Leila Gonzales

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Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 320, setembro-dezembro/2014 965 Amefricanizando o feminismo: o Amefricanizando o feminismo: o Amefricanizando o feminismo: o Amefricanizando o feminismo: o Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez pensamento de Lélia Gonzalez pensamento de Lélia Gonzalez pensamento de Lélia Gonzalez pensamento de Lélia Gonzalez Copyright 2014 by Revista Estudos Feministas. Cláudia Pons Cardoso UNEB – Universidade do Estado da Bahia Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Neste artigo exploro o pensamento de Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira, defensora de um feminismo afrolatinoamericano, comprometido com a recuperação dos processos de resistência e insurgência aos poderes estabelecidos, ainda, em sua maioria, ocultos, mas que historicamente foram levados a termo por mulheres negras e indígenas contra o colonialismo e podem servir de fonte de inspiração para ações políticas feministas descolonizadoras. Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: racismo; mulheres negras; feminismo negro; pensamento de mulheres negras. “Mas o que a Lélia sabia? Sabia conceituar e formular a contradição específica de ser mulher negra, a questão de como a desigualdade, o racismo e a discriminação produziam a nossa realidade de exclusão e diferenciavam a nossa inserção social em relação à das mulheres brancas. E a Lélia tinha uma coisa maravilhosa: ela conseguia positivar todas aquelas coisas com as quais nós éramos estigmatizadas”. 1 Lélia Gonzalez 2 , intelectual e feminista negra brasileira, nos anos de 1980, refletiu atentamente sobre a realidade de exclusão das mulheres na sociedade brasileira, principalmente das negras e indígenas. Ela foi pioneira nas críticas ao feminismo hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistência das mulheres ao patriarcado, evidenciando, com isso, as histórias das mulheres negras e indígenas, no Brasil, na América Latina e no Caribe. O seu pensamento inaugura também a proposição de descolonização do saber e da produção de conhecimento e, atuando como “forasteira de dentro” (outsider within), como define Patrícia Hill Collins, 3 questiona a insuficiência das categorias analíticas das Ciências Sociais para explicar, por exemplo, a realidade das mulheres negras. Diante disso, diz: 1 Sueli CARNEIRO, citada por ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 183-184. 2 Lélia Gonzalez foi tema de diversos estudos, entre eles os de Raquel BARRETO, 2005; Elizabeth VIANA, 2006; e Alex RATTS e Flávia RIOS, 2010. 3 A autora define outsider within como posição social ou espaços de fronteira ocupados por grupos com poder desigual. Na Academi- a, por exemplo, esse lugar permite às pesquisadoras negras constatar, a partir de fatos de suas próprias ex- periências, anomalias materializa- das na omissão ou observações distorcidas dos mesmos fatos socia- is e, embora Collins se refira à So- ciologia, pode-se pensar como prática política a ser desenvolvida em todas as áreas do conhecimen- to. (Patricia Hill COLLINS, 1986).

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Feminismo Negro Brasil

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Amefricanizando o feminismo: oAmefricanizando o feminismo: oAmefricanizando o feminismo: oAmefricanizando o feminismo: oAmefricanizando o feminismo: opensamento de Lélia Gonzalezpensamento de Lélia Gonzalezpensamento de Lélia Gonzalezpensamento de Lélia Gonzalezpensamento de Lélia Gonzalez

Copyright 2014 by RevistaEstudos Feministas.

Cláudia Pons CardosoUNEB – Universidade do Estado da Bahia

Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo: Neste artigo exploro o pensamento de Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira,defensora de um feminismo afrolatinoamericano, comprometido com a recuperação dosprocessos de resistência e insurgência aos poderes estabelecidos, ainda, em sua maioria,ocultos, mas que historicamente foram levados a termo por mulheres negras e indígenas contrao colonialismo e podem servir de fonte de inspiração para ações políticas feministasdescolonizadoras.Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: racismo; mulheres negras; feminismo negro; pensamento de mulheres negras.

“Mas o que a Lélia sabia? Sabia conceituar e formular acontradição específica de ser mulher negra, a questão de

como a desigualdade, o racismo e a discriminaçãoproduziam a nossa realidade de exclusão e diferenciavam anossa inserção social em relação à das mulheres brancas. Ea Lélia tinha uma coisa maravilhosa: ela conseguia positivar

todas aquelas coisas com as quais nós éramosestigmatizadas”.1

Lélia Gonzalez2, intelectual e feminista negra brasileira,nos anos de 1980, refletiu atentamente sobre a realidade deexclusão das mulheres na sociedade brasileira,principalmente das negras e indígenas. Ela foi pioneira nascríticas ao feminismo hegemônico e nas reflexões acercadas diferentes trajetórias de resistência das mulheres aopatriarcado, evidenciando, com isso, as histórias dasmulheres negras e indígenas, no Brasil, na América Latina eno Caribe. O seu pensamento inaugura também aproposição de descolonização do saber e da produção deconhecimento e, atuando como “forasteira de dentro”(outsider within), como define Patrícia Hill Collins,3 questionaa insuficiência das categorias analíticas das Ciências Sociaispara explicar, por exemplo, a realidade das mulheres negras.Diante disso, diz:

1 Sueli CARNEIRO, citada porALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 183-184.2 Lélia Gonzalez foi tema de diversosestudos, entre eles os de RaquelBARRETO, 2005; Elizabeth VIANA,2006; e Alex RATTS e Flávia RIOS,2010.3 A autora define outsider withincomo posição social ou espaçosde fronteira ocupados por gruposcom poder desigual. Na Academi-a, por exemplo, esse lugar permite àspesquisadoras negras constatar, apartir de fatos de suas próprias ex-periências, anomalias materializa-das na omissão ou observaçõesdistorcidas dos mesmos fatos socia-is e, embora Collins se refira à So-ciologia, pode-se pensar comoprática política a ser desenvolvidaem todas as áreas do conhecimen-to. (Patricia Hill COLLINS, 1986).

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4 Lélia GONZALEZ, 1983, p. 225.

O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a neces-sidade de aprofundar a reflexão, ao invés de continuar-mos na repetição e reprodução dos modelos que noseram oferecidos pelo esforço de investigação dasciências sociais. Os textos só nos falavam da mulhernegra numa perspectiva sócio-econômica queelucidava uma série de problemas propostos pelasrelações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um restoque desafiava as explicações.4

Muitas feministas negras, mulheres de cor, chicanas,como Gloria Anzaldúa,5 vêm atuando como forasteiras dedentro (outsider whithin), reinventando definições, delimitandolugares sociais para melhor se posicionarem, como forma derealizarem a autodefinição. Anzaldúa, por exemplo, toma suaspróprias experiências vividas como cidadã norte-americanadescendente de mexicanos, criada em uma região fronteiriçaentre o México e os EUA, lésbica, feminista, para investigar aopressão de gênero patriarcal das duas sociedades. Suasexperiências são as lentes pelas quais enxerga e analisa omundo.

