LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos No Brasil.

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  • Os Quilombos no Brasil

    333Etnogrfica, Vol. IV (2), 2000, pp. 333-354

    OS QUILOMBOSNO BRASIL: QUESTES

    CONCEITUAISE NORMATIVAS

    Procura-se enfocar o quilombo como conceitoscio-antropolgico para discutir suas atuaisimplicaes tericas e polticas, principalmenteno que diz respeito ao quadro atual de exclusosocial no Brasil. Busca-se igualmente estabelecerum contraponto entre os atuais impasses aoentendimento do artigo 68 da ConstituioBrasileira, que se refere s comunidadesremanescentes de quilombos, e o processo deregulamentao em curso dificultado por vriasartimanhas e estratgias entre as quais sedestaca a folclorizao da cultura e identidadenegras. O texto aponta para a necessidade denovos referenciais que possam superar um certoreducionismo terico no que concerne simplicaes antropolgicas dos direitosespecficos ou difusos das novas etnias,principalmente diante de armadilhas tais como oturismo tnico.Ilka Boaventura Leite

    O quilombo constitui questo relevante desde os primeiros focos de resis-tncia dos africanos ao escravismo colonial, reaparece no Brasil/repblicacom a Frente Negra Brasileira (1930/40) e retorna cena poltica no final dosanos 70, durante a redemocratizao do pas. Trata-se, portanto, de umaquesto persistente, tendo na atualidade importante dimenso na luta dosafro-descendentes.

    Falar dos quilombos e dos quilombolas no cenrio poltico atual ,portanto, falar de uma luta poltica e, consequentemente, uma reflexocientfica em processo de construo.

    Embora parea pertinente igualar a questo das terras de quilomboss terras indgenas, ambas so semelhantes apenas quanto aos desafios eembates j visveis, no plano conceitual (quanto identificao do fenmenoreferido) e no plano normativo (quanto definio do sujeito do direito, oscritrios, etapas e competncias jurdico-polticas).

    No por acaso, h freqentemente esta relao emblemtica entre aslutas indgenas pela demarcao de terras e a dos afro-descendentes pelatitulao das reas que ocupam (Arruti 1987), em alguns casos h mais deum sculo.1

    O traado da fronteira tnico-cultural no interior do Brasil/naoesteve, portanto, sempre marcado pela preservao do territrio invadido eocupado no processo colonial e por inmeros conflitos de terra que remon-

    1 Ver Projeto O Acesso Terra e Cidadania Negra: Expropriao e Violncia no Limite dos Direitos, Florianpolis,NUER/UFSC/CNPq/Fundao Ford (1998-2000).

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    tam aos dias atuais.2 Neste sentido possvel falar em uma antropologia dassociedades indgenas que esteve durante todo o ltimo sculo enfocandocomo tema de reflexo a autonomia cultural destes povos e a sua luta pelademarcao das terras.

    Nos ltimos vinte anos, os descendentes de africanos, chamadosnegros, em todo o territrio nacional, organizados em associaes quilom-bolas,3 reivindicam o direito permanncia e ao reconhecimento legal deposse das terras ocupadas e cultivadas para moradia e sustento, bem comoo livre exerccio de suas prticas, crenas e valores considerados em suaespecificidade.4

    Quanto ao reconhecimento das terras indgenas, o estado brasileirotem procedido da seguinte forma: decretao de reas reservadas (emboragrande parte das solicitaes esteja ainda em curso), publicao de legislaoprotetora e implementao de instituies e projetos assistencialistas.

    Em diversas situaes, ndios e negros, por vezes aliados, lutaram desde o incio da ocupao e explorao do continente contra os vriosprocedimentos de expropriao de seus corpos, bens e direitos.5 Os negros,diferentemente dos ndios considerados como da terra , enfrentarammuitos questionamentos sobre a legitimidade de apropriarem-se de umlugar, cujo espao pudesse ser organizado conforme suas condies, valorese prticas culturais. A represso policial aos terreiros de Candombl e aosbairros perifricos por eles habitados, constitui exemplos recentementediscutidos pela histria e pela sociologia poltica (ver Guimares 1995, 1996e 1998). Mas a segregao social se deu mais atravs das prticas sociais queprefiguram o quadro de mobilidade do que propriamente no imaginriosocial da nao. Esta excluso est evidenciada nos censos econmicos e nosmais recentes levantamentos socioeconmicos realizados no pas (verHasenbalg e Silva 1988: 144-182). Em diferentes partes do Brasil, sobretudoaps a Abolio (1888), os negros tm sido desqualificados e os lugares emque habitam so ignorados pelo poder pblico ou mesmo questionados poroutros grupos recm-chegados, com maior poder e legitimidade junto aoestado.6

    2 Entre as lutas atuais, destaca-se a do MST Movimento dos Sem Terra no Brasil que constitui um dos maioresmovimentos sociais do Brasil/repblica, com 15 anos de existncia, nos 23 estados da federao. Para mais informaes,consultar o site: http://www.mst.org.br.3 O maior nmero de associaes quilombolas encontra-se no Par e Maranho e chegam a mais de 100. As estimativasda Fundao Cultural Palmares apontam para a existncia de mil comunidades nestas reas.4 Um balano da bibliografia referente ao tema foi realizado por Almeida Junior (1997: 123-139).5 Sobre as lutas sociais envolvendo conflitos tnicos e territorialidades na Amaznia, ver Acevedo Marin e Castro(1993), sobre a memria do territrio indgena; ver Oliveira Filho (1987); sobre a hermenutica das categorias deindgenas e quilombolas, ver Arruti (1987); e sobre as relaes entre ndios e negros nos etnotextos sobre o povoa-mento do litoral da Baha, Gandon (1997).6 Sobre a questo racial no Brasil, ver Lovell 1991.

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    O usufruto, a posse e a propriedade dos recursos naturais tornaram--se, ao longo do processo de formao social brasileira, cada vez mais, moedade troca, configurando um sistema disfaradamente hierarquizado pela corda pele e onde a cor passou a instruir nveis de acesso (principalmente escola e compreenso do valor da terra), passou mesmo a ser valor em-butido no negcio. Processos de expropriao reforaram a desigualdadedestes negcios, de modo a ser possvel hoje identificar nitidamente quemforam os ganhadores e perdedores e quem, ao longo deste processo, exerceue controlou as regras que definem quem tem o direito de se apropriar (Lovell1991: 241-362).

    J a primeira Lei de Terras, escrita e lavrada no Brasil, datada de 1850,exclui os africanos e seus descendentes da categoria de brasileiros, situan-do-os numa outra categoria separada, denominada libertos. Desde ento,atingidos por todos os tipos de racismos, arbitrariedades e violncia7 que acor da pele anuncia e denuncia , os negros foram sistematicamente expul-sos ou removidos dos lugares que escolheram para viver, mesmo quando aterra chegou a ser comprada ou foi herdada de antigos senhores atravs detestamento lavrado em cartrio.8 Decorre da que, para eles, o simples ato deapropriao do espao para viver passou a significar um ato de luta, deguerra.

    Tudo isto se esclarece quando entra em cena a noo de quilombocomo forma de organizao, de luta, de espao conquistado e mantidoatravs de geraes.9 O quilombo, ento, na atualidade, significa para estaparcela da sociedade brasileira sobretudo um direito a ser reconhecido e nopropriamente e apenas um passado a ser rememorado. Inaugura uma espciede demanda, ou nova pauta na poltica nacional: afro-descendentes, partidospolticos, cientistas e militantes so chamados a definir o que vem a ser oquilombo e quem so os quilombolas.

    A partir da Constituio Federal promulgada em 1988, cujo artigo 68das Disposies Transitrias prev o reconhecimento da propriedade dasterras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, o debate ganhao cenrio poltico nacional. Por trs de algumas evidncias, pistas e provas,surgem novos sujeitos, territrios, aes e polticas de reconhecimento.

