leia um trecho - zaninivida, meu amigo, a vida.” E lhe contaria que mudei de casa, hoje moro em um...

carla zanini VOCÊ SÓ PRECISA SABER DA PISCINA Carla Zanini, nascida em 1990, natural de Franca, interior de São Paulo. Reside em São Paulo desde 2008. É atriz, diretora e dramaturga. Formada pela Escola de Arte Dramática e bacharel em Teoria Teatral pelo curso de artes cênicas da Universidade de São Paulo. Fazer literatura na era da comunicação instantânea é antes de tudo um ato de coragem. E com ousadia, aos 26 anos, Carla Zanini lança seu primeiro romance. Em “Você Só Precisa Saber da Piscina”, a jovem autora parte do esforço de reorganização do pensamento de uma mulher durante o luto para construir uma poderosa narrativa altamente provocadora, capaz de seduzir o leitor desde o primeiro instante. Cada capítulo carrega em seu íntimo a tentativa de manter um diálogo com o seu interlocutor que já não mais existe. As falas, que tem como pretexto contar para seu interlocutor que ele já está morto, na verdade é a tentativa daquela que escreve lidar não só com a falta mas consigo mesma, superando o complexo processo de deixar ir. Um livro para se mergulhar sem salva vidas.

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carla zanini

VOCÊ SÓ PRECISA SABER DA PISCINA

Carla Zanini,

nascida em 1990, natural de Franca, interior de São Paulo. Reside em São Paulo desde 2008. É atriz, diretora e dramaturga. Formada pela Escola de Arte Dramática e bacharel em Teoria Teatral pelo curso de artes cênicas da Universidade de São Paulo.

Fazer literatura na era da comunicação instantânea é antes de tudo um ato de coragem. E com ousadia, aos 26 anos, Carla Zanini lança seu primeiro romance. Em “Você Só Precisa Saber da Piscina”, a jovem autora parte do esforço de reorganização do pensamento de uma mulher durante o luto para construir uma poderosa narrativa altamente provocadora, capaz de seduzir o leitor desde o primeiro instante.

Cada capítulo carrega em seu íntimo a tentativa de manter um diálogo com o seu interlocutor que já não mais existe. As falas, que tem como pretexto contar para seu interlocutor que ele já está morto, na verdade é a tentativa daquela que escreve lidar não só com a falta mas consigo mesma, superando o complexo processo de deixar ir.

Um livro para se mergulhar sem salva vidas.

VOCÊ SÓ PRECISA SABER DA PISCINA

CARLA ZANINI

ABRIL 2017

Pra você que gostava de tomar sol no sofá

1. Pequenos pretextos que nos fizessem amarrar a vida

Costumava sair de onde estava e atravessar a cidade só pra te ver. O carro nessa cidade me fez mais ativa e corajosa, devo a ele metade da minha onipresença e meu vício por calmantes naturais. Eu carregava seu quadro do Pulp Fiction no porta-malas e poderia ter sido uma desculpa pra te encontrar. Pequenos pretextos que nos fizessem amarrar toda vida.

Costumava sempre carregar um vinho escondido pra poder te surpreender mesmo querendo ser surpreendida, ou uma foto antiga revelada que você não lembraria que precisava te mostrar. Pequenas histórias ao longo do dia que me fizessem poder te ocupar por alguns minutos. Pequenos prazeres que captávamos um no outro. Temos colecionado pretextos e necessidades para nos enlaçar. Talvez pra durar mais que um dia após o outro. Existe uma diferença brutal entre “viver um dia de cada vez” e viver “um dia após o outro”, você diria. Eu acharia cretino mas arregalaria os olhos pra você se sentir sábio. Eu achava lindo você se acreditar. Vezemquando eu amaciava seu ego. A gente então declarava que algum dia iríamos nos casar mesmo sabendo que seria nosso fim. Fazíamos alguns

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planos que se dividiam entre assistir juntos o novo documentário da Nina Simone ou construir uma jangada de pedra. Você se lembra?

Esse ano teremos uma vida de parque. Mentíamos. Vamos parar de beber. Mentíamos. Vamos virar milionários. Vamos usar a ciclovia. Vamos conhecer a América Latina. Vamos chamar o pessoal e ver um filme em casa. Mentíamos. E com muito amor nos despedíamos já pensando no pretexto seguinte pra nos ver. Pensando que demoraria muito, mas como uma dádiva no dia seguinte uma propaganda qualquer me fazia te chamar pro meu dia. Era a Verônica no comercial da Sadia! E ela ainda tem a pachorra de tentar me fazer virar vegetariana? E eu te ligaria rindo pra perguntar se tinha visto. Ou guardaria esse presente pra usar em algum outro momento pra disparar nossa conversa. Tinha naquela época um medo abissal da sua ausência. E quando me acostumava com ela não gostava de perceber que ficava bem. É claro que eu sei viver sem você, mas é bem mais chato.

