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Cadernos de Estudos Leirienses – 13 * Setembro 2017

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Cadernos de Estudos Leirienses – 13 * Setembro 2017

Título: CADERNOS DE ESTUDOS LEIRIENSES – 13

Editor: Carlos Fernandes

Coordenador Científico: Saul António Gomes(Professor Associado com Agregação do Departamento de História, Arqueologiae Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)

Conselho Consultivo: Isabel Xavier, J. Pedro Tavares, Luciano CoelhoCristino, Mário Rui Simões Rodrigues, Miguel Portela, Pedro Redol e RicardoCharters d’Azevedo

Coordenador do Especial Alvaiázere: Mário Rui Simões Rodrigues

Colaboração no Especial Alvaiázere: AL-BAIÄZ – Associação de Defesa doPatrimónio e Município de Alvaiázere

Concepção e arranjo da capa: Gonçalo Fernandes

Colecção: CADERNOS – 13

©TextiversoRua António Augusto da Costa, 4Leiria Gare2415-398 LEIRIA - PORTUGALE-mail: [email protected]: www.textiverso.com

Revisão e coordenação editorial: TextiversoMontagem e concepção gráfica: TextiversoImpressão: Artipol1.ª edição: Setembro 2017Edição 1192/17Depósito Legal: 384489/14ISSN 2183-4350Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

Ourém

Fátima

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História do Cemitério Antigode Maçãs de Dona Maria

Carlos Laranjeira Craveiro*

* Professor de Biologia e Geologia

Resumo

Maçãs de Dona Maria foi uma das primeiras localidades do país a cons-truir o seu cemitério, indo ao encontro dos diplomas de 21.9.1835 e de28.9.1844 que proibiam o enterramento nas igrejas e nas capelas, e tornavaobrigatório a construção de cemitérios municipais e paroquiais. Corria o anode 1855 tendo liderado este projeto o pároco Bernardo Ferreira da Silva, queapelou à generosidade da população e à contribuição das quatro confrariasda paróquia para murar um pequeno espaço inclinado a poente da igrejaparoquial.

Contudo, nos anos seguintes, o pequeno cemitério não foi suficiente paraenterrar tantas pessoas que sucumbiram às infeções de cólera e febre tifoideque ocorreram em 1856, 1857 e 1864, pelo que houve que recorrer, de novo,ao adro como prolongamento do cemitério.

Se a sua construção veio dar resposta às obrigações legais, depressase tornou numa das principais fontes de receita das sucessivas juntas daparóquia, quando perceberam que as elites locais procuravam perpetuar oseu protagonismo com a aquisição de terrenos para a construção de distintosmausoléus para os seus defuntos.

O cemitério antigo recebeu defuntos até 1955. Já depois de uma tentati-va frustrada de transformar o antigo cemitério num jardim público, este espa-ço patrimonial foi classificado como “Imóvel de interesse municipal”, por des-pacho de 30.4.97 do ministro da cultura.

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As sucessivas epidemias de cólera e de febre tifoide do século XIX

No decorrer da reunião da Junta da Paróquia de Maçãs de Dona Mariade 20.9.1885, o então presidente, António José Marques, leu um ofício envi-ado do administrador do Concelho de Figueiró dos Vinhos onde a freguesiaentão se integrava, recomendando que aquela Junta conseguisse uma casacom cozinha e com dois quartos, para que nela pudessem ser instaladoscinco ou seis doentes pobres que, porventura, viessem a ser atacados pelatemível epidemia da cólera. Um dos vogais e tesoureiro da Junta, ManuelMaria Pimentel Teixeira, solicitador da comarca, imediatamente se prontificoua oferecer umas casas que possuía no lugar da Cumeada que, na sua opi-nião, dispunha de todas as condições exigidas para aquele fim1.

Recorde-se que a cólera é consequência da atividade de uma bactériaque se desenvolve especialmente bem nas fezes, propagando-se através doseu contacto. Vómitos e dejeções quase constantes, dores e cãibras naspernas e uma fraqueza generalizada potencializadora de infeções secundári-as, pode conduzir, em casos mais graves, à morte, particularmente, em pes-soas mal alimentadas e, como tal, menos resistentes, mas também nas pes-soas que viviam mais próximas dos focos de contágio.

Ora, para que numa região se estabelecesse uma epidemia de “cóleramorbus” entre a população, a proximidade de fezes das habitações ou ocontacto com tais dejetos deveriam estar na raiz do problema.

Para a primeira razão não será difícil percebermos que a presença de estru-mes dos porcos e gados junto das habitações seria uma constante. Em 1848, numtexto monográfico com que se candidataria a professor da Faculdade de Medicinada Universidade de Coimbra, afirmava o Dr. Costa Simões a propósito da qualida-de das habitações: «As habitações das Cinco Vilas e Arega são geralmente malconstruídas (…) e por toda a parte há, em geral, muita pouca higiene. A exposiçãomais higiénica de toda a casa, a exposição ao meio dia, é cedida pela família emproveito dos porcos. É deste lado da casa, por ser o mais soalheiro, que ordinari-amente se acham as cortes, consistindo num pequeno curral, um pátio e às vezesum telheiro, e quase tudo debaixo dos mesmos telhados da própria habitação dafamília. É muito frequente ver-se a entrada da casa pelo pátio da corte, semprecoberto de estrumeiras húmidas, com o péssimo cheiro da própria estrumeira, dosexcrementos e das águas da cozinha»2.