    7 Um exemplo ocorrido na virada do sculo XIX para o XX sobre terras ocupadas secularmente foi o do Quilombode Carmo da Mata, Minas Gerais, pesquisado por Beatriz Nascimento: forasteiros brancos vindos de So Joo del-Rei, procura de terras para caf e gado, apossaram-se das ali existentes, expulsando os negros e os puris primeiroshabitantes da regio. Houve desde massacre at reescravizao (Lopes, Siqueira e Nascimento 1987: 35).8 As terras de herana, deixadas pelos senhores para os seus ex-escravos foram, sem dvida, uma forma decompensao ainda que pouco discutida pela literatura talvez porque os casos at agora encontrados constituemraras excees e mesmo estas doaes no foram respeitadas pelos parentes dos doadores.9 Clovis Moura escreveu: a quilombagem foi apenas uma das formas de resistncia. Outras, como o assassnio dossenhores, dos feitores, dos capites-de-mato, o suicdio, as fugas individuais, as guerrilhas e as insurreies urbanasse alastraram por todo o perodo. Mas o quilombo foi a unidade bsica de resistncia do escravo (Moura 1981: 14).

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    Delineiam-se desde ento novas questes de identidade que perpassam aslutas por cidadania e sua verso trgica e festiva, a folclorizao.

    O texto que se segue procura situar o assunto e demonstrar suaimportncia na formao sociocultural brasileira e na atualidade no que serefere diversidade cultural e cidadania, levando-se em conta, inclusive, aparticipao e algumas das principais contribuies da antropologia bra-sileira no debate em curso.

    Quilombo: questes conceituais

    A expresso quilombo vem sendo sistematicamente usada desde o perodocolonial. Ney Lopes afirma que quilombo um conceito prprio dosafricanos bantos que vem sendo modificado atravs dos sculos (...) Querdizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angolacomo diviso administrativa (Lopes, Siqueira e Nascimento 1987: 27-28).

    O Conselho Ultramarino Portugus de 1740 definiu quilombo comotoda habitao de negros fugidos que passem de cinco, em parte despro-vida, ainda que no tenham ranchos levantados nem se achem pilesneles.10 Indica, tambm, uma reao guerreira a uma situao opressiva.

    David Birmigham (1974) sugere que o quilombo se origina na tradiombunda, atravs de organizaes clnicas, e que suas linhagens chegam ato Brasil atravs dos portugueses.11

    Kabengele Munanga, ao recuperar a relao do quilombo com africa, afirma que o quilombo brasileiro , sem dvida, uma cpia doquilombo africano reconstitudo pelos escravizados para se opor a umaestrutura escravocrata, pela implantao de uma outra estrutura poltica naqual se encontravam todos os oprimidos. Para este autor, a matriz deinspirao adveio de um longo processo de amadurecimento ocorrido narea cultural bantu nos sculos XVI e XVII, de instituies polticas emilitares transtnicas, centralizadas, formadas por homens guerreiros cujosrituais iniciticos tinham a funo de unificar diferentes linhagens (verMunanga 1995/6: 57-63).

    Na tradio popular no Brasil h muitas variaes no significado dapalavra quilombo, ora associado a um lugar (quilombo era um estabele-cimento singular), ora a um povo que vive neste lugar (as vrias etniasque o compem), ou a manifestaes populares, (festas de rua), ou aolocal de uma prtica condenada pela sociedade (lugar pblico onde se

    10 Algumas das leis provinciais mencionam este mesmo texto. Veja-se Lei Provincial n. 157 de 9 de Agosto de 1848,do Estado do Rio Grande do Sul e o artigo 12 da Lei n. 236 de Agosto de 1847 da Assemblia Provincial do Maranho(ver Boletim... 1996).11 Sobre os quilombos na frica veja-se Birmigham (1974) e Munanga (1995/6).

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    instala uma casa de prostitutas), ou a um conflito (uma grande confuso),ou a uma relao social (uma unio), ou ainda a um sistema econmico(localizao fronteiria, com relevo e condies climticas comuns namaioria dos casos) (Lopes, Siqueira e Nascimento 1987: 15). A vastido designificados,12 como concluem vrios estudiosos da questo,13 favorece o seuuso para expressar uma grande quantidade de experincias, um verdadeiroaparato simblico a representar tudo o que diz respeito histria dasamricas. A conquista da Amrica no produziu, conforme Guillermo Giucci(1992), uma nica histria; produziu, sim, rvores de histrias. Os negrosestavam inseridos no movimento colonial de descobrir, resgatar, povoar egovernar s que como povos dominados (Giucci 1992: 25).

    Fazendo um levantamento das abordagens feitas pela historiografiabrasileira, Lopes, Siqueira e Nascimento chamam a ateno para os doisextremos em que o quilombo enfocado: a partir do iderio liberal, prove-niente dos princpios de igualdade e liberdade da Revoluo Francesa, emque romanticamente idealizado; ou, sob o vis marxista-leninista, no qual associado luta armada, como embries revolucionrios em busca de umamudana social (Lopes, Siqueira e Nascimento 1987: 15). A prpria gene-ralizao do termo teria sido um produto da dificuldade dos historiadoresem ver o fenmeno enquanto dimenso poltica de uma formao socialdiversa. O termo ir persistir principalmente para indicar as mais variadasmanifestaes de resistncia.14

    Considerando as condies da poca e a prpria tradio agrcola dosafricanos, Dcio Freitas faz uma tipologia dos quilombos a partir de sua basede sustentao econmica, indicando sete tipos principais: os agrcolas, osextrativistas, os mercantis, os mineradores, os pastoris, os de servios, os pre-datrios (que viviam de saques). A agricultura no est totalmente ausentedos demais mas no propriamente o que viabiliza e define cada um deles(ver Freitas 1980: 70).

    12 Outras definies correntes podero ser encontradas resumidamente em Cmara Cascudo (1959) danas efolguedos, o qual cita tambm Ferreira (1995) esconderijo de escravos fugidos , e Mendona (1989) povoaoem quimbundo. Encontramos ainda outras definies em Martins (1980) unidade bsica da resistncia negra ,Maestri Filho (1984) unidade que questiona a ordem oficial, um outro Estado , e Moura (1981) unidade bsicade resistncia do escravo.13 Uma coletnea recentemente organizada por Reis e Gomes (1996), reconstroi a histria dos quilombos no Brasiltrazendo novas perspectivas de leituras. Veja tambm Carvalho, Dria e Oliveira Jnior (1996) sobre as relaes en-tre os quilombos no Brasil e outras partes das amricas. E ainda Andrade e Treccani (1998), que procuram fazer umresgate do conceito enquanto categoria histrica e antropolgica.14 Uma pergunta importante vem ocupar o cenrio intelectual brasileiro em incio dos anos 90: o quilombo como formade resistncia constituiu-se como um instrumento eficaz de enfrentamento da ordem social? Nelson Carneiro (1944,1966) aponta diferenas entre rebelies propriamente ditas, como a dos mals na Bahia, e fugas para lugares distantes,o afastamento, e o isolamento em reas despovoadas ou mesmo, atravs da formao de bairros negros, como aceitaoe afirmao da fronteira imposta pelos brancos. Esta parece ser uma discusso que no leva a uma resposta nica,mas serve para incluir os grupos, considerados quase isolados na discusso, no apenas aqueles que apresentamntidas caractersticas de movimento social, mas os que forjam da excluso um projeto coletivo em relao sociedadelocal. Ver Lopes Siqueira e Nascimento 1987, Reis e Gomes 1996, e Maio 1997.

