Dentre
esses, porém, encontrei homens dignos de fé por sua luminosa e santa vida. Deles vim
a conhecer a verdade acerca de tudo o que pude descobrir sobre a vida do santo, e constatei
que havia entre eles uma concordância substancial. Mas, infelizmente, devido ao longo
tempo transcorrido, eles próprios tinham escassas recordações da vida e dos milagres do
santo.
Mas há ainda outro motivo. Fui informado que o santo homem ocultava de
maneira incrível e propositalmente os seus milagres, virtudes e obras, que jamais os
manifestava aos irmãos, a não ser mui raramente e só quando não podia agir de outra
maneira. Por isso, poucos eram os fatos que haviam chegado ao conhecimento dos frades.
Juntei, pois, essas escassas informações, como fragmentos13 que haviam ficado
gravados na memória dos frades, e ordenei-as da melhor maneira possível, segundo a
seqüência dos fatos, algumas vezes conservando a ordem das coisas, outras vezes
alterando-a, segundo a necessidade.
6. Para escrever uma biografia possivelmente completa do bem-aventurado Filipe e para informar-me de maneira exaustiva não só sobre sua vida na Ordem, mas também sobre sua família e a vida que ele vivera no mundo, fui até a cidade, ao bairro e a casa onde ele nascera e fora educado antes de ingressar na Ordem. Lá encontrei ainda vivos dois homens de vida santa e de honrada reputação: um sobrinho do santo, de nome frei Forte14, quase octogenário, e um venerando ancião de nome Fecino, o
qual, embora beirasse quase os cem anos, conservava ainda íntegros os sentidos e lúcida a
memória. Ele sempre residira numa casa do mesmo bairro, perto da casa de São Filipe.
Ambos, de maneira ordenada, contaram-me a verdade sobre muitos fatos relativos à família
do santo e à vida que ele levava no mundo.
Ordenei a vida do Santo em quinze capítulos, para que seja acessível a quantos
desejam conhecê-la e para que nela encontrem o que desejam todos os que querem moldar
a sua vida espiritual segundo os exemplos dele.
Capítulo I
13
Jo 6,12-13. 14
Frei Forte, cujo nome de batismo era Forte de Sommaia, fez a profissão em 1315. Em 1317 depositou no convento de
Florença uma quantia em dinheiro para sua irmã Buta, nascida fora do matrimônio, segundo uma nota tirada do livro
Ricordanze, que era o registro de administração do convento da Santíssima Anunciada de Florença, referente aos anos
1295-1332.
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Grandeza e dignidade da Nossa Ordem
7. A bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, é o
refúgio geral de todos os pecadores que recorrem a ela para obter misericórdia15. É
chamada mãe de todos os justos, que a amam de todo o coração para obter a graça. É
conhecida como Senhora comum de todos os que estão a serviço de Cristo, em
qualquer Ordem religiosa, e nela confiam para alcançar a glória. Sabemos, com toda
certeza, que ela obtém tudo isso do seu Filho. Ela é, porém, refúgio especial, mãe singular e Senhora própria de todos os
religiosos - pecadores ou justos e servos fiéis - que estão na Ordem a ela dedicada e, por
isso, mui justamente distinguida com seu nome.
De fato, os frades das outras Ordens - pecadores ou justos e servos de Cristo - embora
ocasionalmente invoquem Nossa Senhora como seu refúgio geral, Mãe universal e
Senhora comum - e ela atende a todos os que a invocam, implorando de Deus misericórdia
para os pecadores, graça para os justos e glória para os servos do seu Filho - todos têm,
porém, como fundador do seu Instituto algum santo particular, como se deduz do estudo
das Ordens religiosas. E é a esse santo que eles recorrem como a um refúgio especial,
pai singular e próprio senhor, quando, por intermédio dele, querem pedir a Deus algum
favor para si ou para a sua Ordem.
Pelo contrário, os frades da Ordem particularmente consagrada a Nossa
Senhora e, com razão, distinguida com seu nome, além dela mesma, a cujo serviço se
consagram, não têm nenhum outro santo que tenha sido fundador da sua Ordem e ao
qual possam recorrer como a um refúgio especial, pai singular e próprio senhor,
quando querem pedir a Deus, por intermédio dele, algum favor para si e para a sua
Ordem.
Por isso, assim como todos invocam Nossa Senhora nas necessidades - os
pecadores como refúgio geral, os justos como mãe universal e os que a servem fiel e
constantemente como senhora comum, e ela responde a todos, obtendo de Deus
misericórdia, graça e glória -, da mesma forma nossos frades, quando querem pedir
algum favor para si ou para a sua Ordem, a ela recorrem como a um refúgio
especial, mãe singular e sua Senhora.
E embora tenham o bem-aventurado Filipe e muitos outros Pais ilustres que os
precederam na Ordem e se tornaram famosos por suas virtudes, méritos e milagres, aos
quais poderiam recorrer para implorar algum favor para si e para a sua Ordem,
nenhum deles, no entanto, deu início à Ordem de Nossa Senhora, nem há entre eles
algum santo tão particular da Ordem, que seja comum a todos os frades que se
sucederam desde o princípio e que haverão de suceder-se até o fim.
De fato, esses mesmos frades foram precedidos na Ordem por muitos outros que se
distinguiram por seus méritos e milagres evidentes. Alguns deles eram pecadores, outros
justos, outros ainda, para alcançar a perfeição, servos fiéis de Nossa Senhora, mas todos
necessitados de misericórdia, de graça e de glória. Por isso, a nenhum deles os frades que
os precederam poderiam recorrer.
Disso tudo se conclui que os frades da Ordem de Nossa Senhora, afora dela, não
tiveram nenhum outro santo próprio e particular e nenhum fundador da sua Ordem ou que
15 Os números 7 e 8, que explicam a relação particular existente entre a nossa Ordem e a Virgem Maria, são muito
semelhantes na terminologia e na mentalidade com os escritos espirituais e hagiográficos das duas Ordens mais
especificamente marianas, dos Cistercienses e dos Frades Pregadores.
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tenha sido comum a todos os frades.
8. De tudo que foi dito deduz-se que Nossa Senhora não quis dar aos frades da Ordem
um santo fundador próprio, para que se compreendesse que ela (qual refúgio universal, mãe
de todos e Senhora comum) obtém do seu Filho, para todos os frades de sua Ordem,
misericórdia, graça e glória. Eles devem, pois, recorrer a ela, como a um refúgio especial,
mãe singular e sua Senhora, quando querem obter alguma graça para si ou para a Ordem.
Daí se vê como é grande a glória dos frades da Ordem de Nossa Senhora. Não só a
reconhecem como sua advogada, mas também experimentam em si o carinho especial que
ela tem para com eles e com toda a Ordem.
Por isso, os frades da nossa Ordem, mais que os das outras Ordens, são obrigados a manter-se santos diante dela e a praticar obras de perfeição. Pois estando consagrados ao serviço de tão excelsa Senhora, que se digna tratá-los com tanto carinho, mais que os outros devem conservar a pureza de coração16.
Sintam-se humilhados e confundidos os frades que, pertencendo a tão excelsa Ordem
de Nossa Senhora, não se envergonham e ousam manchar a própria alma com o pecado e
impedem que os outros vivam sem culpa. Envergonhados, recorram imediatamente a ela,
que, com razão, está indignada, para que não suceda que ela os afaste de sua Ordem e, por
suas más obras, os abandone à pena do fogo eterno.
Alegrem-se, pelo contrário, e rejubilem os frades que, vivendo na Ordem, conservam
sua alma imaculada e procuram agir de tal maneira que os outros vivam sem pecado.
Perseverem alegres na obra começada, pois assim como os maus que continuam na
Ordem com sua maldade serão punidos em dobro e mais que os outros, da mesma forma
os bons, perseverando na pureza do coração, mais que os outros, haverão de ser
recompensados.
Capítulo II
Nossa Ordem teve início no mesmo ano em
que nasceu o Bem-aventurado Filipe
9. Quando chegou o tempo em que aprouve à bem-aventurada Virgem Maria reunir,
separando-os do mundo, os primeiros frades da Ordem que estava para iniciar e
que devia ser a si particularmente consagrada, nesse mesmo tempo em que, reunindo
esses frades, ela deu início à Ordem, para garantir o seu futuro, ela quis fazer surgir um
luminar resplendente de luz celeste, o bem-aventurado Filipe, que nasceu onde nascera
a Ordem.
A Ordem então iniciada haveria de crescer de tal forma em número de frades que já
não podia manter-se unida senão mediante a luz e a doutrina celeste. Por isso,
quando o bem-aventurado Filipe atingiu a idade perfeita e a santidade plena, a ponto de
poder ser colocado sobre o candelabro17 da Ordem, como verdadeira lâmpada a iluminar
com a luz do céu os que nela se encontravam ou que haveriam de vir em seguida -
ensinando-lhes com a doutrina e o exemplo como deviam servir dignamente
a Nossa Senhora para ser recompensados por ela - ele entrou na Ordem e a iluminou com
sua presença. E todos os frades então existentes, guiados por sua luz e doutrina, puderam
16
Cf. Sl 101,2. 17 Jo 5,35; Mt 5,15; Mc 4,21; Lc 8,16. A imagem da lâmpada e do candelabro, freqüente na LO (cf. os números 13, 50,
56, 58), coloca São Filipe em relação íntima com a história das origens da Ordem. Gregório Magno já havia aplicado
essa imagem a São Bento, no segundo livro dos Diálogos (in PL 66,130).
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dignamente servir a sua Senhora, segundo o espírito da Ordem.
10. Naquele tempo, Nosso Senhor Jesus Cristo já havia espiritualmente iluminado o
mundo com a presença de dois luminares: o bem-aventurado Domingos e o bem- aventurado
Francisco. Com a luz de sua vida e de sua doutrina, fundaram duas Ordens religiosas, que
tomaram o nome deles e que, mediante a vida e a ciência dos seus frades, haveriam de guiar
todo o mundo.
Esses dois homens, ao terminar sua missão terrena com a morte corporal (o bem-
aventurado Domingos em 1221 e o bem-aventurado Francisco em 1226), tinham passado
desta para a vida gloriosa. Pelos méritos de suas virtudes, as Ordens por eles fundadas
eram de tal forma do agrado de Deus que seus frades, com o anúncio da Palavra e o
exemplo de suas vidas, tinham começado a extirpar as heresias que perturbavam a paz da
Igreja. Dentre eles, começava a despontar para o mundo o bem-
aventurado Pedro Mártir como um valente atleta de Cristo e destruidor de heresias18.
Naquele tempo, para honrar a sua Mãe, a Virgem Maria, Nosso Senhor houve por
bem oferecer-lhe uma casa, isto é, uma Ordem consagrada ao seu nome. Por isso, para que
os frades da Ordem aprendessem juntos a servir dignamente a sua Senhora, quis dar-lhes,
como modelo de autêntico serviço, a lâmpada de que falamos, isto é, o bem- aventurado
Filipe.
11. No ano, pois, de 1233 do nascimento de Nosso Senhor, no tempo do papa
Gregório IX19, na província toscana e na cidade de Florença, nasceu o bem-aventurado
Filipe. No mesmo ano do seu nascimento, na mesma província e cidade, quis Nossa
Senhora que tivesse início a sua Ordem, a si particularmente consagrada e que deveria
trazer seu nome.
Que fazes, dulcíssima Senhora? Fazes teu futuro servo semelhante a teu Filho! Com
isso, certamente demonstras quão grande ele seria e quão dignamente haveria de te
servir. Teu Filho, nascendo de ti da estirpe de Israel e do povo hebreu, no mesmo ano
do seu nascimento, reuniu ao seu redor os gentios e os hebreus, ao convocar os pastores da
Judéia20 e os magos do Oriente21. Quando chegou à idade perfeita, a todos ele ensinou e
redimiu. E depois de sua paixão e morte, lhes deixou a doutrina e o exemplo segundo os
quais deveriam viver.
Da mesma forma tu, ó dulcíssima Senhora, começaste a reunir ao redor do teu servo
Filipe, nascido na província de Toscana e na cidade de Florença, os habitantes da mesma
província e cidade, isto é, os iniciadores da tua Ordem. A todos eles o bem- aventurado
Filipe, alcançada a idade perfeita e resplendente da sabedoria do teu Filho, haveria de
ensinar e de governar até a morte; e depois desta, com sua doutrina e exemplos, haveria de
instruí-los sobre a melhor maneira de te servir honradamente. Ó Senhora minha e bem-aventurada Virgem Maria, a quem atribuir o mérito de
tão grande semelhança entre o teu querido servo, o bem-aventurado Filipe, e o teu
Filho Jesus Cristo? De minha parte, admira-me ver o teu servo assemelhar-se ao teu Filho
e não consigo descobrir a razão de tão grande semelhança. Poderia isso talvez atribuir-se
aos méritos do teu servo que havia apenas nascido, ou aos merecimentos da tua Ordem
18
São Pedro de Verona começa a sua atividade apostólica entre 1232 e 1234. A respeito dele cf. também os
números 33, 50-53 e 58 da LO. 19
Ugolino di Segni, papa de 1227 a 1241 20
Lc 2,8ss 21
Mt 2,1ss.
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que somente então iniciava?
Mas se não cesso de admirar esse fato estupendo, nem consigo descobrir-lhe a razão,
ouso, porém, observar, com toda reverência a ti, ó minha dulcíssima Senhora e Mãe, que
tu quiseste isso para demonstrar os futuros méritos e a dignidade do teu servo Filipe e
da Ordem que devia ser a ti particularmente consagrada; e também para demonstrar o
quanto teu servo e a Ordem, enriquecidos de virtudes e de dons celestiais diante de ti,
fossem dignos de honra.
Tudo isso, porém, deve atribuir-se principalmente à tua bondade e à tua misericórdia,
pelas quais te aprouve, sem que eles o merecessem, honrar o teu servo e a Ordem que te
seria consagrada, com uma semelhança tão grande com o teu Filho recém-nascido.
12. Que o bem-aventurado Filipe tenha nascido no mesmo tempo e ano em que
teve início a Ordem de Nossa Senhora, pude deduzi-lo de dois fatos: primeiro, porque que
ele morreu no ano do Senhor de 1285, segundo ano do pontificado do papa
Honório IV22; segundo, porque ele mesmo, estando no convento de Orvieto23 pouco
antes de morrer, disse casualmente a frei Boaventura de Pistóia que tinha cinqüenta e
dois anos. Ora, deduzindo-se a idade que tinha, vale dizer, cinqüenta e dois anos, do ano da
morte, ocorrida em 1285, resulta que foi no ano 1233 do nascimento do Senhor que ele
veio ao mundo. E neste mesmo ano - como já disse - teve início a Ordem da bem-
aventurada Virgem Maria.