1 Ata da Junta da Paróquia, 20.9.1885.2 SIMÕES, António Augusto da Costa, Topographia Medica das Cinco Vilas e Arega ou dos conce-

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Figura 1- Placa em homenagem ao Dr. CostaSimões, no Luso

História do Cemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria

Por outro lado, e na opiniãodo mesmo autor, outro dos focosde infeções seriam os poços,minas de água e as represas dasribeiras utilizados para a mace-ração do linho. Seriam estes“pântanos artificiais” com mate-riais orgânicos em putrefação,que após a retirada do linho e aexposição ao sol seriam os res-ponsáveis pelas principais pes-tes da região.

À proximidade das popula-ções com estas estrumeiras eáguas estagnadas associe-se,então, a falta de hábitos de higi-ene (em que o simples gesto delavar as mãos estaria muito lon-ge do desejável), o consumo deprodutos hortícolas contamina-dos e a ingestão de água in-quinada; e então teremos moti-vos mais que suficientes para justificar as sucessivas epidemias de cóleracom que a freguesia de Maçãs de Dona Maria se viu confrontada e que tantasvidas dizimou ao longo do século XIX.

Os primeiros registos de cólera em Portugal datam de 1832, aquando dasguerrilhas entre liberais e miguelistas, talvez trazida por um grupo de soldadosvindos da Flandres para auxiliar D. Pedro na conquista do Porto. A sua chegadaa este canto da Europa não foi mais que o alastrar de uma epidemia iniciadadois anos antes na Rússia com efeitos devastadores. Tal como rapidamentechegou, depressa se espalhou pelo País, calculando-se que nesse e no anoseguinte terão morrido mais de 40 000 pessoas no nosso território.

Pouco mais de duas décadas depois, já o País registava novos surtos,desta vez com origem na vizinha Espanha ou mesmo do Norte de África,afirmam os especialistas. Os anos de 1854, 1855, 1856 e 1857, e anos de-

lhos de Chão de Couce e Maçãs de D. Maria em 1846, com o respetivo mappa topográfico e cartageológica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1860, p.107.

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pois, em 1864, foram anos desastrosos no que diz respeito às consequênciasdesta epidemia, com uma mortandade superior à primeira3. Parece, pois, quedesde a sua chegada, a cólera nunca mais abandonou o nosso País.

De quando em vez, nova epidemia dizimava famílias, tendo feito maisestragos ainda nos anos setenta do século passado. Então os meios de co-municação não se cansavam de alertar a população: as carnes dos animaisdeveriam ser sujeitas a elevadas temperaturas antes de serem consumidas eas verduras comidas cruas deveriam ser convenientemente lavadas por águacorrente da rede. No caso da lavagem com água extraída dos poços seriaessencial adicionar um qualquer produto desinfetante, por exemplo, algumaspoucas gotas de lixívia, produto que contém cloro dissolvido.

Mas nos primeiros anos da introdução da doença em Portugal (aindalonge de se saber a origem da doença que só viria a ser descoberta em 1883por Koch), num País onde grande parte das população rural vivia ao lado ousobre as suas pocilgas, em localidades onde os dejetos da noite eram demanhã atirados do bacio para o quintal para ajudar a crescer as hortaliças,onde, enfim, alguma imundice assolava a cada porta, entrando mesmo casadentro, não será de estranhar a rapidez da propagação da doença entre aspopulações mais desfavorecidas.

E Maçãs de Dona Maria não escapava a tal moléstia cujo tratamento pali-ativo se quedava por cocktails de produtos naturais que boticários e barbeirosse apressaram a idealizar. A doença tinha vindo para ficar e com o gado e osestrumes fazendo parte do dia-a-dia do camponês, decerto, terão sido as popu-lações rurais e, em particular, as famílias pobres, as mais sacrificadas.

Com alguma regularidade a doença voltava e o administrador do conce-lho tomava medidas, determinando a «criação de uma Comissão de Benefi-cência presidida pelo Pároco, para promover socorro, donativos e esmolaspara socorrer as classes pobres e indigentes»4 ou sugerindo à Junta a colo-cação de uma caixa de esmolas na Igreja para “Socorro dos Náufragos” en-tão entendido como tragédias.

E quanto aos mortos atingidos pelas pestes, a solução não poderia dei-xar de ser aquela que todos esperavam: o seu enterramento. Herdeiros datradição cristã e da crença na ressurreição final, os portugueses sempre re-cusaram a cremação dos corpos ou o seu abandono, como ocorria nalguns3 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa – Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Limi-tada, 1939.4 Ata da Junta da Paróquia, 31.7.1892.

