Leibniz contra o vazio

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Tese de Doutoramento

    Leibniz contra o vazio: a relao entre a teoria das

    substncias e o conceito de espao

    Patricia Coradim Sita

    So Carlos 2010

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Leibniz contra o vazio: a relao entre a teoria das

    substncias e o conceito de espao

    Patricia Coradim Sita

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos. Orientao: Prof. Dr. Mark Julian Richter Cass

    So Carlos 2010

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar

    S623lc

    Sita, Patricia Coradim. Leibniz contra o vazio : a relao entre a teoria das substncias e o conceito de espao / Patricia Coradim Sita. -- So Carlos : UFSCar, 2010. 184 f. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2010. 1. Teoria do conhecimento. 2. Leibniz, Gottfried Wilhelm, Freiherr von, 1646-1716. 3. Fsica - filosofia. 4. Substncia (Filosofia). 5. Movimento (Filosofia). 6. Epistemologia. I. Ttulo. CDD: 121 (20a)

  • PATRCIA CORADIM SITA

    LEIBNIZ CONTRA O VAZIO: A RELAO ENTRE A TEORIA DAS SUBSTNCIAS EO CONCEITO DE ESPAO

    Tese apresentada Universidade Federal de S~oCarlos, como parte dos requisitos para obteno dottulo de Doutor em Filosofia.

    Aprovada em 19 de agosto de 2010

    BANCA EXAMINADORA

    (jp~Presidente \JJ1;. fj.fl(Dr. Mark Julian Richfer Cass -UFSCar)

    1"Examinador .~~(Dra. Maria Eunice Quilice Gonzales - UNESP)

    20 E.

    d1 , O/' ~- (\f~xamma or r.:~5Z '-:.9.M"V\ .J.-,\f\f'~ Q)..~ J\ '"

    (Dr. Lus Csar Oliva - )1SP) ,

    3 Examinado(Dr. Femo de

    Universidade Federal de So Carlos

    Rodovia Washington Luis, Km 235 - Cx. Postal 676Tel./Fax: (16) 3351.8368www.opgfil.ufscar.br/ppgfrnctii1ufscar.brCEP: 13.565-905 - So Carlos - SP - Brasil

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Centro de Educao e Cincias Humanas

  • AGRADECIMENTOS Agradeo ao meu orientador, Mark Julian Richter Cass, por sua ateno e dedicao.

    Aos membros da banca por sua disponibilidade e considerao.

    Ao setor de capacitao docente da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao e aos

    professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maring, que

    aceitaram e apoiaram meu pedido de afastamento para a concluso deste trabalho.

    Aos meus colegas, professores, alunos e amigos pelo incentivo.

    Agradeo aos meus pais e s minhas irms, pelo apoio incondicional, estmulo e

    compreenso.

    Quero agradecer, principalmente, ao Vladimir, pelo carinho, cuidado, otimismo e toda

    ajuda, e pela ateno e amor dedicados, sempre, pequena Luisa, nossa filha querida.

  • RESUMO

    A hiptese fundamental da nossa investigao que h uma relao de dependncia

    entre os conceitos de espao e matria e a metafsica leibniziana centrada na substncia,

    o que implica a importncia dessa metafsica para a compreenso da fsica de Leibniz.

    A partir da relao entre esses conceitos entende-se sua posio perante problemas de

    ordem metafsica e sobretudo fsica. Do ponto de vista metafsico, vem tona o

    tradicional problema da conciliao entre o uno e o mltiplo. Do ponto de visto fsico, o

    problema aliar a explicao mecanicista dos fenmenos a um universo constitudo de

    substncias simples imateriais. Para entender como os conceitos de espao e matria

    dependem do conceito de substncia foi tomada uma linha de anlise especfica.

    Primeiro, era preciso esclarecer os princpios constituintes da cosmologia de Leibniz;

    em seguida, sua concepo dinmica de matria, a refutao do vazio, o continuum e o

    infinito. A partir da, a substncia define-se sob perspectivas diversas que respondem a

    problemas diferentes, mas cujas solues no so incompatveis. Leibniz busca na

    dinmica a determinao fsica da substncia: de sujeito lgico passa a ser concebida

    como fora. Atravs do dinamismo, a matria pode ser concebida como um aspecto da

    substncia que admite infinita divisibilidade, sem que isso invalide a indestrutibilidade e

    unidade das substncias; em funo dessa matria, h o espao pleno e relacional.

    PALAVRAS-CHAVE: Leibniz. Fsica. Substncia. Espao. Movimento.

  • ABSTRACT

    In order to understand the concepts of space and matter in the physics of Leibniz we

    should consider the metaphysical concept of substance. Such is the fundamental

    hypothesis of our inquiry. The problem is to conciliate the mechanical causality with an

    universe consisting of immaterial simple substances. Taking into account the principles

    of Leibnizs cosmology, the dynamic conception of substance, the refutation of the

    vacuum, the continuum and the infinite, the matter appears to be an aspect of the

    substance susceptible of infinite divisibility, without thereby invalidating the

    indestructibility and unity of substance. From this it arises that the space is full and

    relational.

    KEYWORDS: Leibniz. Physics. Substance. Space. Motion.

  • SUMRIO

    SUMRIO______________________________________________________________________________ 1 INTRODUO __________________________________________________________________________ 2 CAPTULO 1. O LUGAR DOS PRINCPIOS NA FILOSOFIA LEIBNIZIANA_______________________________ 6 1.1 O PRINCPIO DO MELHOR _____________________________________________________________ 11 1.2 PRINCPIO DE CONTRADIO: POSSIBILIDADE, VERDADE E NECESSIDADE _______________________ 16 1.3 O PRINCPIO DE RAZO SUFICIENTE_____________________________________________________ 31 CAPTULO 2. CAUSA: A QUESTO DA FINALIDADE_____________________________________________ 41 CAPTULO 3. LEIBNIZ E A CRTICA AO MECANICISMO CARTESIANO ______________________________ 47 CAPTULO 4. UMA CONTROVRSIA COM DESCARTES _________________________________________ 58 4.1 A PROPSITO DE UMA DEFINIO DE MATRIA EM LEIBNIZ ___________________________________ 58 4.2 ASPECTOS METAFSICOS E FSICOS DA MATRIA E DO MOVIMENTO ______________________________ 64 4.3 QUANTIDADE DE MOVIMENTO X FORA __________________________________________________ 77 CAPTULO 5. UMA CONTROVRSIA COM NEWTON____________________________________________ 87 5.1 MATRIA E ESPAO EM NEWTON _______________________________________________________ 87 5.2 ESPAO ABSOLUTO X ESPAO RELACIONAL ________________________________________________ 96 5.3 O VAZIO _________________________________________________________________________ 111 CAPTULO 6. A SUBSTNCIA INDIVIDUAL, A MNADA E O HOMEM ______________________________ 121 6.1. ASPECTO LGICO: TEORIA DA PREDICAO E NOO COMPLETA _____________________________ 126 6.2 ASPECTO METAFSICO: AS MNADAS ____________________________________________________ 133 6.3 ASPECTO FSICO: FORA______________________________________________________________ 145 6.4 A SUBSTNCIA DO PONTO DE VISTA DO CONTNUO E DO INFINITO _____________________________ 163 CONCLUSO __________________________________________________________________________174 REFERNCIAS_________________________________________________________________________179

  • 2

    INTRODUO

    A dinmica de Leibniz o ponto de partida deste trabalho. Apresentada a

    partir do contraponto com a mecnica cartesiana ela se mostra como o fundamento das suas

    idias sobre unidade, matria, espao, natureza. Neste trabalho pretendemos investigar as

    conseqncias da abordagem dinmica da metafsica leibniziana. A hiptese fundamental da

    nossa investigao que a relao estabelecida entre os conceitos de espao e matria e a

    metafsica leibniziana focada na substncia origem de uma tese que merece ser investigada.

    O esclarecimento das noes de espao, matria e substncia, vistos sob a tica do conceito de

    movimento, reflete a posio de Leibniz quanto dificuldade metafsica de conciliao entre

    a unidade e a multiplicidade, entre a infinidade do Universo e o fato deste ter sido criado.

    O caminho escolhido por Leibniz parece renovador uma vez que existe a

    proposio de um novo termo, mnada, e este aparece representando o verdadeiro elemento

    fundador daquilo que ns chamamos realidade. A Monadologia um texto tardio, escrito em

    1714, e sintomtico que tenha sido publicada sob o ttulo Princpios da Filosofia1. Parece-

    nos que este texto se apia em uma doutrina j apresentada, cujo desenvolvimento se d como

    resultado de uma tentativa de articular os vrios elementos abordados em outros textos em

    torno de um novo ponto aglutinador, a saber, a mnada.

    A proposta de acomodar a ordem da natureza captada atravs da matemtica

    com a necessidade de uma cosmologia pode ser encontrada em vrios outros textos2 nos

    quais, alm das discusses clssicas sobre o estatuto da substncia, sobre Deus e o homem,

    sobre a natureza do corpo e da alma, h tambm referncias mais ou menos breves a noes

    como o infinito, o contnuo, o espao, como se seu conhecimento permitisse organizar uma

    1 A monadologia foi composta em francs e no foi publicada em vida por Leibniz. Referimo-nos ao ttulo dado traduo latina elaborada por Hanche e publicada em 1721, e mantido como subttulo nas edies seguintes da Monadologia. Cf. Boutroux, E. claircissements. In: Leibniz, G. W. La monadologie. Paris: Delagrave, 1978. 2 Por exemplo, Discurso de metafsica (1686), Sistema novo da natureza e da comunicao das substncias (1695), Princpios da natureza e da graa (1711), alm das Correspondncias com Arnauld(1686-1690) e com Clarke (1715-1716), entre outros.

  • 3

    nova filosofia em que a fsica e a metafsica pudessem estar harmonicamente dispostas do

    mesmo lado, e no em lados opostos3.

    Para Leibniz o mundo pode ser entendido como resultante da conformao

    entre princpios lgicos, como o princpio de identidade e de contradio, epistemolgicos,

    como o princpio de razo suficiente, e morais, como o princpio do melhor, aos quais so

    somados outros princpios ordenadores do mundo e das relaes entre os seres. Eles so

    fundamentais para a compreenso de um tipo de mecanicismo leibniziano que, por um lado,

    responsvel por aproximar o autor de outros filsofos modernos, como Descartes, sem, por

    outro lado, afast-lo da tradio aristotlico-tomista. Mas a sua defesa da recuperao de

    certos temas e conceitos escolsticos (como a forma substancial) que refora a tese de que a

    aproximao de Leibniz com os filsofos modernos mecanicistas deve ser vista com cautela,

    motivo pelo qual pretendemos apontar significativas semelhanas e diferenas entre eles4.