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    As abordagens socioantropolgicas a partir da dcada de 70 procuramenfatizar os aspectos organizativos e polticos dos quilombos. O quilombocomo uma forma de organizao, tal como enfocado por Clvis Moura (1981),ir acontecer em todos os lugares onde ocorreu a escravido. Este autorutiliza o conceito de resistncia, enfatizando-o como uma forma deorganizao poltica:

    Essas comunidades de ex-escravos organizavam-se de diversas formas etinham propores e durao muito diferentes. Havia pequenos quilombos,compostos de oito homens ou pouco mais; eram praticamente grupos arma-dos. No recesso das matas, fugindo do cativeiro, muitas vezes eram recaptu-rados pelos profissionais de caa aos fugitivos. Criou-se para isso uma profis-so especfica. Em Cuba chamavam-se rancheadores; capites do mato noBrasil; coromangee ranger, nas Guianas, todos usando tticas mais desumanasde captura e represso. Em Cuba, por exemplo, os rancheadores tinhamcomo costume o uso de ces amestrados na caa aos escravos negros fugidos.Como podemos ver, a marronagem nos outros pases ou a quilombagem noBrasil eram frutos das contradies estruturais do sistema escravista e refle-tiam, na sua dinmica, em nvel de conflito social, a negao desse sistemapor parte dos oprimidos (Moura 1987: 12-13).

    A caracterstica que torna singular o quilombo do perodo colonial e do atual,para este autor, decorre do fato de que todas as experincias j conhecidasrevelam uma certa capacidade organizativa dos grupos (veja-se tambmMoura 1981). Destrudos dezenas de vezes, reaparecem em novos lugares,como verdadeiros focos de defesa contra um inimigo sempre ao lado. Teruma base econmica que permitia a sobrevivncia de um grande gruposignificou, desde o seu incio, uma organizao sociopoltica com posiese estrutura de poder bem definidas, at porque o inimigo externo,caracterizado pelas invases freqentes, vem impondo, ao longo da histria,a necessidade de uma defesa competente da rea ocupada. Este carterdefensivo comea a mudar, em parte, com a Abolio, quando mudam-se osnomes e as tticas de expropriao, e a partir de ento a situao dos gruposcorresponde a outra dinmica, a da territorializao tnica como modelo deconvivncia com os outros grupos na sociedade nacional.15 Mas, por outrolado, inicia-se a longa etapa de construo da identidade destes grupos, sejapela formalizao da diferenciao tnico-cultural no mbito local, regionale nacional, seja pela consolidao de um tipo especfico de segregao so-cial e residencial dos negros, chegando at os dias atuais. Por isto mesmo,

    15 Carlos Serrano, em sua pesquisa sobre os sistemas polticos africanos nos informa que os quilombos de Angolatinham um certo tipo de organizao transverso, ou seja, existia uma forma de poder eminentemente tirnico aomesmo tempo que democrtico, baseado nas relaes de linhagem africana (Serrano 1982: 37). Outros autoresidentificam esse tipo de organizao no Quilombo de Palmares ou com nfase no parentesco (ver Hartung 1992).

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    Clvis Moura chega concluso de que o quilombo vira fato normal nasociedade escravista e desta at os dias atuais. Esse fato normal levantadopor Moura elucidativo da operacionalidade do termo para descrever ofenmeno na atualidade, j que h evidncias de que um processo desegregao residencial dos grupos de fato ocorreu, bem como o desloca-mento, o realocamento, a expulso e a reocupao do espao.16 Isto vemreafirmar que, mais do que uma exclusiva dependncia da terra, o quilombo,neste sentido, faz da terra a metfora para pensar o grupo e no o contrrio.Discutiremos este aspecto na segunda parte deste artigo.

    Recentemente, o antroplogo Alfredo W. B. de Almeida chama aateno para a importncia de um aspecto a ser enfatizado em sua gnese:

    o da unidade familiar que suporta um certo processo produtivo singular, quevai conduzir ao acamponesamento com o processo de desagregao dasfazendas de algodo e cana de acar e com a diminuio do poder decoero dos grandes proprietrios territoriais (Almeida 1998: 8).17

    Todo o esforo de Almeida conduz demonstrao de que a questo daschamadas terras de quilombos deve ser remetida formalizao jurdica dasterras de uso comum, ou seja, domnios doados, entregues ou adquiridos,concesses feitas pelo estado, reas de apossamento ou doadas em retribui-o aos servios prestados. As chamadas terras de preto18 compreendem,portanto, as diversas situaes decorrentes da reorganizao da economiabrasileira no perodo ps-escravista, onde, inclusive, no apenas osafro-descendentes esto envolvidos.

    A expresso remanescente das comunidades de quilombos, queemerge na Assemblia Constituinte de 1988, tributria no somente dospleitos por ttulos fundirios, mas de uma discusso mais ampla travada nosmovimentos negros e entre parlamentares envolvidos com a luta anti-racista.O quilombo trazido novamente ao debate para fazer frente a um tipo dereivindicao que, poca, alude a uma dvida que a nao brasileira teriapara com os afro-brasileiros em conseqncia da escravido, no exclusi-vamente para falar em propriedade fundiria.

    Uma primeira questo que se impe diz respeito poltica de aoafirmativa e como ela vem sendo feita (ou no) no Brasil.19 Desde os anos30, algumas vozes militantes 20 defendem fortemente a idia de reparao,da abolio como um processo inacabado e da dvida, em dois planos:

    16 Ver principalmente as pesquisas realizadas em rea urbana por Edward Telles (1994a e 1994b).17 Sobre este estudo enfocando a produo coletiva e autnoma constitutiva das terras no Maranho veja Almeida1998.18 Expresso usada principalmente no Maranho, norte do Brasil.19 Sobre a ao afirmativa no Brasil, numa perspectiva comparada com os EUA, veja-se Walters (1995: 129-140).20 Sobre as posies do movimento negro, veja-se Hanchard 1995: 203-217.

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    a herdada dos antigos senhores e a marca que ficou em forma de estigma,seus efeitos simblicos, geradores de novas situaes de excluso. A exclusocomo fato e como smbolo. Os militantes procuram ver o conceito de qui-lombo como um elemento aglutinador, capaz de expressar, de nortearaquelas pautas consideradas cruciais mudana, de dar sustentao afirmao da identidade negra ainda fragmentada pelo modelo de desen-volvimento do Brasil aps a abolio da escravatura.21

    J nos estudos de comunidade que se fizeram presentes nas dcadasde 30/40 nas cincias sociais no Brasil aparecem as primeiras evidnciassobre a existncia de bairros negros situados nas reas urbanas e perifricas,por onde surgem as escolas de samba, terreiros de candombl e tambm umcampesinato negro, identificado como comunidades negras rurais (verSchwarcz 1999: 267-323). Estes estudos introduziram tambm as primeirasformulaes que iro fundamentar a viso de grupo como unidade fechadaem si mesma, coesa, como uma cultura isolada, contribuindo assim para umaviso idealizada da vida coletiva destas populaes, consideradas no maisprimitivas, mas tradicionais. Congeladas tambm numa viso estticade tradio e da histria, eram definidas principalmente por uma supostaharmonia, coeso e ausncia de conflito. Somente na dcada de 80, com avirada terica dos estudos sobre etnicidade, inaugurada com a crtica feitapor Fredrik Barth (1976) ao conceito esttico de cultura, que algunsmodelos tericos at ento utilizados foram considerados ultrapassados,requerendo-se dos antroplogos um novo reposicionamento frente a eles.Novos questionamentos feitos a estas pesquisas j realizadas iro resgataralguns elementos empricos que possibilitaro, por outro lado, que se percebaa territorializao tnica, ainda pouco problematizada no mbito dos vriosaspectos da formao social brasileira e do imaginrio sobre a nao.