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povos antigos. Portanto, para os mortos, ainda que provisoriamente, haveriade se encontrar uma morada não muito longe dos seus mais queridos e sem-pre à sombra da força protetora da Igreja.

O Adro da Igreja como primeiro cemitério aberto

Nos anos em que ocorreram as trágicas epidemias de cólera, os locaisde enterramento terão sido exíguos para acolher tão grande quantidade dealmas. Novos e velhos, a doença a todos atingia. Então nesta, como em tan-tas outras aldeias do reino, à tragédia da mortandade terá sucedido, então,um outro problema: a necessidade de espaço para enterramento.

Ora quais terão sido os locais de enterramento em Maçãs de Dona Ma-ria? À semelhança de qualquer localidade, um dos primeiros locais de sepul-tura nesta freguesia foi a Igreja. No seu interior, ali mesmo debaixo do soalho,terão sido cavadas as covas daqueles que partiam, como se veio a compro-var nos anos quarenta do século passado, aquando de uma intervenção derestauro e ampliação da Igreja, e de onde terão sido retirados restos deossadas, transladadas, posteriormente, para uma vala no cemitério antigoque agora descrevemos.

Pároco, sacristão e coveiro terão tido a preocupação do registo das se-pulturas, evitando, deste modo, enterrar corpos em locais onde não tivessedecorrido tempo suficiente para a decomposição do cadáver ou evitando en-terrar corpos uns sobre os outros. Foram preocupações tidas noutras igrejasdo País e estabelecidas na forma de regimento e que, decerto, a Igreja deMaçãs de Dona Maria não terá sido exceção, desde que se iniciou o registosistemático dos óbitos após a Contrarreforma (em oposição à reforma protes-tante iniciada com Lutero), em meados do século XVI.

Porém, a inumação de corpos no interior da Igreja acarretava perigos eincómodos que todos conheciam e sentiam de perto, e em especial, os odo-res nauseabundos provenientes de um chão com corpos em decomposição.Por isso, um dia do qual não há registos (talvez a partir do século XVII comoé destacado por alguma bibliografia sobre outros locais do País)5, quando apopulação da freguesia começou a crescer, terá havido a decisão sensata deos enterramentos passarem a ser feitos no exterior da Igreja, não sendo deexcluir, contudo, que as figuras locais de maior prestígio continuassem a serenterradas no interior da Igreja. De facto, com tantos corpos a desaparece-

5 http://geneall.net/pt/forum/147284/enterrado-em-cova-de-fabrica-assentos-de-obito/#a169791

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Figuras 2 e 3 – Adro da igreja paroquial de Maçãs de Dona Maria, mostrando do lado direitoalgumas casas onde no século XIX se instalaram tabernas e outros estabelecimentos comerciais

de Manuel Simões de Abreu

rem por baixo do soalho da Igreja nem as portas abertas ou o incenso quei-mado conseguiriam disfarçar tais odores, em especial, em épocas de epide-mias da cólera ou da febre tifoide.

É, pois, no Adro da Igreja, que se organiza o primeiro cemitério públicoaberto da aldeia dos tempos modernos. É certo que enterrar os mortos no inte-rior da Igreja significava terem os restos mortais dos mais queridos sob prote-ção da casa de Deus. Mas no Adro, também ele um espaço sagrado, paredes-meias com a Igreja, a diferença não seria tão grande e sempre a decomposiçãodos corpos se poderiam fazer sem perigos para a saúde pública.

Mas esta decisão de enterrar os corpos no adro da igreja não foi tãopacífica em todo o território nacional, devendo-se aos costumes locais aforma de encarar o enterramento. Por exemplo, nas pequenas aldeias doNorte do País, nos primeiros anos do século XIX, a igreja ainda continuava aser utilizado como cemitério. E foi para acabar definitivamente com este pro-blema de higiene pública que já no Regime Liberal haveria de sair o Decretode 21.9.1835 (dois anos depois do primeiro surto de cólera em 1832), proi-bindo o enterramento nas igrejas e nas capelas e a tornar obrigatório a cons-trução em todo o território nacional de cemitérios municipais e paroquiais.

De acordo com este diploma de Rodrigo da Fonseca Magalhães, todos oscemitérios então considerados como espaços “insalubres de primeira ordem”deveriam ficar distanciados das habitações, pelo menos, a 200 passos (cerca de143 metros); e párocos ou eclesiásticos que ousassem permitir o enterramentode corpos no interior dos seus templos seriam alvo de severas sanções.

Como seria de supor, pelo território nacional tal proibição não foi aceitedo mesmo modo e, em especial, nos pequenos e isolados aglomerados do

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Figura 4 – Estátua da “Maria da Fonte”em Póvoa de Lanhoso.

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Norte montanhoso, onde tal legislação foi inicialmente ignorada, pondo-sepedra sobre o assunto. Afinal, ordenar que os corpos fossem sepultadosnum descampado, longe da casa de Deus, era uma intromissão do podercivil nas questões da fé, pelo que tal legislação terá surgido como uma ofen-sa sacrílega.