    Prope-se, neste texto, uma anlise da continuidade ou decorrncia entre as

    principais teses leibnizianas relativas natureza do espao e a teoria da substncia.

    Consideramos que a afirmao suposta e intuitivamente compreendida de que a obra

    leibniziana compe um todo sistematizvel contrasta com as diversas leituras que fragmentam

    e diferenciam suas preocupaes em independentes cortes fsico, moral, teolgico ou

    metafsico. Entretanto, esperamos que a discusso sobre um suposto sistema possa, aqui, ser

    deixada de lado desde que encontremos uma via de comunicao entre os requisitos do espao

    e as substncias que organizam e compem o universo leibniziano.

    H um esclarecimento a ser feito, antes de iniciarmos nossa exposio. A

    substncia que, ao lado dos princpios primeiros, pode ser considerada ponto de partida para a

    construo da filosofia leibniziana , neste texto, ponto de chegada. Cientes da importncia

    deste conceito para Leibniz acreditamos que, com a ajuda subsidiria da anlise de outros

    elementos da sua filosofia, notadamente relativos sua fundamentao do mundo natural em

    face de uma cosmologia que institui o tempo e o espao, a idia de substncia seja

    esclarecida. Nesse sentido no defenderemos uma posio quanto discusso sobre a suposta

    3 No final da Monadologia ele diz: Assim como acima estabelecemos uma harmonia perfeita entre dois Reinos naturais: um das causas Eficientes, outro das Finais, devemos notar aqui, ainda, uma outra harmonia entre o reino Fsico da Natureza e o reino Moral da Graa, quer dizer: entre Deus considerado como Arquiteto da Mquina do universo e Deus considerado como Monarca da Cidade divina dos Espritos. Esta Harmonia leva as coisas a conduzirem Graa pelos prprios caminhos da Natureza. Leibniz, G. W. A Monadologia. (1714). Trad. M. Chau. So Paulo: Abril Cultural, 1979, 86-87. 4 Vide, por exemplo, sua concepo sobre a natureza da matria, destoante daquela defendida tradicionalmente pelos representantes do mecanicismo. Cf. Koyr, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006.

  • 4

    identidade conceitual entre a substncia individual tal como definida no Discurso de

    metafsica em 1686 e a substncia simples definida como mnada em 17145. Para a presente

    investigao tal discusso despropositada uma vez que este texto est direcionado para a

    compreenso ampla do conceito de substncia, e basta-nos assumir que h uma idia de

    substncia que pode ser entendida como o referencial, fixo, a que os conceitos especficos

    de mnada, substncia individual e fora remetem.

    A inobservncia da histria do que chamamos de filiao do conceito de

    substncia se deve a aceitao da tese de que o enfoque especfico do autor em cada poca

    justifica sua definio em termos lgicos, como em 1686, ou em termos metafsicos, como em

    1714. Acreditamos que para os nossos propsitos no devemos ir alm dessa constatao sob

    pena de defendermos antecipadamente um carter unvoco ou dspar para a definio de um

    conceito ao qual desejamos compreender em todos os seus aspectos. Desse modo reafirmamos

    nossa posio margem dessa discusso e aceitamos a posio bsica de que sob o conceito

    de substncia se encontram tanto a substncia lgica retratada pelo Discurso de metafsica

    quanto a substncia metafsica da Monadologia, alm da substncia como substrato do mundo

    fsico do Sistema novo da natureza e da comunicao das substncias, de 1695. Acreditamos

    que essa opo metodolgica no traz prejuzos para a construo do entendimento do que

    seja a substncia leibniziana.

    Formalmente este trabalho foi dividido em seis captulos: o primeiro contm

    uma apresentao geral dos princpios norteadores da filosofia de Leibniz e uma anlise das

    conseqncias desses princpios para a organizao do mundo natural. No segundo captulo

    apresentamos a defesa leibniziana da causa final e do seu papel fundamental na compreenso

    do mundo teleologicamente organizado. O captulo trs contm uma apresentao do

    mecanicismo cartesiano e a viso de Leibniz sobre esse mecanicismo, alm da apresentao

    da dinmica leibniziana. Os captulos quatro e cinco so dedicados matria, movimento e

    substncia. No captulo quatro abordamos as noes de espao, matria e movimento atravs

    da perspectiva de Leibniz em relao s posies de Descartes, que continua aparecendo

    como contraponto de leitura. No captulo cinco abordamos as mesmas questes sob a tica da

    discusso ente Leibniz e os newtonianos, representados por Clarke, telogo reconhecido como

    porta-voz de Newton. O ltimo captulo faz referncias cosmologia leibniziana atravs da

    investigao da noo de substncia tomada em diversas abordagens. A substncia individual

    5 Sobre essa discusso ver, por exemplo, Fichant, M. Da substncia individual mnada. Analytica, Rio de Janeiro, 2000, v. 5, n.1/2, p.11-34. l

  • 5

    pensada como potncia criadora e eterna, e este ser o momento de estabelecermos a ligao

    entre o mundo natural e os diferentes aspectos componentes das substncias fundadoras de

    tudo o que h.

  • 6

    CAPTULO 1. O LUGAR DOS PRINCPIOS NA FILOSOFIA LEIBNIZIANA

    Um ponto de partida para a anlise dos princpios da filosofia leibniziana

    dado pelas consideraes de Aristteles sobre os princpios. Para Aristteles mediante os

    princpios, e a partir deles, que se conhecem as demais coisas6. Segundo Reale, Aristteles

    utilizava o termo princpio, na maioria das vezes, como sinnimo de causa ltima7.

    Causa ou princpio de algo no mais do que o porqu da prpria coisa (...): a razo de ser da coisa, aquilo por qu a coisa e aquela que . As causa e os princpios, portanto, podem ser definidos como as condies ou os fundamentos das coisas, enquanto so o que funda e condiciona as coisas: se se excluem as causas e os princpios, excluem-se imediatamente as prprias coisas8.

    A identificao entre princpio e causa freqente. No sentido dessa

    identificao os princpios aristotlicos referem-se ao que podemos considerar o fundamento

    primeiro, no de algo em particular, mas de todas as coisas sem distino, de todos os seres;

    so enunciados atravs de proposies fundamentais donde se derivam outras proposies a

    elas subordinadas. No so demonstrveis ou dedutveis de outras proposies, embora

    possam manter relaes de complementaridade entre si. No precisam de prova, visto que so

    primeiros e mais simples que as outras proposies9. Eles devem obedecer ao que podemos

    atualmente enquadrar como resumidos pelos seguintes critrios: da consistncia (segundo o

    qual nenhuma conjuno de axiomas implica contradio), da completude (afirmativo de que

    todas as verdades do campo das cincias dos axiomas podem ser derivadas) e da

    independncia (segundo o qual nenhum princpio um teorema dos outros)10.

    6 Aristteles, Metafsica, 982b. In: Barnes, J. (Ed.). The complete works of Aristotle. Oxford: Princeton University, 1984. 7 Ensaio introdutrio de G. Reale. In: Aristteles, Metafsica. Trad. M. Perine. So Paulo, Loyola, 2001, vol. 1, p. 38. 8 Ensaio introdutrio de G. Reale. In: Aristteles, Metafsica. So Paulo, Loyola, 2001, vol. 1, p. 38. 9 Nas correspondncias com Clarke Leibniz, entre surpreso e indignado com o tratamento que seu interlocutor dispensa ao princpio de razo suficiente, se pergunta: Ser um princpio que precise de provas?. In: Leibniz, G. W. Correspondncia com Clarke (1715-6). Trad. C. L. Mattos. So Paulo: Abril Cultural, 1979, Quinta carta de Leibniz, 125. 10 Para a exposio dos critrios norteadores dos princpios aristotlicos cf. Aristteles, Fsica, I, 5, 188a27.

  • 7

    Na filosofia de Leibniz so empregados vrios princpios, apresentados sob

    diversas formulaes; tantas, a ponto de Deleuze consider-los excessivos. Para ele trata-se de

    uma das marcas da atitude barroca na filosofia leibniziana:

    Leibniz tem uma concepo muito especial dos princpios, barroca na verdade. Ortega y Gasset faz uma srie de observaes sutis a esse respeito: de um lado, Leibniz ama os princpios, sendo sem dvida o nico filsofo que no pra de invent-los, e os inventa com prazer e entusiasmo brandindo-os como armas; mas, por outro lado, ele brinca com os princpios, multiplicando-lhes as frmulas, variando suas relaes, e no pra de querer prov-los como se, amando-os em demasia, faltasse ao respeito para com eles11.

    A multiplicidade de princpios mencionada acima no precisa ter, entretanto, o

    sentido do excesso apontado por Deleuze. Diferentemente de Aristteles, para Leibniz os

    princpios admitem derivaes. O que foi considerado excessivo por Deleuze , na realidade,

    marca da mudana de perspectiva sobre o que um princpio, bem como sobre seu papel na

    constituio do conhecimento. O excesso, se houver, lgico, em funo dos teoremas

    deduzidos dos princpios. Leibniz afirma, no incio do Discurso de metafsica, que a

    simplicidade das vias equilibra-se com a riqueza dos efeitos12, de modo que devemos buscar,

    sempre, a partir do menor nmero de princpios a maior variedade de efeitos, como regra

    geral derivada da perfeio da conduta divina. As formulaes desses princpios so

    frequentemente alteradas ao longo dos seus textos, embora mantenham, grosso modo, algo do

    seu sentido original. Leibniz admite a necessidade de estabelecer o fundamento da realidade

    em alguns princpios primeiros, uma vez que os princpios so, em ltima anlise, frutos da

    razo divina, de onde tudo derivado inclusive a realidade. Deste modo, o mundo, fruto de

    uma razo inteligente, deve estar ordenado por princpios basilares aos quais devemos

    conhecer se desejamos obter a verdade13.

    Sobre o papel da verdade e sobre o modo da sua obteno cabe um

    esclarecimento. Segundo Olaso, no final da dcada de 1670 Leibniz produz uma srie de

    11 Deleuze, G. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus, 1991, p. 79. 12 Leibniz, G. W. Discurso de metafsica (1686). Trad. M. S. Chau. So Paulo: Abril cultural, 1979, vol. I. (Col. Os pensadores), art. 5. 13 Esta tese est presente em diversos textos de Leibniz entre os quais destacamos os Essais de Thodice (1710), premire e Deuxime parties. Ela tambm est presente em alguns opsculos, entre os quais citamos Todo posible exige existir e Consecuencias metafsicas del principio de razn, ambos in: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982.