Que a Ordem de Nossa Senhora tenha iniciado nesse ano, eu o soube assim. Frei
Aleixo24, um dos sete25 frades que iniciaram a Ordem, com quem conversei muitas vezes
antes de sua morte, contou-me muitas coisas a respeito da origem da nossa Ordem.
Disse-me que a Ordem começou seis anos completos antes do eclipse total do sol que
chamou a atenção de toda a Itália. Ora, sabe-se que esse famoso eclipse se deu no ano do
Senhor de 1239, décimo terceiro do pontificado do papa Gregório IX. Por
conseguinte, se a Ordem de Nossa Senhora teve início seis anos completos antes desse
eclipse que se deu em 1239, subtraindo-se daí seis anos, resulta que a Ordem de Nossa
Senhora teve início no ano do Senhor de 1233. E foi também nesse mesmo ano que nasceu
o bem-aventurado Filipe. Fica assim provado o que acima afirmamos, isto é, que o
servo de Nossa Senhora nasceu no mesmo ano em que começou a Ordem da mesma Nossa
Senhora.
13. Como teve início a Ordem de Nossa Senhora e como prosperou e cresceu até o
ano em que o bem-aventurado Filipe foi posto sobre o seu candelabro, como muitos
frades me informaram, o mesmo Filipe, quando vivo, o havia amplamente descrito de
próprio punho num livrinho intitulado: "A origem da Ordem"26.
22 Giacomo Savelli, papa de 1285 a 1287. Nos últimos meses do seu pontificado concedeu uma série de
privilégios aos conventos de Borgo Sansepolcro, Bolonha-Santa Maria em Borgo San Petronio, Foligno,
Sena, Cafaggio e Lucca, contribuindo assim para a sobrevivência da Ordem num momento de incertezas 23
Em 27 de setembro de 1260, os Servos de Maria recebem do bispo de Orvieto a igreja de São Pedro in Vetera; em
1265, talvez por motivos de segurança, mudam-se para dentro dos muros da cidade e constroem a igreja e o convento
de Santa Maria. 24
Cf. Introdução. 25
O número “sete” aparece em várias experiências eremítico-comunitárias do período medieval (por exemplo, São Bruno e
seus seis companheiros) e também nas biografias de São Francisco. Trata-se de um valor simbólico profundamente radicado
na consciência religiosa do tempo, a tal ponto que provavelmente vinculava os iniciadores de um grupo religioso ao número
sete 26
Cf. Introdução.
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Esse livrinho, que muitos frades garantem ter visto e lido, procurei-o ansiosamente
por muito tempo, mas não consegui ainda encontrá-lo. Soube recentemente de um frade que o tivera consigo por longo tempo, mas que, por circunstâncias adversas, o
havia perdido.
14. Os primeiros frades, por meio dos quais Nossa Senhora quis iniciar sua
Ordem e os que estiveram na Ordem depois deles, já estão mortos.
Além disso, extraviou-se, ao que parece por negligência, o livrinho escrito pelo bem-
aventurado Filipe sobre as origens da Ordem. Por isso, não me é possível expor
amplamente por escrito - como seria meu desejo e de todos os frades - como iniciou a
Ordem e que nível de prosperidade alcançou no tempo do bem-aventurado Filipe.
No entanto, dado que a vida do bem-aventurado Filipe, que com grande empenho me
pus a escrever em sua honra e para proveito dos frades, pressupõe, de alguma forma,
o relato da origem da Ordem e do estágio de desenvolvimento e de
prosperidade alcançados quando ele foi posto à sua frente, tudo isso procurarei narrar
brevemente. Não será um relato exaustivo, mas incluirá pelo menos tudo o que me lembro de
ter ouvido, em vários momentos, durante os mais de vinte e dois anos em que, por
divina misericórdia, estou na Ordem.
São informações obtidas de muitos frades idosos, alguns dos quais já mortos e outros -
pouquíssimos, na verdade - ainda vivos, e em modo particular do mencionado frei Aleixo,
que foi um dos primeiros da nossa Ordem. Com muita boa vontade, comprometo-me a
fazê-lo, embora de maneira imperfeita, para satisfação dos frades desejosos de conhecer
esses fatos.
Capítulo III
Número dos frades que iniciam a Ordem
e sua perfeição antes de formarem comunidade
15. Já disse acima que a Ordem dos Servos da bem-aventurada Virgem Maria nasceu
na província de Toscana e na cidade de Florença. Para que seja mais claro tudo o que
haveremos de narrar, já explicamos, embora genericamente, o que é uma Ordem religiosa
e o que a ela se refere27. Cabe-me agora, com grande confiança em Deus e com veneração
e respeito aos que o desejam, expor como a Ordem começou.
Saiba-se então que na província da Toscana e na cidade de Florença havia sete
homens, dignos de muita honra e veneração, que Nossa Senhora uniu espiritual e
corporalmente, como as sete Plêiades a desatar espiritualmente os laços de Órion28, dando
início à Ordem sua e dos seus Servos. Quis Nossa Senhora iniciar a Ordem sua e dos seus Servos com sete homens para que,
com esse número, ficasse demonstrado a todos, com absoluta clareza, que ela queria orná- 27
Na verdade, o autor não disse nada ainda sobre o assunto. 28 Jó 38,31. A imagem das sete Plêiades e da estrela Arcturo ou Órion, o autor da LO não a toma dos tratados de
astronomia, mas dos comentários de Gregório Magno sobre o Livro de Jó, muito em voga na Idade Média. Assim
se diz no Livro de Jó: "Podes atar os laços das Plêiades ou desatar as cordas de Órion?" (Jó 38,31). Gregório Magno vê nas sete estrelas Plêiades os santos contemplativos e os santos da Jerusalém celeste, ornados com os sete dons
do Espírito Santo que os mantêm unidos. Na Constelação de Órion, que roda continuamente e vivazmente, ele vê a
imagem da Igreja atual, que luta incansavelmente e que um dia o Senhor haverá de desatar (libertar) levando-a ao repouso
eterno (Cf. Moralia, livro 29, cap.31. PL 76,515-519). A LO identifica as sete estrelas Plêiades com nossos Sete Pais,
ornados com os sete dons do Espírito Santo, unidos na contemplação e numa vida reta, a fim de desatar o poderoso giro
de Órion, identificado com os caminhos tortuosos que os ímpios percorrem (veja também o nº 22).
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la, dotando-a em modo especial com os sete dons do Espírito Santo29. Entendia também mostrar abertamente que, no futuro, a Ordem seria sempre composta de homens dotados com os dons do Espírito Santo, que se sucederiam uns aos outros. E assim, ornada com tais dons, a Ordem haveria de ser sempre aceita por ela até a sétima era30.
16. Esses homens, antes de se unirem efetivamente para dar início à Ordem,
encontravam-se em quatro estados de vida: o primeiro referia-se à Igreja; o segundo, à vida
civil; o terceiro, à veneração a Nossa Senhora; e o quarto, à perfeição de suas almas.
Seu primeiro estado, portanto, referia-se à Igreja. Existe na Igreja e em nosso caminho
de fé três estados comuns, mediante os quais se mantêm viva a própria fé e a Igreja dos
fiéis. Primeiro, o estado de virgindade, isto é, dos que se comprometem a guardá-la antes
do matrimônio. Segundo, o estado dos que vivem em matrimônio. E, finalmente, o terceiro
estado, dos que se livraram do vínculo matrimonial por consenso ou pela morte do
cônjuge e que se comprometem a viver em castidade perfeita por amor a Deus.
Os Sete mencionados homens, antes de sua efetiva união, encontravam-se a viver
dignamente nesses três estados comuns da Igreja. Alguns deles, decididos a viver a
virgindade ou a castidade perfeita, não haviam contraído matrimônio; outros, pelo
contrário, eram casados; e outros, enfim, com a morte da esposa, estavam livres do vínculo
matrimonial.
Ó obra de grande e admirável caridade, repleta de mistério insondável! Nossa
Senhora, mediante o número dos sete homens que deviam fundar a sua Ordem, quis
demonstrar claramente que a futura perfeição deles consistiria nos sete dons do Espírito
Santo. Da mesma forma, mediante os três estados de vida nos quais eles dignamente se
encontravam, quis dar a entender abertamente a todos que à sua Ordem, como à sexta
cidade espiritual de refúgio, todos poderiam aceder tranqüilamente, em qualquer estado de
vida se encontrassem. Na Ordem reconquistariam a saúde da alma ou, se já a tivessem,
haveriam de conservá-la. Finalmente, entrando na Ordem e nela vivendo até o fim da vida
com dignidade e perseverança, haveriam de obter da Virgem e do seu Filho a graça e a
glória.
Esse foi o seu primeiro estado, assim descrito no livro das Constituições antigas31, que
eles observaram no mundo antes de se unirem em comunidade: «Uma vez que
alguns deles estavam vinculados pelo matrimônio e não podiam, por isso, assumir um
caminho de vida muito austero, escolheram uma via média comum, que pudesse
igualmente ser observada pelos casados e pelos solteiros».
17. O segundo estado, no qual se encontravam antes de iniciar a nossa Ordem, referia-
se à situação social. O progresso material da cidade e dos cidadãos conquista-se através do
comércio de coisas terrenas. Para se obter mais facilmente maiores lucros tinham-se
estabelecido na cidade várias atividades comerciais e artesanais.
Ora, esses sete homens, antes de formarem comunidade, ocupavam-se em permutar e negociar coisas terrenas, segundo as regras da arte mercantil. Quando, porém,
29
São os dons do Espírito Santo que Isaías vê repousarem sobre o Messias (Cf. Is 11,2-3). 30
A divisão da história em sete eras ou idades é tomada de Santo Agostinho (cf. os livros 11-18 de La Città di Dio, in
Opere di sant’Agostino, V/2, Roma 1986; e também Genesi contro i Manichei 1, 23-41, in Opere di sant’Agostino, IX/1,
Roma 1988, p. 107-115), que se inspira nos seis dias da criação e no sétimo dia, o sábado ou o repouso da humanidade. É
uma visão da história amplamente desenvolvida na teologia medieval. 31 Não temos outras notícias desse texto legislativo, do qual o número 18 cita um trecho relativo ao serviço à Virgem
Maria. Servia para regulamentar a vida penitente das pessoas que viviam fora dos conventos.
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descobriram a pérola preciosa32, ou melhor, quando, por meio de Nossa Senhora, aprenderam como descobrir tal pérola, isto é, a nossa Ordem, gerando-a e criando-a para o mundo, através da sua união espiritual e corporal, sob a inspiração do Espírito Santo; e ainda, quando pediram a Nossa Senhora que a Ordem, por meio deles, nascesse e se propagasse pelo mundo, para que estivesse ao alcance de todos os que desejavam servi-la digna e fielmente; então, não só distribuíram tudo o que possuíam aos pobres, segundo o conselho evangélico33, como também, com alegria e determinação, comprometeram-se a servir fielmente a Deus e a Nossa Senhora.
Por isso, de negociantes de coisas terrenas que eram, através de sua união espiritual e corporal, passaram a praticar uma nova profissão34, isto é, a arte de unir as almas a Deus e a Nossa Senhora ou de manter a eles unidas as que assim se encontravam, ensinando-as a servi-los com toda fidelidade.
Tal comércio e tal arte por eles praticados seriam mais tarde levados ao grau mais
elevado de perfeição pelo bem-aventurado Filipe, o qual, da mesma maneira, os transmitiu
aos frades que, depois dele, desejavam servir fielmente a Deus e a Nossa Senhora. E assim
foi que se tornaram negociantes dos bens celestes e enamorados de todas as almas
destinadas à salvação.
Isso com relação a seu segundo estado de vida.
18. Seu terceiro estado de vida, antes do início da Ordem, referia-se à reverência e
veneração que devotavam a Nossa Senhora.
Havia em Florença uma associação dedicada à Virgem Maria, instituída há muitos anos. Existindo na cidade várias outras associações marianas, esta, por sua antiguidade e pelo grande número de homens e mulheres que a compunham, recebeu o nome especial e próprio de "Maior", impondo-se a todas as outras. De tal forma que, embora todas as outras levassem o nome genérico de "Associação de Nossa Senhora", somente esta era chamada pelo nome próprio de "Associação-Mor de Nossa Senhora"35. Era
dessa Associação-Mor que faziam parte, como grandes enamorados de Nossa Senhora,
esses sete homens, iniciadores da nossa Ordem, antes de sua união efetiva.
Nossa Ordem - como já dissemos - nasceu na província de Toscana, na cidade de
Florença e da Associação-Mor de Nossa Senhora. Por isso, nossos frades devem sentir-
se na obrigação de amar de coração sincero e de honrar o lugar e o povo desta
cidade e província e os membros da mencionada associação, e devem, ao mesmo tempo,
rezar sempre e devotamente em favor desses lugares, para que Deus os conserve e
desse povo para que se santifique.
Em contrapartida, os habitantes da província em geral e da cidade de Florença em
particular, bem como os membros da Associação-Mor de Nossa Senhora, conscientes do
grande benefício que a Ordem lhes trouxe, devem, por seu turno, sentir-se na obrigação de
venerar com toda honra os frades da Ordem dos Servos de Santa Maria e toda a Ordem,
em qualquer parte do mundo. Além disso, com suas energias e capacidades, devem fazer o
possível para promover a honra de Nossa Senhora e o bem dos frades.
32
Mt 13, 45-46. 33
Mt 19,21; Lc 12,33 34
Essa nova profissão, assumida por pessoas dedicadas ao serviço de Deus e da Virgem Maria é a arte que os pais
deixaram como herança aos seus filhos, como se diz no nº 1. 35
Esta associação, criada talvez por São Pedro de Verona durante sua permanência em Florença, aparece pela
primeira vez num documento de 28 de março de 1245, no qual Henrique de Baldovino e outros dois leigos, “Servos de Santa
Maria”, doam o hospital de Santa Maria em Fonte Viva à associação da Virgem Maria, cujos membros também se
chamavam “Servos de Santa Maria”.
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Assim como a cidade de Bolonha sente-se enaltecida pelo bem-aventurado Domingos e,
por conseguinte, por ter sido o berço da Ordem dos Frades Pregadores; e assim como a
cidade de Assis sente-se enaltecida pelo bem-aventurado Francisco e, por conseguinte, por ter
sido o berço da Ordem dos Frades Menores; da mesma forma, a cidade de Florença sente-se
particularmente, singularmente e admiravelmente enaltecida pelo bem- aventurado Filipe e
pelos mencionados Sete homens e, por conseguinte, por ter sido o berço da Ordem de Nossa
Senhora.