Mas os governos não descansavam enquanto tal decisão não fosseposta em prática. Nove anos depois, seria publicado o Decreto de 28.9.1844,do governo do conde de Tomar,Costa Cabral, promulgando aReforma da Saúde Pública quetornava a recordar a proibição doenterramento em espaços deculto, e a obrigatoriedade dessesatos decorrerem em cemitériospúblicos, para além de exigirtambém uma certidão de óbitopassada por um médico.

Um mau ano agrícola, pro-vocado pela praga da batata epela seca intensa que na épocase fez sentir, a saída desta leivexatória para o povo humilde eainda uma outra lei que obriga-va o povo a mais um tributo (ado “cruzado para as estradas”),levou a que um pouco por todo oterritório o descontentamento seinstalasse entre a população ru-ral, em especial, no Norte doPaís. Foi a gota de água no copo a transbordar.

Segundo uma das versões, na origem deste espontâneo levantamentopopular, sem unidade de comando, teria estado uma mulher da freguesia deFonte Arcada, do concelho de Póvoa de Lanhoso, uma tal Maria. Decorria omês de abril de 1846 quando um grupo de mulheres daquela aldeia, armadasde “chuços” (paus com aguilhões) invadiram uma capela onde se velava umadefunta e não obedecendo às solicitações do pároco, pegaram no cadáver eforam sepultá-lo no chão da Igreja, como ditavam os velhos costumes.

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Enterro consumado, não se quedaram; e estradas fora terão gritado vi-vas ao antigo regime e às antigas leis. A autoridade interveio, tendo prendidotrês dessas revoltosas. No dia seguinte, quando o juiz e delegado chegaramà aldeia para fazer a averiguação dos factos, o grupo do dia anterior agoraampliado com outras tantas mulheres armadas de foices, paus e chuços nãose fizeram rogadas e expulsaram da aldeia os homens das leis. Depois, nãosatisfeitas, tocaram o sino a rebate, e depressa conseguiram uma pequenamultidão entre as aldeias vizinhas dirigindo-se à sede de concelho. Uma vezem Póvoa de Lanhoso, o mulherio armado invadiu a cadeia, soltaram as en-carceradas do dia anterior e, de novo, terão soltado vivas a D. Miguel e morteao governo e aos Cabrais.

Era a “Revolução da Maria da Fonte” disseminada pelas aldeias, desig-nação que na história ficou associada a este levantamento de mulheres dopovo, a “revolução do saco às costas e roçadoura na mão”, nas palavras dopróprio Costa Cabral, discursando nesses dias no Parlamento. A insurreiçãoda Fonte Arcada ter-se-á replicado um pouco por todo o Norte do País, ha-vendo mesmo a ousadia de um grupo de revoltosos tentar invadir o Quartelde Infantaria de Braga, onde terão sofrido vários mortos e feridos.

O Conde Costa Cabral não teve outra alternativa para silenciar os levan-tamentos: solicitou ao Parlamento poderes excecionais, e só a força das ar-mas e da justiça conseguiu pôr cobro à situação. Porém, já tinha ocorrido oaproveitamento político das insurreições por parte de miguelistas, setembristase cartistas dissidentes e, em 18 de maio, cairia o governo autoritário de CostaCabral, e logo em outubro desse mesmo ano de 1846, estalaria a guerra civilda Patuleia.

A construção do Cemitério Velho

Mas as leis sanitárias do governo de Costa Cabral do qual a obriga-toriedade do enterramento nos cemitérios públicos era apenas uma das me-didas, acabaram por se ir instalando um pouco por todo o país. O fanatismoignorante das populações começou a diluir-se e algumas cidades começa-vam a dar o exemplo com a criação dos seus cemitérios, como em Lisboacom o cemitério do Alto de S. João em 1833 e no Porto, o cemitério do Pradodo Repouso em 1839.

Entre aqueles povoados que cedo tomaram a decisão de construir o seuprimeiro cemitério, esteve a freguesia de Maçãs de Dona Maria. Corria então

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Figura 5 – O adro da igreja de Maçãs de DonaMaria, em meados do século XIX

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o ano de 1855, e muitas cidades dopaís ainda se debatiam em polé-micas relativamente ao local ondedeveriam ser instalados os seuscemitérios, privilegiando as orienta-ções predominantes dos ventos, assuperfícies que deveriam ter equantos e quais os espaços pararuas e jazigos. Na promoção daconstrução deste pequeno cemité-rio a poente da Igreja, esteve o pá-roco da época, Bernardo Ferreirada Silva, que, quatro anos antesda sua morte, graças à sua inicia-tiva, às ofertas dos paroquianos eà contribuição financeira das qua-tro confrarias então existentes(Confraria do Santíssimo Sacra-mento, Confraria das Almas, Con-fraria da Senhora do Rosário eConfraria de Santo António) con-seguiu fazer erguer um muro na zona poente do adro da igreja, delimitandoo referido cemitério público6.