  • 8

    escritos destinados a refutar o ceticismo14. Tradicionalmente as investigaes sobre o

    conhecimento se dedicam, antes de tudo, a responder aos argumentos cticos, organizando

    suas teses a fim de, ao menos, se proteger contra uma tradio filosfica que inviabiliza

    quaisquer pretenses racionais ao conhecimento verdadeiro ou definitivo. A discusso sobre

    os limites do que se pode saber antiga na filosofia. Desde sua formulao radical, negando

    ao homem qualquer possibilidade de conhecimento, com Pirro de Elis (360-270 a.C.),

    passando por Montaigne (1533-1592) durante o renascimento, at o chamado ceticismo

    moderado15 de alguns modernos, como Gassendi, ou at mesmo os relativistas

    contemporneos que duvidam da possibilidade de justificao racional das crenas, o ctico

    vem se dedicando crtica da justificao racional do conhecimento e ao problema da

    decidibilidade, isto , dificuldade de se encontrar critrios de deciso quando nos deparamos

    com teorias concorrentes na explicao do mundo.

    A preocupao leibniziana, comum com a de outros filsofos modernos, era a

    de encontrar elementos que garantissem a validade do conhecimento de base racional.

    posterior a 1676 o opsculo Sobre los principios, cujo foco defender a

    legitimidade das demonstraes derivadas de princpios princpios que, por definio, no

    so demonstrveis. Segundo Leibniz, se os dois princpios originais do conhecimento no so

    verdadeiros, no existe absolutamente nenhuma verdade nem conhecimento. Esses dois

    princpios afirmam que tudo o que podemos conhecer proveniente ou da razo ou da nossa

    capacidade de perceber o mundo externo atravs dos sentidos. Aceitar os princpios representa

    a possibilidade de desenvolvimento de todo o conhecimento, ou seja, sua aceitao

    necessria para responder ao argumento ctico com que se ocuparam os filsofos desde a

    antiguidade: como podemos fundamentar o conhecimento?

    Leibniz inicia o texto mencionado acima afirmando que o conhecimento tem

    sua origem em um entre dois modos possveis, denominados princpios:

    Os dois primeiros princpios, o de razo (o que idntico verdadeiro e o que implica contradio falso) e o da experincia (uma diversidade percebida por mim), so tais que permitem que se demonstre, primeiro, que

    14 Introduccin. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Ed. E. Olaso. Trad. T. E. Zwanck. Madrid, A. Machado, 1982, p. 237. 15 Cf. Popkin, R. A histria do ceticismo de Erasmo a Espinosa. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.

  • 9

    impossvel demonstr-los; segundo, que todas as demais proposies dependem deles.16

    No texto Leibniz defende a idia de que toda demonstrao , na verdade, uma

    reduo ao absurdo. A reduo ao absurdo pode ser entendida como um tipo de prova de

    verdade dos princpios: ao invs de se determinar a prova da verdade de uma proposio por

    reduo a uma identidade, ou seja, verificando sua identidade, neste tipo de prova o foco

    provar a verdade de uma proposio (p) atravs da reduo do seu oposto (no-p) a uma

    contradio. Ao longo do texto Leibniz defende a idia de que demonstrar refutar17. Se os

    princpios no podem ser demonstrados, ento no podem ser refutados. Os citados princpio

    da razo e princpio da experincia so chamados de princpios primeiros porque sua

    demonstrao a partir de outros princpios impossvel e porque todas as demais proposies

    dependem deles. A contradio falsa, supe a razo: nada pode ser e no ser ao mesmo

    tempo. A experincia, por sua vez, diz respeito ao que nos afeta de modo fenomnico: os

    registros da faculdade sensvel se reportam a algo que pensado e que por isso afeta o sujeito

    da percepo, uma vez que a experincia atuaria como indcio do mundo em que estamos

    inseridos18. Em um segundo passo, uma vez garantida a possibilidade do conhecimento,

    atravs da contingncia regente das infinitas possibilidades alcanamos o real via razo

    suficiente e contradio. Isso porque os dois princpios fundamentais do conhecimento so

    identificados com a verdade que, como veremos, pode ser enunciada sob duas possibilidades:

    a verdade (lgica) de razo e a verdade relativa s percepes imediatas dos sentidos, cuja

    garantia de verdade ser conferida pela percepo individual do sujeito mediante o princpio

    de razo suficiente. Trata-se, neste caso, da acomodao de princpios (axiomticos) lgicos e

    morais: h a necessidade de um princpio de contradio porque existem infinitos mundos

    possveis, ordenados e diferenciados por este princpio. E porque apenas um dos possveis (o

    melhor) tornado real, que somos conduzidos pelo princpio de razo suficiente.

    Os princpios so usados por Leibniz no sentido comum de que no h

    proposio verdadeira mais evidente de que um princpio. Esse sentido, entretanto, acaba

    gerando algumas dificuldades, uma vez que o filsofo no muito rigoroso no uso do termo

    princpio. A rigor, o termo s deveria ser aplicado a proposies simples, que no podem ser 16 Sobre los principios (1676). In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Ed. E. Olaso. Trad. T. E. Zwanck. Madrid, A. Machado, 1982, p. 291. 17 Ver tambm Introduccin. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 241. 18 Cf. Advertencias a la parte general de los principios de Descartes (redigidas em 1691 e corrigidas em 1697). In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 478-481.

  • 10

    provadas. Mas para Leibniz ele pode ser aplicado nas proposies derivadas, como veremos

    ser o caso dos princpios do melhor e da identidade dos indiscernveis. usado tambm,

    meramente, como sinnimo de incio em referncia origem das investigaes filosficas.

    Pretendemos apontar, seno o papel definitivo desses princpios para a construo do corpo

    filosfico leibniziano, a organizao das relaes entre eles.

    Os princpios de razo suficiente (epistemolgico) e de contradio (lgico)

    so fundamentais para a manifestao do desejo de Deus pelo bem representado pelo

    princpio do melhor (moral). Esses trs princpios so bastante utilizados ao longo de toda

    obra leibniziana, mas suas formulaes sofrem algumas alteraes dependendo da poca ou

    do enfoque do texto em que esto inseridos. Assumimos neste texto a tese de que esses trs

    princpios so fundamentais para a constituio da sua filosofia19. Vejamos algumas das suas

    caractersticas.

    19 Sobre a importncia dos trs princpios e, principalmente, sobre a incluso do princpio do melhor entre os elementos fundamentais da filosofia leibniziana cf. Rescher, N. Contingence in the philosophy of Leibniz. The philosophical review. Vol. 61, n. 1, 1952, p. 26-39.

  • 11

    1.1 O PRINCPIO DO MELHOR

    O princpio do melhor um princpio finalista: visando a um fim que Deus

    encontra o caminho mais simples para produzir a maior riqueza de fenmenos no universo.

    Nos Princpios da natureza e da graa fundados na razo (1714) Leibniz afirma:

    Da perfeio suprema de Deus segue-se que, ao produzir o universo, Ele elegeu o melhor Plano possvel, no qual existisse a maior variedade possvel associada maior ordem possvel; o terreno, o lugar, o tempo mais bem dispostos, o mximo efeito produzido pelas vias mais simples; e o mximo de potncia, o mximo de conhecimento, o mximo de felicidade e de bondade que o universo pudesse admitir nas criaturas.20

    Este um retrato de mundo possvel de mxima perfeio. A racionalidade de

    Deus implica afirmar que o mundo foi criado com o mnimo de esforo. Atravs de um

    clculo, que envolve produzir o mximo efeito com o mnimo de esforo, os compossveis so

    tornados reais neste que o melhor dos mundos possveis, em termos das propriedades da

    realidade. o que tambm est sugerido no j mencionado artigo 5 do Discurso de metafsica,

    cujo ttulo Em que consistem as regras de perfeio da conduta divina e como a

    simplicidade das vias equilibra-se com a riqueza dos efeitos21. So compossveis os seres

    possveis co-existentes. Vejamos o que isso significa.

    A escolha divina uma escolha racional orientada para o cumprimento da

    perfeio, contida no universo, de realizar o melhor. Enquanto fonte de verdades eternas,

    Deus age guiado pelo seu entendimento, e no por sua vontade. Por outro lado, enquanto

    fonte de verdades contingentes, Deus age por sua vontade, a qual regulada por uma

    necessidade moral da escolha do melhor. Para a conciliao entre a vontade e o entendimento

    divinos esto sua disposio os infinitos seres (logicamente) possveis. Os chamados seres

    possveis desempenham um papel fundamental na metafsica leibniziana. Grosso modo, o

    possvel refere-se quele ser cuja descrio completa no contm contradies, no encerra

    qualquer contradio interna. Segundo Serres, Leibniz afirma que apenas relativamente a

    Deus a possibilidade implica em existncia: apenas em Deus o possvel se vincula

    20 Leibniz, G. W. Princpios da natureza e da graa fundados na razo (1714). Trad. A. C. Bonilha. So Paulo: Martins Fontes, 2004, 10, p. 159. 21 Leibniz, G. W. Discurso de metafsica (1686). Trad. M. S. Chau. So Paulo: Abril cultural, 1979, vol. I. (Col. Os pensadores), art. 5.

  • 12

    necessariamente com o existente. J quanto aos seres criados (ou seja, no mbito das

    chamadas verdades de fato), a existncia implica sempre em possibilidade prvia, mas a

    possibilidade no implica em existncia22. Isso significa dizer que a possibilidade um

    princpio da essncia. As possibilidades para o ordenamento e acomodao dos seres criados

    so tarefas restritas do intelecto divino, pois, do contrrio, nada haveria que se esperar da

    providncia23. Escolher, entre os infinitos possveis, um determinado conjunto de seres para

    compor o mundo criado, tornando-os existentes, , para Leibniz, uma tarefa divina, pois

    apenas Seu intelecto seria capaz de compor um mundo entre todas as possibilidades

    resultantes da combinao dos diferentes possveis.

    As possibilidades levam em conta os compossveis, ou seja, a combinao

    entre todos os possveis em vista um fim especfico24. Segundo Leibniz o sistema do mundo

    est fundamentado na natureza dos possveis tomados como aquilo que jamais implica

    numa contradio. Por isso os possveis tornados reais devem sempre ser entendidos nos

    sentido de compossveis escolhidos segundo o princpio do melhor25.

    Do intelecto divino podemos afirmar a perfeio como resultante da

    combinao entre potncia, sabedoria e bondade26. As escolhas realizadas por este intelecto

    resultam no mundo harmonicamente criado que , necessariamente, o melhor. Existem

    infinitas possibilidades de realidade sua disposio. Sua escolha ser pelo melhor uma vez

    que no digno de sua glria se poupar de fazer o melhor possvel27. O guia das escolhas

    dentre essas possibilidades ser sempre a razo. razo cabe, como regra, a escolha do

    melhor, que ser reconhecido como tal pelos homens segundo o bem aparente, segundo o que

    parece ser o melhor28.