    O texto final do artigo 68 da Constituio Federal, ao falar emremanescentes das comunidades dos quilombos ir, inicialmente, dificultara compreenso do processo e criar vrios impasses conceituais.22 Aquilo queadvinha como demanda social, com o principal intuito de descrever umprocesso de cidadania incompleto e, portanto, abranger uma grande diversi-dade de situaes envolvendo os afro-descendentes, tornou-se restritivo, por

    21 Abdias do Nascimento, atual senador da Repblica, reescreve suas teses na dcada de 80, defendidas desde os anos30, quando inicia sua militncia. O seu quilombismo reivindica uma memria anterior ao trfico e escravizao dosafricanos. Escreve: o quilombismo busca no presente e no futuro e atua por um mundo melhor para os africanosnas Amricas. Resume suas teses do quilombismo em 16 itens. O primeiro deles define o quilombismo como ummovimento poltico dos negros brasileiros visando a implantao de um Estado Nacional Quilombista, inspirado nomodelo da Repblica de Palmares, no sculo XVI e em outros quilombos que existiram e ainda existem. Esclarece queno se trata de um modelo segregacionista mas de um movimento que advoga o poder poltico realmente democrtico,que implica a presena da maioria afro-brasileira em todos os nveis desse poder. Veja-se Nascimento 1991: 21-26.22 Uma pesquisa sobre o perodo anterior proposio do artigo 68 ainda est por ser elaborada e poder, sem dvida,contribuir para desfazer vrios equvocos.

    23 Tambm os artigos 215 e 216 mencionam a proteo s manifestaes culturais afro-brasileiras considerando-as um

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    remeter idia de cultura como algo fixo, a algo cristalizado, fossilizado, eem fase de desaparecimento. Este foi o texto aprovado pela Constituinte:

    Artigo 68:Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupandosuas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir--lhes os ttulos.23

    A noo de remanescente, como algo que j no existe ou em processo dedesaparecimento, e tambm a de quilombo, como unidade fechada,igualitria e coesa, tornou-se extremamente restritiva. Mas foi principalmenteporque a expresso no correspondia autodenominao destes mesmosgrupos, e por tratar-se de uma identidade ainda a ser politicamente cons-truda, que suscitou tantos questionamentos. De sada, exigiu-se nada maisdo que um esforo interpretativo do processo como um todo por parte dosintelectuais e militantes, bem como das prprias comunidades envolventes,e sem o qual seria impossvel a aplicabilidade jurdica do artigo.24 O impasseestava formado, sobretudo porque o significado de quilombo que predomi-nou foi a verso do Quilombo de Palmares como unidade guerreiraconstitudo a partir de um suposto isolamento e auto-suficincia. Pareciadifcil compreender uma demanda por regularizao fundiria a partir detal conceito. Foi necessrio relativizar a prpria noo de quilombo paradepois resgat-lo em seu papel modelar, como inspirao poltica para osmovimentos sociais contemporneos.

    Neste sentido, a Associao Brasileira de Antropologia (ABA) foiconvocada pelo Ministrio Pblico para dar o seu parecer em relao ssituaes j conhecidas e enfocadas nas pesquisas.25 Em Outubro de 1994,reuniu-se o Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais paraelaborar um conceito de remanescente de quilombo.26 O documentoprocurou desfazer os equvocos referentes suposta condio remanescente,ao afirmar que contemporaneamente, portanto, o termo no se referia aresduos arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica.Tratava-se de desfazer a idia de isolamento e de populao homognea oucomo decorrente de processos insurrecionais. O documento posicionava-sepatrimnio cultural brasileiro.24 Lcia Andrade e Girolamo Treccani discutem o quilombo como categoria histrica e antropolgica e seu uso pos-terior como categoria poltica e os impasses gerados no campo jurdico. Veja-se Andrade e Treccani 1998.25 A 6 Cmara da Procuradoria da Repblica, que trata dos direitos dos grupos minoritrios, passa a dialogar coma Associao Brasileira de Antropologia e solicita colaborao na instruo dos processos referentes aplicao dopreceito constitucional.26 Reunio ocorrida no Rio de Janeiro, cujo documento final foi assinado por: Joo Pacheco de Oliveira (presidente),Eliane Cantarino ODwyer (tesoureira), Joo Baptista Borges Pereira (USP), Lcia Andrade (Comisso Pr-ndio deSo Paulo), Ilka Boaventura Leite (NUER/UFSC), Dimas Salustiano da Silva (SMDDH e UFMA), Neusa Gusmo(UNESP). O documento na ntegra encontra-se publicado em Boletim... 1996: 81.

    27 A Frente Negra dos anos 30 um exemplo. J nesta poca o tema da resistncia dos quilombos era um assunto

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    criticamente em relao a uma viso esttica do quilombo, evidenciando seuaspecto contemporneo, organizacional, relacional e dinmico, bem como avariabilidade das experincias capazes de serem amplamente abarcadas pelaressemantizao do quilombo na atualidade. Ou seja, mais do que umarealidade inequvoca, o quilombo deveria ser pensado como um conceito queabarca uma experincia historicamente situada na formao social brasileira.

    A conceituao de quilombo do documento da ABA ampliou a visodo fenmeno referido e conferiu-lhe uma maior pertinncia em relao aospleitos j formulados. Faltava identificar o sujeito do direito, os critriosnormativos para a regulamentao da lei e sua aplicabilidade, ou seja, osprocedimentos e etapas a serem cumpridos para a titulao das terras, asresponsabilidades e competncias dos atores sociais envolvidos. Ao contrriodo que se supunha, a questo, a partir da, revelou-se de grande complexi-dade, pois tratava-se de considerar no apenas os aspectos referentes identidade dos negros no Brasil, mas os vrios atores envolvidos e osinmeros interesses conflitantes sobre o patrimnio material e cultural brasi-leiro, ou seja, questes de fundo envolvendo identidade cultural e polticadas minorias de poder no Brasil.

    O quilombo: questes normativas

    Inicialmente urge discutir cada um dos aspectos que permeiam o processode regulamentao do artigo 68. O primeiro diz respeito definio dosujeito do direito.

    No quadro das classificaes sociais, a categoria negro, no Brasil datransio do sculo XIX para o XX, assim como a expresso quilombola,preto ou afro-brasileiro, neste incio de XXI, indica que um recorte degrupo vem se mantendo e persistindo em um longo perodo. Mesmo antes,quando o modo de produo colonial sustentado pela mo-de-obra escravaj esboava o seu completo esgotamento, chegando logo depois a um pontode verdadeira saturao, o que era identificado como sendo negro referia--se mais do que isto, englobava experincia histrica dos africanos eseus descendentes, tratados nos sculos anteriores como sujeitos a-histricos,negados em sua condio de humanidade. Enquanto uma expresso daidentidade grupal, o significante negro vai somando em seu percurso tudoaquilo que advm de tal experincia, ou seja, elementos de incluso (quemantm o grupo unido em estratgias de solidariedade e reciprocidade), etambm de segregao (ou seja: a desqualificao, a depreciao e a este-reotipia). Os sentidos do termo e as experincias nele circunscritas revelamsua ambigidade: por um lado, a marginalizao; por outro, a fora sim-blica demonstrada no seu persistente poder aglutinador, vindo a configurar

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    ou expressar uma identidade social,27 e a nortear inclusive polticas degrupos.