A decisão encontrada na aldeia não poderia estar mais a contento dopároco e da população, com o aproveitamento de parte do adro da igreja parase instalar o cemitério, libertando, assim, o restante espaço para atividadesmais mundanas, nomeadamente, o mercado dominical e os festejos. Ali pró-ximo, a umas escassas dezenas de passos, a igreja e tudo o que ela signifi-cava, continuava a zelar pelos seus mortos.

Contudo, nos anos seguintes, o pequeno cemitério não foi suficiente paraenfrentar novas epidemias. De facto, em 1856 e 1857, e entre outubro e de-zembro de 1864, as epidemias de cólera e de febre tifoide que grassarampela aldeia produziram demasiadas vítimas para a capacidade do pequeno

6 SIMÕES, António Augusto da Costa, Topographia Medica das Cinco Vilas e Arega ou dos conce-lhos de Chão de Couce e Maçãs de D. Maria em 1846, com o respetivo mappa topográfico e cartageológica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1860, pp. 20 e 21.

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cemitério, pelo que houve que recorrer, de novo, ao adro como prolongamen-to do cemitério. Desde então, a hipótese da utilização do adro como comple-mento do cemitério foi acautelada pela Junta da Paróquia, e já no início doséculo XX foi mesmo previsto que, em caso de máxima urgência, se proce-desse à transferência da «venda de objetos» que ali se costumavam ocorrer«para uma pequena praça (…) próxima da escola»7 junto do pelourinho. Deigual modo, a Junta da Paróquia toma a decisão de impedir qualquer constru-ção no adro que pudesse prejudicar aquele espaço.

Efetivamente, em 1900, a Junta da Paróquia tendo verificado que Manu-el Simões de Abreu, proprietário do terreno e muro do lado sul contíguo aoadro (e benemérito da terra, pois tinha cedido gratuitamente, durante doisanos, uma casa para ali funcionar a sala de aulas do sexo feminino), se pre-parava para aí construir «uma obra de arte de pedreiro», utilizando o Adrocomo local de «passagem de carro puxado a bois», pronunciava-se desfavo-ravelmente contra tais obras, com receio de que as mesmas viessem resultarem mais «tabernas e outros quaisquer estabelecimentos prejudiciais à Igre-ja»8 e ao adro envolvente. É que o requerente, além da reconstrução da suacasa pretendia ampliá-la em mais 16 metros de comprimento, acrescentan-do-lhe mais três portadas voltadas para o adro, e na opinião do Padre JoséFrancisco de Sousa Santiago, presidente da Junta da Paróquia nessa época,

Figuras 6 e 7 – O cemitério antigo de Maçãs de Dona Maria. No portão de ferro forjado bemtrabalhado e encimado por uma cruz, continua a poder ler-se a data de 1855, ano de construção

de um dos primeiros cemitérios paroquiais do País.

7 Ata da Junta da Paróquia, 7.4.1900.8 Atas da Junta da Paróquia, 17.2, 17.3 e de 7.4 de 1900.

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isso era mais um pretexto para instalar mais “casas de tabernas” além da-quelas que Manuel Abreu já ali possuía9.

E a Junta na forma de ofício, em resposta a Manuel Simões de Abreu,recordava o que todos sabiam: «(…) tendo esta Igreja matriz de Maçãs de DonaMaria em volta de si, terreno vulgarmente o Adro e que até há poucos anosservia de cemitério, hoje onde se vendem vários objetos aos Domingos à horada missa, por se ter construído um pequeno cemitério em parte do mesmo Adro;e sendo as obras a que se refere o requerimento incluso feitas com a frente paraa Igreja, beiras e portas para o dito Adro por onde ele requerente ficaria comdireito de passagem a pé e de carro e onde se estabeleceriam tabernas e outrosquaisquer estabelecimentos prejudiciais à Igreja, e já mais que é em frente dasua porta principal, do lado sul, à distância de 25 passos ordinários, e em taiscondições não deverá autoridade alguma a quem competir conceder tal licença,por em caso idêntico de epidemia como a que em 1856 e 1857 e Outubro aDezembro de 1864, terá a Junta desta freguesia de se utilizar do dito Adro comosuplemento ao atual cemitério, como no indicado tempo de epidemia sucedeu;e transferir-se-á a venda de objetos que ali se costumam vender para uma pe-quena praça que há nesta vila, próxima da escola»10.

A ocupação de faixas de terreno do Cemitério Velhocomo umas das principais fontes de receita da Junta

Relativamente à ocupação do terreno, tudo aponta para que a cerimóniada bênção do terreno tivesse sido feita à medida que o cemitério ia crescen-do. De facto, em 1889, o pároco José Francisco de Sousa Santiago, foi auto-rizado pelo Bispo Conde da Diocese de Coimbra a benzer uma parte do ce-mitério que ainda não tinha contemplado, «com todas as solenidadescanónicas, civis e administrativas», tendo sido excluída desta «bênção umbocado de terreno para o lado norte que tem 41 metros de comprimento e 4de largo, destinado à sepultura de cadáveres não católicos»11.

