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QUILOMBOS BRASILEIROS: RESISTÊNCIA, REPRESSÃO E CONSOLIDAÇÃO
Fernando Bueno Oliveira1
RESUMO
Esse trabalho é fruto do estudo, em andamento, acerca dos quilombos brasileiros e se
configura como um ensaio a respeito do decisivo papel do negro escravizado no processo
produtivo brasileiro ao longo dos períodos Colonial e Imperial. Objetiva demonstrar que a
formação dos quilombos representava uma das formas de resistência de maior repercussão
para ordem escravista, frente à dependência dos senhores em relação aos seus escravos,
importantíssimos, aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. Traz à discussão, à
luz de diferentes autores, a formação dos quilombos, como configuração histórica e contínua
de resistência ao processo produtivo em voga; enfatiza que as diferentes formas de resistência
dos escravos resultaram das inúmeras brutalidades a que eram submetidos; levando-se em
conta alguns registros de pessoas pertencentes da alta sociedade da época, ilustra que a força
escrava representava a principal forma de obtenção de lucros; o medo de perdê-la gerava
constantemente diferentes formas de opressão e castigo. Quanto à formação dos quilombos,
Goiás não esteve de fora do cenário nacional, fato que lhe proporcionou o abrigo de um
avantajado número de quilombolas. Pensar em quilombos é considerá-los numa
representatividade da resistência frente a uma sociedade injusta, opressora e desigual. Os
quilombos representavam a forma consolidada de união e de valorização de uma minoria
racial desprovida, fora do quilombo, de liberdade de expressão, de sentimentos e de vida. Os
quilombos não se configuravam somente como algo delimitado, limitado e isolado, mas
detinham o poder que, se utilizado, seria capaz de modificar estruturantes dominantes.
PALAVRAS-CHAVE: Resistência. Repressão. Quilombos. Riqueza. Goiás.
Considerações iniciais
As temáticas voltadas aos quilombos brasileiros são, muitas das vezes, tratadas com
bastante superficialidade em grande parte dos trabalhos acadêmicos da área das humanidades.
Isso ocorre talvez pelo fato dos quilombos serem, ainda hoje, notados somente como
componentes do passado e, de certa forma, como elementos históricos isolados da dinâmica
econômica brasileira.
1 Graduado em Geografia (IESA/UFG - 2002). Mestrando do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado pela Universidade Estadual de Goiás, (TECCER/UEG). E-mail:
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No Brasil, é relativamente recente o estudo direcionado à fuga de escravizados e a sua
relação com a economia brasileira. Destaque aos trabalhos da escritora negra Beatriz
Nascimento (1982; 1985), os quais contemplam os quilombos numa representatividade de
resistência e, ainda, aos trabalhos do escritor Clóvis Moura (1987; 2009), que tece
considerações aos quilombos numa perspectiva de sua vitalidade no processo produtivo
brasileiro.
A escravidão negra no Brasil, ao longo dos períodos Colonial e Imperial, despontou-se
como o meio mais eficiente que os grandes senhores de engenho, de minas e de lavouras
cafeeiras encontraram para a produção e a manutenção de suas riquezas. Entretanto, para que
a força escrava se mantivesse numa condição “ideal”, os senhores se utilizavam de diferentes
meios com vistas a ter-lhe à sua total disposição.
Diante das situações de maus-tratos, os africanos escravizados desconheciam outra
opção que não fosse a de rebelar contra a “ordem” vigente. Rebelavam-se de diferentes
formas, a fuga era uma delas. Os escravos que escapavam e eram posteriormente apanhados,
eram castigados nas mais terríveis proporções.
As diferentes formas de resistência resultavam das brutalidades a que estavam
submetidos, as quais foram muito bem expressas por Clóvis Moura (1987). Diferentes formas
de repressão foram praticadas pelos senhores a fim de manter a “ordem” da escravaria, com a
maior intenção de evitar e/ou eliminar as eventuais fugas.
Por mais que grande parte das temáticas relacionadas a quilombo o limite como
elemento isolado do passado, não se preocupando em estabelecer uma relação com a
economia do Brasil Colônia e/ou do Brasil Império, deve-se considerar que a força escrava
esteve presente na dinâmica econômica brasileira, em seus ciclos econômicos, com exceção
da fase industrial. Na realidade, as agressões a que os africanos escravizados eram submetidos
resultavam do medo dos senhores em perder a mais importante peça geradora e mantenedora
de suas rendas.