Segue-se então que assim como os habitantes de Bolonha são levados a exaltar o mais
possível a Ordem dos Pregadores; e os habitantes de Assis, pelo motivo exposto, são
levados a buscar de todo coração favores e benefícios em prol da Ordem dos
frades Menores; da mesma forma os habitantes da província de Toscana e da cidade de
Florença e mais ainda os membros da mencionada Associação-Mor, como prova de
veneração e de louvor a Nossa Senhora, devem proteger e apoiar com todo empenho, em
Florença e em qualquer parte, a Ordem que ali nasceu, bem como promover sua difusão.
Fica assim esclarecido seu terceiro estado de vida relativo à veneração a Nossa
Senhora, que está assim descrito no já citado livrinho das Constituições: «Temendo a sua
imperfeição, acertadamente decidiram colocar a si mesmos e seus corações, com toda
humildade e devoção, aos pés da Rainha do Céu, a gloriosa Virgem Maria, para que ela,
como mediadora e advogada, os reconciliasse com seu Filho e os
recomendasse a ele; e suprindo-lhes, com sua perfeita caridade, as imperfeições,
misericordiosamente lhes suplicasse a fecundidade de méritos. Por isso, colocando-se,
para a glória de Deus, ao serviço da Virgem sua Mãe, quiseram desde então chamar-se
"Servos de Santa Maria" e, aconselhados por pessoas prudentes, assumiram uma regra de
vida própria».
19. Seu quarto estado de vida, antes do início da Ordem, referia-se à perfeição de
suas almas e, por isso, à dignidade da nossa Ordem que seria assim iniciada por
homens perfeitos.
Diante de Deus, perfeita é a pessoa que sabe revestir-se da fé cristã, como se veste um hábito. De fato, só é possível fixar os olhos na vida sobrenatural, que começa com o batismo ou com a penitência, se a verdadeira religião cristã for uma qualidade habitual da pessoa36. Se não acreditarmos - diz Isaías - nem sequer compreenderemos37. E nem tampouco poderemos conhecer tal vida.
O batismo é o sacramento da fé, pois é por meio dele que se adquire a fé, ou melhor,
que Deus infunde a fé. Da mesma forma, a penitência, pela remoção do pecado, é
uma reconquista da fé perdida nas heresias, ou melhor, uma restituição de sua beleza
original, manchada pelo próprio pecado.
Como acima demonstramos, é através da verdadeira fé em Cristo que se conquista a
vida sobrenatural, iniciada no batismo ou na penitência e avalizada pela contemplação da
paixão de Cristo. Por ela, nossa alma se une a Deus e lhe presta um culto digno dele.
36
Literalmente “hábito da religião cristã”. O hábito é um conceito importante da ética aristotélica. O homem, por
sua natureza, é potencialmente capaz de virtudes e vícios; atualiza essa capacidade mediante o exercício, ou
seja, repetindo uma série de atos iguais. A repetição desses atos é o hábito (ethos); o resultado dessa repetição é o
hábito, que fica em nós como uma qualidade ou disposição ou pensamento estável que facilita a realização de outros
atos do mesmo gênero. O hábito da religião cristã é, pois, a orientação vital e estável que a fé, concretamente vivida
e confirmada cada dia, cria na pessoa. 37
Is 7,9. A bem da verdade, o texto bíblico corre assim: "Se não crerdes não permanecereis". Com essas palavras, o
profeta exorta os habitantes de Jerusalém a confiar em Deus, diante do ataque dos reis de Damasco e da Samaria. A LO
adapta as palavras proféticas.
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Nossos veneráveis Pais e iniciadores da Ordem já eram perfeitos antes mesmo de
formarem comunidade para iniciar a Ordem. Praticavam a verdadeira religião cristã
através da penitência voluntariamente assumida, uma vez que nem todos haviam sido fiéis
aos compromissos do batismo. Praticando a verdadeira religião, viviam a vida superior da
graça. Por amor, uniram-se espiritualmente a Deus, ou melhor, com todo empenho,
mantinham-se a ele espiritualmente unidos através da prática do culto divino.
Não há nenhuma dúvida de que eles possuíam a virtude da religião cristã. Para nós, a virtude é uma qualidade habitual, capaz de escolher38, que reside na mente e é ditada pela razão, conforme diz a sabedoria. Ora, esses homens ilustres, pioneiros da nossa Ordem, conhecendo por inspiração divina a virtude da religião e, querendo possuí-la para sempre como uma pérola preciosa que deve ser apreciada e valorizada, despojaram-se completamente de si mesmos e venderam todos os seus bens para comprá-la39.
Além disso, por nortearem, como podiam, todas as suas ações segundo os ditames da razão, seguindo não só os conselhos de pessoas sábias, mas principalmente os ensinamentos misticamente codificados no Evangelho pela Sabedoria eterna, eles certamente praticavam a religião. E agindo de acordo com ela, eram perfeitos diante de Deus e nas obras que praticavam. É a virtude, com efeito, que torna perfeito quem a possui, e bom o seu agir40.
Que eles praticassem a religião deduz-se também do fato que é sinal certo de um hábito a alegria ou a tristeza com que se praticam as obras41. Ora, esses homens ilustres sentiam alegria ou tristeza em todas as suas ações. Toda vez que, ao realizarem determinada ação, se davam conta de estar no caminho certo, vibravam de alegria no Senhor. Ao contrário, se porventura se afastavam do caminho certo ou julgavam estar longe dele, com lágrimas e dor se arrependiam.
Pelos sentimentos de alegria e de tristeza que provavam em suas obras, inspirados
como eram por Deus e ajudados por Nossa Senhora, somos levados a crer firmemente que
praticavam a religião.
20. A prática da verdadeira religião cristã impelia-os à contemplação da vida da graça e da glória. É próprio42
da fé, de fato, levar os que a possuem a contemplar a vida celestial. Eram, pois, tão habituados e naturalmente atraídos, pela prática da religião, a contemplar as coisas celestes, que já haviam escolhido a melhor parte43. Despreocupados das coisas terrenas e aspirando a conhecer os bens celestes e a possuí- los44, buscavam somente a companhia de santos homens voltados para as coisas do céu e com eles se entretinham.
Podiam, pois, com toda convicção, dizer com os apóstolos: "Nós somos cidadãos do
céu"45.
38
Aristóteles, Etica a Nicomaco, II, 6: “A virtude é, portanto, um hábito eletivo, que consiste para nós no justo meio,
determinado pela razão segundo o pode determinar uma pessoa sábia”. Em vez de usar a expressão no justo meio, a
LO traz na mente. Essa definição da virtude foi depois assumida por São Tomás de Aquino (Summa Teologica I-II, q. 58,
art. II, n. 4). 39
Mt 13,45-46. 40
Etica a Nicomaco, II, 6 41
Etica a Nicomaco, II, 3.
42 O texto traz um termo difícil, isso é, domina, devido talvez a uma interpretação errônea do copista ou, mais
provavelmente, à fonte aristotélica. 43
Cf Lc 10,38-42. 44
“Conhecer e possuir somente as coisas celestes” é uma variante de vacare Deo, isso é, ser livres de tudo para
dedicar-se inteiramente a Deus. É uma expressão corrente na Idade Média para indicar o compromisso e o
significado da contemplação. Sobre “vacare contemplationi” (dedicar-se à contemplação) cf. nº 30 da LO. 45
Fl 3,20.
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Por isso, o amor à vida celestial que eles conheceram através da contemplação, unia-
os totalmente e cordialmente a Deus; ou melhor, estando já a ele unidos, desejavam assim
permanecer para sempre.
Unidos a Deus pelos vínculos da caridade, temiam como um grande suplício separar-se
dele e mal suportavam continuar ainda a viver, desejando com grande alegria a morte para
se juntarem a ele. Destarte, unidos como eram a Deus, podiam dizer com o apóstolo:
"Desejamos partir para estar com Cristo"46.
21. Finalmente, vivendo unidos a Deus e tornando-se perfeitos na virtude da religião,
para conservar essa perfeição através da prática das obras, viviam constantemente
ocupados com o culto divino.
Há, porém, dois tipos de culto divino: um é genérico, isto é, comum a todos os
que, estando no mundo, depois do batismo ou pelo menos depois de praticarem a
penitência, desejam manter-se longe do pecado; o outro é próprio daqueles que passam
para o estado religioso, no qual se mantêm longe do pecado e se vinculam com os três
votos religiosos, assumindo o compromisso de ocupar-se exclusivamente do culto divino.
Ora, esses homens religiosos, pioneiros da nossa Ordem, quando estavam no mundo, embora não estivessem ainda perfeitamente unidos a Deus, pelo fato de praticarem o primeiro modelo de culto divino, amavam a Deus sobre todas as coisas47
e para ele orientavam tudo o que faziam, honrando-o com seus pensamentos, palavras e obras.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que ofereciam a Deus todas as suas boas ações e
as reconheciam como obra de Deus, ao praticarem esse primeiro modelo genérico de culto
divino, preparavam-se para o segundo modelo específico, isto é, para a sua vida em
comunidade e para os três votos religiosos. Em outras palavras, preparavam-se para
cumprir a obrigação perpétua da obediência, da castidade e da pobreza, e o compromisso
voluntário de se dedicarem unicamente ao serviço de Nossa Senhora.
Capítulo IV
Por que foram escolhidos Sete para iniciar a Ordem?
Sua Perfeição e os três nomes da Ordem
22. Eminentes foram, portanto, meus irmãos, e dignos de honra esses nossos ilustres
Pais, pioneiros da Ordem, antes de se unirem em comunidade. Quão sublimes são sua
dignidade e nobreza! Todos deveriam refletir sobre isso com reverência. Foram, na
verdade, tais e de tão grandes méritos diante de Nossa Senhora, que ela quis por meio
deles iniciar a Ordem dos seus Servos.
"Sim, vós sois admiráveis porque, por vosso resplendor, como verdadeiras estrelas
Plêiades da nossa perfeição, fostes reunidos por Nossa Senhora, em corpo e alma, para
iniciar a sua Ordem, a fim de desatar espiritualmente os laços do Órion, ao redor do qual
transitam os ímpios, e de traçar o caminho reto que conduz à glória celeste".
Sete são as estrelas Plêiades da constelação de Touro, em cujo signo o sol entra aos
15 de abril. Por isso, elas começam a aparecer na primavera, quando o sol é mais quente
e, com seus raios, fende a terra e a torna arável, faz florescer as plantas e tudo faz
germinar. Da mesma forma, esses homens ilustres, pioneiros da nossa Ordem,
quais sete Plêiades espirituais, trouxeram ao mundo um tempo de primavera espiritual.
46
Fl 1,23 47
Dt 6,5; Mt 22,37. Cf. o começo da Regra de Santo Agostinho: “Antes de tudo, amai a Deus”.
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Isso aconteceu quando Cristo, luz do mundo, mediante os dois supracitados luminares
- os bem-aventurados Domingos e Francisco - começou a iluminar a terra com maior
intensidade, expandindo seus raios e aquecendo-a48. Com isso, mediante a palavra da
pregação e o testemunho da humildade, antes quase extinta, diminuía o frio da infidelidade
e reacendia-se o calor da caridade. E o terreno do coração humano abria-se para o sol da
justiça, possibilitando a ação desses autênticos arados, postos nas
mãos de Deus para abrir os corações.
Era o tempo em que as duas árvores - isto é, as duas Ordens -, plantadas pelos
bem-aventurados Domingos e Francisco, estando eles ainda vivos, começavam a florir de
virtudes e dar frutos, produzindo intrépidos combatentes contra as heresias.
Com o passar do tempo, nossos Primeiros Pais - como dissemos - alcançaram
grande perfeição e acumularam méritos diante de Deus. Quando nasceu o bem- aventurado
Filipe, no ano do Senhor de 1233, iluminados pelos dois supracitados luminares e pelos
frades de suas Ordens, já haviam alcançado tal perfeição que começaram a pregar
abertamente a palavra de Deus. Dessa forma, eles também se tornaram verdadeiras estrelas
espirituais a propagar a palavra de Deus e o exemplo de sua vida humilde. Dessa forma,
atraíam outros ao estado de perfeição.
Sinal evidente da perfeição e da religiosidade deles é o fato que Nossa Senhora quis,
por meio deles, iniciar a Ordem dos seus Servos.
Se não tivessem alcançado um grau de santidade mais elevado do que os outros e se
não fossem considerados por Nossa Senhora e por seu Filho mais dignos de todos para
iniciar a Ordem, sem dúvida, quando lhe aprouve iniciar a Ordem, Nossa Senhora não os
teria escolhido, mas teria preferido a outros para realizar a grande obra de fundar tão
excelsa Ordem, a si consagrada e que trazia o seu nome.
23. Não há nenhuma contradição entre o que dissemos acerca de sua perfeição e
santidade e o fato de não termos narrado nenhum milagre por eles operado em vida, na
hora da morte ou pelo menos depois da morte.
De fato, todos ou alguns deles podem até ter operado muitos milagres em seu tempo.
Não é improvável, porém, que devido à distância dos anos e à morte dos frades mais
antigos da Ordem, nenhum desses milagres tenha chegado ao nosso
conhecimento para ser divulgado.
Outra razão é que o poder de operar milagres não é um sinal seguro e específico de
perfeição e de religiosidade. Se assim fosse, ninguém poderia ser considerado perfeito ou
autêntico religioso, se, por seu intermédio, Deus não operasse milagres. Isso,
naturalmente, é falso.
É próprio dos religiosos perfeitos e autênticos amar a Deus sobre todas as coisas,
praticar a caridade com todos e ser humildes de coração. Por isso, Nosso Senhor não disse
para aprender dele a ressuscitar os mortos e dar a vista aos cegos, mas disse: "Aprendei de
mim, que sou manso e humilde de coração"49; e disse também: "Dei-vos o exemplo que vos
ameis uns aos outros como eu vos tenho amado"50.
Muitos, no dia do juízo, para pretextar sua perfeição e religiosidade, aduzindo o sinal
48
A literatura do tempo interpretava a renovação operada por Francisco e Domingos como uma nova estação da
história da Igreja, marcada pelos dons do Espírito, segundo a profecia de Gioacchino da Fiore (morto em 1202), que
tiveram grande ressonância principalmente no mundo franciscano. 49
Mt 11,29. O texto é interpretado segundo um comentário feito por Santo Agostinho, Discorso 69, 2 (in Opere di
sant’Agostino, XXX/1, Roma, 1982, p. 384-385). 50
Jo 13,15.34
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dos milagres, dirão: "Senhor, em teu nome expulsamos demônios, ressuscitamos mortos"51
e assim por diante. Ora, para provar que fazer milagres é um sinal falaz de perfeição e
de religiosidade, Cristo lhes dirá: "Em verdade vos digo: não vos conheço52. Afastai-
vos de mim, vós que praticais a iniqüidade”53.