    22 Serres, M. Le systme de Leibniz. Paris: PUF, 1968, p. 614. 23 Ao afirmar a responsabilidade das aes humanas s suas prprias escolhas Leibniz afirma a no interferncia direta de Deus sobre os acontecimentos do mundo criado. Sua interferncia estaria restrita ao clculo para a garantia da acomodao entre os compossveis que perfazem o melhor dos mundos. Cf. Sobre la libertad, la contingencia y la providencia (1689). In: Leibniz, G. W. Escritos em torno a la libertad, el azar y el destino. Trad. C. Roldn Panadero, R. Rodriguez. Madrid: Tecnos, 1990, p. 97-105. 24 Vindicacin de la causa de Dios segn su justicia conciliada com sus dems perfecciones y el conjunto de sus acciones (1710). In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A Machado, 1982, 8. 25 Cf. Panadero, C. R. Estudio preliminar. In: Leibniz, G. W Escritos em torno a la libertad, el azar y el destino. Madrid, Tecnos, 1990, p. xii. 26 Cf. Leibniz, G. W. Essais de thodice. Paris: Flammarion, 1969, prface. 27 Cf. Leibniz, G. W. Discurso de metafsica. So Paulo: Abril cultural, 1979, art. 35-36. 28 Leibniz, G. W. Discurso de metafsica. So Paulo: Abril cultural, 1979, art. 30.

  • 13

    No Discurso de metafsica vemos Leibniz afirmar que h dois decretos divinos

    reguladores do universo criado29, ambos fundados no princpio do melhor, que , ele mesmo,

    um decreto divino livre moral:

    Ver-se-ia no ser to absoluta como a dos nmeros ou da geometria a demonstrao deste predicado de Csar, mas supe a seqncia de coisas livremente escolhidas por Deus, e que est fundada sobre o primeiro decreto livre divino, que estabelece fazer sempre o mais perfeito, e sobre o decreto feito por Deus (depois do primeiro) a propsito da natureza humana, ou seja: que o homem far sempre, embora livremente, o que lhe parecer melhor.30

    O primeiro decreto afirma que Deus faz sempre o mais perfeito. O segundo

    decreto divino afirma que o homem far sempre o que lhe parece ser o melhor. Essa

    orientao de agir conforme o que parece o melhor demonstra a disposio leibniziana em

    recusar a determinao particular e especfica sobre o homem, no sentido de garantir que no

    haja interferncias externas nas escolhas de cada um. Leibniz continua no mesmo artigo 13 do

    Discurso de Metafsica:

    [as proposies contingentes] no possuem, porm, demonstraes da necessidade, visto tais razes se fundarem apenas no princpio da contingncia ou da existncia das coisas, quer dizer, sobre o que ou parece o melhor, entre diversas coisas igualmente possveis. Por seu lado, as verdades necessrias se fundam no princpio de contradio e na possibilidade ou impossibilidade das prprias essncias, sem ter em conta a livre vontade de Deus ou das criaturas.

    Ainda que o homem aja obedecendo a um princpio imutvel, do melhor, sua

    ao ser pautada na prpria anlise do que lhe parece o melhor, garantindo, assim, a

    capacidade de decidir sobre suas aes. A questo evidente como o homem escolhe aquilo

    que lhe parece o melhor, ou seja, o que lhe d esta impresso acerca do que o melhor. H,

    certamente, um carter subjetivo nessa escolha. Se o escolhido o que parece o melhor, a

    cada indivduo essa aparncia poder ser alterada. Cabe a cada um decidir por si sobre algo

    que, em um determinado momento, lhe parece mais apropriado. A vagueza do carter

    subjetivo do critrio , entretanto, objetivada no momento em que nos damos conta de que o

    29 Note-se que a diferena entre decretos divinos de criao e decretos divinos possveis. Ambos, sendo decretos, so atos da vontade e, portanto, contingentes e derivados da liberdade de Deus. Cf. resposta carta de Arnauld de maio de 1686. In: Leibniz, G. W. Correspondencia con Arnauld. Trad. V. Quintero. Buenos Aires: Editorial Losada, 1946. 30 Leibniz, G. W. Discurso de metafsica. So Paulo: Abril cultural, 1979, art. 13.

  • 14

    princpio do melhor regente de toda estrutura teleolgica do universo atual. Sendo assim, e

    tendo em vista que todos colaboram para a realizao do melhor dos mundos possveis,

    assume-se que os indivduos, por si mesmos, no tendo uma idia clara e completa do fim a

    que o universo deve realizar, no poderiam agir meramente segundo sua prpria inclinao, a

    no ser que essa inclinao estivesse prevista na atualizao desse mundo. Ser o melhor dos

    mundos possveis implica, para o mundo atual, que tudo o que acontece nele tende para um

    fim dotado da maior perfeio possvel.

    Pois como todos os Possveis pretendem existncia no entendimento de Deus na proporo das suas perfeies, o resultado de todas essas pretenses deve ser o Mundo Atual, o mais perfeito possvel.31

    Ora, a esto includos todos os atos, bons e maus, todos os seres mais e menos

    perfeitos com suas limitaes. Os seres devem realizar suas aes em vista do fim que, uma

    vez atualizado neste que o melhor dos mundos possveis tornado atual, o mais perfeito,

    porque no h outro possvel que satisfaa mais a Deus do que o presente. Desse modo j no

    se trata de agir segundo o que parea o melhor; na prtica a ao deve realizar o melhor.

    Trata-se, portanto, de agir segundo o melhor. A aparncia do melhor perde espao para o

    melhor atual, um nico possvel.

    Os dois decretos a que Leibniz se refere no Discurso de Metafsica, ou seja, (1)

    fazer sempre o que for o mais perfeito e (2) realizar o que parecer ser o melhor, so aplicveis

    ao universo criado e so distintos dos decretos possveis, reguladores dos possveis que no

    foram ou no sero atualizados.

    A questo dos decretos divinos traz uma questo de fundo: o mundo fruto da

    vontade ou do entendimento divino? H diferena entre mundo criado e mundo possvel no

    que se refere a essa questo? Segundo o constante nas cartas para Arnauld, entendimento e

    vontade so faculdades de Deus. O entendimento divino, como vimos, a faculdade que

    concebe todas as possibilidades, e a vontade escolhe, entre os possveis, o melhor conjunto de

    compossveis para tornar real. Ou seja, atravs da explicao do princpio do melhor Leibniz

    afirma que este mundo no logicamente necessrio. Este mundo contingente ser

    denominado hipoteticamente necessrio em alguns textos32, o que nos d oportunidade para

    analisar a distino entre o necessrio e o contingente, assunto presente no prximo tpico, ao

    31 Leibniz, G. W. Princpios da natureza e da graa fundados na razo. So Paulo: Martins Fontes, 2004, 10. 32 Leibniz, G. W. Da origem primeira das coisas (1697). Trad. C. L. de Mattos. So Paulo: Abril cultural, 1979.

  • 15

    mesmo tempo em que nos ajuda a esclarecer que ainda que no hajam contradies

    envolvidas em algumas proposies, como na afirmao da existncia deste mundo, pode

    haver imperfeio no sentido de falha moral, e assim como devemos rechaar, logicamente,

    qualquer proposio que envolva contradio, devemos rechaar qualquer uma que envolva

    imperfeio ou falha moral, ainda que no pelos mesmos motivos.

    Para compreendermos como so organizados os possveis e o que explica a

    escolha dos compossveis (e, ao faz-lo, imediatamente, cria os incompossveis) dentro da

    estrutura lgica do mundo que precisamos recorrer ao princpio de contradio como o

    regente do que necessrio e ao princpio de razo suficiente como regente das contingncias,

    assuntos dos prximos tpicos.

  • 16

    1.2 PRINCPIO DE CONTRADIO: POSSIBILIDADE, VERDADE E NECESSIDADE

    A formulao clssica do Princpio de Contradio bastante conhecida, seja

    pelo seu enfoque ontolgico, nada pode ser e no ser simultaneamente33, seja pelo seu

    enfoque lgico, necessrio que toda assero seja ou afirmativa ou negativa34. Como

    princpio de toda demonstrao ele no pode ser objeto de demonstrao. Assumimos sua

    validade, ao modo aristotlico, pela via da refutao ou, como diz Reale, de uma mostrao

    contra os que o negam35. Atravs dele se afirma, de modo geral, que impossvel o mesmo

    pertencer e no dever pertencer ao mesmo36.

    Para Aristteles o princpio de contradio se configura em relao ao que

    determinado, e desse modo que ele se apresenta em relao ao ser e a toda metafsica

    clssica. Trata-se, ento, da reciprocidade entre o ser e o verdadeiro. Se alguma coisa , a

    proposio sobre a qual se afirma que ela ser verdadeira.

    Para Leibniz o princpio de contradio afirma que uma proposio ou

    verdadeira ou falsa37. Ao identificar o princpio de contradio como busca pela prova da

    identidade38, ou a busca pelas chamadas verdades idnticas39, ele deixa de lado sua esfera

    ontolgica e o filia lgica, tornando-o fundamento das verdades de razo40. Mas ainda assim

    ele pode ser visto, segundo Marques, como o princpio sobre o qual se assenta a

    possibilidade das diversas substncias individuais41, ou seja, como um autntico princpio

    ontolgico. Tomada isoladamente, cada substncia individual afirmada como possvel deve

    33 Aristteles, Metafsica, III, 2, 996b30; IV, 2, 1005b24. 34 Aristteles, Metafsica, III, 2, 996b29 35 Ensaio introdutrio de G. Reale. In: Aristteles, Metafsica. So Paulo, Loyola, 2001, vol. 1, p. 132. 36 Leibniz expe uma argumentao semelhante ao de Aristteles (Metafsica, 4, 3 1005b 19-20) no Dilogo entre um telogo y um missofo. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 248. 37 Leibniz, G. W. Novos ensaios do entendimento humano. Trad. L. J. Barana. So Paulo: Abril Cultural, 1996, Livro IV, Captulo II, 1. 38 Desde a filosofia moderna, frequentemente assumimos que o princpio de identidade desdobra-se em princpio de contradio e princpio do terceiro excludo. Leibniz, no comentrio ao artigo 7 das Advertencias a la parte general de los principios de Descartes, afirma a equivalncia entre os princpios de identidade e de contradio. Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 481. 39 Cf. Leibniz, G. W. Novos ensaios do entendimento humano. Trad. L. J. Barana. So Paulo: Abril Cultural, 1996, Livro IV, Captulo II, 1. 40 Cf. Leibniz, G. W. A monadologia. (1714) Trad. C. L. Mattos, P. R. Mariconda, L. J. Barana, M. S. Chau. So Paulo: Abril Cultural, 1979, 31-33. 41 Marques, E. Possibilidade, compossibilidade e incompossiblilidade em Leibniz. Kriterion, Belo Horizonte, 2004, vol.45, n.109.