Assim considerando, o objetivo desse artigo é o de expressar o decisivo papel dos
negros escravizados para a economia brasileira, considerando, para isso, alguns exemplos que
ilustram perfeitamente a dependência dos senhores em relação aos seus escravos,
importantíssimos, aliás, na produção e na manutenção de suas riquezas. O medo de perdê-los
gerava constantemente diferentes formas de opressão e castigo, o que, consequentemente,
também gerava, dentre os escravos, diversas formas de resistência à ordem escravista. Goiás
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não esteve de fora desse cenário, fato que lhe proporcionou o abrigo de um avantajado
número de quilombolas.
As diferentes formas de resistência
Não é de longa história o estudo direcionado aos quilombos brasileiros. Na realidade,
em concordância com o autor Alex Ratts (2007), houve “demora” da academia em aceitar o
quilombo como linha de pesquisa, com exceção do quilombo de Palmares.
Glória Moura (2006) ao tentar definir o significado de quilombos contemporâneos,
expõe que
Merece destaque a epopeia dos Palmares, em Alagoas, que resistiu por mais de cem
anos aos ataques dos escravocratas. Lá viviam em comunhão ex-escravos, indígenas
e não negros perseguidos pela Colônia. Contudo, em 20 de novembro de 1695,
Zumbi dos Palmares, seu último líder, foi morto, e o quilombo,
destruído. (MOURA, 2006, p. 331).
Sobre os quilombos, não poderíamos deixar de ponderar os trabalhos da historiadora
Beatriz Nascimento, uma das pesquisadoras negras que mais se dedicou ao estudo de
quilombos brasileiros. “Por quase vinte anos, entre 1976 e 1994, ela esteve às voltas com essa
temática” (RATTS, 2007, p. 53). Para a mesma autora o quilombo assumia um significado
amplo de resistência negra em diversos espaços (não somente físicos) (IDEM, IBIDEM, p.
54). Para a definição de quilombo, Beatriz Nascimento contempla
As formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na lua árdua pela
manutenção da sua identidade pessoal e histórica. No Brasil, poderemos citar uma
lista destes movimentos que no âmbito social e político é o objetivo do nosso estudo.
Trata-se do Quilombo (Kilombo), que representou na história do nosso povo um
marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas estas formas de
resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil
(NASCIMENTO, 1985, p. 41).
Os estudos sobre quilombos começam a despontar dentre a intelectualidade brasileira
especialmente a partir da década 1970 (RATTS, 2007). O mesmo autor, ainda em referência à
Beatriz Nascimento, escreve a respeito da crítica dessa pesquisadora em relação à
historiografia sobre os quilombos no Brasil. A crítica partia do “reduzido número de títulos
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dedicados ao tema, que eram em geral muito descritivos, e que generalizavam o termo
quilombo a partir de situações como Palmares” (IDEM, IBIDEM, pág. 57).
Falar de quilombos não é aceitar ou somente expor termos e significados simplistas
que, por muitas vezes, permeiam a academia. Não é tecer considerações descompromissadas
com a realidade desse grupo social. Falar de quilombos é evidenciar, dentre outros sentidos, a
trajetória de vida de determinados grupos sociais no Brasil que, por conta de contextos
históricos e econômicos, foram forçados a resistir contra a obstinação política e econômica
das classes dominantes especialmente ao longo dos séculos XVII a XIX.
A formação histórica dos quilombos no território brasileiro perpassa, antes mais nada,
pelos sentimentos, dentre os africanos escravizados, de sujeição dolorosa nos navios
negreiros, de afastamento mandatório de seus lugares de origem, de tratamento enquanto
mercadorias, de servidão forçosa e de alteração forçosa de seus hábitos, originários de suas
terras natais. Em contrapartida, permeando-os, as diferentes formas de resistência aos poucos
foram se aflorando, resultando, dentre outros eventos, na formação de quilombos,
tradicionalmente entendidos como lugares de escravizados em fuga.
Trabalhos valorosos de Clóvis Moura (1987; 2009), trazem-nos com clareza
cristalizada as diferentes formas de resistência praticadas pelos africanos escravizados ao
longo dos períodos colonial e imperial do Brasil. Na realidade, critica o autor, as literaturas
científicas, até então dos últimos decênios do século XX, preocupavam-se em entender a
dinâmica econômica brasileira dos referidos períodos, por exemplo, sem considerar os
escravizados negros como parte integrante e ativa do desenvolvimento econômico brasileiro.