Portanto, se operar milagres fosse um sinal evidente de perfeição e de
religiosidade, certamente eles não receberiam como resposta essas terríveis palavras.
24. Há ainda outra razão particular e muito importante que explica porque,
embora fossem homens perfeitos, não temos nenhuma notícia de milagres por eles
operados. Recordo-me de tê-la mencionado acima.
Nossa Senhora não quis que o iniciador de sua Ordem fosse algum homem santo e
perfeito, operador de milagres evidentes, para mostrar que só ela é a fundadora desta
Ordem consagrada em modo particular ao seu nome. Isso não aconteceu casualmente ou
sem motivo, mas devemos crer que foi por uma especial disposição de Deus e de Nossa
Senhora. Como todas as Ordens levam justamente o nome do seu principal fundador,
convinha que a Ordem de Nossa Senhora tomasse o nome dela, e que ninguém fosse
considerado fundador a não ser ela mesma. Isso será comprovado pelo que direi a seguir.
Se a fundação da Ordem se devesse atribuir a algum outro que não fosse Nossa
Senhora, certamente deveria ser creditada aos Sete, quer pela santidade deles, quer por
terem sido os primeiros da Ordem. No entanto, como eu mesmo ouvi de frei Aleixo, um
dos Sete primeiros Pais, que costumava dizê-lo freqüentemente aos frades, a fundação da
Ordem não se pode atribuir, de maneira alguma, nem aos primeiros Sete frades como
grupo, nem a algum deles individualmente.
Estas são as palavras que ele me disse e que costumava repetir com freqüência aos
outros frades: "Jamais - dizia ele - foi minha intenção e de meus companheiros fundar uma
nova Ordem; nem sequer imaginávamos que da nossa união - minha e dos meus
companheiros - devesse germinar tão grande número de frades. Eu e meus companheiros
acreditávamos ter sido reunidos por inspiração divina, unicamente para que, abandonando
o mundo material, pudéssemos mais fácil e dignamente cumprir a vontade do Senhor.
Tudo isso deve-se atribuir exclusivamente a Nossa Senhora. É dela, portanto, que
nossa Ordem deve tomar o nome, chamando-se «Ordem da bem- aventurada Virgem
Maria»".
25. O fato - já mencionado - de a nossa Ordem se chamar também «Ordem dos
frades Servos da bem-aventurada Virgem Maria» não se opõe ao que acima dissemos. A
bem da verdade, ela tem três nomes: um genérico, tomado da regra; outro derivado da
atividade específica dos seus membros; e o terceiro, enfim, o nome próprio de Nossa
Senhora, a fundadora.
Também a Ordem dos Pregadores, por exemplo, tem um nome genérico tomado da
regra, isto é, «Ordem de Santo Agostinho»; tem outro nome especial, derivado da
atividade dos seus membros, isto é, «Ordem dos frades Pregadores»; e tem,
finalmente, um terceiro nome próprio, tomado do seu fundador, isto é, «Ordem dos
Dominicanos».
De forma semelhante, nossa Ordem tem, a seu modo, três nomes. Um primeiro
nome genérico, tomado da Regra de Santo Agostinho, assumida pelos iniciadores da nossa
51
Mt 7,22. 52
Mt 25,12. 53
Mt 7,23
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Ordem: daí «Ordem de Santo Agostinho»54. Outro nome especial, derivado da atividade
dos seus membros: daí «Ordem dos frades Servos da bem-aventurada Virgem
Maria». E, por fim, um terceiro nome próprio, tomado de Nossa Senhora, sua fundadora:
daí «Ordem da bem-aventurada Virgem Maria».
Concluímos, pois, logicamente, que nossa Ordem se chama «Ordem da bem- aventurada Virgem Maria». Embora se chame genericamente «Ordem de Santo
Agostinho» e especificamente «Ordem dos Servos da bem-aventurada Virgem Maria»,
todavia, deve com maior propriedade e singularidade chamar-se - como razoavelmente
explicamos - «Ordem da bem-aventurada Virgem Maria».
Capítulo V
Vida e morte de Frei Aleixo um dos Sete Primeiros Pais e
por que sobreviveu tantos anos55
26. Havia, pois, sete homens de tão grande perfeição - como já dissemos - que
Nossa Senhora houve por bem iniciar, por meio deles, a sua Ordem. Nenhum outro
encontrei vivo quando ingressei na Ordem, a não ser um que se chamava frei Aleixo, cujo
nome já mencionei anteriormente. Aprouve a Nossa Senhora mantê-lo vivo até nossos
dias, para que ouvíssemos de sua boca a história da origem da nossa Ordem, e pudéssemos
registrar a memória dos fatos para os frades que haveriam de suceder-se até o juízo
final.
Desejando, pois, que, morto frei Aleixo, não se perdessem irremediavelmente as
memórias e as notícias referentes à origem da Ordem, e para evitar que nós, vivendo no
seu tempo, pudéssemos ser acusados de ingratidão se não o fizéssemos, eu o interroguei
muitas vezes sobre a origem da nossa Ordem.
Um dia, tendo ido de propósito visitá-lo em sua cela, com o intuito de ouvir dele
quando acima relatei, eu o interroguei acurada e ansiosamente, em forma ordenada e
distinta, da melhor maneira que me foi possível, acerca de tudo o que substancialmente se
referia à origem da Ordem. Depois, escrevi ordenadamente num papel, do meu próprio
punho, o que havia conseguido colher de suas respostas.
Esse escrito, eu o li e reli muitas vezes com atenção, analisando e meditando seu
conteúdo, para conservá-lo na memória. Um dia, por inveja do diabo56, estando eu por
acaso sentado junto ao poço do convento de Sena57, e estando a lê-lo com muita
reverência, pois sempre o trazia comigo, improvisamente me fugiu das mãos e, revoando
pelo ar, acabou caindo no poço, para minha grande tristeza.
Em que pese a perda desse escrito e a distância dos anos que me levaram a esquecer
muitas coisas nele contidas, o que é essencial sobre a origem da Ordem -
como ouvi de frei Aleixo - sempre o guardei na memória, e agora, por vontade de
54
Por Regra de Santo Agostinho entendia-se, então, o texto legislativo atribuído ao santo (Regra dos Servos de Deus), ao
qual se havia anteposto o início do assim-chamado Ordo monasterii – um texto da mesma época, também atribuído a
Santo Agostinho: “Antes de tudo, irmãos caríssimos, amai a Deus e depois ao próximo, pois são estes os principais
mandamentos que nos foram dados”. Foi Ardingo, bispo de Florença, que, entre 1243 e 1247, concedeu aos frades de
Monte Senário a primeira aprovação dos “Estatutos” comunitários que deviam ser observados “para sempre, sob a Regra de
Santo Agostinho”. 55
O título continuava com um inciso (“e o nome dos seus companheiros e a data da morte deles”) que o copista
apagou com uma seqüência de pontos, porque já não correspondia ao conteúdo do capítulo. 56
Cf. Sb 2,24. 57
O convento de Santa Maria ou de São Clemente, em Sena, foi fundado em 1250, sob o patrocínio do bispo local,
Bonfilho, em data bem próxima à fundação do convento de Cafaggio, em Florença. Cafaggio e Sena são as duas
primeiras irradiações da comunidade de Monte Senário
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Nossa Senhora que a isso particularmente me impele, transcrevo-o com absoluta
fidelidade, legando-o à história como um valioso tesouro, desejado pelos frades que
hão de vir.
27. Tal era a vida de frei Aleixo, como eu mesmo pude constatar e ver com meus
próprios olhos, que arrastava os outros com seu exemplo e testemunhava a perfeição e a
religiosidade sua e dos seus companheiros.
Já idoso e doente, e tendo suportado por longos anos na Ordem "o peso do dia e do
calor"58, mesmo assim não procurava, como seria natural, comida especial, devido à sua
precária saúde, nem roupas que o aquecessem ou cama macia. Pelo contrário, nem fazia
conta disso, o que provava toda sua perfeição e religiosidade.
Jamais pedia comida especial. Comia sempre no refeitório comum, satisfeito com o
que era servido a toda a comunidade. Nos dias em que estava mais fraco e abatido e não
podia ir ao refeitório comum, de maneira alguma aceitava comida diferente, contentando-se
com o que era servido a todos. No máximo, recolhia algumas verduras na horta e com
elas se alimentava, a fim de aquecer seu corpo alquebrado, sem buscar melhor comida.
Detestava roupas delicadas. No vestir, procurava o meio termo, usando roupas que
não fossem nem miseráveis nem luxuosas59. Para seu corpo doente e fraco seria natural um
leito macio e confortável. Pelo contrário - como lembram os que com ele conviveram -
usava tábuas em lugar do colchão60 e pano grosseiro em lugar dos lençóis.
Não fugia aos trabalhos manuais, o que seria normal na sua idade, mas a eles se
dedicava muito além de suas forças. Mesmo suscitando o desagrado dos confrades,
buscava-os com ardor e neles punha todo seu esforço.
Em seus atos, palavras e obras, deixava transparecer toda a sua humildade e caridade.
Embora tivesse alcançado grande perfeição e fosse tido em muita honra e consideração
por todos os confrades (era um dos primeiros Sete, por cujo intermédio Nossa Senhora
quisera iniciar a sua Ordem), nem por isso abandonou qualquer expressão do seu viver
modesto.
Dentro de suas possibilidades, esforçava-se, como o menor dos frades, para cumprir
todos os ofícios comuns, ainda que pesados e humildes. Assim, até que pode, quando
chegava a sua vez, embora os outros frades tentassem impedi-lo, saía para esmolar o que a
comunidade necessitava para seu sustento, suportando o peso do trabalho como qualquer
dos frades mais fortes e mais recentemente chegados.
Como qualquer outro frade, esforçava-se também para realizar todos os trabalhos do
convento, embora fossem humildes na apreciação comum. Destarte, mostrava todo o
amor que tinha pelos irmãos e a humildade do seu coração, deixando um exemplo a ser
imitado por todos os frades que desejam servir fielmente a Nossa Senhora.
28. Tendo chegado a uma idade avançada e vendo com os próprios olhos o
crescimento da Ordem, o grande número e a santidade dos frades, ele estava seguro e feliz
de receber de sua Senhora, a Virgem Maria, o prêmio do seu fiel serviço.
Chegando, pois, ao fim da vida - como me disse frei Lapo de Florença, sobrinho de
frei Sóstenes, que estava presente no momento da morte de frei Aleixo -, para provar
58
Mt 20,12. 59
Cf. Mt 11,8. 60
As Constituições antigas autorizavam os doentes a usar colchão (cap. XI). Com relação ao regime frugal, humilde e
penitente de frei Aleixo, cf. também as prescrições das mesmas Constituições antigas referentes ao jejum (cap. VII) , à
comida (cap. VIII) e às vestes (cap. XII).
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como ele e seus companheiros eram perfeitos e santos, antes de passar para a outra vida,
frei Aleixo teve uma visão. Cristo, na figura de um lindo menino com uma coroa de ouro
na cabeça, vinha ao seu encontro, rodeado de anjos em forma de passarinhos de
indescritível candura e beleza. Gritando em alta voz, frei Aleixo apontava aos frades o que
estava vendo.
Viveu quase 110 anos e chegou ao ano de 1310 do nascimento do Senhor. Por
isso, tomando a data em que ele e seus companheiros se uniram para iniciar a Ordem e
relacionando-a com o ano de sua morte, deduz-se que frei Aleixo viveu quase 77 anos na
Ordem61.
Capítulo VI
União espiritual dos Sete no mundo
Sua preparação e efetiva união em comunidade
29. Os Sete viviam em Florença, cada um em sua casa, e tinham alcançado tão
grande perfeição e religiosidade que foram considerados dignos de ser escolhidos por
Nossa Senhora para iniciar a sua Ordem. Residindo, porém, em áreas diferentes da cidade,
não se conheciam entre si. Mas, graças a Nossa Senhora, que os preparava para iniciar a
sua Ordem, eles, por iniciativa própria e pelos freqüentes encontros de negócios, acabaram
se unindo por profunda amizade e por laços de amor62, primeiro
um ao outro, e depois os Sete juntos.
Era justo que eles, já identificados pela mesma perfeição e religiosidade, se unissem
também pelos vínculos do amor e da amizade espiritual, posto que, algum tempo depois,
Nossa Senhora haveria de reuni-los para instituir a nossa Ordem.
Um sinal certo de que eles já estavam perfeitamente unidos por profunda amizade de
caridade, com a intenção de instituir a nossa Ordem, é o fato que essa amizade fundada na
caridade os levou a viver plenamente concordes, com benevolência e amor, nas coisas
divinas e humanas, segundo a vontade de Deus. Já não podiam suportar a ausência
temporária entre eles e nem tolerar, sem grave incômodo, de ser separados um do
outro, sequer por uma hora.
Sua mente, que os mantinha unidos e os levava a se comprazer mutuamente nas coisas
divinas e humanas, inspirou-os também a abandonar tudo e deixar definitivamente de
lado as coisas terrenas. Movidos por esse firme propósito, decidiram viver juntos
sob o mesmo teto, comungando espiritual e fisicamente uns com os outros e
edificando-se mutuamente com bons exemplos, palavras e obras, a fim de poderem um
dia, na glória celeste, juntar-se em corpo e alma a Cristo, por cujo amor se haviam
feito amigos uns dos outros.
30. Movidos, pois, por inspiração divina, assumiram o firme propósito de se reunir em
comunidade, vivendo em penitência até a morte, para a salvação de suas almas. Fizeram-no
não por leviandade ou casualmente, mas depois de madura e firme deliberação, induzidos
particularmente por Nossa Senhora.
Com consciente responsabilidade e não pouca solicitude, tomaram todas as
providências necessárias para poderem, com justiça e liberdade, alcançar o próprio intento
e, uma vez alcançado, passar o resto da vida servindo ao Senhor e cumprindo a sua
61
O parágrafo terminava com uma frase incompleta, apagada depois pelo copista com uma seqüência de pontos: “os
nomes dos seis companheiros de frei Aleixo (que) com ele (deram início à) nossa Ordem...”. 62
Os 11,4.
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vontade.
Por isso, querendo primeiramente desprender-se de tudo, para poderem alcançar, com
liberdade e justiça, a tão desejada união, acertaram a situação de suas casas e
famílias, deixando-lhes o necessário para viver e, para o bem de suas almas,
distribuíram o resto aos pobres e às igrejas, decididos a não reservar absolutamente
nada para si no momento de sua união.