Sua narrativa é subversiva no estilo, na medida emque confronta a produção de conhecimento do paradigmadominante através do texto autobiográfico; é, também,subversiva na linguagem, pois recorre ao inglês, ao espanhole suas variações regionais e a expressões do nahuatl – línguafalada pelos astecas pré-invasão –, para registrar suas ideias.Com isso, recusa tanto o espanhol, simbolizando a culturamachista mexicana, quanto o inglês, imposto pela culturanorte-americana dominante, ensinado nas escolas, nos EUA,como prática de exclusão imperialista, pois poda qualquertraço cultural mexicano. Adota, portanto, a linguagem híbrida,denotativa de um discurso polifônico, proferido por múltiplasvozes, e representativa de uma nova identidade, mestiza,que emerge do contexto sociopolítico e cultural estabelecidona fronteira entre México e Estados Unidos. Ao se referir àlinguagem da nova mestiza, diz Anzaldúa:

[...] o espanhol chicano é uma língua fronteiriça que sedesenvolveu naturalmente. Mudança, evolución,enriquecimiento de palabras nuevas por invención o

adopción tem criado variantes do espanhol chicano,uma nova linguagem. Un lenguaje que corresponde a

un modo de vivir. O espanhol chicano não é incorreto,é uma língua viva.6

Lélia Gonzalez também confronta o paradigma domi-nante e, em alguns textos, recorre a uma linguagem considera-da fora do modelo estabelecido para a produção textualacadêmica, ou seja, sem obediência às exigências e às regrasda gramática normativa, mas que, no entanto, reflete o legadolinguístico de culturas escravizadas. Assim, a autora, por vezes,

5 Glória ANZALDÚA, 2000, 2005 e2009.

6 ANZALDÚA, 2009, p. 307, grifosda autora.

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mistura, enreda o português com elementos linguísticos africa-nos, em uma tentativa política de evidenciar o preconceitoracial existente na própria definição da língua materna brasi-leira. Como resultado do enredamento, sublinha Gonzalez,tem-se:

[...] aquilo que chamo de ‘pretoguês’ e que nada maisé do que marca de africanização do português faladono Brasil [...], é facilmente constatável sobretudo noespanhol da região caribenha. O caráter tonal e rítmicodas línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, alémda ausência de certas consoantes (como o l ou o r,por exemplo), apontam para um aspecto poucoexplorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (e isto sem falarnos dialetos ‘crioulos’ do Caribe).7

Ainda sobre o português africanizado, continua aautora:

É engraçado como eles [sociedade branca elitista]gozam a gente quando a gente diz que é Framengo.Chamam a gente de ignorante dizendo que a gentefala errado. E de repente ignoram que a presençadesse r no lugar do l nada mais é do que a marcalingüística de um idioma africano, no qual o l inexiste.Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo tempo achamo maior barato a fala dita brasileira que corta os erresdos infinitivos verbais, que condensa você em cê, oestá em tá e por aí afora. Não sacam que tão falandopretuguês8.E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que oobjeto parcial por excelência da cultura brasileira é abunda (esse termo provém do quimbundo que, porsua vez e juntamente com o abundo, provém de umtronco lingüístico bantu que ‘casualmente’ se chamabunda). E dizem que significante não marca... Marcabobeira quem pensa assim. De repente bunda élíngua, é linguagem, é sentido, é coisa. De repente édesbundante perceber que o discurso da consciência,o discurso do poder dominante, quer fazer a genteacreditar que a gente é tudo brasileiro, e deascendência européia, muito civilizado, etc e tal.[...]. E culminando pinta este orgulho besta de dizerque a gente é uma democracia racial. Só quequando a negrada diz que não é, caem de pau emcima da gente, xingando a gente de racista.Contraditório, né? Na verdade, para além de outrasrazões, reagem dessa forma porque a gente põe odedo na ferida deles, a gente diz que o rei tá pelado.E o corpo do rei é preto e o rei é escravo.9

O pensamento de Lélia Gonzalez foi construído a partirdo contato com homens e mulheres de outras localidades,

7 GONZALEZ, 1988a, p. 70.

8 A palavra aparece nos textos daautora grafada de dois modos:“pretuguês” e “pretoguês”, verGONZALEZ, 1983; 1988a.

9 GONZALEZ, 1983, p. 238, grifosda autora.

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como dizem os autores Alex Ratts e Flávia Rios na obra LéliaGonzalez, contatos que possibilitaram deslocamentos e abri-ram horizontes teóricos e políticos. Gonzalez foi uma “intelec-tual diaspórica, com um pensamento erigido por meio detrocas afetivas e culturais, ao longo do chamado AtlânticoNegro, com intelectuais, amigos e ativistas da América doNorte, Caribe e África Atlântica”.10 Desse diálogo com várias/os autoras/es, realizava a “política de tradução de teorias”para desenvolver um pensamento globalizado e transnacio-nal, voltado não só para explicar como se formou nas Américasuma matriz de dominação sustentada pelo racismo, mas,principalmente, para intervir e transformar essa realidade apartir de sua compreensão. A política de tradução de teorias,como explica Sonia Alvarez,

[...] explora como discursos e práticas feministas viajampor uma variedade de lugares e direções e acabamse tornando paradigmas interpretativos para a leitura/escrita de questões de classe, gênero, sexualidade,migração, saúde, cidadania, política e circulaçãode identidades e textos.11

A tradução de teorias é uma metáfora para descrevercomo o deslocamento das ideias está profundamente imersoem questões mais amplas de globalização. A política é cons-truída através do tráfico de teorias e práticas feministas, atra-vessando fronteiras geopolíticas e disciplinares. É o ir e vir de“[...] insights dos feminismos de latinas, de mulheres de cor edo feminismo pós-colonial do norte das Américas para asnossas análises de teorias, práticas, culturas e políticas doSul, e vice-versa”. Pode-se entendê-la, também, como umasimbologia de transgressão das imposições e regras da “colo-nialidade do poder”,12 com suas fronteiras fortemente erigi-das, mantendo afastados dos países do norte imigrantes in-desejados, os não brancos do Sul. A política de traduçãotrafica sonhos, rejeitando, intencionalmente, a existência dasfronteiras, com o objetivo político e teórico de elaborar “episte-mologias e alianças políticas feministas, antirracistas e pós-coloniais/pós-ocidentais”.13

Tendo como referência e influência as ideias de FrantzFanon,14 Lélia Gonzalez procurou similaridades nos diversoscontextos da diáspora negra de forma a desenvolverexplicações em comum para abordar o racismo, bem comorecuperar as estratégias de resistência e luta das mulheresnegras e indígenas, visando seu registro como protagonistase sujeitos históricos. Um dos principais traços do pensamentode Fanon, que identifico na obra de Lélia, diz respeito àabordagem dos danos psicológicos causados pela relaçãode dominação/exploração entre colonizador e colonizado.

12 Definindo colonialidade comouma matriz mundial de domina-ção (patrón mundial de domina-ción) dentro do modelo capitalis-ta, fundada pela classificaçãoracial e étnica da humanidade,Aníbal Quijano diz que a matrizde poder colonial é um princípioorganizador e afeta as múltiplasdimensões da vida social, desdea sexualidade, a autoridade, asrelações de gênero, instituições,o trabalho, as organizações polí-ticas, estendendo-se à subjetivida-de e às estruturas de conhecimen-to. (Aníbal QUIJANO, 1992).13 ALVAREZ, 2009, p. 744.14 Frantz FANON (1925-1961) teveuma forte influência entre osintelectuais contemporâneos aLélia Gonzalez.

10 RATTS e RIOS, 2010, p. 128.

11 Sonia ALVAREZ, 2009, p. 743.

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Segundo Frantz Fanon,15 o colonialismo produziu achamada inferioridade do colonizado que, uma vez derrotadoe dominado, acaba por aceitar e internalizar essa ideia. Ocolonizador se sustenta no racismo para estruturar a coloni-zação e justificar sua intervenção, pois, através da difusãoideológica da suposta superioridade do colonizador, suaação é vista como benefício, e não como violência, o queresultou na alienação colonial, na construção mítica do colo-nizador e do colonizado, o primeiro retratado como herdeirolegítimo de valores civilizatórios universalistas e o segundo,como selvagem e primitivo, despossuído de legado mere-cedor de ser transmitido.