Perdi as pessoas mais próximas quando perdi nossos pretextos. Pessoas que ao esbarrar na rua eu teria que atravessar uma terrível névoa de memória para acertar... Era Marco ou Marcos? Ele sempre teve esse olho caído e essa pinta em cima da boca? E ele então me perguntaria “O que te aconteceu nesse tempo todo?” e eu intensa ou preguiçosa responderia “A vida, meu amigo, a vida.” E lhe contaria que mudei

de casa, hoje moro em um lugar cafona o suficiente pra carregar meu nome no nome do edifício. Também coleciono relógios e cachaças que não tomo “São para as visitas... aparece lá em casa qualquer dia, quero te mostrar um samba que eu fiz. Acho que foi a coisa mais bonita que já fiz até hoje. Isso, e uma outra coisa que nunca vou mostrar.”. No fundo, queria e não queria que soubesse que a letra um dia tinha sido pra ele e que agora nem fazia mais sentido. Mas sabia que esse convite nunca seria concretizado. Era a coisa da educação que só se tornaria real caso alguma necessidade nos infligisse o novo encontro. Só uma necessidade improvável que despertasse a coragem de desbravar todo esse novo mundo. Nenhum de nós realmente se importaria em se deslocar pra isso. “Na verdade ninguém se importa. No fundo, tá todo mundo cagando um pro outro.” você diria. E eu ficaria brava com sua declaração escrota mas concordaria que era isso mesmo. E que achava um saco mesmo tudo isso. E que todo mundo tá olhando pro próprio umbigo o tempo todo, até quando cuida do umbigo do outro.

E eu me voltaria pra você... “Fico feliz em saber que você está bem” é a frase de um filme sueco que vi essa semana, precisa assistir, é sua cara, te falei dele. Um pombo pousou no galho refletindo sobre a existência. Ou algo do tipo. Você já pensou sobre isso? Você diria simplesmente “Já”, em tom de brincadeira te chamaria de grosso e te contaria que minha companheira tinha chegado. Que eu não ficaria

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mais sozinha. Você bufaria e me recriminaria por ter deixado ela só. E que eu não deveria esfregar a cara nela porque afinal eu sou alérgica. Mas quando a conhecesse iria compará-la com uma rata linda, escovar seus pelos e praticamente beijar sua a boca. Iria pedir pra passar algumas noites com ela. Eu diria que sim, mas nunca permitiria. Ela tem um nome que nos lembra. Era uma protagonista de uma novela antiga, não, não era Helena, nem Porcina, nem nada atual, era uma outra que Caetano cantou. Como ele sempre nos canta. Ela tem me feito muito bem. Ela não chora quando eu saio, e late pouco. Sinto que me ama mas tem começado a morder as coisas.

Não tenho ficado mais sozinha. Não tenho pensando tanto sobre os pretextos. Você me aparece em diversas partes do meu dia sem que eu precise mais deles. Até quando te esqueço. (Me perdoa, às vezes te esqueço com freqüência. Mas sempre que me dou conta eu me lembro.) E você me aparece em diversas partes do meu dia sem que eu precise mais deles. Na propaganda do metrô, no Pão de Açúcar, em um inflável pendurado em uma loja de 1,99, no dvd da Amy, do Rocamadour, em uma marca de vinho e um queijo brie, na fantasia fracassada do Rocky Balboa, no Toddy com um preço mais baixo no mercado, no stress que eu tive mais cedo em um grupo de whatsapp que você saiu, no rótulo virado, na música que você gravou pra mim e que me surpreende no aleatório, nessa nossa montagem do Grease, no sol do Ibirapuera, em pálpebras... “Você tá misturando

as coisas, tem certeza que isso tudo é sobre mim?” Eu riria simplesmente. É tudo ficção, lembra? Já faz tempo. Acho que nunca escrevi pra você e sempre escrevi.

Será que um dia vamos descobrir que nos fizemos um mal danado? Creio que sim. E foi tão gostoso. Depois dos vinte perdemos o direito de ser ingênuos. Sempre fomos terrivelmente complexos de um jeito bonito e desnecessário. Aqui teria vontade de nos desenvolver a partir de Deleuze e a coisa sobre loucura e o ponto do charme mas você provavelmente nem leria o texto até o fim. Ficaria com preguiça de ler coisas longas em um dia de sol como esse. Que pena. Vontade de te maltratar agora com amor. Parece que nunca houve antes de você mas sempre houve.