    Por outro lado, num pas cuja principal estratgia de embran-quecimento e ascenso social foi a miscigenao, ser negro, reconhecer-secomo tal, dependeu, portanto, de um amplo entendimento desta identidadesocial, pautada quase sempre pela ambigidade e cuja construo esteve empermanente mudana e reelaborao.28 Renato Ortiz, ao analisar a ideologianacional brasileira, conclui que a definio de uma identidade nacionalmestia surtiu um efeito homogeneizador, dificultando o discernimento en-tre as fronteiras e os efeitos da cor, a organizao poltica dos de cor,chamados negros, tendo como principal conseqncia a permanncia destesnos ndices de marginalidade social (Ortiz 1988: 36-44). De fato, a teoria damestiagem movimentou-se em vrias direes: invisibilizando o grupo so-cial advindo da vertente africana, para esculpir um pas embranquecido pelaviolncia simblica, criando vrios subgrupos hierrquicos segundo asgradaes da cor, embaralhando alguns critrios de diferenciao social,permitindo a mobilidade de apenas alguns.29

    Uma questo importante que tem sido colocada se o quilomboexpressa a dimenso poltica da identidade negra no Brasil ou ele umanova reduo brutal da alteridade dos diferentes grupos que sob este prismateriam que se adequar a um conceito genrico para novos propsitos deinterveno e controle social (Arruti 1987: 12). Esta questo passou a seramplamente debatida, a comear dos prprios negros que tm sidofreqentemente chamados para explicar porque insistem em manterdiferenas que a prpria gentica trata agora de desfazer.

    O processo em curso de definio do sujeito do direito produz umcerto deslocamento dos velhos estigmas, ao desencadear uma reviso doscritrios de classificao dos grupos, principalmente quando estes so consi-derados como sendo relativamente homogneos. A questo s vai adiantequando desloca-se para o processo no qual emerge o prprio grupo, tra-tando-se, portanto, de priorizar as alianas de diferentes tipos e tambmrelaes de consanginidade, em que participam indivduos de outrosgrupos tnicos, mas inseridos e identificados com as lutas dos afro-descen-dentes. Desenvolvem-se, neste caso, tanto dentro como fora do grupo,

    muito discutido entre os militantes e alguns parlamentares (Maio 1996).28 A pesquisadora Elza Berqu, em um pioneiro estudo sobre miscigenao, afirma que a mestiagem brasileira predominantemente endogmica (78%) e maior entre brancos do que entre pretos, sendo que esta tendncia aumentasignificativamente no sul do pas.29 Nem a experincia histrica, nem mesmo os elementos que atuaram na consolidao das diferenas, foramsuficientes para produzirem significativas mudanas na estrutura social. Os dados do IBGE de 1980 foram cruciaispara a constatao disto: 42% dos negros eram analfabetos, 60 % ganhavam salrio mnimo e eram negros 80% doscondenados a cumprirem pena nas prises.

    30 Elabora e prope, como suplente de senador, uma Proposta de Emenda Constituio n. 38, de 1997 Garantia

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    estratgias e negociaes, que visam a resoluo dos conflitos e amanuteno dos vnculos de solidariedade e valores compartilhados (ou noneces- sariamente) entre vrias geraes. Isto significa tambmrepensar o prprio grupo e a sua dinmica as lutas internas, seus conflitos como uma parte viva e pulsante da experincia de ser e estar no mundo.

    No texto constitucional a comunidade o sujeito da orao poisdela derivam os remanescentes, denominados posteriormente quilombolas.O artigo constitucional instrui, mesmo que indiretamente, a forma como aquesto deve ser tratada no campo jurdico. Abdias do Nascimento, um dosmilitantes pioneiros, tambm procura aperfeioar as suas teses do quilom-bismo, chamando a ateno para a necessidade de medidas efetivas para aregulamentao do artigo 68 e enfatiza o aspecto coletivo do processo.30 Ouseja, a leitura que faz do artigo no deixa dvida quanto ao fato de que ogrupo, e no o indivduo, que norteia a identificao destes sujeitos do referidodireito. O que viria a ser contemplado nas aes seria ento o modo de vidacoletivo, a participao de cada um no dia-a-dia da vida em comunidade.No a terra, portanto, o elemento exclusivo que identificaria os sujeitos dodireito, mas sim sua condio de membro do grupo.

    A terra, evidentemente, crucial para a continuidade do grupo, dodestino dado ao modo coletivo de vida destas populaes, mas no oelemento que exclusivamente o define.31 importante no confundir o pleitopor titulao das terras que vm ocupando ou que perderam em condiesarbitrrias e violentas com os critrios de constituio e formao histricada coletividade. Neste caso, de todos os significados do quilombo, o maisrecorrente o que remete idia de nucleamento, de associao solidriaem relao uma experincia intra e intergrupos. A territorialidade funda-seimposta por uma fronteira construda a partir de um modelo especfico desegregao, mas sugere a predominncia de uma dimenso relacional, maisdo que de um tipo de atividade produtiva ou vinculao exclusiva com aatividade agrcola, at porque, mesmo quando ela existe ela aparece com-binada a outras fontes de sobrevivncia. Quer dizer: a terra, base geogrfica,est posta como condio de fixao, mas no como condio exclusiva paraa existncia do grupo. A terra o que propicia condies de permanncia,

    s comunidades remanescentes dos quilombos dos direitos assegurados s populaes indgenas. Defende aexplorao econmica das reas de forma compatvel com a preservao de sua identidade cultural. Thoth, informede distribuio restrita do Senador Abdias do Nascimento, 1998, Senado Federal n. 6, pp. 73-75.31 O Instituto de Reforma Agrria adotou durante o reassentamento dos antigos membros de uma comunidadedescendente dos escravos herdeiros no Paran em 1998, denominada Paiol de Telha, os mesmos critrios de classificaoutilizados para identificar os sem-terra, ou seja, independentemente de sua condio de parente e de membro do grupo,o critrio usado para definir o pertencimento foi o fato de o indivduo nunca ter tido um emprego como assalariado.Uma parcela significativa de membros do grupo no conseguiu permanecer nas terras, retornando periferia da cidademais prxima.

    32 Sobre o debate em torno do artigo 68 na Assemblia Constituinte ver Silva 1996: 11-27.

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    de continuidade das referncias simblicas importantes consolidao doimaginrio coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela suaexistncia, mas, inclusive, no tm com ela uma dependncia exclusiva.Tanto assim que temos hoje inmeros exemplos de grupos que perderama terra e insistem em manter-se como grupo, como o caso do Paiol de Telha,no Paran. Trata-se, portanto, de um direito remetido organizao social,diretamente relacionado herana, baseada no parentesco; histria, baseadana reciprocidade e na memria coletiva; e ao fentipo, como um princpiogerador de identificao, onde o casamento preferencial atua como um valoroperativo no interior do grupo.

    A participao na vida coletiva e o esforo de consolidao do grupo o que o direito constitucional dever contemplar, pois inclusive a legislaobrasileira de inspirao liberal no se inspira na posse coletiva da terra. Aomesmo tempo, tambm a capacidade de auto-organizao e o poder deautogesto dos grupos para identificar e decidir quem e quem no ummembro da sua comunidade, mais do que a cor da pele, o que a lei parececontemplar. Isto sem levar em conta que os processos de expulsoimpediram estes grupos de continuarem organizados, a violncia, que emalguns casos os descaracterizou enquanto membros de uma comunidade,impelindo-os desagregao, extrema pobreza e marginalidade social.

    neste quadro poltico que o quilombo passa, ento, a significar, umtipo particular de referncia, cujo alvo recai sobre a valorizao das inmerasformas de recuperao da identidade positiva, a busca por tornar-se umcidado de direitos, no apenas de deveres. Enquanto uma forma de orga-nizao, o quilombo viabiliza novas polticas e estratgias de reconhecimento.Primeiramente, atravs da responsabilidade do grupo em definir pleitos comlegitimidade e poder de aglutinao, de exercer presso e produzir visibilidadena arena poltica onde os outros grupos j se encontram. Em segundo lugar,atravs do questionamento, mesmo que indireto, da funo paternalista doestado, da utilizao que fazem os polticos das bandeiras dos movimentossociais em milionrias campanhas polticas. E, em terceiro lugar, propondo areviso das prioridades sociais, atravs, principalmente, da implementao depolticas sociais voltadas para pleitos considerados mais importantes erepresentativos dos interesses destas comunidades.