As ideias de Fanon sobre racismo, assimilação ealienação foram importantes para as reflexões de LéliaGonzalez acerca da chamada democracia racial brasileira,um dos principais alvos das ações e críticas do movimentonegro, nos anos 1980, através da denúncia do quanto erafalaciosa tal democracia, resumindo-se, na verdade, “emum dos mais eficazes mitos de dominação”.16

Segundo Lélia Gonzalez, o racismo pode apresentartaticamente duas formas para manter a “exploração/opres-são”: o racismo aberto e o racismo disfarçado. A primeiraforma é encontrada, principalmente, nos países de origemanglo-saxônica, e a segunda predomina nas sociedadesde origem latina. No racismo disfarçado, “prevalecem as ‘teo-rias’ da miscigenação, da assimilação e da ‘democracia ra-cial’”, e essa forma de se manifestar, afirma, ao pensar o Brasil,impede a “consciência objetiva desse racismo sem disfarcese o conhecimento direto de suas práticas cruéis” pois a cren-ça historicamente construída sobre a miscigenação criou omito da inexistência do racismo em nosso país.17

No racismo latino-americano, continua Lélia Gonzalez,a alienação é alimentada através da ideologia dobranqueamento cuja eficácia está nos efeitos que produz: “odesejo de embranquecer (de ‘limpar o sangue’, como se dizno Brasil) é internalizado, com a simultânea negação daprópria raça, da própria cultura”.18

Mulheres e amefricanas: sujeitos dosMulheres e amefricanas: sujeitos dosMulheres e amefricanas: sujeitos dosMulheres e amefricanas: sujeitos dosMulheres e amefricanas: sujeitos dosdiferentes feminismosdiferentes feminismosdiferentes feminismosdiferentes feminismosdiferentes feminismos

Amefricanidade, categoria cunhada por LéliaGonzalez nos anos de 1980, que se insere na perspectivapós-colonial, surge no contexto traçado tanto pela diásporanegra quanto pelo extermínio da população indígena dasAméricas e recupera as histórias de resistência e luta dospovos colonizados contra as violências geradas pelacolonialidade do poder. A partir das resistências, comomecanismos estratégicos de visibilidade da história desses

18 GONZALEZ, 1988a, p. 73.

17 GONZALEZ, 1988a, p. 72-74.

16 GONZALEZ, 1988b, p. 137.

15 FANON, 2008.

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grupos, tem por objetivo pensar ‘desde dentro’ as culturasindígenas e africanas e, assim, afastar-se cada vez mais deinterpretações centradas na visão de mundo do pensamentomoderno europeu. Na verdade, a proposta de Lélia Gonzalezé epistemológica, pois, do ponto de vista da amefricanidade,propõe a abordagem interligada do “racismo, colonialismo,imperialismo e seus efeitos”.19

Identifico, no pensamento de Lélia, aproximação coma “colonialidade do poder”, de Aníbal Quijano, e a“colonialidade de gênero”, de María Lugones, revelando aatualidade de suas ideias.20 Estruturada em abordagemmais holística, Lélia Gonzalez pensa as mulheres negras dadiáspora e aponta para algumas questões que se podetomar como formadoras de um feminismo negro, aquiretomadas, visando contribuir para o debate, inclusive, dofeminismo latino-americano.

Inicio pelo destaque concedido ao contexto histórico-cultural das Américas. Segundo Lélia Gonzalez,21 a presençada “latinidade” no Novo Mundo foi inexistente: a preponde-rância se deu com elementos ameríndios e africanos e, poristo, defendia uma Améfrica Ladina. Para a autora, todos osbrasileiros são ladinoamefricanos, e não somente os negros;a negação da presença afro-ameríndia seria decorrentedo racismo.

Como instrumento metodológico para interpretar oprocesso de formação das sociedades americanas, Gonzalezse utiliza de uma categoria explicativa oriunda da Psicanálise– denegação –, assinalando: “enquanto denegação dessaladinoamefricanidade, o racismo se volta justamente contraaqueles que, do ponto de vista étnico, são os testemunhosvivos da mesma, tentando tirá-los de cena, apagá-los domapa”.22 Ao expor como a classificação racial foi a estruturade sustentação do colonialismo clássico e das sociedadesque vieram a formar a chamada América Latina, retoma ahistória e o modelo rigidamente hierarquizado das socieda-des ibéricas, “onde tudo e todos tinham seu lugar determi-nado”, para descrever como as sociedades americanas sepensaram a partir “das ideologias de classificação socialracial e sexual”,23 dizendo:

Embora pertençamos a diferentes sociedades docontinente, sabemos que o sistema de dominação éo mesmo em todas elas, ou seja: o racismo, essaelaboração fria e extrema do modelo ariano deexplicação cuja presença é uma constante em todosos níveis de pensamento, assim com parte e parceladas mais diferentes instituições dessas sociedades. [...]o racismo estabelece uma hierarquia racial e culturalque opõe a ‘superioridade’ branca ocidental à‘inferioridade’ negroafricana. A África é o continente

22 GONZALEZ, 1988c, p. 23.

19 GONZALEZ, 1988a, p. 71.

20 QUIJANO, 1992. Para MaríaLugones faz-se necessário explicaras raízes do sistema binário de gê-nero que Quijano deixa incólumee, para isso, propõe “o sistema mo-derno/colonial de gênero”, umalente através da qual continuateorizando a lógica opressiva damodernidade colonial e quepermite perceber a imposiçãocolonial e a “extensão e profundi-dade histórica de seu alcancedestrutivo”, uma abordagem degênero para entender como o cor-po, o sexo e o próprio gênero fo-ram construídos racializadamente.(María LUGONES, 2008, p. 77). Aimposição das opressões degênero racializada e capitalistaconstituem a “colonialidade degênero”. (LUGONES, 2011).21 GONZALEZ, 1988a; 1988c.

23 GONZALEZ, 1988a, p. 73.

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‘obscuro’, sem uma história própria (Hegel); por isso, aRazão é branca, enquanto a Emoção é negra. Assim,dada a sua ‘natureza sub-humana’, a exploração só-cio-econômica dos amefricanos por todo o continen-te, é considerada ‘natural’.24

Criticando a ciência moderna como padrão exclusivopara a produção do conhecimento, vê a hierarquização desaberes como produto da classificação racial da população,uma vez que o modelo valorizado e universal é branco. Distodecorre que a explicação epistemológica eurocêntricaconferiu ao pensamento moderno ocidental a exclusividadedo conhecimento válido, estruturando-o como dominante, einviabilizando, assim, outras experiências do conhecimento.Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medidaem que se estruturava o modelo ariano de explicação”.25

Como proposta contra-hegemônica ao modeloexclusivo racista colonialista, apresenta a amefricanidade:

As implicações políticas e culturais da categoria deAmefricanidade (‘Amefricanity’) são, de fato, democrá-ticas; exatamente porque o próprio termo nos permiteultrapassar as limitações de caráter territorial, lingüísticoe ideológico, abrindo novas perspectivas para umentendimento mais profundo dessa parte do mundoonde ela se manifesta: A AMÉRICA [...]. Para além doseu caráter puramente geográfico, a categoria deAmefricanidade incorpora todo um processo históricode intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência,reinterpretação e criação de novas formas) que éafrocentrada [...]. Seu valor metodológico, a meu ver,está no fato de permitir a possibilidade de resgataruma unidade específica, historicamente forjada nointerior de diferentes sociedades que se formaram numadeterminada parte do mundo.26