Os que dentre eles eram casados, livrando-se dos laços matrimoniais com o
consentimento das esposas, como manda o Direito, permitiram que elas também, se
quisessem, se consagrassem ao serviço divino.
Cada um deles, em sua casa, preparou-se para tudo o que haveria de ajudá-los a se
manterem perseverantes no serviço do Senhor quando se unissem em comunidade. Por
longo tempo, com constantes exercícios e autodisciplina, foram se habituando a tudo o
que deveriam observar quando estivessem vivendo juntos.
Deixando de lado as roupas de luxo, passaram a usar roupas mais simples: primeiro,
uma túnica de pano e uma capa; depois, tiraram as camisas de linho e passaram a usar
cilícios sobre a carne. Sóbrios no comer e no beber, tomavam só o que era estritamente necessário.
Desprezavam terminantemente os atrativos da carne e viviam a castidade perfeita.
Dominando seus pensamentos, palavras e ações, mantinham-nos dentro dos justos limites,
evitando o excesso e o defeito.
Viviam em oração dia e noite, aprendendo assim a agradar só a Deus. Detestavam a
agitação do mundo e as companhias mundanas e recolhiam-se em igrejas ou lugares
solitários, onde pudessem mais facilmente dedicar-se à contemplação.
Por fim, procuraram homens prudentes, de vida reta e de bons costumes, com os quais
pudessem encontrar-se amiúde, buscando apoio para seus propósitos, segundo a vontade
de Deus. A eles, abriam o coração e revelavam todos os seus pensamentos e intentos.
31. Achando-se, pois, espiritual e materialmente separados do mundo e
totalmente desapegados dele, estavam prontos para pôr em prática, sem escrúpulo de
consciência, seus planos. Além disso, já se haviam habituado pela disciplina a praticar
tudo o que deveriam observar quando estivessem em comunidade.
Por isso, no dia marcado, inspirados sobrenaturalmente por Nossa Senhora, com muito
respeito e temor de Deus, após uma fervorosa oração que brotava do fundo do coração,
eles, que até então estavam unidos espiritualmente, passaram a viver juntos sob o mesmo
teto, concretizando assim o ardente desejo que há tempo acalentavam.
Havia, fora das portas da cidade de Florença, uma pequena casa, situada ao lado do
cemitério dos Frades Menores, à direita da igreja, de frente para a praça. Esses frades,
sendo sua Ordem de recente fundação, não haviam ainda ocupado todo o espaço do
cemitério. Foi ali, nessa pequena casa, que os Sete, no dia marcado, isto é, quando nasceu
o bem-aventurado Filipe, realizaram o seu desejo de unir-se em comunidade, iniciando a
Ordem da bem-aventurada Virgem Maria e dos seus Servos.
Capítulo VII
Desde o início são chamados pelo
nome próprio da nossa Ordem
32. Coisa admirável, irmãos meus, que nossos frades não podem ignorar, mas devem
ter sempre em grande apreço. Desde o início da nossa Ordem, isto é, quando nossos
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ilustres primeiros Pais se reuniram em comunidade para dar-lhe início, logo passaram
a ser popularmente chamados pelo nome de "frades Servos de bem- aventurada Virgem
Maria", sem que eles soubessem de onde e de quem viera tal nome.
Daí se deduz que, no princípio, de nenhum outro eles receberam esse nome a não ser
de Nossa Senhora mesma, a bem-aventurada Virgem Maria, mediante a voz do povo, o
qual, inspirado por Deus, aprovava e aclamava tal nome, que não fora inventado por mente
humana.
Como Nossa Senhora não quisera que a origem da Ordem fosse propriamente
atribuída a algum homem, da mesma forma era justo que o nome da Ordem dos seus
frades não fosse escolhido e dado por outro, a não ser por ela mesma e seu Filho.
Foi, pois, vontade de Nossa Senhora que esse nome por ela escolhido se tornasse
comum na boca do povo. Desde o princípio, quando os primeiros frades da sua Ordem, os
nossos Pais, passaram a viver em comunidade, começaram a ser chamados
popularmente de seus Servos.
33. Que esse nome não tenha sido dado ou escolhido por uma pessoa qualquer,
mas por Nossa Senhora mesma, deduz-se também do que se dirá a seguir. Tendo eu
interrogado frei Aleixo, entre outras coisas, também acerca do nome da Ordem, donde se
originara, ele assim me respondeu: "Nunca ouvi falar - dizia ele - e jamais eu e meus
companheiros tomamos conhecimento de alguma pessoa que, por primeiro, nos tenha
dado esse nome. Por isso, isso só pode ter sido obra de Nossa Senhora. Como me
recordo, assim também acreditavam e confirmavam os outros meus companheiros e
irmãos".
Se o nome lhes tivesse sido dado por alguma pessoa, ninguém poderia pensar que não
o soubesse frei Aleixo, um dos primeiros Sete que, reunindo-se em comunidade, iniciaram
a Ordem. Devem, pois, nossos frades crer com firmeza e afirmar com segurança, por
palavras e obras, para não serem acusados de ingratidão diante de tão grande dádiva, que o
nome foi originariamente escolhido por Nossa Senhora, a Virgem Maria, e por ela
benignamente dado aos frades de sua Ordem.
De resto, que esta seja a verdade dos fatos, Nossa Senhora mesma o comprovou -
como diremos em seguida - quando, aparecendo em visão a seu devoto, o bem- aventurado
Pedro Mártir, indicou-lhe o hábito que trazemos e a regra que professamos e confirmou o
nome da Ordem, que ela mesma havia escolhido desde o início.
34. Meus irmãos e meus pais, cumpre-nos considerar com atenção e apreço o fato de
termos assumido, na profissão, o honroso nome de Servos de Maria, e avaliar com cuidado
se estamos prestando a tão grande Senhora a honra que lhe é devida.
Os que trazem o nome de Nossa Senhora com seriedade e pureza de coração e lhe
prestam a devida honra e serviço, estes enaltecem sua Ordem acima das outras. Por outro
lado, os que trazem esse nome indignamente, com leviandade e impureza de coração, e
não se cuidam de prestar a devida honra a Nossa Senhora, estes, por aquilo mesmo que
são, envergonham e desonram a Ordem da Virgem Maria.
Reflitamos, pois, com toda humildade, sobre a grandeza do nome que nos foi dado
por Nossa Senhora e, empenhando-nos em servir dignamente a tão excelsa Virgem
Mãe e Senhora nossa, apresentemo-nos diante dela com a devida reverência e temor, puros
de corpo e alma.
Mostraremos assim a todos - como é nosso dever - a dignidade da nossa Ordem e
haveremos de receber um dia da Virgem Maria o merecido prêmio do nosso serviço,
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reservado àqueles que a servem com fidelidade.
Capítulo VIII
Eram perfeitos no amor a Deus, a
si mesmos e ao próximo
35. Deus os tratava com especial atenção e, segundo as três coisas acima
citadas63, ajudava-os em tudo e por tudo. Por isso, estando juntos em comunidade,
como primeiro passo, orientaram o seu coração para o cumprimento do preceito do amor
bem ordenado64. Amavam a Deus de todo o coração, concentravam nele todo o afeto e, mantendo-
se a ele intimamente unidos, nada mais desejavam senão viver para ele e por ele.
Da mesma forma, orientavam todas as suas atividades físicas e sentimentos para a
glória de Deus, e referindo a ele as suas ações interiores e as boas obras que
praticavam, amavam-no inefavelmente com toda a sua alma.
Por fim, orientando para o serviço de Deus tudo o que conseguiam alcançar e descobrir
com sua inteligência e raciocínio, e desejando servi-lo sempre com santo temor como seu
próprio Senhor, amavam-no sem trégua com toda a sua mente65.
36. Amavam na justa medida a sua alma. Em primeiro lugar, fortaleciam-na na
luta contra a carne pela prática da penitência, a fim de que os desejos da carne não
submetessem o espírito ao seu domínio66.
Em segundo lugar, obedecendo aos impulsos da alma no caminho das virtudes,
nele se portavam com discrição, a fim de que, movendo-se diretamente para onde o
Espírito os conduzia67, obrigassem a carne a segui-lo.
Em terceiro lugar, serviam-na no íntimo de sua consciência68, protegendo a porta do
tálamo contra a entrada do perigo, isto é, dos sentidos, para que não se abrisse
imprudentemente, permitindo que as preocupações mundanas entrassem sorrateiramente
para perturbar a intimidade da cela da contemplação.
Também em relação ao seu corpo eles se portavam com caridade. Nutriam-no com o
alimento necessário, para que não se recusasse a carregar o peso da penitência. Além disso,
rédeas na mão, obrigavam-no a seguir a vontade da alma, para mantê-lo sempre
sob uma disciplina salutar. Por fim, impunham-lhe discretamente o jugo da penitência,
para que, sentindo-se livre como o potro de um cavalo selvagem, não se entregasse ao
mal69.
37. Por fim, na prática da caridade, tinham em mira também o próximo. Em primeiro
63
Parece que essas “três coisas acima citadas” referem-se ao nº 31, onde se diz que a vida comum dos Sete só
começou depois de cumpridas três condições: libertar-se completamente do mundo, dispor dos bens e das famílias
segundo a justiça e completar o tirocínio nas próprias casas.
64 Sobre “o amor bem ordenado” cf. Santo Agostinho, La Città di Dio 15,22; 19, 13 (in Opere di sant’Agostino, v/2,
p. 437-439; v/3, p. 50-53); La dottrina cirstiana 1, 22-41 (in Opere di sant’Agostino, VIII, Roma 1992, p.
32-35). 65
Dt 6,5; Mt 22,37. 66
Gl 5,17. 67
Ez 1,12 68
Literalmente “no leito da consciência”, uma alusão a Ct 3,1. 69
A penitência corporal dos Sete é descrita à luz de várias passagens da Escritura: Eclo 33,25 (o alimento necessário);
Sl 44,7 (o cetro da justiça); Jó 11,12 (o potro). Norma reguladora da penitência corporal é a discrição (equilíbrio), ideal
da grande tradição monástica.
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lugar, procuravam conhecer suas necessidades e, tomados de compaixão, com
sentimentos de piedade e segundo as possibilidades, acudiam aos necessitados no corpo e
no espírito.
Em segundo lugar, considerando o próximo como irmão, e socorrendo-o como se o
fizessem a si mesmos, perdoavam-lhe as ofensas recebidas.
Em terceiro lugar, conhecendo o estado de espírito do próximo, alegravam-se com os
justos, confirmando-os no caminho da justiça, e sofriam com os pecadores, induzindo-os à
conversão, para que não sucumbissem ao peso de suas misérias.
38. Amavam, portanto, a Deus, à sua alma, ao próximo e a si mesmos - como
dissemos - com caridade bem ordenada. Totalmente unidos a Deus pelos laços do
amor, empenhavam todas as suas forças na prática das boas obras.
Contra as ofensas recebidas, eram fortes na paciência, tudo suportando com serenidade.
Contra a sensualidade da vida, eram austeros na continência, afastando as seduções da
carne e do mundo. Contra a preguiça, eram fervorosos no sofrimento, evitando assim a
tibieza do espírito. Contra a ignorância, eram ricos em bondade e, distribuindo os bens
materiais aos necessitados, a todos edificavam. Contra as vaidades humanas, eram
prudentemente cautos, não buscando honrarias e nem sequer se preocupando de exigir o
que lhes pertencia. Por fim, contra a inconstância do espírito, eram firmes na perseverança,
considerando um grave suplício estar separados do amor de Cristo.
39. Conservando-se pequenos na humildade, como os fortes, possuíam no seu interior profundas raízes de amor. Podiam assim dizer como Davi: «Ardentemente te amo, Senhor, minha força, etc.»70. Sustentados pela esperança dos bens eternos, como os fortes, empunhavam a bandeira do amor, prontos a enfrentar as provações, podendo assim exclamar como Jó: «Embora meu Criador me mate, continuarei esperando nele»71. Por fim, transbordantes de amor, alcançavam, como os mais fortes, o vértice da caridade, alegrando-se com as afrontas, e considerando-se felizes por sofrer com Cristo. E, como os Apóstolos ao sair do Sinédrio, regozijavam-se na mente e no coração72
e caminhavam decididamente para frente.
Como as virgens prudentes73, traziam consigo as lâmpadas preparadas.
Tinham, de fato, um vaso de ouro, isto é, o seu coração puro, e nele preparavam a
morada para o amado. Enchiam o seu vaso de azeite, isto é, o seu coração de
devoção, e assim, alegres, o esperavam. Mantinham acesa a lâmpada do coração
com o calor do fogo, isto é, com o desejo ardente que os impelia a ir ao encontro de
Cristo, que vinha morar em seu coração. Por fim, ornavam a lâmpada do coração
com raios de luz, isto é, com os exemplos que transmitiam ao próximo e com a
contemplação das coisas eternas, mediante as quais, com o brilho de suas lágrimas,
abriam o coração a Cristo que estava à porta. Recebendo-o em seu coração,
usufruíam os dons da sua graça e alegravam-se74 com a presença de tão sublime
70
Sl 18,2. 71
Jó 13,15. O acréscimo “meu Criador” é próprio da LO, que pode ter feito a citação baseando-se no sentido de fundo
do termo (como acontece outras vezes), tendo em conta outras passagens de Jó, onde se utiliza o mesmo termo (4, 17,
32,22). 72
A passagem de Mt 25, 1-10 é combinada com Lc 12,35-36. No número 46 da LO, sem qualquer referência à
parábola das virgens, retoma-se essa espera ardente dos Sete, que se havia propagado de tal maneira que atraía muita
gente a Monte Senário. 73
Cf. Mt 25,1-10. 74
Cf. Ef 4,14.
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esposo.
Por isso, sendo para os outros modelos de santidade, com o seu exemplo,
inflamavam-nos de caridade e impeliam-nos com entusiasmo a amar a Cristo.
Capítulo IX
Devido ao excessivo afluxo de pessoas
mudam-se para o Monte Senário
40. Eram tão perfeitamente ordenados no amor a Deus, ao próximo e a si
mesmos, que despertaram a veneração no povo. Diariamente acorriam a eles homens e
mulheres que, desejosos de obter seu patrocínio e de ser orientados por suas santas
palavras e exemplos, pediam-lhes a ajuda da oração e a orientação dos seus conselhos.
Ocupados, pois, com o grande número de pessoas que vinham visitá-los, e impedidos
no seu desejo de contemplação, sentiam-se incomodados. Nossos ilustres Pais começaram
a perceber que, tendo saído de sua terra por haverem dominado os desejos da carne, e
tendo-se separado da sua parentela por haverem afastado qualquer dúvida que pudesse
desviá-los do caminho, sentiam-se agora impedidos, por essas
visitas, de prosseguir rumo à terra que o Senhor lhes tinha mostrado.