  • 17

    ser compatvel com todas as outras, o que significa que no podem ser contraditrias com os

    modos ou atributos umas das outras. anlise desses desdobramentos relativos ao escopo

    lgico dos possveis, ligados ao Princpio de Contradio, que vamos nos dedicar aqui.

    Segundo Leibniz, Deus no poderia criar o mundo deixando de levar em conta

    o arbtrio da sua vontade, pois, se Deus quisesse ou fizesse algo sem razo, se seguiria que

    pode querer e atuar de forma imperfeita. Se a escolha divina se baseia numa razo que

    precede a sua vontade, isso significa que a razo (que prevalece e) que leva a vontade a se

    decidir uma razo determinante da mesma, com o que Deus, por mais que sua escolha se

    realize entre infinitas possibilidades, estaria obrigado, por seu entendimento, a escolher o

    melhor. Para Leibniz, Deus poderia haver escolhido, em termos metafsicos, qualquer dos

    infinitos mundos possveis, mesmo que no fosse o melhor42. Mas isso, em termos morais,

    seria impossvel. Ou seja, Deus pode produzir tudo o que possvel (isso no implica em

    contradio), mas quer produzir o melhor entre os possveis43.

    A princpio todos, exceto Deus, so meramente possveis, ainda que aspirem

    existncia44 como condio da sua possibilidade. Para o filsofo a existncia para todos,

    exceto Deus, contingente (ou no necessria), dado que h possveis que no foram, nem

    sero, jamais existentes45, no por razes lgicas, nem por razes suficientes, mas por uma

    razo teleolgica. em funo do fim proposto que os possveis podem ser ditos

    incompatveis com outros. Com efeito, a idia de Deus a nica em que a possibilidade

    lgica traz consigo a necessidade ontolgica46. Mas se todos os possveis se tornassem

    existentes haveria a substituio do reino das possibilidades pelo da necessidade. Para evitar

    que possveis e necessrios sejam confundidos Leibniz salienta a manuteno do carter

    contingente dos primeiros: apenas aqueles que satisfazem o carter teleolgico do melhor dos

    mundos sero afirmados como existentes. E no somente pelo fato de poder ser concebido

    (ser possvel) que algo pode ser produzido.

    42 nisto, na escolha, que consiste a liberdade divina. 43 Leibniz, G. W. Correspondncia com Clarke (1715-6). Trad. C. L. Mattos. So Paulo: Abril Cultural, 1979, vol. I, Quinta carta, 9, 73,76. 44 Cf. La profesin de fe del filsofo. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 115-169. 45 Cf. Acerca de la libertad carente de necesidad em la eleccin (1680-1684). In: Leibniz, G. W. Escritos em torno a la libertad, el azar y el destino. Trad. C. Roldn Panadero, R. Rodriguez. Madrid: Tecnos, 1990. 46 Veja o comentrio ao artigo 14 da parte I dos Princpios de Filosofia de Descartes, nas Advertencias a la parte general de los Principios de Descartes. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 483-485.

  • 18

    O possvel tem nfase lgica e no ontolgica, excetuando o que se refere a

    Deus. Embora aparentemente bvia, essa tese merece destaque por parte do filsofo como

    forma de garantir a infinita variedade do mundo (em virtude da diversidade dos

    compossveis47) e das liberdades individuais; os indivduos tornados existentes no tem a

    imposio da vontade divina sobre suas caractersticas (predicados). Sua existncia deve ser

    regulada por algum princpio que norteie a escolha dos possveis eleitos. Como o nico ser

    que existe necessariamente Deus, cabe a Ele querer escolher os mais perfeitos entre os

    possveis. A definio deste princpio Deus quer o mais perfeito48 tem uma explicao

    bastante peculiar. Segundo o filsofo questionar a vontade de Deus como princpio originrio

    dos existentes significa que no se compreendeu que Deus livre para querer; e que seu

    querer fruto da sua liberdade em querer querer. Ou seja, no h nada anterior vontade de

    Deus que, por isso mesmo, exerce o papel de princpio das existncias.

    Sem dvida, mesmo que Sua vontade seja sempre infalvel e conduza sempre ao melhor, o mal, ou o bem menor que rechaa, no deixa de ser possvel em si; de outro modo a necessidade do bem seria geomtrica (por assim dizer) ou metafsica e completamente absoluta; se destruiria a contingncia das coisas e no haveria escolha49.

    Como vimos, apenas Deus substncia necessria; quando escolhe criar o

    mundo e as substncias individuais, Ele j conhece de antemo todas as contingncias que as

    afetaro. Vejamos a partir de agora como o necessrio e o contingente podem ser relacionados

    em termos da determinao da verdade das proposies para Leibniz.

    Segundo ele, podemos compreender a verdade de uma proposio como

    verdade de razo, se relacionada com o princpio de contradio, ou como verdade de fato, se

    relacionada com o princpio de razo suficiente: As verdades de Razo so necessrias, e o

    seu oposto, impossvel; as de Fato, contingentes, e o seu oposto, possvel50. Lgica, a

    47 A compossibilidade rege a relao entre todas as substncias pertencentes a um mesmo mundo. Se so compossveis, ento suas caractersticas no impedem logicamente a realizao das caractersticas de quaisquer outros compossveis. Embora compreensvel sob certo ponto de vista (seja cosmolgico ou da defesa das contingncias), a compossibilidade vista sob a tica metafsica no isenta de embaraos: se as substncias no estabelecem entre si qualquer interao real, visto que sua natureza interna no se abre s interferncias de nada mais alm de si e Deus, como compreender a incompatibilidade entre duas delas? A resposta est nos futuros contingentes, o que refora a ligao entre a tese dos possveis/compossveis e a defesa da contingncia, do determinismo, e da liberdade leibniziana. Para uma discusso sobre o tema cf. Marques, E. Possibilidade, compossibilidade e incompossiblilidade em Leibniz. Kriterion, Belo Horizonte, 2004, vol.45, n.109. 48 Acerca de la libertad carente de necesidad em la eleccin. In: Leibniz, G. W. Escritos em torno a la libertad, el azar y el destino. Madrid: Tecnos, 1990, p. 196. 49 Resumen de la teodicea. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982, p. 606. 50 Leibniz, G. W. A monadologia. So Paulo: Abril Cultural, 1979, 33.

  • 19

    primeira das verdades de razo o princpio de contradio. J as verdades contingentes,

    como veremos, so aquelas em que o sujeito infinitamente complexo e apenas uma deduo

    que se prolongasse infinitamente poderia mostrar a continncia do predicado no sujeito.

    A natureza lgica da verdade consiste na identidade entre sujeito e predicado.

    Essa uma verdade necessria. Mas quando Leibniz afirma que isso vale para toda

    proposio verdadeira o que ele est dizendo que essa regra aplicvel inclusive ao domnio

    dos fatos e contingncias, e no somente ao universo lgico dos enunciados e proposies. O

    problema que no domnio dos fatos a existncia no necessria, como o pertencer do

    predicado ao sujeito. No domnio dos fatos a existncia contingente. Mas o que significa

    domnio dos fatos ou recorrer ao domnio infinito para a explicao das contingncias?

    Podemos analisar a meno aos fatos a partir de duas perspectivas. Quando refletimos sobre o

    domnio dos fatos estamos supondo que h fatos, e que esses no so absolutamente

    necessrios. E sob outra perspectiva, cabe a pergunta: como podemos enunciar verdades

    (necessrias) acerca de fatos (contingentes)?

    Para responder a essa pergunta temos que analisar mais especificamente o que

    significa para Leibniz verdade necessria (ou verdade de razo) e verdade contingente (ou

    verdade de fato). Devemos analisar qual o sentido de se afirmar uma verdade contingente sem

    exprimir um contra-senso. Salientamos, de antemo, que essa explicao s se tornar

    completa quando nos remetermos ao princpio de razo suficiente, no prximo tpico.

    Para Leibniz a natureza da verdade essencialmente una: uma predicao

    verdadeira est expressamente ou implicitamente contida no sujeito. o que ficou conhecido

    em Leibniz como a Teoria da Verdade51: trata-se da verdade pensada como a incluso do

    predicado no sujeito. Os modos de conhecermos a verdade variam: (a) atravs de mera

    verificao dos termos da proposio em que enunciada, como no caso da tautologia ou

    identidade expressa; (b) atravs de recorrncia reduo a uma identidade dos termos

    envolvidos na proposio, como no caso das proposies relativas s leis fsicas regentes do

    mundo ou das proposies matemticas; (c) por recurso anlise infinita52, prpria da

    oniscincia divina, como o caso das proposies contingentes. Inacessveis ao entendimento

    51 Os principais tipos de Teorias da Verdade admitidos pela lgica contempornea so: teorias da correspondncia, teorias da coerncia e teoria pragmatista. Cf. Haack, S. Filosofia das lgicas. Trad. Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Arajo Dutra. So Paulo: Unesp, 2002. 52 Diz-se anlise infinita quando impossvel, pela infinitude de opes, que se complete a srie de referncias analticas de determinado sujeito, ou seja, quando se consideram os fatores contingentes envolvidos em qualquer ato livre desempenhado pelo sujeito, ou quando a verdade da proposio em questo s poderia ser demonstrada atravs de um nmero infinito de passos. Voltaremos a essa questo adiante.

  • 20

    humano, limitado por natureza, as proposies relativas a fatos contingentes so conhecidas a

    priori pela oniscincia divina. Deste modo, ao menos para Deus, toda proposio verdadeira

    pode ser reduzida a uma identidade.

    Ao retratar a verdade como uma questo lgica e reduzi-la a uma identidade,

    Leibniz impossibilita que a verdade seja dita, a rigor, de qualquer contingente. Isso porque

    como para Leibniz a verdade sempre identidade, no h anlise, no sentido especfico, que

    possa revel-la. Nesse caso, o papel da anlise restrito ao de estabelecer a prova da reduo

    de uma proposio sua identidade. Em resumo, Leibniz distingue entre o que est

    expressamente e o que est implicitamente contido no sujeito, ou, segundo nossos termos,

    distingue entre o que consideramos ser proveniente de uma anlise finita e de anlise infinita.

    Proposies cuja prova de verdade pode ser obtida atravs de recurso a um nmero finito de

    passos so chamadas por Leibniz verdades necessrias ou verdades de razo;

    correspondem ao que nomeamos anlise finita. Proposies cuja prova de verdade exige algo

    como se fosse uma anlise infinita, a rigor pertinente apenas a um intelecto infinito, so

    chamadas verdades contingentes ou verdades de fato.

    Se os modos para conhecer a verdade variam, invarivel que toda proposio

    verdadeira afirmativa pode ser reduzida em termos de sujeito e predicado. Afirmar S P

    significa afirmar que P est contido em S, o que pressupe a tese de que a noo completa do

    sujeito envolve tudo o que, verdadeiramente, pode ser dito acerca dele; e que uma afirmao

    verdadeira afirma o que o sujeito da proposio sempre foi. Mas como entender suas inmeras

    menes verdade contingente53? Em se tratando de proposies verdadeiras, o predicado

    encontra-se presente no sujeito. E na compreenso do significado da expresso estar no

    sujeito que reside a explicao da possibilidade de uma verdade contingente.