    Tambm deste leque de questes e possibilidades que vem a grandenovidade da prpria Constituio de 1988, que a introduo de um novocampo dos direitos tnicos,32 at ento inexistente: o estado brasileiro, aoreconhecer uma formao social diversa e desigual, teria ento que colo-car-se como rbitro e defensor deste direito, reconhecendo com isto aexistncia de grupos culturalmente diferenciados.

    33 No Legislativo Federal tramitam desde 1995 dois Projetos de Lei, um da senadora Benedita da Silva (PT-RJ) (Projeto-Lei 3207 A/97 129/95) e outro do deputado federal Alcides Modesto (PT-BA) (Projeto-Lei 627-A/95). Tambm a

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    Este constitui o grande n da questo e o verdadeiro impasse atual.Como dispositivo legal, foi votado e aprovado como parte das DisposiesTransitrias e no como uma obrigao permanente do estado. Aurlio VeigaRios (1996) observa, pertinentemente, e com a devida perplexidade, que jnaquele momento predominou uma viso de sociedade em processo deembranquecimento, portanto no fazendo sentido como lei definitiva.

    Diversas tentativas de regulamentao da lei, feitas em 1995, 1997,1998 e 1999 indicam a premncia que tem a aplicao do artigo 68 do ADCT,mas at o momento, todas elas esbarraram na definio do fenmenoreferido, no sujeito do direito e nos procedimentos de titulao, responsa-bilidades e competncias.33 Cada um deles enfrenta forte discordncia dosdiferentes setores diretamente envolvidos, principalmente dos grupos inte-ressados, e aponta a direo dos conflitos, que vo desde a oposio snormas estabelecidas para as titulaes, s presses das elites econmicasinteressadas nas terras ocupadas pelas comunidades negras, passando pordisputas entre os rgos do governo que teriam a atribuio para conduziro processo.34

    Em artigo retrospectivo, Lcia Andrade e Girolamo Treccani (1998)demonstram tambm que um dos principais motivos de discrdia dizrespeito ao fato de que estas terras esto sob diversas jurisdies e domnios.Enumerando alguns deles: terras devolutas dos diversos estados da fede-rao e municpios, reas que se localizam em domnios de empresasparticulares e estatais e terras que se encontram em unidades de conservaoambiental.

    Cabe tambm lembrar que no se trata exclusivamente de reconhecero que j existe, mas de considerar que os procedimentos legais em cursoindiretamente priorizam e demarcam novas fronteiras tnicas. A resistnciaterritorializante ao escravismo assumiu uma grande variedade de estrat-gias e desdobramentos. Parece pertinente aos grupos negros resgatar oesforo organizativo criado atravs de redes comunitrias de autoproteoe a criao de novas, baseadas nas mesmas estratgias. Sendo assim, areconstruo do esprito da lei, pelos procedimentos administrativos de suaimplementao, vem requerer uma extenso da cidadania a todas as

    Lei 9.757/97 aprovada pela Assemblia Legislativa de So Paulo, em entendimento do artigo 68 do ADCT dispe sobrea titulao das reas de posse atravs expedio de ttulos aos remanescentes das comunidades dos quilombos.Seguindo a mesma orientao a Assemblia Legislativa do Par aprovou a Lei 6.165 de 2/12/1998. Altima proposta de decreto foi debatida atravs de Consulta Pblica via Internet realizada pela Casa Civil daPresidncia da Repblica em Novembro de 1999.34 Em recente documento divulgado amplamente, a Associao das Comunidades Quilombolas de Oriximin retirao seu apoio s pretenses da Fundao Cultural Palmares de ser a gestora do processo de titulao (ver Associao...1999).

    35 Ver resposta do NUER Consulta Pblica sobre Projeto de Decreto realizado pela Casa Civil da Presidncia daRepblica, elaborada por Jos Carlos dos Anjos (MNU/UFRGS), Ilka Boaventura Leite (UFSC), Raquel Mombelli

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    comunidades negras cuja resistncia remonta a uma memria da escravidopassvel de ser reconstituda pelas redes de parentesco e afinidades queconformam a malha do grupo. A excluso, de antemo, de alguns gruposque j foram expulsos de suas terras, mas que permanecem articulados auma mesma experincia e unidos, visando a autoproteo, atualizando asredes de sociabilidade atravs de vrias formas de organizao, pareceincoerente. Processos scio-histricos locais e regionais produziramsingularidades que precisam ser consideradas. Na regio sul do Brasil, porexemplo, importante levar em conta a especificidade e a complexidade dofenmeno para que se estabeleam determinadas balizas que possamresgatar o que h de mais progressista no esprito da lei em questo. Estaspodem ser verificadas nos casos em que as terras que serviram de base paraa formao do grupo foram perdidas por intimidao, venda sob coao eviolncia. Ou, ainda, nos casos em que as terras em que residem os afro-descendentes situam-se prximas ou no interior de centros urbanos.35

    H no presente momento uma forte articulao entre as comunidadesque se identificam como quilombos e diversos setores e instituies dasociedade civil, tais como associaes de moradores, entidades de movimen-tos negros, ONG, instituies religiosas, ncleos e institutos de pesquisas dasuniversidades com um saber e experincias acumuladas sobre o assunto.Embora a definio dos procedimentos e rgos competentes para conduziro processo parea mais complexa, sobretudo pelo grande nmero de inte-resses conflitantes, o problema maior localiza-se na prpria definio equanto abrangncia do fenmeno referido. E em seguida, preciso consi-derar qual a demanda social que est sendo identificada como quilombolae trat-la como uma importante via de se reconhecer a historicidade e atrajetria de organizao das famlias negras, pautadas no conjunto dereferncias simblicas que fazem daquele espao o lugar de domnio dacoletividade que l vive, no respeito s formas de convvio e usufruto da terraque o prprio grupo elaborou e quer ver mantido. E incluir, desde as que jse auto-identificam como quilombolas, at aquelas que tm as mesmascaractersticas mas que no se autodenominam como tal, principalmente porno disporem de organizao e meios para a formulao de um discursoarticulado nos mesmos termos.

    Mas caber, sem dvida, s instncias jurdico-polticas, considerar ouno o quilombo como uma entre as vrias expresses contidas na formaosocial brasileira. Para que o texto do decreto-lei possa surtir o efeito esperadopelos atuais pleiteantes, precisaria conter as instrues necessrias sua

    (NUER), Miriam Hartung (UFPr), disponvel no site do NUER http: //www.cfh.ufsc.br/~nuer.

    36 Apenas uma rpida passagem pelo cinema brasileiro ao longo do sculo XX j revela-nos a predominncia, em todaa sua primeira metade, de uma imagem caricatural dos negros. Atravs dos inmeros papis-padro, ora sohomogeneizados em nome da modernizao do pas, ora so estigmatizados e responsabilizados pela pobreza e

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    plena aplicabilidade, ou seja: 1) considerar a abrangncia e a diversidade dofenmeno; 2) detalhar as fases do processo nas aes de reconhecimento etitulao; 3) definir as atribuies, competncias e raio de ao de cada umdos rgos envolvidos; 4) considerar as vrias figuras jurdicas a seremaplicadas em caso de terras coletivas, individuais e modalidades mistas; e5) enumerar os procedimentos necessrios resoluo dos conflitos e respec-tivas formas de indenizaes das partes envolvidas.