Por isso, da mesma maneira como se afastaram da sua terra e parentela, isto é, dos
prazeres da carne e da incerteza nas decisões75, decidiram afastar-se também da casa do
pai76, cortando todas as relações com o mundo, a fim de chegar à terra dos vivos77,
que lhes fora mostrada por Deus78.
Estando todos de acordo, como se tivessem um só coração e uma só alma79, que
deviam amar a Deus acima de tudo, honrá-lo em todas as ações e ficar sempre perto
dele, temiam que esse acorrer de pessoas e a conseqüente distração desagradassem ao
Senhor.
Deus, então, movido pelo mesmo amor com que os havia levado a se unirem, a
deixarem a sua terra e parentela para edificação do povo, inspirou-lhes também a decisão
concorde de saírem da casa do próprio pai, isto é, de cortarem toda relação com o
mundo.
Por isso, levantando-se depois da oração e da contemplação, e pondo-se juntos a falar de Deus, animavam-se um ao outro nos seus propósitos e, entre outras coisas, diziam: "Vinde, irmãos, vinde! Abandonemos este lugar de dúvida e de perigo e busquemos um outro lugar solitário onde, com a ajuda de Deus, possamos satisfazer nosso desejo"80.
Estavam decididos a realizar esse propósito, mas não sabiam o que fazer, nem que rumo tomar, para alcançar tal objetivo. Por isso, depositaram toda sua esperança em Deus. Eles sabiam de quantos cuidados ele os cercava e, por isso, se entregaram em suas mãos de todo coração. E Deus, que provê àqueles que o temem81, atendeu-os finalmente, inspirando-lhes o que era útil para a sua salvação.
Aquele que ouve as preces dos que o temem e confiam nele satisfez o desejo dos
nossos Pais. E como fora ele mesmo a inspirar-lhes tal desejo, atendeu-os com grande
75
Gn 12,1.4; cf. At 7,3 76
Sl 27,13. 77
Desde o século IX muitos textos monásticos apresentam a peregrinação penitencial para a solidão como o êxodo
de Abraão da sua pátria para a terra de Canaã. 78
Hech 4, 32 79
Cf. Mc 6,31-32. 80
Sl 145, 19. 81
Cf. Introdução.
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benevolência, indicando um lugar adequado, por eles tão longamente desejado, e
proporcionando os meios para nele se estabelecerem.
41. Existe um monte, distante cerca de oito milhas da cidade de Florença, que tem muitas cavernas. Quando investido pelo uivar do vento, o som ecoa do interior dessas cavernas. Por isso, pelo eco que produz, foi primeiramente chamado Monte "Sonário" ou "Sonaio", isto é, monte sonoro. Mas o povo o chamava de Monte "Asinário", antepondo um "a" e trocando, por corruptela, o "o" pelo "i"82.
Deus, por inspiração interior, indicou aos nossos Pais esse monte83 e, para satisfazer a
seus desejos, animou-os a subir até o cume e lá estabelecer sua morada. Olhando para esse monte, que Deus de longe lhes mostrara e que sobressaía em altura
aos demais montes circunstantes84, eles decidiram subir ao seu cume para conhecê-lo melhor. Lá chegando, depararam-se com uma clareira muito bonita, embora pequena. Ao lado, jorrava uma nascente de águas cristalinas e, ao redor, havia um bosque tão bem ordenado que parecia ter sido plantado por mãos humanas. Esse era realmente o monte que Deus tinha preparado para eles85. Adaptava-se aos seus propósitos, principalmente porque estava longe dos lugares habitados, e correspondida aos anseios dos que queriam levar vida penitente. Por isso, deram infinitas graças a Deus.
Encontrando, pois, um lugar segundo os seus desejos, já não diziam: "Vinde,
procuremos", mas ao contrário: "Vinde, vamos ver o lugar que o Senhor nos preparou e
subamos a este monte86 apropriado para nossa vida penitente". E com alegria e temor
de Deus, diziam entre si: "Por que hesitamos? Vinde, vinde, saiamos da cidade, cortemos
qualquer relação com o mundo, não ponhamos os pés na região vizinha, nem olhemos
para trás, para o que pode prejudicar nossa alma, mas subamos a este monte87 do
Senhor, que nos foi reservado pela divina Providência, para podermos em tudo e por tudo
cumprir a sua vontade e satisfazer os nossos anseios".
Subindo, pois, ao alto do monte, construíram no local uma casinha para sua
morada e, abandonando a primeira casa que tinham em Florença, para lá se transferiram.
Capítulo X
O nome e a localização do monte
convinha à nossa Ordem
42. Foi oportuno que nossos frades recebessem de Deus para sua morada o Monte
Sonaio, pois o lugar convinha à sua ascensão na perfeição e o nome, à sua fama.
Que o lugar conviesse à sua ascensão na perfeição, é evidente. Depois de viverem
num vale de lágrimas, onde se purificaram pela penitência, tornando-se dignos e idôneos
para subir mais ainda, nesse mesmo vale de lágrimas decidiram em seu coração
caminhar para o alto88.
Enquanto viviam na planície dos bons costumes, foram em tudo instruídos pela
unção do Espírito Santo89 e, habituados à mansidão, caminhavam na inocência do seu
82
Gn 22,2 83
Sl 125,1-2 84
Is 2, 2 85
Is 2, 3 86
Gn 19,14-17. 87
Sl 84,6-7. 88
1Jo 2,27 89
Sl 100,2.
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coração na casa do Senhor90. Quando, porém, se estabeleceram no alto da colina das
virtudes, onde se saciavam com seus manjares, enriqueceram-se de dons celestiais e
podiam então dizer: "Se um exército acampar contra mim, meu coração não
temerá"91.
A essa altura, era justo que eles se entregassem à contemplação no alto do monte.
Nesse lugar, iluminados e, por isso mesmo, orientados pelo Espírito da sabedoria e da
inteligência, e impregnados pelo aroma da felicidade eterna, tendo seus olhos sempre
voltados para o Senhor92, exclamavam: "Não sabemos o que fazer. E assim nossos olhos se
voltam para ti"93. Esse lugar, portanto, convinha à sua ascensão na perfeição.
43. É evidente que o nome desse monte convinha à fama dos Sete. Com efeito,
chamando-os Deus ao seu conhecimento e atraindo-os ao seu amor, obedeceram
prontamente, exclamando: "Fala, Senhor, que teus servos de escutam"94. Depois, movidos
pelo Espírito Santo e repletos de sua santa inspiração, fizeram ecoar piedosamente em si
mesmos estas doces palavras: "Não me rejeites da tua presença nem retires de mim o
teu Santo Espírito"95. Por fim, com suas próprias mãos realizaram muitas e santas obras96,
propagando o eco do seu exemplo ao próximo, enquanto diziam: "Somos em todo lugar o
aroma de Cristo"97.
Finalmente, como frades da Ordem da bem-aventurada Virgem Maria, que eles
mesmos haviam iniciado, despertaram o mundo com a propagação do seu eco, isto é, com
suas palavras e obras, e o levaram a seguir a Cristo com o exemplo de sua vida.
Manifestando-se assim ao mundo com a ressonância de sua vida, no tempo oportuno,
cantavam em louvor a Deus esta doce melodia: "Vinde, casa de Jacó, caminhemos à luz
do Senhor"98. Um som suave e melodioso deles partia e se propagava em direção a Deus, a si
mesmos e ao próximo. Esse mesmo som haveriam de ecoar pelo mundo inteiro os frades
que viriam depois deles. Era justo, pois, que Deus lhes indicasse um lugar que ecoasse o
som e dele tomasse o nome para ali estabelecerem a sua morada. Portanto, foi Deus que
lhes preparou uma morada no Monte Senário, porque este monte estava em perfeita
harmonia com o progresso alcançado na perfeição por nossos pais e na irradiação do
testemunho que deles emanava.
Capítulo XI
As três tendas de perfeição por eles construídas
44. Devendo, pois, residir nesse monte, ornando-o com sua presença, os Sete
primeiros Pais aí construíram três tendas: uma material, outra mística e a terceira moral99.
90
Sl 26,3. 91
Is 11, 2 92
Sl 264,15 93
2 Cro 20,12 94
Cf. 1Sm 3,10 95
Sl 51,13. 96
O movimento da mão alude a Davi que toca a cítara para aliviar a tristeza de Saul (1Sm 16,23). Aqui é
símbolo da vida exemplar dos nossos Pais, feita melodia portadora de alegria. 97
2Cor 2,14-15. 98
Is 2,5. 99
A LO inspira-se nos capítulos 25 e 26 do Êxodo, que descrevem a construção da arca e da tenda, cujo modelo fora
apresentado a Moisés no Sinai. Monte Senário é agora o novo Sinai.
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A tenda material era a casa que eles construíram. Sugerida por divina inspiração,
levantaram-na no alto do monte. Era feita de material rústico, irrigada por uma
nascente de águas abundantes, rodeada de lindos bosques, ornada com prados verdejantes,
dotada por Deus de ares puríssimos e coroada, finalmente, pela presença dos nossos Pais.
A tenda moral era a morada espiritual de Cristo no coração de cada um deles. O modelo lhes fora mostrado no alto do monte100
que é Cristo. Construída pela própria sabedoria101
divina, fundada na perfeição da caridade, implantada no coração de cada um dos nossos Pais, fabricada pela conexão harmoniosa das virtudes e por elas sustentada, ornada interiormente pelo esplendor da pureza e exteriormente pela beleza das boas obras e, finalmente, coroada pela presença de Cristo102.
A tenda mística era o refúgio próprio encontrado pelos frades da nossa Ordem. Foi
obra principalmente de Nossa Senhora, fundada na humildade dos nossos frades, assentada
na concórdia que os unia, conservada mediante a pobreza, ornada com a pureza e coroada
com a presença de santos frades que haveriam de suceder-se na
Ordem até o dia do juízo.
45. Essa última tenda, refúgio próprio dos frades da nossa Ordem, a única que
traz o nome de Ordem dos Servos da bem-aventurada Virgem Maria era inicialmente
constituída pela comunidade dos nossos Pais, mas depois foi ampliada103 pelos frades no
alto do monte, como diremos a seguir.
Quando nossos Pais viviam em Monte Senário, deleitavam-se com a beleza do
lugar, que lhes fora por Deus escolhido e preparado. Por isso, dia após dia, progrediam no
caminho das virtudes104. Ora, aconteceu que nossos Pais, por obra do Senhor que agia neles e os
confirmava em seu viver105, com o aroma de sua fama, mesmo de longe, começaram a atrair o afeto e a devoção das pessoas, mais agora do que quando viviam em contato direto com o povo. Atraídos pelo eco e pelo perfume de sua vida santa e virtuosa, e seguindo com muita devoção o seu rasto106, muitos buscavam ardentemente chegar ao lugar donde provinham tal eco e perfume tão intensos.
Vindos de todas as partes da cidade de Florença e do condado, dirigiam-se107 ao
monte e, falando entre si, diziam: "Por que tardamos em visitar esses servos de Deus, dos
quais emana tão suave aroma de virtudes, e por que não procuramos informar-nos a seu
respeito? Vinde, pois, subamos ao Monte Senário, monte perfumado do Senhor. Lá
chegando, visitemos108 esses homens ilustres, dos quais emana o som que ouvimos e o
perfume que sentimos. De suas palavras, inflamadas pelo fogo da caridade,
aprendamos os caminhos do Senhor e, vendo o exemplo de sua vida santa,
disponhamo-nos a seguir firmemente os seus passos109. Doravante, em todas as nossas
ações, comportemo-nos segundo o modelo que o Senhor nos indicou neste monte, nas
pessoas desses seus servos”. 100
Ex 25,40; 26,30; Hb 8.5. 101
Prob 9, 1 102
A tenda interior, que nossos Pais construíram no coração para Cristo,, é comparada à arca, cujo modelo Deus
mostrou a Moisés no Monte Sinai (cf. Ex 25,40: "Cuida de fazê-lo conforme o modelo que te foi mostrado na montanha").
Subentende-se que Monte Senário é um novo Sinai 103
Is 54,3. 104
Sl 84, 2-3.8. 105
Mc 16,20. 106
Cf. Ct 1,3. 107
Cf. Is 2,2-3. 108
Lc 2,15. 109
Is 2,3.
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Foi deveras admirável e feliz esse tempo em que viveram os nossos Pais, quando tudo
era disposto com especial carinho pelo Senhor, segundo a sua vontade. Por isso, os
povos acorriam a eles, atraídos110 pelo eco de sua fama e pelo aroma da sua santidade.
Capítulo XII
Com seu exemplo, atraíam alguns ao amor de Deus e
outros ao seu convívio
46. De todos os lugares acorria, pois, o povo, atraído por esses homens gloriosos,
nossos Pais, e do seu exemplo todos colhiam frutos111 de salvação, segundo a capacidade
de cada um.
Alguns, de fato, considerando a vida exemplar dos santos homens e, mirando-se neles
como num espelho, comparavam a sua vida com a vida deles, davam-se contas dos
próprios erros e procuravam corrigir-se. E não podia ser diferente, uma vez que,
dos seus exemplos e palavras, aprendiam a fugir da ambigüidade que o mundo ama, a
viver a simplicidade que vem de Deus, a odiar de coração os vícios e a amar as
virtudes.
Todos viam que eles não encobriam falsamente seus sentimentos, nem usavam de
artifícios para ocultar o sentido das palavras, nem simulavam como verdadeiras as coisas
falsas, nem como falsas as verdadeiras. Viam-nos, pelo contrário, como eles
verdadeiramente eram: simples, nada faziam por ostentação, exprimiam com palavras
seus sentimentos, amavam a verdade, evitavam a mentira, distribuíam gratuitamente seus
bens, sofriam com a maldade antes que praticá-la, não se vingavam da ofensa recebida e
consideravam um ganho sofrer injúrias112 por amor à verdade113.
Outros, porém, entretendo-se afetuosamente com eles a falar de Deus e da pátria
celeste, inflamavam-se de fervor espiritual e, sem conseguir conter-se, manifestavam- no
abertamente. Exultando interiormente em seus corações, eram tomados por uma alegria
tão intensa e inefável que mal podiam externá-la. Mas não podendo ocultá-la,
expressavam como podiam, até com gemidos, todo o seu fervor e alegria.
O povo via que nossos Pais não mediam esforços para guardar a pureza do
coração e nele preparar uma digna morada para Cristo. Por isso, seu coração transbordava
de amor, enquanto esperavam alegremente o Amado. Inflamavam-no com o desejo
ardente de ir ao encontro do Amigo que vem, e o iluminavam com o exemplo dado ao
próximo e com a contemplação das coisas celestes. Podiam, assim, com o brilho de suas
lágrimas, abrir a porta ao Esposo que bate, acolhendo-o com honras no intimo de sua
alma, amando-o como Sumo Bem e obedecendo-lhe em tudo
e por tudo114.