A amefricanidade se refere à experiência comum demulheres e homens negros na diáspora e à experiência demulheres e homens indígenas contra a dominação colonial.Por isso, afirma Lélia Gonzalez, “floresceu e se estruturou nodecorrer dos séculos que marcaram a nossa presença nocontinente”.27

A grande dificuldade está em falar sobre caracte-rísticas comuns compartilhadas por formações políticas tãodiferentes e, ao mesmo tempo, reivindicar a particularidade,a especificidade histórica, sem parecer estar enredada nacontradição ou em explicações essencialistas. Para Avtar Brah,isso é possível, desde que o viés essencialista do universalismoseja excluído, isto é, desde que ele seja entendido comoproduto histórico, “como característica comum derivada deuma experiência histórica variável e como tal sujeita a

27 GONZALEZ, 1988a, p. 79.

24 GONZALEZ, 1988a, p. 77.

25 GONZALEZ, 1988a, p. 71.

26 GONZALEZ, 1988a, p. 76-77.

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mudança histórica”. Assim se reconhece as característicascomuns, “através da acumulação de experiências similares(mas não idênticas) em diferentes contextos”.28

Eu identifico a historicidade das experiências, referidapor Avtar Brah, na amefricanidade, categoria com dinâmicahistórica própria fornecida pelos diferentes contextos históricosque a constituem. A categoria, portanto, tem força epistêmica,pois pretende outra forma de pensar, de produzir conhecimen-to, a partir dos subalternos, dos excluídos, dos marginalizados.Desloca mulheres e homens negras/os e indígenas da margempara o centro da investigação, fazendo-as/os sujeitos do co-nhecimento ao resgatar suas experiências no enfrentamentodo racismo e do sexismo.

Conforme Lélia Gonzalez, na época escravista, a ame-fricanidade já estava presente “nas revoltas, na elaboraçãode estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento deformas alternativas de organização social livre”, bem comonas sociedades americanas anteriores à colonização.29

Assim, ao propor categorias próprias para pensar a históriadas/os afro-ameríndias/os, aposta no desprendimento doconhecimento europeu e aponta para a descolonização dopensamento através da desconstrução das estruturas de poderque mantêm a colonialidade do saber, usando categoriasfundadas a partir da cultura negra.

A autora desenvolveu inúmeros escritos acerca dasituação de exclusão e discriminação a que estavam subme-tidas as mulheres negras, tanto no contexto brasileiro quantono cenário latinoamericano, defendendo “a articulação entreas categorias de raça, classe, sexo e poder” para desmas-carar “as estruturas de dominação de uma sociedade”.30

Embora não tenha aprofundado o tema, Gonzalezchamou a atenção para a importância de se entender osefeitos resultantes da articulação dessas estruturas de poderna definição do lugar social dos sujeitos na sociedade,principalmente das mulheres, pois tal articulação faz comque as não brancas “sejam as mulheres mais oprimidas eexploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racistadependente”.31 Nesse sentido, diz, o racismo articulado como sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra emparticular.

A ideia de gênero, como a entendemos atualmente,também não aparece nos escritos de Lélia Gonzalez. Parafalar das relações de assimetria provenientes da hierarqui-zação a partir da percepção das diferenças sexuais, ela re-corre à noção de sexo e sexismo, partindo de uma compreen-são em que as diferenças biológicas estão presentes, umacompreensão que, porém, também se constrói imbricada como social e cultural. Como afirma Luiza Bairros, “sexismo eracismo seriam variações de um mesmo tema mais geral que

28 Avtar BRAH, 2011, p. 120.

29 GONZALEZ, 1988a, p. 79.

30 GONZALEZ, 1988b, p. 138.

31 GONZALEZ, 1988b, p. 137.

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tem nas diferenças biológicas (reais ou imaginadas) o pontode partida para o estabelecimento de ideologias dedominação”.32

Lélia Gonzalez, à luz das ideias de Simone deBeauvoir, comenta:

[...] quando esta [Simone de Beauvoir] afirma que agente não nasce mulher, mas que a gente se torna(costumo retomar essa linha de pensamento no sentidoda questão racial: a gente nasce preta, mulata, parda,marrom, roxinha, etc., mas tornar-se negra é umaconquista). Se a gente não nasce mulher, é porque agente nasce fêmea, de acordo com a tradiçãoideológica supracitada: afinal, essa tradição temmuito a ver com os valores ocidentais.33

O “tornar-se negra” anuncia um processo social deconstrução de identidades, de resistência política, pois residena recusa de se deixar definir pelo olhar do outro e norompimento com o embranquecimento; significa a autode-finição, a valorização e a recuperação da história e do legadocultural negro, traduzindo um posicionamento político de estarno mundo para exercer o papel de protagonista de um devirhistórico comprometido com o enfrentamento do racismo.

Diferentemente de Frantz Fanon, as referências àBeauvoir estão longe de revelar uma forte influência teóricano pensamento de Lélia Gonzalez, até mesmo porque amulher de Beauvoir é branca. Lélia Gonzalez recusa ageneralização e resgata a mulher amefricana34

Nessa linha, conclui: se “não se nasce mulher, masse torna”, também é verdade que o processo de construçãosocial e cultural não será o mesmo para todas as mulheres,pois, outros fatores, como o racismo, redefinem as trajetóriasdos sujeitos em questão. Para mostrar como “as mulheresdesempenharam papéis tão importantes quanto oshomens”, em diferentes sociedades não europeias, entreelas indígenas e africanas, recorre a exemplos históricos:

Como sabemos, nas sociedades africanas, em suamaioria, desde a antiguidade até a chegada dosislames e dos europeus judaico-cristãos, o lugar damulher não era de subordinação, o da discriminação.Do Egito antigo aos reinos dos ashanti ou dos yorubá,as mulheres desempenharam papéis sociais tãoimportantes quanto os homens.35

Segundo Lélia Gonzalez, a opressão racial e a socialfazem da mulher negra “o foco, por excelência, de suaperversão” e “esquecer isso é negar toda uma história feitade resistências e de lutas, em que essa mulher tem sidoprotagonista, graças à dinâmica de uma memória culturalancestral”.36 Na verdade, a autora contrapõe o sujeito

32 Luiza BAIRROS, 2006, p. 55.

33 GONZALEZ, 1988d, p. 2.

34 Para Simone de Beauvoir a domi-nância masculina se deve, emmuito, à própria incapacidade detranscendência da mulher, à suafalta de projeto no mundo. Assim,a mulher, em sua livre escolha, sefaz e se torna o que é. Os homenstêm negado a transcendência àmulher, através da natureza, dahistória, de crenças e mitos, im-pondo-lhe um destino de passivi-dade, e esta, ao render-se à cor-tesia, à boa vida, se enreda namá-fé dos homens, que a queremdependente. Assim, ela tambémage com má-fé, penhorando sualiberdade em troca dos benefíciosdecorrentes da “boa vida”. VerSimone de BEAUVOIR, 1980, v. 2.35 GONZALEZ, 1988d, p. 2.