Clóvis Moura (1987) aponta que uma das primeiras definições de quilombo foi a do
rei de Portugal, em resposta à consulta do Conselho Ultramarino, datada de 2 de dezembro de
1740, em que definia que quilombo era “toda habitação de negros fugidos que passem de
cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões
neles” (MOURA, 1987, p.11).
Na realidade, onde quer que houvesse a existência do trabalho escravo, surgia o
quilombo ou mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência, lutando, abatendo em
diversos níveis as forças produtivas escravistas, “quer pela ação militar, quer pelo rapto de
escravos das fazendas, fato que constituía, do ponto de vista econômico, subtração
compulsória das forças produtivas da classe senhorial” (IDEM, IBIDEM, p.14).
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O mesmo autor, fazendo referência a Édison Carneiro (1947), esse um dos primeiros
autores que analisam criticamente a realidade do quilombo de Palmares, mostra as diferentes
formas de luta dos escravizados brasileiros:
a) revolta organizada, pela tomada do poder político, que encontrou sua expressão
mais visível nos levantes dos negros malês (muçulmanos) na Bahia, entre 1807 e
1835; b) a insurreição armada, especialmente no caso de Manuel Balaio (1839) no
Maranhão; c) a fuga para o mato, de que resultaram os quilombos, tão bem
exemplificados por Palmares. De fato, essas três formas fundamentais de luta
caracterizam, de modo geral, os movimentos rebeldes dos escravos, a quilombagem
no Brasil. Devemos nos lembrar, porém, para que a visão não fique incompleta, de
outras formas de luta usadas pelos escravos: a) as guerrilhas; b) a participação do
escravo em movimentos que, embora não sendo seus, adquirirão novo conteúdo com
sua participação. Finalmente, devemos acrescentar o banditismo quilombola.
(MOURA, 1987, p.14).
Na mesma obra, o autor descreve diferentes situações resultantes da insatisfação dos
negros escravizados: casos de negros bandoleiros (grupos de negros escravizados fugidos que
ainda não tinham um lugar fixo de morada) que atacavam nas estradas e nas fazendas;
quilombolas que fugiam das bandeiras e se escondiam nas matas; quilombolas que se
juntavam aos índios para praticarem desordens, sendo que nesse caso, uma delas, era a
destruição repetidas vezes de um instrumento de morte, a forca; negros que atacavam aos
próprios senhores; negros que se rebelavam nas fazendas, como foi o caso da revolta de
Manuel Congo; negros que praticavam o banditismo individual ou em pequenos grupos.
Geralmente, os negros fugiam para as matas e depois de praticarem desordens se
aquilombavam (MOURA, 1987, pp.16-17). Muitos saíam dos quilombos para atacar fazendas
e povoados mais próximos.
O mesmo autor aplica o termo “quilombagem” para se referir aos movimentos
rebeldes de escravos brasileiros, fatos ocorridos não somente em São Paulo, mas, também, nas
outras capitanias.
Os quilombolas faziam alianças com outros grupos sociais oprimidos, tais como o
faiscador e ao contrabandista de diamantes e ouro, com a intenção de fortalecimento de
relações visando, sobretudo, a sua segurança, haja vista que esses grupos lhes enviavam
avisos cautelosos quando as tropas militares saíam em busca aos quilombos.
As diferentes formas de repressão
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Numa leitura descontextualizada, poder-se-ia haver diferentes opiniões, por parte dos
leitores, carregadas, talvez, por certa indignação da tamanha violência e da periculosidade dos
negros escravizados ou, quem sabe, para os mais romantizados, impregnadas da ideia de
ingratidão desses escravos diante de uma relação de “camaradagem” com os seus senhores,
exemplo que demonstraremos adiante.
Nada contra as diferentes opiniões sobre tal assunto, entretanto, demonstraremos
certas práticas de violência dos senhores em relação aos seus escravos, os quais eram
comumente considerados por seus “donos” como animais ou objetos. Dentre os exemplos
elencados por Clóvis Moura (1987), três nos chamou a atenção por tamanha crueldade. Todos
eles estão ligados à fuga de escravos.