47. Outros, atraídos pelo aroma de suas virtudes e movidos pelo fogo de sua palavra e
do seu exemplo, não só os amavam de coração como amigos de Deus, mas sentiam-se
110
Ct 1,3 111
Cf. Mt 13,8.23; 25,15. 112
At 5,41. 113
Todo esse trecho é tirado de São Gregório Magno, Moralia sive Expositio in Iob, X, 29 (in PL 76,947).
114 Esse trecho retoma a segunda parte do nº 39 e insiste na experiência religiosa da ausência/presença de Cristo, o
Dileto, o Amado, o Esposo. O transfundo bíblico é dado pela voz da esposa (Ct 2,8-10; 3, 1-4; 5,1-2); pela parábola das
virgens (Mt 25,1-12); pelos gemidos do Espírito que representa a ardente espera da criação (Rm 8,26-27); por Cristo
que está à porta e bate (Ap 3,20).
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impelidos a juntar-se a eles no alto do monte e ali estabelecer sua morada, colocando-se a
serviço do Senhor.
Não é de admirar que, ao vê-los já ornados de dons incomparáveis e com a mente
sempre voltada para o céu, alguns se sentissem atraídos a viver com eles,
abandonando, por conseguinte, totalmente o mundo.
Havia neles o temor de Deus, que os mantinha sempre humildes115: não aspiravam às
coisas grandes e se adaptavam às pequenas.
Manifestava-se neles o dom da piedade que os tornara mansos: procuravam piamente
a Deus, sem jamais opor-lhe resistência, e o veneravam como seu dulcíssimo Senhor.
Resplandecia neles o dom da ciência: com lágrimas de arrependimento, lamentavam o mau uso feito das coisas materiais. Sobressaía neles o dom da fortaleza
que os fazia sentir fome e sede de justiça: anelavam conquistar a alegria dos bens
verdadeiros e ver-se livres dos perigos da vida presente.
Eram dotados com o dom do conselho, que os tornava misericordiosos: perdoavam as
ofensas recebidas e, confiantes na recompensa divina, buscavam todo o benefício possível
de Deus e dos homens para os que os ofendiam.
Ocultava-se neles o dom da inteligência que os fazia castos no corpo e na alma e lhes
purificava os olhos da mente: podiam, por conseguinte, contemplar as coisas celestes.
Por fim, enriquecia-os o dom da sabedoria que fazia deles homens de paz: já não
opunham, com os maus instintos, qualquer resistência ao Espírito, mas, em todas as coisas,
com grande alegria, compraziam-se em obedecer espontaneamente a Deus116. Diante dos dons com que o Espírito havia ornado os nossos Pais, por que admirar-
se se muitos, atraídos pelo aroma desses carismas, decidiam juntar-se a eles espiritual e
corporalmente e nunca mais abandonar a sua companhia?
48. Muitos homens acorriam de todos os lugares e, por amor à pátria celeste,117 queriam
juntar-se a eles. Nossos ilustres Pais, através de muitos sinais, se deram conta que, depois de
sua união, o Senhor se havia tomado de cuidados por eles; e estavam convencidos de que
tudo acontecia por vontade divina. Deduziram, pois, que também a decisão firme dos que
queriam juntar-se a eles para levar vida penitente era inspirada pelo Senhor.
Em decorrência disso, convenceram-se que haviam sido reunidos em comunidade pela
ação misteriosa de Nossa Senhora e que haviam sido levados por inspiração divina a
viver juntos no alto deste monte, tão apropriado e correspondente aos seus anseios de
penitência, não só para alcançar e conservar a santidade, mas também para que outros,
desejosos de percorrer este mesmo caminho de santidade, pudessem juntar- se ao seu
grupo e fazer crescer a Ordem que Nossa Senhora iniciara por seu intermédio.
Dessa forma, com suas palavras e exemplos e com o testemunho de vida dos frades
que haveriam de sucedê-los na Ordem, poderiam desviar muitos irmãos do caminho do mal
e conduzi-los ao estado de perfeição; e, fazendo-os conhecer e amar a Deus, haveriam de
orientá-los para a conquista da pátria celeste.
Por isso, embora lhes custasse abandonar as delícias da contemplação para dedicar- se
115
Mt. 5,3. A LO, influenciada pela exegese agostiniana, interpreta “pobres de espírito” como “humildes”. 116 Is 11,2-3 (os dons do Espírito) e Mt 5,3-9 (as bem-aventuranças) foram colocadas lado a lado por Santo
Agostinho no seu comentário ao De Sermone Domini in monte 4. 11 (in PL 34, 1234-1235; CCL 35, p. 9-10). 117
A expressão “amor à pátria celeste” encontra-se na bula de Inocêncio IV Ut Religionis ventre novella
plantatio, de 17 de agosto de 1254. É um documento que procura salvar a inspiração originária contemplativa dos
Servos de Maria. Também a expressão “plenitude da contemplação” (contemplationis pinguedo), que está na conclusão
deste número, lembra as “delícias da santa contemplação” da carta papal.
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aos cuidados dos outros, no entanto, querendo em tudo cumprir a vontade de Deus - e eles
bem sabiam que era vontade de Deus tudo o que acima referimos - dispuseram-se a aceitar
os irmãos que consideravam tementes a Deus. E, desde então, admitiram alguns ao seu
convívio.
49. Nossos Pais estavam convencidos que Monte Senário jamais deveria ser
abandonado, nem por eles, nem pelos frades que haveriam de sucedê-los. Isso por reverência
a Deus que lhes havia preparado esse lugar. No entanto, percebendo que o lugar já não
era suficiente para eles, para os frades que haviam admitido na comunidade e para os que
entrariam no futuro, foram obrigados a adquirir outros conventos, onde pudessem viver com
seus confrades presentes e futuros e dedicar-se à salvação das almas.
Nossos ilustres Pais, descendo do alto da soberba humana e mantendo-se unidos ao
Senhor, conquistaram a humildade, que é o fundamento de todas as virtudes. E sobre
este fundamento construíram o edifício das virtudes, alcançando finalmente a caridade,
que está acima de todas118. Foi assim que, com a ajuda do Senhor, garantiram o seu próprio
bem e sua santificação.
Querendo em tudo fazer a vontade de Deus, admitiram na comunidade muitos
confrades e companheiros, bem aceitos por eles e pelo Senhor. Em conseqüência
disso, guiados por Deus, começaram a abrir vários outros conventos que se adaptavam ao
seu estilo de vida penitente.
Capítulo XIII
Nossa Senhora revela ao bem-aventurado Pedro mártir o
hábito e a regra que devia dar aos nossos frades
50. A esta altura, nossos ilustres Pais já haviam aceito na comunidade muitos
outros frades e começavam a estabelecer-se também em outros conventos que
haviam adquirido.
Aproximava-se assim o tempo em que a lâmpada preparada para a nossa Ordem, isto
é, o bem-aventurado Filipe, ao ingressar nela, haveria de iluminá-la com sua presença.
No entanto, não estava ainda pronta a casa, isto é, a Ordem, em cujo candelabro119
ele seria colocado. Nossos confrades, de fato, não tinham ainda um hábito comum e
definido para usar, nem uma Regra para observar. Por isso, Deus enviou o seu servo, o
bem-aventurado Pedro Mártir, da Ordem dos Pregadores120, para que os orientasse,
lhes providenciasse um hábito que deveriam sempre usar e os dotasse de uma Regra
segundo a qual deveriam viver.
51. No ano do Senhor de 1244, sob o pontificado do papa Inocêncio IV121, o bem-
118 A descida do monte da “soberba humana” até o ponto mais baixo da humildade é tomada de Santo Agostinho,
Discorso 69, 2-3 (in Opere di sant’Agostino, XXX/1, p. 384-385). 119
Mt 5,15; Lc 8,16; 11,33. 120
O autor da LO afirma acertadamente que Pedro de Verona chegou a Florença em 1244, embora mais adiante diga
erroneamente que sua chegada coincidiu com o ingresso de São Filipe na Ordem, ocorrida em 1254. Na verdade, Pedro
de Verona estava em Florença desde o dia 5 de abril ou desde meados de 1244, chamado talvez pelo bispo Ardingo
e pelo inquisitor dominicano, frei Rogério Calcagni, num momento em que as relações entre o Império e o Papado
tinham chegado a um confronto direto, e a luta anticlerical adquiria uma conotação política de oposição ao
imperador Frederico II. Em Florença, colaboraram com frei Pedro de Verona alguns grupos leigos ortodoxos, entre
os quais um grupo de “Servos de Santa Maria”, que incluía, segundo a LO, os iniciadores da nossa Ordem. 121
Sinibaldo Fieschi, papa de 1243 a 1254. Sobre o que fez a favor dos Servos de Maria, cf. as duas cartas, uma de 27
e a outra de 18 de agosto de 1254 (Ut Religionis vestre e Compatientes paupertati vestre).
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aventurado Pedro Mártir chegou finalmente a Florença com uma missão a cumprir. Fora aí
enviado pelo mesmo pontífice para pregar contra os hereges que então proliferavam,
principalmente na Itália, e se insurgiam publicamente, pregando contra o dogma católico.
Ora, ao chegar a Florença, entregou-se de corpo e alma à pregação e aos debates
públicos para extirpar as heresias e provar a verdade da fé. Agindo nele o Espírito Santo,
que lhe punha nos lábios palavras de verdade, confundia os hereges, extirpava as
heresias pela raiz e confirmava a verdade cristã.
Nossos ilustres Pais eram ouvintes assíduos de suas pregações e, ao perceberem que
nele agia o fervor do Espírito Santo, inflamaram-se de grande amor por ele. Vindo a
conhecê-lo pessoalmente, uniram-se a ele por cordial amizade, tomaram-no como pai e
protetor e como seu particular conselheiro nas coisas referentes à salvação de suas almas. Ele, por sua vez, informou-se minuciosamente sobre a vida dos Sete e inteirou-se
de tudo o que lhes acontecera depois de se unirem em comunidade. E, conhecendo-
lhes as consciências através da confissão, convenceu-se da sua perfeição e do ideal
religioso que os havia inspirado a consagrar-se a Deus. Visitava-os amiúde em sua
casa e, vendo que viviam em paz e concórdia, perseveravam122 no temor de Deus e
comportavam-se segundo a moral e os bons costumes123, adotou-os como filhos espirituais.
52. Tudo o que anteriormente lhes acontecera e que ele bem conhecia, bem como sua
presente santidade que via com os próprios olhos, davam-lhe esperança que, por meio
deles, Deus seria grandemente honrado e o mundo, beneficiado. Por outro lado, sabia que
eles não tinham um hábito fixo, nem uma Regra para observar, embora tivessem o nome
próprio da Ordem recebido desde quando começaram a viver e comunidade e
comprovado pela voz do povo. Por isso, o bem-aventurado Pedro, pelo grande amor que
lhes tinha, quis ocupar-se disso com especial carinho.
Com muita fé, rezava a Deus e a Nossa Senhora para que o iluminassem na escolha do hábito, da regra e do nome. Pedia, em particular, a Nossa Senhora que, por amor do Filho, lhe mostrasse, através de algum sinal, se os nossos frades - que, por amor dela, ele tomara sob a sua proteção - haviam sido de fato escolhidos entre todos os homens do mundo124
para se colocarem ao seu particular serviço, como o demonstrava o nome com que eram conhecidos. E pedia também que lhe mostrasse se ela, por intermédio deles, tinha realmente decidido fundar uma Ordem particularmente dedicada ao seu nome, para sua honra e glória. Suplicava-lhe, portanto, que lhe
revelasse o hábito que deviam usar, a regra que deviam observar e o nome com o qual,
doravante, deviam ser chamados.
O bem-aventurado Pedro Mártir era assíduo na oração e derramava lágrimas para
obter tal revelação de Nossa Senhora. Para esse mesmo fim, também os nossos primeiros
Pais, junto com os outros frades recém-chegados à comunidade, rezavam sem cessar,
jejuavam e levavam uma vida santa, como lhes ordenara o bem-aventurado Pedro. Por
isso, a gloriosa Virgem Maria, tão devotamente invocada, apareceu em visão ao bem-
aventurado Pedro e lhe revelou tudo o que pedira.
Revelou-lhe que, dentre todos os homens da terra, ela, de fato, escolhera para seu
122
Cf. At 1,14; 2,42. 123
A primeira comunidade dos Servos de Maria estabeleceu-se em Cafaggio, fora dos muros da cidade de Florença, numa
casa que não era a que foi construída mais tarde, no tempo do redator final da LO. Era uma comunidade fraterna de
penitentes, ainda não constituída juridicamente, porque os frades não tinham um hábito próprio, nem uma verdadeira
Regra. 124
A escolha dos Servos de Maria entre todos os homens do mundo inspira-se talvez na escolha de Israel entre todos
os povos da terra (cf. Dt 7,6; 14,2; 26,18-19).
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particular serviço esses homens e todos os que futuramente seriam admitidos na comunidade;
e que lhes obtivera do Filho a graça de iniciarem uma Ordem dedicada ao seu nome, para
sua honra e glória. Disse-lhe também que o hábito comumente usado pelos frades da
Ordem, eles deveriam doravante usá-lo sempre, como sinal de humildade e da dor que ela
suportara na paixão do Filho. Recomendou, por fim, que lhes entregasse a
regra de Santo Agostinho, segundo a qual deveriam viver125.
53. Despertando do sono, o bem-aventurado Pedro Mártir, homem totalmente
devotado a Deus e a Nossa Senhora, percebendo que tudo o que pedira lhe fora revelado,
pôs-se a rezar devotamente, dando infinitas graças a Deus e a Nossa Senhora por tão
grande dom. Na manhã seguinte, celebrou devotamente, em ação de graças, a missa de
Nossa Senhora.
Celebrada a missa com grande alegria, dirigiu-se com um companheiro para o
convento onde moramos em Florença e, reunidos os frades, narrou-lhes tudo o que Nossa
Senhora lhe havia revelado acerca do futuro da nossa Ordem. Indicou-lhes o hábito que a
partir de então deveriam usar e a regra segundo a qual deveriam viver. Disse-lhes, por fim,
que o nome de Servos da Virgem Maria, com o qual eram conhecidos desde o princípio,
lhes fora dado por Nossa Senhora mesma; por isso, com a autoridade que dela recebera,
ele confirmava tal nome, que eles deviam guardar imutável para sempre.
Depois, o homem de Deus, exortando-os a dar graças a Nossa Senhora por tão grande
dádiva e recomendando-se às suas orações, voltou para casa com seu companheiro.