    Alm disto, verifica-se que a demanda por reconhecimento e regula-rizao fundiria requer uma ao integrada envolvendo, de forma mais diretae participativa, os vrios rgos do governo e da sociedade civil. Seria impor-tante a congregao de diversos rgos estatais e entidades da sociedadecivil envolvidos com a problemtica, reunindo assim o conjunto dos recursosjurdicos, infra-estruturais, e a necessria legitimidade para executar taltarefa. No por acaso, as mais bem sucedidas experincias de implementaodo artigo 68 tm sido aquelas em que se conseguiu estabelecer uma parceriaentre comunidades, entidades governamentais e os diversos agentes locaisfavorveis regularizao.

    Impasses na regulamentao do dispositivo constitucional

    O resgate do termo quilombo como um conceito socioantropolgico, noexclusivamente histrico, proporciona o aparecimento de novos atores sociaisampliando e renovando os modos de ver e viver a identidade negra; aomesmo tempo, permite o dilogo com outras etnicidades e lutas sociais,como a dos diversos povos indgenas no Brasil. Vem evidenciar o aspectomilitante e de no-acomodao, contrariando os esteretipos correntes deconformismo, sujeio, embranquecimento, malandragem e corrupo quefundamentam as falsas noes de democracia racial vigentes no pas desdea Primeira Repblica (1889-1930).36

    Escolhido para falar da dominao que se tentou exercer atravs doargumento da inferioridade da raa, dos estigmas e da excluso social, otermo quilombo vem expressar alguma necessidade de parte da sociedadebrasileira de mudar o olhar sobre si prpria, de reconhecer as diferenas queso produzidas como raciais ou tnicas. Atravs da luta e de uma complexa

    marginalidade em que se encontravam. Tudo isto parece mudar quando o quilombo passa a operar como um novosigno na cultura, contribuindo para desestabilizar a idia de pas democrtico, miscigenado, permissivo e mostrandoum quadro onde a mulata era um arrimo de famlia e um velho msico morria mngua na mesa de um bar. Sobreo papel do negro no cinema brasileiro ver Rodrigues 1988.

    37 Mocambo: palavra quase sinnima de quilombo, usada para exprimir os lugares habitados pelos escravos eex-escravos.38 reas vistas como perigosas ou suspeitas pela polcia, geralmente habitadas ou freqentadas pelos negros.

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    dinmica iniciada no perodo colonial, o quilombo chega at os dias atuaispara falar de algo ainda por se resolver, por se definir, que a prpriacidadania dos afro-descendentes. Neste sentido, pode ser considerada umaluta brasileira, iniciada ainda nos primeiros quilombos no perodo colonial,nos ajuntamentos, mocambos,37 moquifos,38 favelas, ganhando forma atra-vs de conspiraes, fuxicos,39 boicotes, rebelies, revoltas armadas esimples conversas entre supostos aliados, constituindo-se atravs deinmeras formas de associao, no evidentemente sem conflito, masgestadas pelo desejo de mudana.

    O ato de aquilombar-se, ou seja, de organizar-se contra qualqueratitude ou sistema opressivo passa a ser, portanto, nos dias atuais, a chamareacesa para, na condio contempornea, dar sentido, estimular, fortalecera luta contra a discriminao e seus efeitos. Vem, agora, iluminar uma partedo passado, aquele que salta aos olhos pela enftica referncia contida nasestatsticas onde os negros so a maioria dos socialmente excludos. Qui-lombo vem a ser, portanto, o mote principal para se discutir uma parte dacidadania negada.

    Apesar de sua fora simblica e da oportunidade lanada em 1988pelo recurso constitucional, o projeto de cidadania dos negros encontra-sehoje fortemente ameaado. Seja porque a grande quantidade de casoslevantados desde ento surpreendeu os rgos designados para coordenaro processo, seja porque o processo em si esbarra em interesses das eliteseconmicas envolvidas na expropriao de terras, no desrespeito s leis e nasarbitrariedades e violncias que acompanham as regularizaes fundirias.No incio dos anos 90 percebia-se j: o seu campo de ao, as conseqnciasmesmas do artigo proposto e aprovado pela Constituio no seriamsuficientes nem sequer estavam sendo avaliadas pelos setores conservadoresque nele votaram. Acreditavam tratar-se de alguns pequenos casos isolados,bons para produzir a visibilidade aos atos de governo e para colocar umapedra definitiva em cima do assunto. Esta uma avaliao pertinente,compartilhada por diferentes lideranas do movimento negro. E comohiptese no inconsistente, se forem considerados os inmeros impassescriados para sua aplicao assim que se percebeu: 1) a grande quantidadede reas a serem tituladas no Brasil sob esta perspectiva, j que a populaoafro-descendente numerosa; 2) o poder de mobilizao e reorganizao dascomunidades motivadas pelo prprio artigo; 3) a evidncia da definio deuma nova identidade para os descendentes de africanos no Brasil, atravs39 O fuxico tem sido usado para expressar fofoca ou intriga sobre coisa tida como perigosa ou suspeita aos padresem vigor.

    40 Segundo dados divulgados pela Fundao Palmares at o momento, 9 reas foram tituladas. O Incra informa pormque foram tituladas 21 reas no Par e 1 na Bahia. Pesquisadores da Comisso Pr-ndio de So Paulo informam queapenas 8 foram efetivamente regularizadas. Pelo visto h tambm diferentes entendimentos sobre o processo e suasvrias etapas, ou seja: a identificao e delimitao, a demarcao e a titulao. O INCRA nos informou que no

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    da possibilidade de sua incluso, finalmente, na condio de brasileiros, decidados, e da viabilidade mesma de ocorrerem titulaes em grande partedas demandas desde ento esboadas.40

    O texto constitucional expressa a necessidade do reconhecimento dacidadania destes grupos tnicos, entendida como direito ao exerccio dadiversidade tnico-cultural (Paoli 1983 apud Andrade e Treccani 1998) masesbarra nas discordncias sobre o prprio significado do que vem a ser estereconhecimento: se uma questo mesmo de preservao de um patrimniocultural ou se uma questo de direito terra e diversidade tnica(Andrade e Treccani 1998: 36).

    Justificam-se, sob este prisma, as sadas que vo sendo vislumbradaspelos setores conservadores: a morosidade dos processos, a discussointerminvel sobre de quem a competncia na conduo do processo, afalta de investimento nas pesquisas para o conhecimento histrico-antro-polgico do assunto, a falta de sensibilizao e informao para os funcio-nrios das instituies governamentais responsveis, como INCRA, Minis-trio Pblico, Ministrio da Justia, Ministrio da Cultura, Fundao Pal-mares e outros.41 Passaram-se quase doze anos e os processos j concludoscom base no artigo 68 no chegam a consumir os dedos das mos.