A citação a seguir, retirada da mesma obra, refere-se a um alvará expedido pelo rei de
Portugal e demonstra-nos as atrocidades permitidas pelo próprio Estado sobre os escravos
“fujões”. A íntegra do alvará é a seguinte:
Eu El-Rey faço saber aos que este Alvará em forma de lei virem: que sendo-me
presente, os insultos que no Brasil cometem os escravos fugidos a que vulgarmente
chamam de calhambolas, passando a fazer excesso de se juntar em quilombos e
sendo preciso acudir com os remédios que evitem esta desordem, hei por bem que a
todos os negros, que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente,
se lhes ponha com fogo, uma marca em uma espádua com a leitra F, - que para este
efeito haverá nas Câmaras, e se quando for executar esta pena for achado já com a
mesma marca, se lhe cortará uma orelha; tudo por simples mandado do Juiz de Fora,
ou Ordinário da terra, ou do Ouvidor da Comarca, sem processo algum e só pela
notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido antes de entrar para a Cadeia;
Pelo que mando ao Vice-Rei, e Capitão-General de mar e terra do Estado do Brasil,
Governadores e Capitães-Generais, Desembargadores de Relação, Ouvidores e
Justiça do dito Estado, cumpram e guardem, e façam cumprir e guardar este meu
efeito haja de durar mais de um ano, sem embargo da ordenação do livro 2.o e 4.o em
contrário o que será publicado nas Comarcas do Estado do Brasil, e se registrará na
Relação e Secretaria dos Governos, Ouvidoria e Câmaras do mesmo Estado para que
venha a notícia a todos. Dado em Lisboa ocidental a três de março de mil e
setecentos e quarenta e um. a) Rei (SANTOS apud MOURA, 1987, p.20).
Outro exemplo de crueldade está na tragédia de Isidoro, um negro escravizado fugido
que atuou à frente de cinquenta quilombolas. Moura (1987) em citação, embora longa, à
descrição do escravo Isidoro por Joaquim Felício dos Santos (1924) nos demonstra que
Isidoro era um pardo que fora escravo de um frei Rangel, que vivia da mineração.
Processado como contrabandista foi confiscado a seu senhor em benefício da
Fazenda Real, e condenado a trabalhar nos serviços de Extração, como galé. De
caráter altivo e não podendo suportar a pena que o obrigava a trabalhar de calceta,
um dia limou os ferros, conseguiu iludir a vigilância dos guardas, fugiu do serviço e
atirou-se à vida de garimpeiro. Sucedeu que outros escravos, também condenados,
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imitassem seu exemplo. Reuniram-se e Isidoro constituiu-se o chefe de uma tropa de
garimpeiros escravos [...] Entretinha frequentes comunicações com pessoas
importantes do Tijuco que lhe compravam os diamantes que extraía [...] Câmara foi
o mais acérrimo perseguidor de Isidoro: ainda mais que João Inácio. Declarou-lhe
uma guerra encarniçada; dissimulou patrulhas por toda a parte; bateu-o em
diferentes lugares; empregou os meios de sedução, de ameaças, de violência com as
pessoas que supunha protegê-lo. Isidoro, porém, sempre conseguia pôr-se a salvo de
suas perseguições, já resistindo com a força, já por traças contaminando-lhe os
planos bem combinados. [...] Assaltando de improviso por grande número de
pedestres da intendência, resistiu só e valorosamente por muito tempo até cair ferido
por três balas. Então, o prenderam e ainda o maltrataram, espancaram, feriram, como
se se tratasse de um animal bravio. Isidoro, com as carnes rasgadas e mal podendo
sustar-se, é levado à tortura. Em público, defronte da porta da cadeia, foi amarrado a
uma escada, com os membros estirados e movimentos tolhidos. Dois pedestres
começaram a açoitá-lo com bacalhaus. Logo as carnes rasgam, o sangue salpica e
abrem-se feridas ainda não cicatrizadas [...] Foi recolhido à prisão [...] Isidoro alguns
dias depois, sentindo aproximar-se os seus últimos momentos, declarou que queria
falar com o intendente para fazer-lhe uma revelação [...] Quis falar, tentou erguer-se,
mas já era chegada a sua hora e caiu morto [...] Isidoro depois de sua morte foi
venerado como um santo. Hoje ainda se diz: Isidoro o mártir (SANTOS apud
MOURA, 1987, pp. 22-23).