    A verdade contingente corresponde ao item (c) da sobredita distino

    estabelecida entre as formas para a obteno da verdade, quais sejam: (a) ao modo de mera

    anlise da proposio em que enunciada; (b) ao modo de anlise (finita) dos termos

    envolvidos na proposio; ou (c) por recurso anlise infinita.

    Nos primeiros casos (a) e (b) temos a situao em que o sujeito e o predicado

    so idnticos. Primeiramente, estar expressamente contido no sujeito significa que o

    predicado claramente idntico ao sujeito. Ora, quais so os casos em que isso acontece?

    53 Entre outras, cf. Leibniz, G. W. Discurso de metafsica, Artigo 13; Monadologia, 36. So Paulo: Abril cultural, 1979.

  • 21

    Segundo Leibniz, ocorre em dois tipos de situaes54: (a) Nas tautologias ou proposies

    idnticas do tipo todo tringulo um tringulo e o cavalo branco de Napoleo branco.

    Nesses enunciados o predicado est expressamente contido no sujeito. Podem ser afirmados

    verdadeiros sem qualquer necessidade de informaes adicionais, como, por exemplo, sobre a

    existncia de tringulos ou sobre a natureza dos cavalos. (b) tambm o caso das proposies

    nas quais, embora no expressando uma identidade explcita, a reduo do termo sujeito

    revela, por definio, o termo predicado: todos os corpos so extensos, o retngulo um

    quadriltero.

    De acordo com Leibniz, entretanto, se isso se verifica com todas as

    proposies verdadeiras afirmativas, deve ocorrer tambm em um terceiro caso, algo diferente

    dos anteriores, uma vez que o predicado no pode ser claramente encontrado ou identificado

    no sujeito. relativo situao (c) o que ocorre nas proposies contingentes, como quando

    se afirma Brutus matou Csar, ou Csar atravessou o Rubico. A isso chamamos de estar

    implicitamente contido no sujeito. Mas, efetivamente, do que se trata? No enunciado todo

    solteiro no casado pode-se afirmar uma identidade implcita entre homem solteiro e

    no casado. Leibniz assume que a verdade de uma proposio factual deve-se a uma

    identidade. O problema desta aplicao do conceito de verdade quanto demonstrao

    dessa identidade entre sujeito e predicado. necessrio que se reconheam certos fatos para

    notar a incluso do predicado no sujeito; nos exemplos, preciso o domnio de um universo

    factual para o reconhecimento da identidade entre Csar e a travessia do Rubico, e o domnio

    de um universo semntico para se reconhecer a identidade entre o sujeito homem solteiro e o

    predicado no-casado. Em Brutus matou Csar temos a expresso do predicado no

    sujeito? Trata-se de uma expresso referente ao domnio dos fatos, mas h alguma identidade

    entre sujeito e predicado, ainda que implcita? No o que parece a primeira vista, mas no

    universo leibniziano o sujeito carrega consigo todos os seus predicados, inclusive futuros, e

    de algum modo ele identificado pelo conjunto desses predicados. No seria possvel que

    Brutus no possusse o predicado matar Csar e mesmo assim continuasse a ser Brutus.

    Todo sujeito de toda proposio representa uma substncia individual cujos

    predicados so propriedades dessas substncias. Isto , toda substncia contm todas as suas

    54 Cf. Leibniz, G. W. Novos ensaios do entendimento humano. Trad. L. J. Barana. So Paulo: Abril Cultural, 1996, Livro IV, Captulo II.

  • 22

    propriedades, qualidades e caractersticas, passadas e futuras, em si mesma55. Segundo

    Leibniz, apenas para Deus essa relao necessria entre sujeito e predicado pode ser afirmada

    a priori, mas isso no invalida sua verdade.

    Na verdade contingente, embora o predicado esteja com efeito includo no sujeito, no obstante, ainda que se continue indefinidamente a anlise de ambos os termos, nunca se chega a demonstrao ou identidade, e somente Deus, que de uma s vez abarca todo o infinito, pode ver claramente de que maneira est includo um no outro e compreender a priori a razo perfeita da contingncia, suprida nas criaturas pela experincia a posteriori.56

    Vejamos: h uma diferena entre as proposies do tipo Brutus matou Csar

    e Todo quadrado possui quatro lados ou 2+2=4. Nas proposies matemticas atravs de

    um nmero finito de passos podemos efetivamente demonstrar que o predicado est contido

    no sujeito. J com relao s proposies que relatam fatos contingentes, como a primeira

    proposio mencionada acima, seria preciso algo como um nmero infinito de passos para

    demonstrar que o predicado matou Csar estava contido no sujeito Brutus, ou seja, por

    tratar-se de conceitos infinitamente complexos a verificao da identidade nem pode comear,

    porque a noo completa de Brutus contm um conjunto infinito de realizaes que no pode

    ser analisado em um tempo finito.

    impossvel, por definio, percorrer uma srie infinita. Apenas Deus pode

    conhecer seu resultado, mesmo sem percorr-la, em um processo similar ao que acontece com

    a razo humana quando afirmamos saber o resultado da soma da srie

    1/2+1/4+1/8+1/16+1/32+.... Afirmamos saber que a soma da srie tende para 1, mas no

    podemos percorr-la, por ser infinita. Do mesmo modo, Deus conhece a tendncia e,

    consequentemente, o resultado de uma srie infinita sem que, para isso, seja preciso

    inspecion-la em todos os seus passos: Ele sabe para onde ela se dirige. A diferena entre a

    anlise finita e a anlise infinita tem conseqncia para a possibilidade de demonstrao de

    uma proposio, ou seja, ainda que o homem no possa realizar uma demonstrao, ela no

    perde seu carter.

    As verdades necessrias so demonstrveis por uma mente finita, e so

    dedutveis. J as verdades contingentes tambm so demonstrveis ( isso que faz com que

    55 A compreenso deste tipo de identidade se tornar mais clara a partir da definio de substncia e suas propriedades, apresentada nos captulos 5 e 6 deste trabalho. 56 Verdades necesarias y contingentes (1686). In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982, p. 380.

  • 23

    possamos afirmar sua verdade), ainda que ns no sejamos capazes de realizar tal

    demonstrao. Desse modo, elas so, para ns, impossveis de serem provadas. at possvel

    saber qual a sua tendncia, mas no possvel, logicamente, extrair dela seu predicado. A

    contingncia no se refere, pois, a uma necessidade lgica. Brutus inclinado a agir. A ao

    (necessria) de Brutus decorrente de acontecimentos e escolhas anteriores, e assumidos em

    funo de uma determinada valorao moral, cultural, etc., ainda que no seja possvel

    demonstrar logicamente o que o leva a agir.

    Leibniz, portanto, admite verdades necessrias e verdades ditas contingentes,

    no sentido de verdades particulares. Ambas esto contidas na noo completa de uma

    substncia individual. Desse modo, para Leibniz, contingente o que certo, visto que Deus,

    o nico capaz de compreender as infinitas complexidades envolvidas na definio de uma

    noo completa, as prev. Ao mesmo tempo, entretanto, no estamos no mbito do que

    logicamente necessrio. As proposies contingentes tm razes que explicam ser assim e no

    de outro modo, tornando-as certas, sem que sejam, por isso, necessrias no sentido lgico.

    Nota-se a heterogeneidade entre as verdades necessrias e as verdades

    contingentes. Assim, se tomarmos a proposio Scrates careca como exemplo, veremos

    tratar-se de uma proposio no sentido predicado-em-sujeito cuja verdade ao modo

    contingente (para algum), ou seja, segundo Leibniz, o aspecto de Scrates uma parte

    essencial (definidora) do seu conceito. Seu conceito envolve tudo o que verdadeiramente

    predicado de Scrates. Ainda que pudesse ser criado um mundo em que Scrates no fosse

    careca, a sua calvcie tornada atual faz parte do clculo divino que determina que este mundo

    seja o melhor. Se houvesse sido criado outro Scrates qualquer, ou Scrates com outros

    predicados, no estaramos diante do Scrates do nosso mundo, compossvel com outros

    existentes desse mundo atual, mas de outro possvel. Podemos argumentar que isso, na

    realidade, no pertence ao mbito da lgica, mas da metafsica, ainda que sob uma roupagem

    lgica. Trata-se da afirmao do Princpio de Identidade subjacente a toda proposio

    verdadeira afirmativa, ou, simplesmente, a toda verdade, o que deixa claro o carter lgico-

    metafsico da verdade para o autor.

    Proposies do tipo S P so do tipo verdade analtica se P uma

    propriedade definidora do sujeito, ainda que isso no seja percebido pela nossa razo.

    analtico para um intelecto infinito. Para Scrates ou para qualquer homem, ele , por acaso,

    careca. No sabemos por que a calvcie de Scrates contribui para o melhor dos mundos

  • 24

    possveis57, para ns ela contingente. Mas Deus, cujo intelecto e entendimento so infinitos,

    sabe o porqu. Ou seja, assim como ter a soma dos ngulos internos iguais a 180

    necessrio para um tringulo, para Deus Scrates careca tambm , em algum sentido,

    necessrio: analisando o conceito de tringulo temos revelado que, entre suas propriedades,

    est a de ter ngulos internos iguais a dois retos. Analisando o conceito de Scrates uma

    mente infinita chegaria a uma identidade similar. Mesmo que para ns no haja o vnculo

    necessrio da identidade entre Scrates e ser careca, seu carter analtico (e verdadeiro)

    conhecido por Deus, ou seja, Ele sabe que a proposio Scrates no careca

    contraditria.

    Leibniz afirma que mesmo nas verdades contingentes o predicado encontra-se

    essencialmente includo no sujeito. Vimos, porm, que no podemos demonstrar essa

    incluso, ou seja, no podemos reduzir analiticamente o termo predicado ao termo sujeito.

    Leibniz afirma que a demonstrao ou identidade das verdades de fato substituda nas

    criaturas pela experincia, dado que apenas Deus pode compreender a priori a identidade

    presente nas verdades contingentes.

    Por que razo algumas proposies verdadeiras sobre nosso mundo so

    verdades contingentes dado que tudo o que ocorre nesse mundo necessitado? Segundo

    Leibniz, este mundo no necessrio, no tinha que ser. No h limite no nmero de mundos

    possveis que podem ser definidos, e, em tese, nenhum deles precisa existir. Logo, este

    mundo, um entre um nmero ilimitado de outros possveis, no necessrio. Do ponto de

    vista lgico no h razo para que este e no outro possvel qualquer exista, e por isso este

    mundo contingente. O possvel contribui para a contingncia medida que introduz o direito

    de uma lgica incriada, absoluta, cuja validade de aplica do mesmo modo para ns e para

    Deus58. Como vimos, se a proposio S P analtica (ainda que no seja para ns) se

    segue que S P uma verdade necessria. Necessrio diz respeito ao pertencer a

    propriedade P ao sujeito S. Assim como o necessrio se afirma dos possveis, o contingente se

    afirma dos existentes.