Tô com saudade do Carnaval, mas tô gostando bastante de agora. Sinto que Junho será um mês de preparação. Talvez nos encontremos menos. Será um tempo bom. Acho que vai ser bom pra você também.

Seu dvd preferido ainda tá em casa, passa aqui qualquer dia desses pra vir buscar. Não é um pretexto.

Mentira,

é sim.

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2. Pensei em não lavar seus copos

Primeiro pensei em não lavar seus copos. Pensei em não arrumar sua cama. Pensei em não doar todas as suas coisas. E percebi que não faria sentido algum. Então fiz tudo isso. Mas depois de feito pensei que talvez, sim, tivesse feito algum sentido. Pensei em deixar de falar seu nome. De escrever sobre você. De proibir as pessoas de te lembrarem. De criar uma nova lei pública sobre os novos mortos. De criar um dispositivo que acionasse um choque elétrico imediato a cada possível menção de dor. Pensei em te ensinar a voltar desses mortos. "Não deve ser um caminho tão difícil assim, vai. Depois que você descobre como se quebra o caixão o caminho é praticamente o mesmo. Vem caminhando ou pega uma condução, um ônibus, sei lá. A casa continua no mesmo lugar." / De repente te vi tomando sol no sofá. De repente vi que faz anos. Tanta coisa que já não viu. Dizem que hoje é dia de virada. Tem tanta coisa maluca acontecendo. Você sabe me explicar o que tem acontecido com o tráfego aéreo? Todo dia tem avião caindo, não era assim antes, ou pelo menos ninguém me contava. Um dia eu fui apresentar uma peça e um

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homem achou que podia voar e se estabacou no chão. Continuamos a peça mesmo assim. Depois escrevi um texto bonito. As pessoas gostaram. O homem continuou morto. Não discutimos o suicídio. Será que começamos a entender alguma coisa? Pintei seu quarto, talvez você reclame da cor, mas no fundo você vai gostar que eu sei. Você gostava de qualquer coisa que eu fizesse. Você gostava de qualquer coisa que eu fizesse por você. Agora eu também me aventuro na pintura e em outras coisas. Eu gostava quando você disfarçava seu orgulho. Ou quando eu inventava ele ali. Tem um móvel lindo seu que eu trouxe pra casa, você já deve ter reparado. Falei muito sobre mudá-lo mas me convenceram que o valor está em ele ser exatamente como é. Então mudei outras coisas. E tudo se encaixou.

Ouvi dizer que no Feng shui ensinam sobre jogar coisas fora para abrir espaço, libertar-se para renovar. Ou foi sua terapeuta, ou minha astróloga, ou foi você quem me disse algum dia. Junho está terminando e está sendo bom pra isso. Mas depois de recolher é preciso chutar o balde. Julho está chegando. Sinto que não estou sozinha nessa. Tem uma gangue forte do meu lado cavando espaço com facão. É bom estarmos preparados pro espaço enorme que vamos abrir nesse tempo. Pelo menos uma utopia hoje. Tem coisa que a gente inventa pra vida não ser chata. Penso que não há nada mais gostoso do que ser cafona e tomar banho. Mas com a falta de água por

aqui só me resta o resto. (Tem outra coisa gostosa também mas deixo pra você lembrar)

Ontem naquele frio de chorar eu fui pedir um axé pros caminhos e por isso vem sempre você. Faz tempo que não nos pensamos e às vezes me vejo indo exatamente praí. Sempre penso que poderíamos falar bastante sobre algum outro assunto... sobre como é tão radicalmente bonito e humano o ponto de fragilidade de alguém que está preparado para morrer, sobre uma nova peça em cartaz ou sobre como perdi minha vida para o waze. Mas é sempre sábado e iria prefrir que você estivesse tomando sol no parque do que lendo isso. Não estou com saudades, é só porque fui lavar os copos e pensei que poderia, um dia, não ter lavado os seus.

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3. Pequenos riscos para emocionar a vida

Crio pequenos riscos pra emocionar a vida. Você dizia. E me contava que não consertava o medidor de gasolina pelo prazer do medo de ficar na rua caso errasse as contas. E que às vezes ficava. Isso não é risco. Eu ria. Isso é burrice, amor. Como deve ser burrice ainda continuar ao seu lado depois disso tudo. Você voltou a cheirar cigarro. Às vezes voltar um mau hábito é tão avassalador que a gente pensa porque tinha parado. Não tenho bebido, nem comido carboidratos e vez ou outra consigo chupar uma pastilha Garoto sem morder. Se essa semana eu me libertar da Coca Zero já poderei largar os manipulados e escrever um livro de superação. Sinto que estamos evoluindo e em breve poderemos ser todos presos antes mesmo de nascer. Você diria: estamos bem, na minha época a vida começava aos dezesseis. Eu te acharia ingênuo, mas sorriria.