O terceiro exemplo de violência das que mais nos chamaram a atenção na obra em
análise diz respeito àquela praticada por particulares, ou seja, por “donos” de escravos que
lhes identificavam como sendo exclusivamente “seus”. Clóvis Moura (1987), expõe que “no
Monitor de 5 de julho de 1846 o padeiro francês, Constantino Labrousse, anunciou que lhe
fugira o escravo Gonçalo de nação Cabinda, de 25 anos com ‘uma orelha cortada e muitos
sinais de chicote nas costas’” (MOURA, 1987, p.23). Em citação ao outro anúncio do mesmo
jornal, o autor demonstra que:
Fugiram dous escravos a Caetano Dias da Silva, da vila de Itapemirim, os quais
estavam na fazenda do Limão, um chama-se Manuel Paulo e tem ambas as pás, ou
ombros, pelas costas, a seguinte marca CDS entrelaçados; o outro de nome Luciano,
tem a mesma marca nas duas apás [sic] e em ambos os peitos; dá-se 25$ de alvíceras
a quem os pegar (Jornal Monitor de 5 de julho de 1846 apud MOURA, 1987, p. 23).
A partir de tais exemplos verificamos que o corpo do escravo era equiparado ao dos
animais, violentado, mutilado e espancado até a morte. Do alvará da Colônia aos anúncios dos
jornais, eles eram marcados e tratados como se fossem gados. Somente através de uma luta
constante contra os movimentos de dominação os negros escravizados poderiam conseguir a
sua reumanização.
Sendo assim, conforme demonstra o autor Clóvis Moura (1987), as práticas de
resistência nada mais era que uma reação dos negros escravizados à ação de dominação dos
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senhores. Para ele, “a repressão do aparelho de Estado escravista era de uma violência que
somente poderia ser combatida com uma violência idêntica, em sentido contrário” (p.24).
A força escrava como forma de manutenção da riqueza
Em leitura a diferentes obras que se referem às características econômicas e sociais do
Brasil ao longo do século XIX, apreendemos informações importantes na compreensão da
relação entre senhores e africanos escravizados. Em todas elas, observa-se que o negro
escravo era sempre avaliado como mera peça para a execução de tarefas. Entretanto, uma
“peça” que, na visão de Moura (1981; 1987), era a grande agente responsável pela dinâmica
econômica brasileira nos períodos colonial e imperial, o que nos permite concluir que sem ele,
o africano escravizado, não haveria a mínima possibilidade de sustentar a implantação dos
moldes capitalistas em terras brasileiras.
Não poderíamos deixar de considerar a obra do sociólogo Octavio Ianni (1978) que,
embora seja antecessora à obra de Moura (1987), pode ser perfeitamente aqui encaixada, por
apresentar importantes reflexões acerca da relação entre a escravidão e o capitalismo, temática
a ser abordada nesse pequeno capítulo.
Em consonância com Moura (1987), é oportuno dizer que, na América, a prática
escravista não ocorreu somente no Brasil, mas, também, nos Estados Unidos, no México, em
Cuba, no Haiti, em Porto Rico, na Venezuela, no Peru, no Equador, no Chile, na Colômbia,
no Uruguai, na Argentina, dentre outros. Em todos eles, o grande desafio para as classes
dominantes era o de utilizar o negro escravizado na garantia de manutenção e acréscimo de
suas riquezas.
No Brasil, inicialmente, as famílias advindas da metrópole Portugal contavam com o
apoio do Reino e, desde já, com a chance de aquisição de escravizados advindos do continente
africano, o que lhes possibilitariam a criação e a manutenção de lavouras de cana-de-açúcar e
engenhos. Já ao longo do século XVIII, as famílias provenientes de outros países europeus,
encontravam por aqui a possibilidade de enriquecimento a partir da utilização da força escrava
nas áreas de mineração e, posteriormente, na produção cafeeira.
Ianni (1978) considerando diferentes teóricos, tais como Caio Prado Júnior, Florestan
Fernandes, Roger Bastide, Gilberto Freyre, admite que “em síntese, foi o capital comercial
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que gerou as formações sociais construídas nas colônias do Novo Mundo, provocando dessa
maneira uma intensa acumulação de capital nos países metropolitanos” (pág. 3).
Na mesma obra, o autor tece diferentes reflexões, inclusive, acerca do racismo na
sociedade escravista, quando o negro escravizado era considerado pelas classes mais
abastadas como um ser desprovido de cultura. Critica Gilberto Freyre (1952) e Fogel e
Engerman (1974) que, segundo Ianni (1978), para eles, a escravidão aparece como sistemas
fechados, encerrados em si, sem movimentos estruturais (pp. 84 e 85). Fogel e Engerman
chegam a defender a ideia que o escravismo americano possibilitou um melhor nível de vida
aos escravizados (p. 85).