Desde a sua construção, o “Cemitério Antigo”, com a sua rua principal eas travessas laterais por onde circulavam os vivos que buscavam a compa-nhia dos seus desaparecidos, no essencial era a “aldeia dos mortos”. Assim,desde o final do século XIX, começaram a surgir nesta “aldeia” as “casas”9 Ata da Junta da Paróquia, 21.7.1900.10 Ata da Junta da Paróquia, 7.4.1900.11 Ata da Junta da Paróquia, 28.4.1889.

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Fig. 8 – Jazigo de família de Callisto Curado

mais distintas, algumas poucas mas requintadas obras artísticas, espelhandoalguma vaidade e ostentação das famílias mais favorecidas que passaram aadquirir porções de terreno para construção de “jazigos perpétuos”. O primei-ro pedido registado de tal concessão foi atribuído ao antigo professor da al-deia, secretário da Junta da Paróquia e juiz de paz, Callisto Curado. Nascidoem 1831, filho do sapateiro Bernardo Curado e de Teresa Maria (de Vale deTábuas)12já enfermo e acamado, terá pedido ao seu filho Firmino Curado,então com 21 anos, alferes de infantaria em comissão, para tratar do assuntodo jazigo de família. Contudo, Callisto Curado só viria a falecer muitos anosdepois, tendo este elegante mausoléu sido inaugurado pela sua filha Ignacia,de dezoito anos, vítima de tuberculose. Neste mesmo monumento funeráriohaveriam de se enterrados o próprio Callisto Curado, a esposa, e os seusfilhos João e Seraphim Curado da Gama, aquele que em 1898 abriria aopúblico na terra uma farmácia com o seu próprio nome13. O preço de 2,5metros de largura (cerca de 6 m2) foi então de 10 mil réis14.

12 http://www.geneall.net/P/forum_msg.php?id=10632213 www.al-baiaz.we.pt14 Ata da Junta da Paróquia, 17.3.1894.

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Figura 10 – Jazigo de família de Silveirae Castro

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Anos depois, a Junta recebia outro reque-rimento de João Augusto Simões Favas, pro-prietário da Quinta da Boavista e residente naSé Nova em Coimbra, requerendo a conces-são dos mesmos 6 m2 de terreno. O preço játinha aumentado para dois mil réis o metro qua-drado15 e seria para este jazigo que SimõesFavas haveria de trasladar as ossadas dosseus pais, António Simões Favas, falecido a1.4.1907 e Joaquina da Conceição falecidamuitos anos antes16.

A Junta da Paróquia começou então aconstatar que a venda de terrenos no cemité-rio acabava por se tornar numa das suas principais fontes de receitas, tendono mesmo ano de 1900 recebido dois pedidos: em 18.8.1900, pelo tabeliãode julgado, António Joaquim Nogueira(da Vila), para preservar os restos mor-tais da sua esposa Maria do Nascimentode Souza Lemos e Nogueira, e em no-vembro desse mesmo ano, desta vezuma faixa de terreno maior, com o Jazi-go da Dona Maria da Conceição daSilveira e Castro, que por 18 m2 de ter-reno teve de desembolsar 36 mil réis17.

Neste mausoléu haveriam de serdepositados os restos mortais de D.Estêvão José Lopes da Silveira e Cas-tro, Desembargador da Relação de Lis-boa, natural de Chão de Couce, que ti-nha uma irmã, a Dona Maria da Con-ceição da Silveira e Castro, moradoranas Ferrarias, que após a morte repen-tina do seu irmão, ficou de imediato naposse de um vasto património. Dona Maria mandou erigir o jazigo para o

Figura 9 – Jazigo de família deJoão Simões Favas

15 Ata da Junta da Paróquia 1.10.1898.16 Ata da Junta da Paróquia, 5.2.1914.17 Ata da Junta da Paróquia, 3.11.1900.

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Figuras 11 e 12 – Mausoléus do cemitério antigo de Maçãs de Dona Maria

irmão e sua mãe (Dona Maria Emília da S. e Castro) e, por sua morte, todosos seus bens foram herdados por Sr. Mateus Pereira dos Reis, das Ferrarias,o caseiro e seu primo, pai do médico e antigo presidente da Câmara deAlvaiázere, Dr. António José Pereira da Silveira e Castro.

Para evitar uma rápida ocupação do cemitério, em 8.7.1906, a Juntatoma a decisão de aumentar o preço do metro quadrado de dois mil paranove mil réis, o que não impediu os paroquianos abastados de continuarem aadquirir o espaço para perpetuar a sua memória.

Entretanto a inflação faria o resto. Em 6.8.1919, o grande comerciante,industrial e benemérito da aldeia, António dos Santos Guia Gameiro, pagaria31$66 (escudos) pelo terreno para o seu jazigo de família, e em 1920, já opreço do terreno na rua principal e lateral tinha aumentado para 40$00 (escu-dos)/m2, sendo um pouco inferior «da escada para baixo», 30$00 (escudos)/m2 18 tornando a subir dois anos depois para 150$00 (escudos)/m2 19 e aumen-tando cada ano que passava (em 1923 estes valores do m2 da parte superiore inferior foram aumentados, respetivamente, para 300$00 e 250$00 (escu-dos) e em 1924, para 600$00 e 500$00 (escudos)).