36 GONZALEZ, 1988d, p. 2.

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mulher, produto da construção hegemônica do “sistemamoderno/colonial de gênero” apontado por Lugones,37 comas amefricanas, “subordinadas por uma latinidade quetorna legítima sua inferiorização”.38 Ao fazer isto, coloca asamefricanas como sujeito do feminismo, o qual defende:

É inegável que o feminismo como teoria e práticatem desempenhado um papel fundamental em nos-sas lutas e conquistas, na medida em que, ao apresen-tar novas perguntas, não só estimulou a formação degrupos e redes, mas desenvolveu a busca de umanova forma de ser mulher. Ao centralizar sua análiseem torno do conceito de capitalismo patriarcal (oupatriarcado capitalista), evidenciou as bases materiaise simbólicas da opressão das mulheres, o que constituiuma contribuição de crucial importância para oencaminhamento de nossas lutas como movimento.39

Contudo, para Lélia Gonzalez, o capitalismo patriar-cal não consegue explicar as construções de gênero refe-rentes às amefricanas, às mulheres negras, às indígenas,àquelas que estão nas margens, pois falta incluir “outro tipode discriminação, tão grave como aquela sofrida pelamulher: a de caráter racial”.40 No seu pensamento, racismoe sexismo são apresentados como eixos estruturantes deopressão e exploração, e o redimensionamento do sexismopela raça faz submergir as desigualdades de gênero quecolocam as mulheres negras em uma dimensão das relaçõessociais diferente das mulheres brancas. Diz ainda que asmulheres negras, nas sociedades americanas, têm sua hu-manidade negada, são vistas como “corpos animalizados”,são:

burros de carga do sexo (de que as mulatas brasileirassão um modelo) expressão das relações patriarcais ra-cistas. Desse modo, se constata como a super explora-ção sócio-econômica se faz aliada à super exploraçãosexual das mulheres amefricanas.41

Lélia Gonzalez antecipa o debate atual sobre a uni-versalidade da categoria mulher e as relações de gênerodecorrentes desta concepção, ao defender a existência deuma dimensão de discriminação, de violência e de ex-clusão, invisível às abordagens de gênero desvinculadasde raça/etnia. Tal dimensão é identificável somente se hou-ver a investigação capaz de invalidar o universalismo damodernidade ocidental e de colocar em evidência a parti-cularidade, a especificidade exposta pela intersecção degênero e raça/etnia, o deslocamento sugerido por Lugones,42

com condições de descortinar o que foi escondido nosporões do patriarcado universal.

41 GONZALEZ, 1988b, p. 139.

37 LUGONES, 2008.

38 GONZALEZ, 1988b, p. 134.

39 GONZALEZ, 1988b, p. 134.

40 GONZALEZ, 1988b, p. 134.

42 LUGONES, 2008.

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AMEFRICANIZANDO O FEMINISMO: O PENSAMENTO DE LÉLIA GONZALEZ

A objetificação das mulheres negrasA objetificação das mulheres negrasA objetificação das mulheres negrasA objetificação das mulheres negrasA objetificação das mulheres negras

A opressão, o processo de exclusão e a violência im-postos pelo racismo são diferentes para homens e mulheres,isto é, o racismo gendrado produz experiências particularesàs mulheres dos grupos racialmente submetidos. SegundoAvtar Brah, o “racismo codifica distinções de gênero emborapareça subsumi-las. O processo de subsunção é importantepara impor uma unidade ‘imaginada’ e ‘imaginária’ ao gruporacializado”.43

Os estereótipos referentes às mulheres negras repre-sentam as distinções de gênero codificadas pelo racismoatravés de diferentes discursos, e a sua historicidade é passívelde ser apreendida pela investigação. Lélia Gonzalez propõea investigação desses estereótipos negativos para visibilizaro impacto da violência dessas representações negativassobre a vida de nós, mulheres negras. As representaçõesnegativas das mulheres negras na sociedade brasileira sãodecorrentes da articulação entre o racismo e o sexismo e semanifestaram de diversas formas.44

Para analisar as representações das mulheres negrascostumeiramente veiculadas na sociedade, Lélia Gonzalez45

parte de três noções, todas atribuições de um mesmo sujeito:a mulata, a doméstica e a mãe preta. As mulheres negras, demodo geral, são enquadradas em uma dessas categorias,dependendo a classificação somente da situação em quesomos vistas, assevera a autora.

Segundo Lélia Gonzalez, o engendramento das atri-buições “mulata” e “doméstica” teria ocorrido como deri-vação da mucama, denominação usual no período escravis-ta, originada “do quimbundo mu’kama ‘amásia escrava”.No contexto brasileiro, foi oficialmente redefinida, passandoa ser conceituada, no dicionário, por “escrava negra moça ede estimação que era escolhida para auxiliar nos serviçoscaseiros ou acompanhar pessoas da família e que por vezesera ama-de-leite”.46 Ao buscar a origem etimológica da pala-vra, a autora procura desvelar o que a história oficial ocultou,através da redefinição, com o intuito de fazer esquecer etornar invisível, quando do registro da história da sociedadebrasileira, ou seja, a exploração sexual das mulheres negras.Cabe ressaltar que, no mesmo dicionário citado por Gonzalez,o Dicionário Aurélio, consta a seguinte definição para aexpressão “de estimação”: “diz-se de um bem, animal, oucoisa”.47

Em relação à doméstica, Gonzalez chama a atençãopara a permanência das atribuições vinculadas ao períodoescravista e ao exercício de funções vinculadas à casa gran-de, incluindo a exposição à violência sexual. A doméstica re-presentaria a mucama permitida, “a da prestação de bens e

43 BRAH, 2011, p. 188.

47 Aurélio FERREIRA, 1986, p. 722.Grifo meu.

46 GONZALEZ, 1983, p. 229.

44 Edward SAID, 1990, em sua obraOrientalismo: o Oriente comoinvenção do Ocidente, aborda aconstrução das mulheres nãobrancas, como a outra, a exótica.45 GONZALEZ, 1983.

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serviços” e, em função disso, reside no “lado oposto da exal-tação; porque está no cotidiano”. Cotidiano que vê as mulhe-res negras, completa Lélia Gonzalez, independentemente daclasse social e profissão, como empregadas domésticas.48

A mulata acolhe dois significados, o tradicional, resul-tante da mestiçagem; e outro, atualizado pela exploraçãoeconômica, no qual representa “mercadoria, produto deexportação”. Segundo a autora, a percepção da mulatacomo invenção do português, nos remete à instituição da“raça negra como objeto” pelo colonizador. Nesse caso, a“mulata é crioula, ou seja, negra nascida no Brasil, nãoimportando as construções baseadas nos diferentes tons depele”.49 Portanto, a invenção da mulata objetifica os negros,de modo geral, e a mulher negra, de modo particular.

A “mãe preta” representa o esperado da mulher negrapela sociedade branca e classe média: resignação, passivi-dade diante das situações de violência e opressão. A figurasimpática, amorosa e inofensiva da mãe preta realiza aaceitação sem resistência do poder instituído, da escravidão,dissimulando, inclusive, os horrores do período escravista paraas mulheres negras escravizadas e/ou libertas. A função desseestereótipo reside em negar o agenciamento das mulheresnegras, ou seja, a sua existência histórica.