    Mas por que existe este e no outro? Por causa da vontade de Deus, que

    estabelece as leis da natureza. Qualquer substncia criada traz em si todas as verdades

    contingentes derivadas da vontade de Deus. Esse mundo quase-necessrio porque o 57A expresso mundos possveis usada quando se quer designar o que possvel em funo das suas estruturas internas e no em funo das caractersticas de relaes externas. Sua descrio completa e ele est logicamente estruturado de maneira consistente. Ser possvel significa no apresentar contradio. 58 Cf. Belaval, Y. Leibniz critique de Descartes. Paris: Gallimard, 1960, p. 379.

  • 25

    mundo que O compraz, mas, ainda assim, no logicamente necessrio; mesmo sabendo que

    Deus no o faria de outro modo, j que nenhum outro mundo o agradaria tanto quanto este. As

    verdades necessrias, uma vez sendo fruto do Seu entendimento59, so tambm objetos do

    entendimento humano. Mas diferentemente da apreenso imediata dessa verdade por Deus,

    para os homens, esse entendimento s se apresenta enquanto decorrente dos atos de reflexes

    levados a cabo por sucessivas anlises60, diz Leibniz. Mas os homens no so capazes, nem

    por sucessivas anlises, de tal apreenso imediata de identidades. Todas as verdades so

    tautologias (expressas ou implcitas). A existncia s uma propriedade essencial de Deus.

    Proposies sobre outros existentes so contingentes.

    59 Para Leibniz se as verdades necessrias decorressem da infinita vontade divina elas estariam mais distantes do alcance do intelecto humano. Elas derivam do entendimento divino e devem ser eternas e imutveis. A vontade divina, responsvel pela criao do mundo, escolhe as sries compossveis guiada pelo entendimento das verdades necessrias. 60 Leibniz, G. W. A monadologia (1714). Trad. M. S. Chau. So Paulo: Abril Cultural, 1979, 30.

  • 26

    1.2.1 Necessidade

    Dada a diversidade de referncias ao termo necessidade encontrada nos textos

    de Leibniz, e dada sua importncia para a compreenso dos conceitos atinentes aos princpios

    aqui expostos, optamos por apresentar algumas das suas principais caractersticas.

    Recordamos que, para Aristteles, so trs as acepes para necessrio61: (a)

    o que se faz atravs da fora, por ser contra o impulso natural; (b) aquilo sem o que no se

    pode fazer bem alguma coisa; (c) o que no pode ser de outro modo, pois , absolutamente.

    Ou seja, o necessrio pode ser do tipo (a) coercitivo, (b) preciso ou (c) lgico.

    Leibniz tambm oferece verses distintas para caracterizar o necessrio62.

    Relativamente aos princpios, ele faz notar dois tipos bsicos: o geomtrico, derivado dos

    princpios lgicos, regente de coisas incriadas como as verdades matemticas, e o hipottico,

    retirado do princpio de razo suficiente e, portanto, da escolha divina, regente do mundo. No

    primeiro caso temos o necessrio por definio, por sua essncia, regulador do possvel; o

    segundo tipo de necessidade deve sua existncia ao princpio do melhor e ao princpio de

    razo suficiente, e regula os compossveis. Como vimos, os compossveis no so mais do

    que os elementos ou indivduos passveis de se tornarem existentes uns em relao aos outros,

    ou seja, conjuntamente: so a conjuno de uma srie possvel.

    Todo o universo e o que ele comporta contingente para o homem. Caso fosse

    necessrio no primeiro sentido, um s universo seria possvel (ou, o que mais problemtico,

    todo possvel se realizaria63). Nosso universo no o nico possvel, logo, sua existncia no

    necessria. Se este universo no necessrio tampouco seus constituintes (ou as relaes

    entre os constituintes) sero necessrios. Contudo, os estados deste universo seguem uns aos

    outros por necessidade, ou seja, cada estado determinado por estados anteriores. Aquilo que

    ocorre neste universo no poderia ser de outra forma. Isso vale tambm para as percepes

    das substncias. E no h contra-senso nisso, por exemplo: seria possvel que as mquinas no

    61 Cf. Aristteles, Metafsica 1072b10. 62 Para uma anlise detalhada sobre os vrios sentidos de necessidade em Leibniz ver Mendona, M. Sentidos de necessidade em Leibniz. In: Dois pontos. UFPR/UFSCar, 2005, vol. 2, n. 1, p. 53-82. 63 Se o universo fosse regido pela necessidade lgica no haveria lugar para possibilidades no realizadas j que apenas uma possibilidade de criao seria comportada por este tipo de necessidade, ficando eliminadas quaisquer outras combinaes de mundo. No limite isso significaria que todas as opes restantes, as que no foram eliminadas na origem, teriam necessariamente que se realizar, ainda que em um tempo ilimitado.

  • 27

    existissem, mas uma vez que existem, devem obedecer s leis da mecnica. Elas no existem

    necessariamente (no sentido geomtrico), mas a seqncia de seus estados necessria (no

    sentido hipottico).

    Em diferentes textos, como nos Essais de thodice, no Discurso de

    Metafsica, e em cartas enviadas a Arnauld, Leibniz utiliza-se de outras expresses de

    necessidade, muitas delas tomadas indiscriminadamente como sinnimas, outras delimitando

    conceitos bem especficos. Uma distino fundamental que podemos encontrar nas obras

    mencionadas, da sua fase madura, a que se d entre necessidade absoluta e necessidade

    relativa. A expresso necessidade absoluta bastante utilizada por Leibniz como

    significando o que rigorosamente necessrio, ou seja, o que necessrio sem qualquer

    possibilidade de no o ser uma vez que no admite nenhuma condio de exceo. Leibniz se

    refere a ela, em algumas passagens, como necessidade lgica por sua relao com o princpio

    de contradio: necessrio aquilo cujo contrrio implica contradio.

    A necessidade relativa tem sua estrutura fundamentada na hiptese de que uma

    certa possibilidade se realize e, dentro dessa possibilidade, certas coisas necessariamente

    ocorrem. Sua marca distintiva que ela compatvel com a contingncia, e pode ser dividida

    em, ao menos, dois momentos: necessidade fsica e necessidade moral. Essa diviso, ainda

    que apresentada por Leibniz64, artificial e no implica em alguma identificao entre a

    necessidade fsica e a necessidade moral. Nossa inteno em agrup-las sob o signo da

    necessidade relativa meramente didtica; elas esto aqui juntas por oposio necessidade

    absoluta mais do que por afinidade conceitual, isso porque as duas guardam uma importante

    diferena: a necessidade relativa (ou hipottica) est fundada em razes exteriores, assim

    como a necessidade fsica, enquanto a necessidade moral se fundamenta em razes internas65.

    Portanto, sua semelhana com a necessidade moral est restrita ao fato desta tambm ser

    compatvel com o universo contingente.

    A necessidade moral explicita a regularidade das ocorrncias do mundo fsico,

    de modo que a necessidade fsica depende, de alguma forma, da necessidade moral. Ou seja,

    enquanto a necessidade fsica se aplica ao mundo mecanicamente ordenado e, portanto,

    64 Leibniz afirma: Esta convenincia [das escolhas divinas] tem tambm suas regras e razes, mas a escolha livre de Deus, e no uma necessidade geomtrica [ou lgica], que faz preferir o conveniente, e o conduz existncia. Assim, pode-se dizer que a necessidade fsica se funda na necessidade moral, isto , na escolha do sbio digno da sua sabedoria; e que tanto uma como a outra se devem distinguir da necessidade geomtrica. Leibniz, G. W. Essais de thodice: Paris: Flammarion, 1969, 2, p. 51. 65 Cf. Verdades necesarias y contingentes (1686). In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982, p. 379-390.

  • 28

    regular e previsvel para a razo, a necessidade moral est vinculada aos seres cuja ao

    livre. Juntas, as esferas do mundo fsico e moral esto sob a gide da metafsica, da

    necessidade absoluta, essa ltima independente tanto do ordenamento do mundo fsico quanto

    das escolhas dos seres livres66.

    As leis da natureza so necessrias em conformidade com o mundo possvel

    em que elas operam67. Trata-se de uma necessidade fsica. Mas essas leis no so necessrias

    no sentido absoluto, uma vez que nada as determinam a serem expressamente assim e no de

    outro modo, como poderia ser o caso em um universo alternativo. Ao contrrio: por haver a

    possibilidade de ser de outro modo que a necessidade fsica se impe. As leis regentes deste

    universo dado foram escolhidas entre tantas outras possveis e, por isso, a necessidade fsica

    se diz contingente.

    Como esse universo foi escolhido juntamente com as leis ordenadoras da sua

    natureza se diz que a necessidade fsica derivada da necessidade moral. As leis da natureza

    foram escolhidas, livremente, em funo do bem que representam para este mundo. A

    necessidade moral rege as escolhas livres dos homens. Mais do que isso, ela se d apenas nos

    seres capazes de escolha, capazes de agir livremente. Essas escolhas so livres uma vez que

    tambm no so derivadas da necessidade absoluta. So, porm, necessrias, uma vez que se

    seguem da noo completa dos indivduos, a qual, contendo todos os seus predicados,

    obedece sua natureza no que diz respeito s escolhas livres. Quando se fala em escolha

    livre o que se pretende delimitar no o ambiente promotor da escolha, ou as possibilidades

    disponveis durante a ao de escolher, mas a prpria escolha que faz o mundo livre. Caso no

    houvesse a escolha livre as aes seriam todas determinadas. Nota-se que no h espao para

    o acaso nessa estrutura leibniziana.

    Para explicar a contingncia do mundo Leibniz apela para a experincia do

    senso comum, do cotidiano. inevitvel ao homem construir fices e imaginar, para si e

    para os outros, papis jamais desempenhados. O filsofo se apia nisso para recusar a

    necessidade do mundo: se este carece de necessidade absoluta, ento h espao para

    alternativas e, consequentemente, h espao para que algumas possibilidades, uma vez no

    escolhidas, no se tornem reais.

    66 Cf. Resumen de la teodicea. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982, p. 593-607. 67 Cf. Verdades necesarias y contingentes. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982, p. 379-390.