Em 1926, a Junta instituiria novas regras para a construção de campase de jazigos no cemitério: 1.º Os interessados deviam entregar o plano deobra para aprovação na Junta; 2.º A Junta é que determinaria a extensão doterreno; 3.º As pessoas que já tivessem comprado terreno, teriam de apre-sentar também um plano de obra, devendo efetuá-la no prazo máximo de 5anos e trasladar as ossadas entre 5 a 6 anos; 4.º Se não fizessem tais obras

18 Ata da Junta da Freguesia, 21.1.1920.19 Ata da Junta da Freguesia, 3.5.1922.

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Figuras 13 e 14 – O patamar superior e o patamar inferior do Cemitério Antigo. Junto da entrada,os preços dos terrenos sempre foram superiores aos da “parte de baixo”.

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perderiam direito ao terreno; 5.º Quando o pagamento dos 1,30 m de exten-são tivesse sido realizado, o coval seria respeitado por mais 5 anos20.

Posteriormente, e pelo facto de terem ocorrido irregularidades, decidiu-se proceder à numeração dos covais, tendo sido solicitado ao serralheiroManuel Ferreira Urbano a aquisição de 50 chapas de zinco e respetivas esta-cas de ferro, pelo valor de 66$7521, algo que iria prosseguir nos anos seguin-tes (por exemplo, fornecimento de 35 estacas de ferro por 52$5022.

A Junta mantinha-se atenta a todas as tentativas de enterramentos nãolegalizados. Deste modo, em 1929, a Junta constatou que uma viúva tinhaenterrado o seu marido num coval que tinha comprado mas ainda não tinhapago os respetivos direitos23. Chamada a regularizar a situação, quando com-pareceu na Junta para explicar o incidente, a viúva adiantou que não tinha dadoordens algumas para sepultar o seu marido na campa da primeira e falecidamulher e que, decerto, essas ordens teriam sido dadas «por pessoas de boasou más intenções que se fizeram seus procuradores, intervieram no cortejofúnebre e autorizaram, naturalmente a pedido dele, seu falecido, a que o sepul-tassem junto das ossadas da falecida mulher; e nestes termos, rogava à Comis-são a fineza de a julgarem como inocente no assunto, e que pagava a multa queestabelecessem, a fim de evitar qualquer questão a impor-se sobre o cadáver

20 Ata da Junta da Freguesia, 6.5.1926.21 Ata da Junta da Freguesia, 15.2.1928.22 Ata da Junta da Freguesia, 16.10.1931.23 Ata da Junta da Freguesia, 10.4.1929.

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Figuras 15 e 16 – Elemento esculpido no muro do “cemitério velho” de Maçãs de Dona Maria.

do seu falecido marido». A Junta estipulou uma multa de 125$00 e se não pa-gasse arriscaria o poder judicial e uma multa especial24.

Graças a esta postura intransigente do Junta sobre o pagamento dosdireitos correspondentes aos enterramentos, começaram a surgir os pedidosde enterramento em campas já adquiridas, como aquele de uma filha quetinha a sua mãe moribunda, tendo pedido à Junta que quando ela falecesse,que pudesse ser enterrada na campa do seu pai25.

As obras de manutenção do cemitério

Desde cedo, a Junta da Paróquia e, mais tarde, a Junta de Freguesia,revelaram preocupação em manter o “Cemitério Antigo” em dignas condi-ções. Nas atas da Junta são frequentes as referências às obras deste espa-ço, fosse para caiar os muros, para preservar os limites dos arruamentos e amarcação de covais ou para manter a estrutura dos próprios muros que nal-gumas ocasiões ameaçavam desmoronar-se em consequência de violentostemporais.

Em 1885 um elemento funerário esculpido em pedra foi colocado juntodo portão, recordando o espaço de morte que se encontrava ao transpor aque-les muros de proteção.

24 Ata da Junta da Freguesia, 24.4.1929.25 Ata da Junta da Freguesia, 11.12.1929.

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Figuras 17 e 18 – Escadas laterais do Cemitério Antigo com calçada de seixo branco e pedraazulada da Ribeira e lajes de cantaria calcária.

História do Cemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria

No ano seguinte, em 28.3.1886, a Junta da Paróquia toma a decisão dearrematar a construção da escada sul do cemitério a José Luís, da Cabreira,por 106.850 réis e para ir fiscalizando tais obras, foi proposto Manuel CuradoLeitão, da Charneca, sendo-lhe atribuído 200 réis por cada dia que se apli-casse na referida fiscalização26. E, curiosamente, as questões estéticas esti-veram presentes no contrato estabelecido: «a escada terá oito patamares decalçada de seixo branco e pedra azulada da Ribeira, cada um dos quais terádois metros quadrados sete escadas de cantaria lavrada» e a «cantaria la-vrada será da serra chamada Comares e não branca (…)» para além deexigir que os dois muros que a ladeavam deveriam ser construídos a pedra ebarro vermelho, rebocados e caiados, «incluindo o respetivo espigão que seráde volta perfeita». Nada poderia faltar para uma escada que deveria estarconcluída até ao final do mês de agosto, dia de festejos da terra.