Percebe-se a desumanização do escravizado brasileiro ao se ler, por exemplo, certas
literaturas da época escravista e as próprias anotações de diários íntimos de senhores(as) de
escravos. A efeito de demonstração ao leitor, elencamos três registros de escritos que
consideram o escravo como mera “peça” ou “máquina” de trabalho, sem nenhuma marca de
impressão sentimental.
Para esse elenco, aproveitamo-nos das leituras efetuadas para a disciplina de
Seminário de Pesquisa, do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Territórios e
Expressões Culturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (TECCER/UEG). No
decorrer das leituras, já portando uma visão mais ligada à pesquisa do mestrado, extraímos
importantes elementos que remontam às ideias disseminadas dentre os integrantes da alta
sociedade brasileira à época escravista. Para isso, em referência à alta sociedade cafeeira do
vale do Paraíba, selecionamos o livro escrito pelo Barão do Paty do Alferes e o diário íntimo
da viscondessa de Arcozelo; em marco regional selecionamos anúncios do jornal “Matutina
Meiapontense”. Numa perspectiva de análise que se baseia na forma em que os escravos eram
tratados e do papel que desempenhavam na economia brasileira, tais trabalhos serão
apresentados e discutidos a seguir.
Iniciamos essa discussão tendo como base a obra de Ana Maria Mauad e Marianna
Muaze (2004) na qual evidenciam as memórias da viscondessa do Arcozelo, por intermédio
de seu diário íntimo. Ao tratarem sobre tal diário, as mesmas autoras abordam,
resumidamente, a trajetória do barão do Paty do Alferes, pai da viscondessa.
Como coronel da Guarda Nacional, o barão atuou no levante de escravos liderado por
Manoel Congo na Fazenda Esperança, também chamada de fazenda Freguesia, em 1838. Tal
escravo liderou um movimento de rebelião dentre os escravos da referida fazenda, sendo
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capturado e enforcado na cidade de Vassouras em seis de setembro de 1839. O mesmo barão,
além de ter dado fim a esse movimento atuou, ainda, no cerco do quilombo de Entre-Rios.
Antes de prosseguirmos, é importante constar que os escritos que compõem esse
diário, objeto de trabalho de Maud e Muaze (2004), caracterizam o estilo de vida dos
fazendeiros da região do vale do Paraíba durante a segunda metade do século XIX. Como nos
deixa claro as autoras, a época em que tal diário foi confeccionado era marcada, ainda, pela
“consolidação de uma aristocracia cafeicultora, dignitária do Império, cujo poder provinha da
posse de terras e escravos” (MAUD & MUAZE, 2004, p. 199). Evidenciam, dessa forma, que
os escravos dinamizavam a economia cafeeira e representavam, então, a riqueza de barões do
café.
Conforme a obra citada, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão do Paty do
Alferes, herdou, como único filho do casal Francisco Peixoto de Lacerda e Ana Matilde
Werneck, uma imensa riqueza, dentre fazendas e propriedades urbanas. Sobre a sua riqueza,
as autoras dizem que o barão era:
Dedicado e cuidadoso na manutenção de uma vasta riqueza, que compreendia
fazendas, ricas casas de moradia, palacetes assobradados construídos nas vilas da
região – um deles visitado pelo imperador quando de sua viagem de 1858 ao vale do
Paraíba -, além de móveis importados e de um grande número de escravos. (p. 200).
Interessante observar que o mesmo barão, preocupado em repassar ao seu filho os seus
conhecimentos que resultaram em tamanha prosperidade, chega a escrever um livro, do qual
faremos algumas citações. O livro Memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda na
província do Rio de Janeiro, primeira edição de 1847, “foi muito bem recebido pelos
cafeicultores, atentos aos conselhos de um proprietário tão bem-sucedido, além de ser
considerado por Taunay um precioso informativo sobre as fazendas da região” (MAUD &
MUAZE, 2004, p. 201).
Nesse livro, dentre informações relacionadas à lida diária numa fazenda, o mesmo
barão repassa instruções sobre a escravatura, assunto que dedica um capítulo inteiro intitulado
com o mesmo nome, orientando ao leitor sobre as melhores maneiras de se aproveitar do
trabalho escravo.