Lélia Gonzalez ultrapassa a mera positivação doestereótipo e recupera outra face, pois desloca as mulheresnegras do plano estigmatizado de “exemplo extraordináriode amor e dedicação totais como querem os brancos” ou de“traidora da raça, como querem alguns negros muitoapressados em seu julgamento”, 50 para o lugar de destaqueno processo de formação da cultura brasileira. Recupera a“mãe preta” como sujeito político, mostrando como ela

desenvolveu as suas formas de resistência [...] cujaimportância foi fundamental na formação dos valorese das crenças do nosso povo. Conscientemente ounão, ela passou para o brasileiro branco as categoriasdas culturas negro-africanas de que era representante.Foi por aí que ela africanizou o português falado noBrasil (transformando-o em ‘pretuguês’) e, conseqüen-temente, a cultura brasileira.51

Lélia Gonzalez, ao valorizar a resistência desenvolvidapela “mãe preta”, no período escravista, muitas vezes, realiza-da através da negociação, assegurando com a ação suasobrevivência, a de sua prole e a de seus parceiros, eviden-cia o movimento do sujeito resistindo à objetificação que lheé imposta. Dito em outras palavras, a autora ilumina as estraté-gias desenvolvidas pelas mulheres negras escravizadas paraenfrentar o processo de dominação/exploração que procu-rava mantê-las como outro/escravo/objeto.

48 GONZALEZ, 1983, p. 230.

49 GONZALEZ, 1983, p. 239.

50 GONZALEZ, 1983, p. 235.

51 GONZALEZ apud BAIRROS,2006, p. 54.

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AMEFRICANIZANDO O FEMINISMO: O PENSAMENTO DE LÉLIA GONZALEZ

Segundo Stuart Hall, no ensaio “El espectáculo del‘Otro’”, o estereótipo como prática significante é central paraa representação da diferença racial. O estereótipo tem acapacidade de desenvolver estratégias para estabelecer adivisão, ditando o que pode ser considerado “o normal e oaceitável e o anormal e o inaceitável. Então exclui ou expulsatudo o que não se encaixa, que é diferente”52. Para ocorrer oprocesso de estereotipação, faz-se necessária, sublinha oautor, a existência de uma profunda clivagem social, asse-gurando grandes desigualdades de poder. Poder entendidoa partir de uma concepção mais ampla, incluindo não só aexploração econômica, mas também a coerção cultural esimbólica. A representação se caracteriza pelo poder demarcar, assinalar e classificar um grupo a partir da diferença,esta construída e essencializada pelo estereótipo.

Nesse contexto é que a representação da mulata podeser entendida, construção absolutamente essencializada,fixada a partir de detalhes anatômicos do corpo da mulhernegra, os quais passam a representá-la através do estereótipoao qual será reduzida. Mulata é corpo, apenas, mas nãoqualquer corpo: o conjunto, que a caracteriza, é formado porseios e bunda grandes e uma habilidade ‘natural’ para mexersensualmente e eroticamente os quadris em movimentosritmados, anunciando o convite para o sexo. Essas carac-terísticas são exclusivas das mulatas, da ‘gente negra’; mu-lheres brancas, conforme a representação social, não sabemrebolar ‘naturalmente’, muito menos os homens brancos. Emfunção disso, a mulata possui os ‘ingredientes’ para corpo-rificar a sexualidade livre de normas e controle sociais. Oestereótipo da mulata, por conseguinte, reduz a mulher negraa um conjunto exagerado e, ao mesmo tempo, simplificado,de características que foram estrategicamente marcadascomo diferenças inatas.

Ainda, segundo Stuart Hall, a substituição

[...] de uma parte pelo todo, de uma coisa – umobjeto, um órgão, uma porção do corpo – por umsujeito é o efeito de uma prática de representaçãomuito importante: o fetichismo”, que é a estratégiapela qual a fascinação ou o desejo se realizam, mastambém são negados; ele licencia o “voyeurismo nãoregulado” impulsionado “por uma busca nãoreconhecida do prazer ilícito e um desejo que nãopode ser satisfeito.53

Sobre o fetiche, analisa Lélia Gonzalez, os “atributos”da mulata podem ser admirados somente em um espaçodeterminado e permitido para sua exibição, o Carnaval. Amulata foi convertida em um objeto para ser consumido peloolhar do homem branco, daí porque, continua a autora, o

53 HALL, 2010, p. 437-438, grifosdo autor.

52 Stuart HALL, 2010, p. 430.

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“endeusamento carnavalesco” da mulata acaba no cotidia-no, “no momento em que ela se transfigura na empregadadoméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada peloseu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressivi-dade”:54 a mulata desperta o desejo, livremente manifestosomente no Carnaval, porque tal sentimento se apresenta“acobertado” pelo espetáculo, mas no dia a dia, nas relaçõesde trabalho e afetivas, o desejo dá passagem para a rejeição,a discriminação, o expurgo do outro racializado e inferiorizado.55

Esses estereótipos que inferiorizam as mulheres negrasforam e ainda são amplamente ratificados através de dife-rentes práticas de representação: da literatura, da pintura eda música, etc.

A mulata, a mucama, a mãe preta, a empregada do-méstica são representações racializadas resultantes de cons-truções racializadas de gênero. Diante disso, necessita-se deleituras acerca da construção de estereótipos atentas à raça,gênero e sexualidade, capazes desvendar a constituiçãodessas representações.

Patricia Hill Collins,56 referindo-se aos estereótipos demulheres negras como imagens de controle (controllingimages), uma vez que procuram fomentar uma definição dasmulheres negras como “outro” objetificado, desumanizado,diz que a função de desumanização serve para justificar ocontrole dos grupos. As imagens de controle são designadaspara mascarar o racismo, o sexismo, a pobreza e outrasinjustiças sociais, fazendo-os parecer natural, normal e parteinevitável do cotidiano, sendo, assim, fundamentais para amanutenção das desigualdades sociais.

As mulheres em sua totalidade são representadas porimagens estereotipadas, porém de formas diferentes. Asimagens de controle são criadas para justificar a exploraçãoeconômica e garantir a subordinação das mulheres negras,mas, também, para assegurar a manutenção das opressõesde gênero e regular a sexualidade das mulheres, sejamnegras ou brancas. Por isso a importância de se compreenderas construções racializadas de gênero, pois, como afirmaPatricia Hill Collins,57 elas funcionam para mascarar relaçõessociais que afetam todas as mulheres.

Os estereótipos, portanto, têm cumprido historicamentea função de rebaixar uma parcela da humanidade,transformando particularidades em marcas naturalizadas,essencializadas, em justificativas para as diferenciaçõessociais, para o controle e a dominação daquelas/es queforam assinaladas/os pelas representações negativas.

PPPPPor um feminismo afrolatinoamericanoor um feminismo afrolatinoamericanoor um feminismo afrolatinoamericanoor um feminismo afrolatinoamericanoor um feminismo afrolatinoamericano

Lélia Gonzalez58, em “Por um feminismo afrolatinoa-mericano”, expressa mais detalhadamente sua visão de

54 GONZALEZ, 1983, p. 228.

55 Para aprofundar essa discussãover Silvana BISPO, 2011.

56 COLLINS, 2000.

57 COLLINS, 2000.

58 GONZALEZ, 1988b.

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AMEFRICANIZANDO O FEMINISMO: O PENSAMENTO DE LÉLIA GONZALEZ

feminismo atento ao racismo gendrado. Muitas de suas con-siderações, ainda hoje, integram os debates de mulhereslatino-americanas e caribenhas que têm como propostapensar o feminismo desde o Sul, um feminismo descolonizadoque atenda e inclua as mulheres que estão atuando desdeas margens, com o intuito de construir modelos alternativosde sociedade.

A autora tece duras críticas à invisibilidade de raçana maioria dos estudos feministas latino-americanos, comdestaque para o Brasil, considerando a forte presença negrae indígena. Dizendo que “o feminismo latino-americano per-de muito de sua força ao fazer abstração de um dado darealidade da maior importância: o caráter multirracial e pluri-cultural das sociedades da região”,59 defende a perspectivaantirracismo como elemento intrínseco aos princípios feminis-tas, pois, se o sexismo, o racismo e o classismo colocam asmulheres negras no mais baixo nível de opressão, nenhummovimento de mulheres pode ser considerado realmentefeminista se não tiver por premissa o enfrentamento destasestruturas.