Mas como qualquer construção, também os muros do cemitério foramcedendo aos rigores do tempo, pelo que, em 1925, quase 70 anos depois dasua construção, houve necessidade de grandes reparações, intervindo, emespecial, nas escadas que separavam a parte superior da parte inferior, acolocação de uma forte argamassa, com bastante cal, que embelezasse,definitivamente, os muros deste espaço comunitário. Nessa altura, vários fo-ram os fornecedores de materiais que prestaram serviço de transporte comcarros de bois, como Manuel Rodrigues Craveiro (Fonte Galega) ou AntónioLuís (Casal Agostinho Alves).

26 Ata da Junta da Paróquia, 16.5.1886.

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O investimento terá sido tão avultado (mais de 2 500$00 em materiais eoperários) que no final desse mesmo ano já se tinha esgotado o orçamentoprevisto para reparar os muros do cemitério. Para que essa recuperação seconcluísse houve necessidade da transferência de verbas que estavam des-tinadas à construção da Sala de Sessões da Junta. E o presidente da altura,António José de Faria interveio na discussão, adiantando que «por bem, e deharmonia com os interesses gerais da freguesia, achava que seria um deversagrado aplicar o disponível pecuniário na conservação daquele edifício pú-blico, visto o local ser destinado à última morada dos nossos antepassados»27.No final desse ano, mais 2 549$00 para pagamento dos materiais e operáriosque repararam os muros e as escadas do cemitério28.

Os trabalhos de manutenção foram-se sucedendo: a reparação dosportões de ferro do cemitério (em 1924, tendo sido pagos 187$50 ao serra-lheiro Manuel Ferreira Urbano); a mudança do cruzeiro para o centro do ce-mitério (e que pelo trabalho foram pagos 45$00 a Serafim Luís29; a caiaçãodos muros (por exemplo, em 1924 foram pagos 44$50 a Domingos da Silva(da Fonte Galega, carreiro) pela compra de cal para dentro e fora do cemité-rio e 164$00 a José Ferreira, do Vale do Paio; a limpeza do solo do cemitério,tarefa entregue, por exemplo, a António Simões Luiz, do Vale do Senhor30,João de Deus31 ou José da Engrácia32.

O esgotamento do Cemitério Velhoe a construção do Cemitério Novo

Com o aumento da população, Maçãs de Dona Maria viu-se na contin-gência de encontrar alternativas para a expansão do velho cemitério. Dada asua localização o alargamento só seria possível para o lado norte. A opçãode expropriação de terreno ainda chegou a ser equacionada, mas tal soluçãoseria sempre limitativa para os desejos da freguesia. Deste modo, em 1954, afreguesia tomou a decisão da construção de um novo cemitério afastado docentro da Vila.

27 Ata da Junta da Freguesia, 4.11.1925.28 Ata da Junta da Freguesia, 16.12.1925.29 Ata da Junta da Freguesia, 3.9.30.30 Ata da Junta da Freguesia, 6.8.1924.31 Ata da Junta da Freguesia, 17.6.1925.32 Ata da Junta da Freguesia, 6.8.1928.

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Desde a decisão até ao início da construção do novo cemitério, aindahaveria que se esperar, conforme a notícia do jornal: «Pela segunda vez foi àpraça o concurso para a construção do novo cemitério, a qual não teve lici-tantes. Parece que o caderno de encargos não oferece condições vantajosaspara os empreiteiros»33. Mas no final desse mesmo ano, precisamente um

33 Diário Popular, 15.1.1955.

Figura 19 – Campas no Cemitério Antigo.

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século depois da construção do antigo cemitério, o novo cemitério já começa-va a receber os mortos da aldeia (o segundo enterramento foi o bisavô doautor destas linhas, Serafim Rodrigues Craveiro), mantendo-se e acentuan-do-se o gosto pela compra dos espaços para obras tumulares, o que condu-ziu à necessidade do seu alargamento em 2015.

Conclusão

O Cemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria recebeu os mortos destafreguesia entre 1855 e 1955. Durante este século, este espaço retirado aoadro da igreja viria transformar-se na réplica da aldeia, com os pobres e osabastados a replicarem o seu estatuto, ora enterrando os seus familiares emcovais lisos e temporários, ora em mausoléus de algum requinte. Por ser umdos primeiros cemitérios públicos do País, este modesto mas significativoespaço de enterramento merece ser conservado, devendo ser repensado umprojeto que transforme este espaço patrimonial em mais uma referência daidentidade desta freguesia, uma localidade com história.

Figura 20 – Ainda campas no Cemitério Antigo.