Capítulo XIV
O ingresso do bem-aventurado Filipe
e o conseqüente crescimento da Ordem
54. O bem-aventurado Pedro Mártir não fora enviado somente ao povo de
Florença, mas, em virtude da missão recebida, devia evangelizar também outras
cidades da Itália. Por isso, após extirpar radicalmente as heresias em Florença com a força
do Espírito Santo que agia nele, partiu para Milão.
Em Milão, por longo tempo pregou a Palavra de Deus, confirmando a veracidade de
sua pregação através de milagres e prodígios e confundindo publicamente os hereges.
Por fim, após combater o bom combate como um autêntico soldado de Cristo, e
cumprida fielmente a missão recebida, ele, que sempre honrara a Deus de todo coração e
se mantivera firme na fé, partiu alegremente ao encontro do Senhor para receber a coroa
da justiça126, com a palma do martírio. Morreu, pois, o venerável Pedro Mártir no ano do
Senhor de 1251, primeiro do pontificado do papa Alexandre IV127.
Em sua legenda podem-se encontrar informações completas e verdadeiras sobre a
vida que levou em sua Ordem, os milagres que o Senhor operou no dia da sua morte e
depois, para confirmar a sua santidade e a ortodoxia que sempre defendera, e o lugar onde
foi sepultado.
55. Confirmada a regra segundo a qual os frades da nossa Ordem deviam viver, o
125
Com a entrega do hábito e da regra de Santo Agostinho a comunidade dos penitentes Servos de Santa Maria
adquire uma configuração jurídica. 126
Cf. 2Tm 4,7-8. 127
Na realidade, a data do martírio de Pedro de Verona, 29 de abril de 1251, corresponde ao oitavo ano do
pontificado de Inocêncio IV.
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hábito que doravante não seria lícito abandonar e o nome que desde o início receberam por vontade de Nossa Senhora, a casa da Ordem já estava pronta para receber a lâmpada128
que Deus lhe havia providenciado.
Essa lâmpada, isto é, o bem-aventurado Filipe, crescera em luminosidade diante de Deus e dos homens e tinha alcançado a idade de vinte e um anos, o mesmo número de anos que nossos gloriosos Pais já haviam transcorrido em comunidade no serviço do Senhor. No ano do Senhor de 1254, primeiro do pontificado de Alexandre IV129, o bem-aventurado Filipe, seguindo o desejo do seu coração, ingressou em nossa Ordem com grande humildade. Disso falaremos em
sua Legenda, se o Senhor o permitir.
Capítulo XV
Depois do ingresso do bem-aventurado Filipe a
Ordem obtém vários privilégios.
Sua eleição unânime para prior geral
56. Como já dissemos, no mesmo ano em que nasceu o bem-aventurado Filipe e na
mesma província e cidade onde nasceu, Nossa Senhora reuniu em comunidade os nossos
gloriosos Pais para iniciar uma nova família religiosa.
Isso para que o bem-aventurado Filipe, alcançada a idade perfeita e colocado no candelabro da Ordem, a iluminasse com sua palavra e sua vida130
e deixasse para os nossos frades um modelo e uma norma de como deveriam servir a Nossa Senhora. Para que todos estivessem cientes que o progresso da Ordem dependia da virtude do bem-aventurado Filipe, no mesmo ano do seu ingresso, nossos frades começaram a obter benefícios para a Ordem.
De fato, depois do seu ingresso na Ordem, animados por suas virtudes, nossos frades dirigiram-se à cúria romana, sediada então em Nápoles, onde residia o papa Alexandre IV. Nesse mesmo ano, isto é, o primeiro do seu pontificado, obtiveram o primeiro privilégio para a Ordem, ou seja: em todos os conventos de sua propriedade, nossos frades podiam construir as dependências que fossem necessárias, o oratório com o sino e o cemitério131. Daí se vê quão grandes benefícios Filipe, ao ingressar, obteve para a Ordem com suas súplicas.
Antes do seu ingresso na Ordem, nossos frades possuíam muitos conventos, mas não
tinham o direito de construir o oratório com o sino, nem o cemitério. Até então, em
seus conventos, eles podiam levantar altares para seu uso exclusivo, com a autorização do
bispo diocesano, mas não podiam fazê-lo em virtude de uma concessão.
Com esse privilégio, porém, receberam a autorização para fazê-lo não só nos
conventos que já possuíam, mas também naqueles que viessem a adquirir no futuro, em
qualquer parte do mundo.
57. O bem-aventurado Filipe, querendo manter oculta a sua sabedoria, pediu para ser
128
Mt 5,12; Lc 8,16; 11,33.
129 Mais uma data incorreta, porque todo o ano de 1254 esteve sob o pontificado de Inocêncio IV. Alexandre IV
só foi eleito em 12 de dezembro desse ano. 130
Cf. Mt 5,15; Lc 8,16; 11,33. 131
Certamente, este não é o primeiro privilégio que a Santa Sé concedeu à Ordem. A bula Vestre devotionis
precibus, de 26 de maio de 1255, dirigida ao prior e aos frades de Monte Senário, não fala do sino do oratório, ao
contrário do que afirma a LO.
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aceito na Ordem como irmão leigo. E como tal viveu quatro anos completos e todos
o tinham em conta de leigo. Mas, assim como a luz não pode, por sua natureza, ficar muito
tempo escondida, sem irradiar sua claridade, da mesma forma a sabedoria de Filipe foi
finalmente revelada por Nossa Senhora, como descreveremos a seguir em sua Legenda, se
Ela o permitir.
Quando sua sabedoria se tornou conhecida, crescendo ele diante de Deus e dos
homens132, também a Ordem, como é natural, começou a progredir sempre mais. De fato,
dirigindo-se nossos frades à Cúria, então em Anagni, onde residia o papa
Alexandre IV, no quarto ano do seu pontificado, em 1258, obtiveram mais um
privilégio, ou seja: de dar sepultura em nossos cemitérios a todos que o pedissem133.
Essa segunda concessão supunha e confirmava a primeira, que dera aos nossos frades
o direito de possuir conventos juridicamente reconhecidos com oratório, sino e cemitério,
e ampliava a primeira concessão estendendo-a também a pessoas de fora, confirmando
assim que os nossos conventos eram reconhecidos oficialmente pela
Igreja.
58. Portanto, Nossa Senhora dispôs que os frades da Ordem, pelos méritos do
bem-aventurado Filipe, pudessem, pelo primeiro privilégio, construir conventos próprios
e, pelo segundo, dar sepultura em nossos cemitérios aos que pedissem.
Nossos frades não tinham ainda a faculdade apostólica de convocar o capítulo e de
eleger o prior geral. Desde quando haviam recebido de Nossa Senhora, por meio do bem-
aventurado Pedro Mártir, o hábito e a regra, por ingenuidade e desconhecimento do
direito, quando necessário, eles reuniam o capítulo e elegiam o prior geral, indo logo
em seguida à Cúria para a confirmação do eleito.
Mas aproximava-se o tempo estabelecido por Nossa Senhora para colocar no
candelabro da Ordem o bem-aventurado Filipe. Para que, no momento de sua eleição,
nossos frades tivessem a faculdade apostólica de celebrar o capítulo e de eleger o prior
geral, que governasse a Ordem e exercesse todas as funções inerentes ao cargo, exatamente
no tempo em que o bem-aventurado Filipe, embora hesitante, foi promovido à ordem
sacerdotal, Nossa Senhora mesma, em consideração dos seus méritos, concedeu à Ordem
mais uma graça, maior que as outras.
59. No ano de 1263, segundo do pontificado do papa Urbano IV, quando o bem- aventurado Filipe já havia sido ordenado sacerdote, os frades elegeram para prior geral frei Tiago de Sena134, o qual, em companhia de alguns confrades, dirigiu-se à Cúria para obter a confirmação.
Era então protetor da Ordem o cardeal Ottobuono135, genovês, do título de Santo
Adriano. Ele, sabendo que os nossos frades não tinham o poder de reunir o capítulo e de
eleger o prior geral, e vendo, por outro lado, que eram homens de grande santidade, 132
Lc 2,40.52 133
A bula é de 1º de abril de 1259 (Religionis vestre). O privilégio de sepultar, um dos mais hostilizados pelo clero
das paróquias por motivos econômicos, fora solicitado pelo capítulo geral de 5 de setembro de 1257. Portanto, a
resposta do papa veio cerca de um ano e meio depois. 134 Tiago de Sena foi o terceiro prior geral da Ordem (1257-1265), depois de Bonfilho e de Bonajunta. Presidiu ao
capítulo de 5 de setembro de 1257, que promoveu a atividade apostólica dos Servos de Maria. Com ele, a
Ordem inicia outras fundações nas regiões da Úmbria e da Toscana e em Bolonha. Demitiu-se no capítulo geral de maio de 1265. 135 Ottobuono Fieschi (+ 1276) talvez sucedeu ao seu primo, card. Guilherme Fieschi, como protetor da Ordem.
O cardeal “protetor” recebia do papa a missão de ajudar uma Ordem religiosa nas dificuldades externas e de zelar
para o bom andamento da vida interna.
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inspirado por Nossa Senhora e pelos méritos do bem-aventurado Filipe, decidiu pedir
imediatamente ao Sumo Pontífice esse privilégio para a nossa Ordem. Quando, pois, nossos frades foram introduzidos no consistório, prostraram-se de
joelhos diante do Sumo Pontífice e dos cardeais e apresentaram o pedido.
O cardeal Ottobuono, por sua vez, com muita insistência, suplicava ao Sumo
Pontífice que lhes concedesse essa graça. O papa respondeu que conceder tal
privilégio seria o mesmo que aprovar uma nova Ordem. Ouvindo isso, o cardeal Ottobuono
assim respondeu ao pontífice: "Santo Padre, sob minha responsabilidade, concedei o
privilégio a estes frades, porque são dignos de obter tal favor da vossa benevolência pela
santidade de sua vida, que eu confirmo". Logo, todos os cardeais puseram-se de pé e
pediram ao Sumo Pontífice que, por amor a Nossa Senhora e em atenção ao reverendo
cardeal Ottobuono, concedesse tal privilégio aos nossos frades.
Diante disso, o Sumo Pontífice respondeu: "Uma vez que o senhor cardeal Ottobuono
dá testemunho tão seguro da santidade destes frades, eu, por amor a Virgem Maria,
da qual são popularmente chamados Servos, concedo-lhes essa graça".
Depois disso, para dar mais força à concessão feita, antes que nossos frades se
despedissem dele e dos cardeais, o próprio papa Urbano confirmou o prior geral frei Tiago
de Sena, que teve assim a graça de ser o primeiro prior geral da Ordem a ser confirmado
pessoalmente pelo Sumo Pontífice136.
60. O mesmo cardeal Ottobuono, por ter obtido com suas preces a graça desse
privilégio, ainda em vida, foi recompensado pelo Senhor. De fato, passados três anos, isto
é, no ano do Senhor de 1266, morto o papa Urbano IV, ele foi unanimemente eleito
Pontífice por todos os cardeais, passando a chamar-se Adriano V.
Todavia, para que a malícia não lhe pervertesse os sentimentos e a perfídia não lhe desviasse o espírito137, se ocupasse por longo tempo um cargo tão elevado, o Senhor mui oportunamente pôs um fim à sua vida. Foi papa um mês apenas. Depois, passou para a casa do Senhor e, como recompensa pelo privilégio obtido em favor da Ordem, recebeu outra recompensa: o prêmio eterno pelas boas obras praticadas.
61. Obtido o mencionado privilégio, Frei Tiago de Sena governou sabiamente a Ordem por dois anos. Depois dele, no ano do Senhor de 1265, primeiro do pontificado do papa Clemente IV138, foi eleito prior geral Frei Maneto de Florença, homem de grande santidade e piedade, de bela aparência e de natureza frágil139. Para ser confirmado, ele se dirigiu à Cúria que se encontrava então em Perúsia.
Frei Maneto de Florença governou santamente a Ordem por dois anos. Depois,
demitindo-se do cargo, foi substituído pelo bem-aventurado Filipe, que foi eleito prior
136 Observe-se que, entre tantas cartas papais dirigidas então à Ordem, a LO considera só as três às quais acena a bula
Dum levamus de 11 de fevereiro de 1304, com a qual Bento XI aprova definitivamente a legislação da Ordem. A LO
omite outras bulas, que se haviam tornado comprometedoras depois do Concílio II de Lião de
1274.
137
Cf. Sb 4,10-11. 138 Cardeal Guido Faucoi, natural de St.-Gilles (Gard), na Provença, papa de 1265 a 1268. O apoio dado aos
Servos de Maria e às outras Ordens mendicantes, ligadas ao partido filopapal dos guelfos, deve ser visto também no
contexto dos acontecimentos políticos da época (queda de Carlos d’Angiò na Itália e retorno dos guelfos em Florença). 139
Frei Maneto, eleito prior geral no capítulo de maio de 1265, pertence à primeira geração de frades da Ordem, como
o prova a sua presença na reunião de Cafaggio, de 7 de outubro de 1251. A LO descreve-o como homem “de
vida santa”: isso explica porque entra nas listas dos Sete fundadores da Ordem. A alusão à sua “natureza frágil” talvez
explique o motivo do seu curto governo.
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geral com o voto unânime de todos os frades.
E assim, no ano do Senhor de 1267, terceiro do pontificado do papa Clemente IV, o
bem-aventurado Filipe, eleito prior geral, dirigiu-se à Cúria, então em Orvieto, e foi
honrosamente confirmado no cargo.
A eleição do bem-aventurado Filipe, sua confirmação no cargo, o estilo e a
duração do seu governo e quando passou para a casa do Pai, nós o exporemos em seguida,
se Nossa Senhora o permitir, numa Legenda dedicada a ele, que, com a ajuda de Deus,
desejamos escrever.
62. Para o louvor da bem-aventurada e gloriosa Virgem Maria, fica assim
esclarecido como teve origem a nossa Ordem e como se desenvolveu até o momento em
que o bem-aventurado Filipe foi eleito para governá-la.
Terminada essa narração, para o louvor e a honra da mesma Virgem Maria e com a sua ajuda, vamos agora expor - como prometemos - a vida do bem-aventurado Filipe140.
Para o louvor da Virgem Maria, aqui termina a Legenda sobre a origem da
Ordem dos frades Servos da Virgem Maria. Demos graças a Deus. Amém141.
140
Com estas palavras, o autor confirma que a LO é uma introdução à vida de São Filipe (cf. nº 6). 141
Esta segunda conclusão, que confirma o título “Legenda sobre a origem da Ordem” é um acréscimo evidente do
copista.