O movimento de mulheres negras brasileiro colocouraça em evidência, revelando o racismo e as desigualdadesraciais como determinantes no processo de opressão, discrimi-nação e exclusão da população negra, de modo geral, e,em especial, das mulheres negras, quando o racismo vemarticulado com o sexismo. Esta atuação das mulheres negrasobriga o movimento feminista branco e hegemônico a incluirraça em suas abordagens, mas, no entanto, a inclusão estálonge de significar uma mudança epistêmica, pois raçacontinua sendo tratada tangencialmente. Poucos são osestudos no Brasil que abordam a intersecção de gênero eraça/etnia, as representações de gênero racializadas e osefeitos sobre a vida das mulheres nas mais diferentes áreas,como saúde, mercado de trabalho, sexualidades, relaçõesafetivas, etc. Estudos de gênero que encobrem a realidadedas mulheres negras e das indígenas ainda são maioria, eassim, é extremamente atual a crítica feita por Lélia Gonzalezhá mais de vinte anos, no texto “Mulher negra”,60 como sepode constatar a seguir:

Apesar das poucas e honrosas exceções para entendera situação da mulher negra [...], poderíamos dizer quea dependência cultural é uma das características domovimento de mulheres em nosso país. As intelectuaise ativistas tendem a reproduzir a postura do feminismoeuropeu e norte-americano ao minimizar, ou atémesmo deixar de reconhecer, a especificidade danatureza da experiência do patriarcalismo por partede mulheres negras, indígenas e de países antescolonizados.61

60 Este texto foi originalmentepublicado na Revista Ipeafro,Afrodiáspora, n. 6-7, p. 94-106,1986. Consultar GONZALEZ,2008, p. 29.

59 GONZALEZ, 1988b, p. 135.

61 GONZALEZ, 2008, p. 36.

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Lélia também elaborou pesadas críticas aos homensnegros militantes do movimento negro, parceiros políticos naluta contra o racismo, mas nem por isso imunes ao sexismo.Como sublinha María Lugones,62 a subordinação de gênerofoi o preço negociado pelos homens colonizados com seuscolonizadores em troca da manutenção do poder em seuespaço social. Historicamente, este trato não se caracterizacomo traição, mas como uma resposta à coerção em todasas dimensões da organização social. A questão, afirmaLugones, é porque ainda hoje a cumplicidade, que impedeo surgimento de laços fortes entre homens e mulheressubordinados para enfrentar os diferentes processos dedominação/exploração, se mantém.

Lélia Gonzalez já apontava para esta mesma direção,pois, conforme salienta, as mulheres negras militantes semprediscutiram seu cotidiano marcado pela discriminação raciale pelo sexismo dos homens brancos e negros e,principalmente, reconheciam o sexismo dos últimos, devidoao “caráter mais acentuado do machismo negro, uma vezque este se articula com mecanismos compensatórios quesão efeito direto da opressão racial”.63

As consequências do processo de construção dasmasculinidades racializadas, particularmente do homem ne-gro, para as mulheres dos grupos racialmente discriminados,também é discutida por Luiza Bairros, para quem os supostos“privilégios da condição masculina” dificilmente poderãoser desfrutados em sua plenitude por homens negros em umasociedade racista. Por isso,

[os] poucos espaços que se oferecem para a expressãoplena de pessoas negras, também é palco para oexercício de um sexismo que não poderia manifestar-se em outras esferas da vida social, especialmenteaquelas dominadas por (homens) brancos.64

Ocorre um reforço do sexismo da parte dos homensnegros, pela ilusão de compensar os efeitos devastadores doracismo, afastando alianças para o enfrentamento dasdesigualdades de gênero, pois, como estão presos naarmadilha do antagonismo entre homens e mulheres,acreditam que estas últimas desejam acabar com os seuspretensos “privilégios”, afirma Bairros.65

A construção de gênero do homem negro ocorre,portanto, reconfigurada por raça, que fornece uma dimensãoque dificulta o enquadramento total deste sujeito na catego-ria homem, considerando a atuação definida pela socieda-de dominante. Basta ver os dados referentes ao mercado detrabalho, que mostram, em muitas situações, o homem negroem posição de desvantagem econômica em relação àmulher branca. Assim, a reafirmação e o exercício de sua

62 LUGONES, 2008.

63 GONZALEZ, 2008, p. 38.

64 BAIRROS, 1995, p. 461.

65 BAIRROS, 1995.

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masculinidade, na perspectiva da sociedade ocidental bran-ca, em última instância, ocorrerão pela opressão da mulhernegra.

Sobre a forma como os homens negros experienciamgênero, diz Bairros:

A percepção de que o homem deve ser, por exemplo,o principal provedor do sustento da família, o ocupantedas posições mais valorizadas do mercado de trabalho,o atleta sexual, o iniciador das relações amorosas, oagressivo, não significa que a condição masculina sejade superioridade incontestável.Essas mesmas imagens cruzadas com o racismo recon-figuram totalmente a forma como os homens negrosvivenciam gênero. Assim, o negro desempregado ouganhando um salário minguado é visto como o pregui-çoso, o fracassado, o incapaz. O atleta sexual é perce-bido como um estuprador em potencial, o agressivotorna-se o alvo preferido da brutalidade policial.66

Apesar de tecer críticas ao sexismo dos homens ne-gros, Lélia Gonzalez defende que a experiência histórico-cultural comum com a escravidão, no passado, e o racismo,na atualidade, forneceram um plano mais igualitário, possi-bilitando o desenvolvimento das relações entre mulheres ehomens negros militantes.

Segundo Alex Ratts e Flavia Rios, Lélia Gonzalez defen-dia um feminismo formado em meio às lutas de mulheres ne-gras, pois este “traria um tipo de solidariedade com os homensnegros, já que eles também compartilhavam com elas algumaforma de opressão”, o que mostra, ressaltam os autores, que avisão política de Lélia Gonzalez não abria espaço para osectarismo.67

Pode-se inferir que esta visão política de Lélia Gonzalezinfluenciou sua aproximação com as ideias de Alice Walker,em especial, com a categoria womanism. Para Lélia Gonzalez,Alice Walker, através da categoria, expõe sua crítica à noçãode feminismo, “contrapondo-lhe uma outra: a de ‘mulherismo’(womanism)” e “sem descartar as importantes contribuiçõesdo feminismo para o movimento de mulheres como um todo”,continua a autora brasileira, “Walker amplia e aprofunda areflexão feminista ao colocar a questão que eu traduziria pormulheridade”.68

A categoria womanism foi elaborada pela escritoranegra estadunidense Alice Walker, na obra In search of ourmothers’ gardens: womanist prose, uma coletânea deensaios.69 Na perspectiva da autora, o womanism apresentanovas exigências e perspectivas diferentes para o feminismo,obrigando-o a expandir seus horizontes teóricos e práticos.