  • 29

    Leibniz afirma tambm que o necessrio , por si, eterno e constitutivo do

    entendimento divino; imutvel. O conhecimento dos fatos emprico porque no provm do

    conhecimento das razes, que requisitado nas matemticas. Ele nos oferece um exemplo68:

    podemos, por experincia, verificar que a srie dos nmeros naturais mpares consecutivos

    igual a diferena dos nmeros naturais quadrados tomados consecutivamente:

    Quadrados dos nmeros naturais: 12=1; 22=4; 32=9; 42=16; 52=25;...

    Srie dos resultados dos quadrados dos nmeros naturais: 1; 4 ; 9 ; 16 ; 25; ...

    Srie dos nmeros naturais mpares: 3; 5; 7; 9; 11;...

    provvel que essas seqncias continuem indefinidamente, mas at que no

    se reconhea (prove) sua validade no podemos afirmar a verdade da tese de que os nmeros

    naturais mpares podem ser obtidos da seqncia da diferena entre os quadrados dos nmeros

    pares, apesar da experincia corroborar sua aparncia de verdade. Essa prova, no entanto,

    jamais ser efetivada pela experincia.

    Proposies passveis de serem provadas por anlise so chamadas verdades

    necessrias. Sero proposies verdadeiras quando sua anlise revelar A=A. Proposies

    cuja anlise no somos capazes de efetuar so descritas como no-idnticas, no-analticas, ou

    simplesmente sintticas. No so sintticas por si, so sintticas para ns. Elas so chamadas

    verdades contingentes.

    H ainda a famosa distino entre o que necessrio, ou seja, aquilo cujo

    contrrio implica contradio, e o que certo69, ou seja, aquilo que somente est adequado ao

    princpio do melhor e da razo suficiente e que se mostra, uma vez ocorrido, necessrio, mas

    cujo contrrio, a princpio, no envolve contradio. Enquanto podemos afirmar que o regente

    do necessrio a (no-contradio) lgica, o que rege a certeza um tipo de no-

    contradio ontolgica, uma impossibilidade de se romper a estrutura teleologicamente

    organizada do nosso universo. O que certo no envolve, pois, necessidade lgica: certo

    que o destino do homem o desdobramento do seu ser e se funda na sua noo completa

    individual. Entretanto, do ponto de vista do princpio do melhor, da finalidade j imputada a

    este mundo pelo entendimento divino e, conseqentemente, pelo ato original da criao, o

    68 Carta a rainha Sofia Carlota, de 7 de dezembro de 1703. In: Leibniz, G. W. Filosofia para princesas. Trad. J. Echeverra. Madrid: Alianza editorial, 1989, p. 124. 69 Leibniz, G. W. Discurso de metafsica. So Paulo: Abril cultural, 1979, art. 13.

  • 30

    certo, cuja responsabilidade pertence exclusivamente ao sujeito da ao70, se revela necessrio

    para a satisfao da estrutura de mundo moral.

    70 Leibniz, G. W. Discurso de metafsica. So Paulo: Abril cultural, 1979, art. 32.

  • 31

    1.3 O PRINCPIO DE RAZO SUFICIENTE

    Em Leibniz, o termo Princpio da Razo Suficiente aparece pela primeira vez

    em um texto de 1667-8 intitulado Confessio naturae contra atheistas. mais conhecido,

    entretanto, a partir da discusso contida em Confessio philosophi, de 1673. neste texto,

    escrito na forma de dilogo entre um telogo catequista e um filsofo catecmeno, que

    Leibniz introduz a pergunta fundamental do princpio de razo suficiente: porque nada

    acontece sem razo?

    Considero que se possa demonstrar que nunca existe coisa alguma a que no se possa (ao menos para quem seja onisciente) assinalar uma razo suficiente para que exista e de porque melhor assim que de outro modo. Aquele que nega isso destri a distino entre o ser e o no ser. 71

    Na primeira parte da citao Leibniz indica poder demonstrar que, para tudo o

    que h, deve haver uma razo suficiente pra que seja tal como . A razo suficiente est,

    aparentemente, sendo afirmada como uma forma do princpio de causalidade, uma vez que se

    refere a necessidade da postulao de uma causa responsvel por todas as coisas possveis, e

    afirma que esta causa suficiente por faz-las ser como so, e no de outro modo.

    Ao completar a primeira sentena e afirmar que o princpio de razo suficiente

    inclui a razo de porque melhor assim e no de outro modo, Leibniz complementa o

    sentido causal mencionado acima e acrescenta, na definio do princpio, uma determinao

    para o bem. Isso significa uma restrio da aplicao do princpio, que passa a ser vlido no

    apenas de todos os mundos possveis, mas especificamente ao que tornado real, medida

    que delimita o raio de ao do princpio para aquilo que explica porque um possvel melhor

    do que outro.

    O princpio de razo suficiente que, fundamentalmente, se dedica a revelar, por

    anlise, a identidade do ser em questo, pode ser entendido nos dois sentidos contidos na

    71 La profesin de fe del filsofo. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 120. segundo Leibniz, aquele que nega o Princpio de Razo Suficiente destri a distino entre o ser e o no-ser, j que ao ser foi dado existir e ao no-ser foi dada a possibilidade de vir-a-ser como possvel.

  • 32

    citao acima: como metafisicamente necessrio (e, portanto, aplicvel a todos os mundos

    possveis); e como um princpio contingente (relativo aos possveis tornados reais). Neste

    tpico vamos analisar os termos envolvidos nas relaes entre esses sentidos do princpio de

    razo suficiente.

    Leibniz faz referncia ao princpio de razo suficiente em diversos textos,

    oferecendo formulaes similares e, algumas vezes, complementares72 do seu significado.

    Fosse ele um autntico princpio lgico como o princpio de contradio, o princpio de razo

    suficiente no poderia se referir diretamente aos existentes, mas afirmaria o que por

    essncia. Mas, ento, ele tambm se apresenta como princpio ontolgico, definindo

    existencialmente o que , ou seja, fundando os existentes relativamente aos compossveis

    definidos pelo princpio de contradio. Em outras palavras, o princpio de razo suficiente

    atua relacionando os finitos (ontologicamente) existentes e as (logicamente) infinitas

    possibilidades:

    Por esse nico princpio, a saber, que preciso haver uma razo suficiente pela qual as coisas so antes assim que de outro modo, demontra-se a divindade e o resto da metafsica ou da teologia natural, e mesmo de certa maneira os princpios fsicos independentes da matemtica, isto , os princpios dinmicos, ou da fora73.

    A formulao metafsica do princpio de razo suficiente tem como corolrio a

    tese de que toda predicao tem um fundamento na natureza das coisas. O equivalente lgico

    dessa formulao metafsica bem conhecido: o predicado est sempre, de modo implcito ou

    explcito, contido no sujeito. As verdades relativas ao princpio de razo suficiente so as

    mencionadas verdades contingentes, nas quais o predicado est implicitamente contido no

    sujeito.

    Assim, no sentido lgico, o princpio de razo suficiente pode ser

    compreendido via incluso do predicado no sujeito. Dizer que nada atua sem razo , neste

    caso, o mesmo que dizer que em toda proposio verdadeira a noo do predicado est

    sempre contido no sujeito, ainda que isso no se mostre claramente. Se estiver contida

    explicitamente a proposio ser analtica para ns, isto , enunciados ou proposies cuja

    verdade ou falsidade sejam estabelecidas pela anlise (finita) dos termos do prprio enunciado 72 Cf. Leibniz, G. W. Discurso de metafsica; Leibniz, G. W. Correspondncia com Clarke (1715-6). Trad. C. L. Mattos. So Paulo: Abril Cultural, 1979, vol. I. 73 Leibniz, G. W. Correspondncia com Clarke. So Paulo: Abril cultural, 1979, Segunda carta de Leibniz, 1. Os princpios matemticos so demonstrados pelo princpio de contradio. Nota-se, portanto, que excetuados os princpios matemticos, todos os outros princpios (fsicos e metafsicos) podem ser, de algum modo, tratados por ou reduzidos ao princpio de razo suficiente.

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    so conhecidas como proposies analticas. Da negao de uma proposio analtica

    podemos derivar uma contradio. Proposies cuja veracidade ou falsidade s podem ser

    estabelecidas quando recorremos a comparaes com uma realidade exterior ao enunciado so

    chamadas de sintticas. A negao de uma proposio sinttica possvel, mas sua

    verificao extrapola o prprio enunciado. Para a melhor compreenso desta relao

    recorremos a distino, exposta por Leibniz em diversos textos e mencionada no tpico

    anterior, entre tipos de verdades74.

    Em um opsculo de 1697 intitulado Da origem primeira das coisas75 Leibniz

    investiga, como sugere o prprio ttulo, qual a origem do mundo (partindo da suposio de

    que imprescindvel que haja alguma). O autor explicita, neste texto, sua resposta pergunta

    anterior e fundamental ao princpio de razo suficiente: porque h algo ao invs do nada76.

    Para tanto ele menciona algumas das idias norteadoras da sua filosofia que o fizeram

    conhecido pela tentativa de aliar liberdade e necessidade e, assim, sair do chamado primeiro

    labirinto da razo:

    Existem dois labirintos famosos onde nossa razo se extravia com bastante freqncia: um diz respeito grande questo do Livre e do Necessrio, sobretudo na produo e na origem do Mal; o outro consiste na discusso da continuidade e dos indivisveis, no qual aparecem os Elementos e onde deve entrar a considerao do infinito. O primeiro embaraa quase todo o gnero humano, o outro no exercita seno os Filsofos77.

    A origem primeira das coisas enunciadas no texto no provoca surpresa: Deus

    , inevitavelmente, a causa primeira, necessria e transcendental78. A discusso est centrada

    na procura pela justificativa para que o mundo tenha sido criado e seja tal como . E a

    resposta do autor, bastante conhecida, pauta-se numa razo que a prpria necessidade.

    Razo, pois o mundo no fruto do acaso. Necessria porque inconcebvel que no tivesse

    sido criado. Ora, a razo, nesse caso, anterior ao mundo, visto que este se estabelece em

    funo daquela, de modo que ela se constitui como uma necessidade metafsica. a razo,

    suficiente para que o mundo seja, que o faz metafisicamente necessrio. Mas a necessidade,

    se tomada em geral, se mostra contingente em relao aos indivduos possveis. Mais do que 74 Por exemplo os opsculos Verdades necesarias y contingentes e De la natureza de la verdad (ambos de 1686). In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid: A. Machado, 1982, p. 379-390 e 399-402. 75 Leibniz, G. W. Da origem primeira das coisas (1697). Trad. C. L. Mattos. So Paulo: Abril Cultural, 1979, vol. I. (col. Os pensadores) 76 Cf. tambm Leibniz, G. W. Principios de la natureza y de la gracia fundados em razn. In: Leibniz, G. W. Escritos filosficos. Madrid, A. Machado, 1982, p. 680-690, 7. 77 Leibniz, G. W. Ess