    Alia-se a isto, sem dvida, todo um conjunto de aes, enfatizadaspela mdia, com o intuito de transformar o chamado equivocadamente deremanescente em mais uma pea do folclore nacional. Trata-se, conformeMuniz Sodr, de um etnicismo que produz guetificao ou a turistizao dasdiferenas, que segundo ele exige das culturas uma autenticidade, umaespcie de alma popular, para melhor consumi-las:

    momento h 50 pedidos de regularizao fundiria de comunidades remanescentes de quilombos. Outras, jidentificadas por antroplogos, ainda no formularam seu pedido oficialmente. Na maioria dos estados brasileiros aquesto parece estar apenas se iniciando.41 Os autores que definem o quilombo como apenas um modo de produo ligado terra concluem que a maioria dosgrupos formados neste processo pratica a agricultura, em face da grande tradio agrcola dos povos africanos. Noentanto, chegando aos tempos atuais, encontram outra situao: com o esgotamento das terras e sua exiguidade, essesgrupos tiveram que exercer outras atividades, inclusive fora do circuito da localidade residencial. De forma alguma estasituao atual retira de cada um sua condio de membro do grupo. Esta uma das dificuldades nos processos em curso,ou seja, os elementos constitutivos da fronteira. Tambm rgos do governo atentos a outros tipos de movimentos e pleitosinsistem em aplicar os critrios criados institucionalmente para classificar, como j mencionei, os sem-terra. Vemos assimuma insensibilidade (permissiva) de rgos como o INCRA que no aceitam critrios de autodeterminao instauradospelo prprio grupo. A confuso estabelecida por exemplo, pelo INCRA, entre os sem-terra e as comunidadesremanescentes de quilombos conforme o artigo constitucional, patente. O resultado disto que a entidade, criada paraproduzir regularizao fundiria no consegue hoje atender demanda diferenciada que resulta de uma trajetria comumfacilmente comprovada nas pesquisas antropolgicas. A partir de critrios tcnicos, o INCRA no tem atuado de formasatisfatria neste caso, nem o Ministrio da Cultura, atravs da Fundao Palmares. Por outro lado, os juristas epromotores alegam no saber qual o direito que deve ser protegido...

    42 A anlise feita por Munanga muito elucidativa do teor dos debates sobre multiculturalismo no Brasil hoje.Veja-se Munanga 1995: 66-67.

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    D-se dessa forma a manuteno do princpio de identidade das diferenas:o outro tem que ser positivamente avaliado. Incorre-se assim numa formamais sutil de discriminao, uma vez que o discriminado se obriga aconviver com um clich (extico, atemporal e desterritorializado) de simesmo, terminando por achar-se estranho sua imagem prpria, no que ela sempre marchetada pela Histria, logo pela conjuntura scio-poltica (Sodr1988: 55).

    So inmeros os desafios, e o prprio termo comunidade remanescente dequilombo apresenta em si um conjunto de questes de ordem conceitualainda por serem melhor discutidas e detalhadas, para que possa ser uminstrumento de mediao s aes interpostas no judicirio. Um refinamentoconceitual depende do conhecimento mais detalhado das vrias situaesexistentes, e da colaborao de diferentes reas cientficas. Esta tarefa,sabemos agora, mais de uma dcada depois da promulgao da Constituiode 1988, no foi suficientemente cumprida, embora alguns passos tenhamsido efetivamente dados em direo ao estabelecimento de diferentesprojetos de pesquisa e debates entre os diferentes setores da sociedade.

    At aqui, os processos j em curso por regularizao fundiria combase no artigo constitucional tm encontrado uma resistente barreira: osjuristas aguardam por critrios universais para a definio dos sujeitos dodireito. Muitas vezes, preocupados em encontrar uma definio genrica dequilombo que se aplique a todos os casos, deixam de considerar que osprocessos de apropriao/expropriao somente guardam uma pertinnciapela sua especificidade histrica. Esperam dos cientistas sociais objetivi-dade, para que possam exigir a aplicao da lei. Esperam por um nicoconceito de quilombo universalmente aplicvel a todos os casos, ou que osantroplogos invistam mais nos laudos periciais e em torno de argumentostericos consensuais, capazes de definir, de modo preciso, se uma comu-nidade ou no remanescente de quilombo. Esta tem sido mais uma arma-dilha, ou forma de prolatar a lei evitando (ou adiando) a arbitragem neces-sria em processos que envolvem tambm reas que so ao mesmo tempode interesse direto das elites econmicas.

    Por outro lado, os antroplogos pontuam situaes especficas edefendem mais do que exclusivamente um direito universal, a qualificaoda experincia de constituio dos grupos, a arena poltica propriamente, naqual os negros surgem como excludos sociais, a alteridade em sua duplaface: a que se impe e a que escolhida pelo grupo como expresso de suaorganizao, de sua identidade positiva.

    Kabengele Munanga (1995) consegue sistematizar os atuais impasses

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    tericos 42 e demonstrar muito bem como operam duas lgicas anti-racistasno Brasil: a individual-universalista, baseada nos princpios universalistasdos direitos humanos e que tende a ver a luta pelo direito diferena comoparticularismos e obstculo integrao dos grupos, e uma outra,denominada tradicional-comunitarista, que v a ideologia fundamentada nouniversalismo como exterminadora das diferenas. Estas duas lgicas,segundo ele, acabam por no se comunicarem, por no se misturarem,configurando uma espcie de dilogo entre dois surdos.

    Os processos de regularizao fundiria j em curso, sobretudoquando operam em bases essencialistas, deparam-se com a dificuldade emidentificar os sujeitos do direito, uma vez que a malha social sob a qual odireito se debrua revela tambm as inmeras estratgias ou sadas produ-zidas pelos grupos, dentre elas a prpria miscigenao, como uma formaencontrada pelos descendentes de africanos para se introduzirem no sistemaaltamente hierarquizado e preconceituoso. Ento essa nova condio colo-cada pelo artigo 68 serve para revelar que estratgias individuais e grupaisvm operando concomitantemente no Brasil, de modo que integrao esegregao interagem atravs de vrias formas de convivncia intra e intergrupos. Sem dvida, esta compreenso do processo vem faltando, inclusive,para os prprios militantes negros, quando esperam muitas vezes ver oquilombo atravs dos exemplos norte-americanos e sul-africanos, nopercebendo, a maioria, a prpria especificidade do modelo de convivncialocal ou regional onde coexistem inmeras formas de associao e na qualemergem mulatos e brancos plenamente identificados com a luta dos negros.A prpria noo de grupo contm uma dimenso especfica em cada lugar,dependendo do que compartilhado, daquilo que considerado como sendocomum a todos os que dele participam. Alguns militantes ainda se apegama uma viso ora romntica, ora vitimada dos negros, chegando a v-los ouprojetados numa imagem negativa da excluso ou atravs de uma visofolclorizada, construda de fora e reforada por eles prprios. Com istocontribuem para aquela verso que foi muitas vezes idealizada em algunsestudos de comunidade e em diversas etnografias, quando, ao recons-tituir processos polticos de reafirmao tnica, enaltecem a solidarie-dade e a resistncia, menosprezando os nveis de conflito presentes nointerior do prprio grupo como um importante agente de transformao emudana.

    Para alm de uma identidade negra colada ao sujeito ou por umacultura congelada no tempo, que deve ser tombada pelo patrimnio histricoe exposta visitao pblica, a noo de coletividade o que efetivamenteconduz ao reconhecimento de um direito que foi desconsiderado, de umesforo sem reconhecimento ou resultado, de um lugar tomado pela fora epela violncia. Coletividade no sentido de um pleito que comum a todos,

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    que expressa uma luta identificada e definida num desdobrar cotidiano poruma existncia melhor, por respeito e dignidade. por a que a cidadaniadeixa de ser uma palavra da moda e passa a produzir efeito no atual quadrode desigualdades sociais no Brasil.

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    QUILOMBOS IN BRAZIL: CONCEPTUAL ANDNORMATIVE QUESTIONS

    In order to discuss its present theoretical and politi-cal implications, principally in regards to the frame-work of social exclusion in Brazil today, this articlefocuses on the quilombo as an socio-anthropologicalconcept. It also seeks to establish a counterpoint tothe present impasses in the understanding of article68 of the Brazilian Constitution referring to theresidual communities of quilombos, and the legalprocesses in progress a task made more difficult byvarious manoeuvres and strategies forefront amongthem: the folklorisation of black culture and identity.The text points to the necessity for new referencesthat can raise above a certain theoretical reduction-ism in so far as concerns the anthropological implica-tions of the specific or diffuse rights of the newethnicities, principally in the face of such traps asethnic tourism.

    Ilka Boaventura Leite

    Universidade Federal de Santa [email protected]