/ Você tá bem?

Coisas de Julho. Você responde evasivo. Ou eu respondo. Calma, é sempre assim Julho. Bate essa melancolia quando tá frio ou claro demais. Você me falou coisas sobre isso. Parece que a gente encontrou

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todo mundo na lama e fica se divertindo tentando se arrancar dali de dentro. Mas, sim, estamos sempre bem. Às vezes sinto uma felicidade terrível. Tenho imagens tão bonitas de nós. Quase sempre apoiados pelas paredes e sofás a palestrar sobre nossos funcionamentos e nossos próprios enganos. Acho que gente fica tentando se encontrar um no outro. Contei que tenho entendido coisas. Contei que tem sido bom dormir com meus demônios. Sempre acordamos rindo. As coisas ficam bem mais fáceis quando você nomeia os próprios demônios, sabia? Eles vão estar ali de qualquer jeito e de manhã não seremos estranhos. É bom.

Você nem gostaria que eu escrevesse essas palavras. Aliás, tenho me divertido com isso. Palavras não costumeiras. Às vezes é bom falar. Demônios/ Craqueiro/ Satanismo/ Melodrama/ Salvação/ Lésbica/ Viado/ Casamento/ Caipira/ Travestismos/ Amor/ Mendigo/ Chocolate/ Padre/ Bacon... Se tiver medo de escrever fale três vezes alto antes que passa. Prefiro a piada do que tabu. Não sei lidar com tabus. Nem com ninjas. Desculpa, tenho sonhado tanto que às vezes confundo as coisas. Sonhei com três senhoras bruxas gordas e elas me faziam rir horrores. Será que era um pesadelo? Sempre acho que você pode ler mais meu inconsciente do que eu. Acho estranho sonhar com pessoas que não conheço. Como acho estranho sonhar com você de cabelos compridos. É possível? Não queria te contar e te contei. Caramba, como a gente consegue ser impulsivo.

Tem uma música que não sai da minha cabeça, ela tem frases horríveis, mas toda vez que eu ouço sinto um pouco de poder. No fundo tudo se resume a vaidades, não é? Meus amigos fazem terapia, e eu faço terapia com eles. Acho que todo mundo devia fazer. Ou conversar um com o outro, já seria bom. Calma, em breve criam algum aplicativo. Ou algo do tipo. Enfim, é bom saber que tem lugares muito mais frios que aqui. Saio às vezes sem agasalho pra lembrar que lá dentro é mais gostoso. E você com esse costume de sentir as coisas às avessas e a gente sempre em fases tão diversas, vê só que cilada o amor nos armou. Fui almoçar em um restaurante novo, tinha uma placa escrita com lápis “2888 dias sem a alegria de Horacio Braun” ao lado da foto dele. Pelo amor de deus, sigam em frente senhores. Ri, em seguida me chateei. Não quis saber quem rescrevia isso todos os dias. Não quis fazer um igual pra você. "Cruel" não era uma palavra tão constante no meu vocabulário. Talvez seja essa proximidade com o fim dos tempos. Acho que as novas tomadas foram o prenúncio de tudo. Ainda tenho medo de onde podemos chegar. O que será que contaremos disso tudo?

/ Você tá bem? Ando com saudade de você. Novamente não queria te contar e te contei. Como disse, crio pequenos riscos pra emocionar a vida. Assim como quase sempre deixo escapar que... Esquece. Coisas de Julho. Em

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poucas semanas tudo muda de novo. Como tem acontecido sempre. Nós. Sempre oscilando entre querer meditar ou nos autodestruir em prazer. Ando programando a paz por aqui. E boa alimentação, estudos, e caminhadas de manhã com sensações de gente feliz. Acho que vou abrir uma ONG e fundar uma cidade. Vai ter o nome dos meus pais. Aliás, tem dias em que tenho achado tudo muito bonito. Inclusive você. Você tem me parecido mais bonito nos últimos tempos e na verdade acho que quem mudou fui eu. Não se preocupe, não vou trocar meu perfume. Me faz lembrar do cheiro que você gosta. Nesse momento só tenho pensado em coisas que entendi e queria te contar antes que se tornem mentiras. Farei isso na próxima vez.

Hoje só queria te contar mesmo sobre os demônios. Queria te dizer que o bom de dormir com eles é que no outro dia eles vão embora e ainda deixam a cama quente. É libertador. Mas isso talvez você já saiba.

Eu que ando entendendo as coisas.