A womanist é, então, uma feminista negra comprome-tida com a sobrevivência e a integridade de toda a comuni-

68 GONZALEZ, 1988d, p. 2.

69 Alice WALKER, 1984.

67 RATTS e RIOS, 2010, p. 112.

66 BAIRROS, 1995, p. 461.

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dade negra, homens e mulheres, pois sua sobrevivência estádiretamente vinculada à sobrevivência do grupo. Concepçãoque vai ao encontro do que defende Lélia Gonzalez,principalmente no que diz respeito à perspectiva de incluirhomens negros e de valorização da comunidade negra, comosublinham Ratts e Rios.70

Já em relação ao movimento de mulheres brancas, ascontradições e ambiguidades sempre foram muitas, impedin-do a formação de alianças, uma vez que “geralmente ‘se es-quece’ da questão racial”, diz Gonzalez,71 que reconhece aimportância do feminismo como teoria e prática, para as lutase conquistas das mulheres, pois, ao apresentar novos questio-namentos induzia a formação de grupos e redes e, principal-mente, “desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mu-lher”, mas critica “o esquecimento” do racismo, por parte dasfeministas brancas, considerando-o um reflexo de “uma visãode mundo eurocêntrica e neocolonialista da realidade”.72

Em acordo com o que foi destacado por Lélia Gonzalez,no tocante ao movimento de mulheres, Brenny Mendozaafirma que “ignorar a historicidade e colonialidade de gênerotambém cega as mulheres brancas do Ocidente”, as quaistêm dificuldades para reconhecer a intersecção de raça egênero e “a sua própria cumplicidade nos processos decolonização e dominação capitalista”.73 Assim, a crítica deGonzalez ao feminismo hegemônico continua pertinente.

Quanto à diversidade sexual, não encontrei, nos textostrabalhados, referência à lesbianidade, somente em relaçãoà homossexualidade. Embora não tenha se detido nesse de-bate, a autora sublinha a sua importância, manifestando oseu contentamento com as conquistas obtidas dentro do movi-mento negro por “nós mulheres e nossos companheiros homos-sexuais, [pois] conquistamos o direito a discutir, em Congresso,nossas especificidades”.74 A categoria lesbianidade, nos anos1980, ainda não integrava a linguagem dos movimentossociais, somente homossexual masculino e feminino.

Resistência e insurgência: protagonismoResistência e insurgência: protagonismoResistência e insurgência: protagonismoResistência e insurgência: protagonismoResistência e insurgência: protagonismode mulheres negras e indígenasde mulheres negras e indígenasde mulheres negras e indígenasde mulheres negras e indígenasde mulheres negras e indígenas

As mulheres negras e indígenas, na perspectiva ofere-cida por Lélia Gonzalez, intervêm ativamente na conduçãode seus destinos e deixam como legado, para as que vêmdepois, a experiência do enfrentamento do racismo e dosexismo, o que significa que a luta contra essas opressõesapresenta um longo caminho já trilhado. Assim sendo, acategoria “amefricanidade”, por ela cunhada, mais do queindicar a experiência comum com a escravidão, a domina-ção e a exploração da colonialidade tem na resistência suacentralidade.

70 RATTS e RIOS, 2010.

71 GONZALEZ, 2008, p. 37.

72 GONZALEZ, 1988b, p. 135.

74 GONZALEZ, 2008, p. 39.

73 Brenny MENDOZA, 2010, p. 23.

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Seguindo essa premissa, Gonzalez traz a história deNanny – mulher negra escravizada, líder maroon75 na lutaanticolonialista da Jamaica do século XVIII –, para “melhorapreendermos a importância das mulheres nas lutas dascomunidades amefricanas de ontem e de hoje”.76 Nanny éapresentada pela historiografia jamaicana de muitas formas,desde mito, mártir, líder militar, até figura mística misteriosa;todavia, sua importância para aquela sociedade é inquestio-nável. Embora a história de Nanny seja de grande interesse,minha intenção aqui é apresentar as análises de LéliaGonzalez sobre as histórias místicas que cercam a líder jamai-cana, centrando-me em três interpretações que remetem,como pretendo mostrar, a uma concepção de feminismo.

Para melhor entendimento da análise de Gonzalez,77

apresento resumidamente as três histórias: a primeira contaque os ingleses destruíram as provisões dos maroons a fim dederrotá-los pela fome e que, alguns dias antes da rendição,Nanny recebeu, em sonho, sementes mágicas para plantar esalvar seu povo da fome; na segunda, a líder enganou osinimigos colocando em seu caminho um caldeirão mágicocom conteúdo fervente, mas sem fogo para mantê-lo assim.Aqueles que olhavam em seu interior eram engolidos; e, naterceira, diante do exército inimigo, Nanny se virou e atraiu asbalas das armas para o meio de suas nádegas, vencendo oexército inglês.

Lélia Gonzalez faz as seguintes interpretações dessashistórias:

A primeira história, simbolicamente, remeteria ao papelda mulher que assegura a regeneração e a continuida-de de uma sociedade que, sob condições adversas,se encontra numa luta constante pela sobrevivência. Asegunda apontaria para a perspicácia feminina nodesenvolvimento de táticas, absolutamente inespera-das para o inimigo, cuja fonte está no saber do própriogrupo. Já a terceira, a nosso ver, simbolizaria a profundaradicalidade de uma posição anti-colonialista. O signifi-cado de seu gesto implica uma rejeição de tal ordemque põe por terra o conjunto de valores, instituições epráticas do colonizador. E este, supondo-se superior, équem fica literalmente ‘desbundado’ em face de tantacontundência.78

As lentes através das quais Lélia Gonzalez interpretaas histórias de Nanny, todas retratando as condições adversassob as quais vivem as mulheres negras e indígenas, permitem-lhe enxergar as questões semelhantes e recorrentes queconfrontam as mulheres negras, no contexto da diáspora, eque são impeditivas ao pleno acesso a bens e serviços dequalidade e ao direito a vida digna.

77 GONZALEZ, 1988c.

78 GONZALEZ, 1988c, p. 25.

75 Segundo GONZALEZ, 1988c, p.24, “os termos marronage (francês)e maroon society (inglês) provêmdo espanhol cimarrón, todos signifi-cando o mesmo que quilombo”.76 GONZALEZ, 1988c, p. 24.

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Lélia Gonzalez recorreu à categoria “amefricanas”,as “herdeiras de uma outra cultura ancestral cuja dinâmicahistórica revela a diferença pelo viés das desigualdadesraciais”,79 como possibilidade de reflexão epistemológicapara fazer emergir diversas tradições de resistência às relaçõespatriarcais a partir das experiências das mulheres negras eindígenas da América da América Latina, Caribe e Brasil.

Porém, são processos de resistência e insurgência aospoderes estabelecidos, na maioria das vezes, ainda ocultos,que somente investigações comprometidas com a descolo-nização do feminismo podem tirar do esquecimento histórico.

Lélia Gonzalez influenciou mulheres e homens de suageração, assim como, até hoje, seu pensamento inspira aorganização dos movimentos de mulheres negras. Seu pensa-mento aponta para a valorização de saberes subalternos,visando contribuir para a descolonização do feminismo, poistais saberes podem provocar a elaboração de teorias feminis-tas que dialoguem mais proximamente com as mulheresnegras, lésbicas, brancas pobres e indígenas, teorias cúmpli-ces da ação política, nascidas de experiências particulares.

A valorização e o resgate de saberes produzidos pelasmulheres negras e indígenas representa, por si só, uma práticapolítica de descolonização do saber, na medida em que seredefine a orientação do vetor da concepção ocidental demundo para as concepções filosóficas das sociedadesafricanas e indígenas, totalmente excluídas do chamadoconhecimento hegemônico. Além do que, buscar fundamen-tação em elementos/valores/princípios que constituem taissaberes gera profundos cortes com o paradigma ocidentalmoderno e faz emergir novas propostas epistemológicas.

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