Já nas primeiras páginas de seu livro, o barão admite que os escravos representam a
máxima parte da fortuna de um fazendeiro, devendo o mesmo refletir que “na conservação
desses e na sua saúde e bem-estar, é que consiste a prosperidade da sua indústria” (p. 16).
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Admitindo que a vitalidade dos escravos representa a produção da riqueza, critica a forma que
alguns fazendeiros os tratavam quando diz que “alguns agricultores não atendendo a seus
interesses conservam seus escravos em cloacas úmidas e mal ventiladas, onde adquirem
moléstias ou incômodos insidiosos que posteriormente os levam ao túmulo” (p. 16).
Chama-nos a atenção que o barão instrui a se usar ao máximo da força de seus
escravos, inclusive em trabalhos noturnos, colocando que o administrador da fazenda
“ordenará então o serão da noite, ou no paiol ou no engenho de mandioca” (p. 35). Em alerta a
eventuais prejuízos quanto à aquisição de escravos, o barão coloca que alguns escravos
poderiam estar acometidos de enfermidades, portanto, orienta aos fazendeiros a não
adquirirem escravos fiados “porque se vos morrem, estão a pagos, e a perda é menos sensível”
(p. 39).
Outra preocupação do barão dizia respeito à revolta de escravos. Para que isso não
ocorresse aconselhava que
O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa, se a houver na fazenda, saber a
doutrina cristã, confessar-se anualmente: é isto um freio que os sujeita muito,
principalmente se o confessor sabe cumprir o seu dever, e os exorta para terem
moralidade, bons costumes, amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a
quem os governa (p. 39).
Em repúdio às revoltas da escravaria, o mesmo livro instrui a importância dos
senhores na manutenção de uma postura “equilibrada” diante de seus escravos. Sendo assim,
o barão diz que “o extremo aperreamento desseca-lhes o coração, endurece-os e inclina-os
para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano” (p. 41). E continua: “Nem se diga
que o escravo é sempre inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos, ou
demasiada severidade, ou frouxidão excessiva, porque esta os torna irascíveis ao mais
pequeno excesso deste senhor frouxo, e aquela leva-os à desesperação” (pág. 42).
Ao aconselhar sobre os eventuais castigos denuncia que
Há também alguns senhores que têm o péssimo costume de não castigar a tempo, e
de estar ameaçando o escravo dizendo-lhe – deixa que hás de pagar tudo junto – ou,
vai enchendo o saco, que ele há de transbordar e então nós veremos – e quando lhes
parece o agarram e desapiedadamente o maltratam, e por quê? Porque pagou tudo
junto! Barbaridade! (p. 42).
Com vistas a manter os escravos “sadios” o barão receita que o
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O escravo trabalhador de roça deve comer três vezes ao dia; almoçar as oito, jantar a
uma hora, e cear das oito até nove. Sua comida deve ser simples e sadia. Em serra
acima, em geral, não se lhe dá carne; comem os escravos feijão temperado com sal e
gordura, e angu de milho, o que é alimento muito substancial (p. 43).
Das citações acima, pode-se inferir que não ocorrem, em momento algum, sentimentos
de humanidade, mas o interesse em garantir que a força escrava se mantivesse como
mantenedora da prosperidade de seus senhores. Era ela, a força escrava, a grande responsável
pela dinâmica econômica dos períodos Colonial e Imperial.
O segundo exemplo do que nos propomos a tratar diz respeito às anotações da
viscondessa do Arcozelo, ou Maria Isabel de Lacerda Werneck, às quais foram, em partes,
copiladas e analisadas na obra de Mauad e Muaze (2004). Segundo elas, o hábito de anotar o
cotidiano da família foi herdado da sua própria mãe, uma baronesa. Num fragmento do
referido diário as autoras ilustram a fortuna da família da viscondessa, grande parte herdada
de seu pai, o barão do Paty do Alferes:
No Rio de Janeiro – 10 casas na rua da Relação; 2 casas na rua dos Inválidos e a
mobília existente no prédio no 5 da rua Almirante Tamandaré. Em Portugal – na
cidade do Porto, Freguesia do Arcozelo – várias propriedades. No município de
Vassouras as fazendas Arcozelo, Monte Alegre e Piedade, com casa residência com
capela e mais dependências, 4 casas em mal estado; um moinho em mal estado; uma
casa onde se aça o engenho; um rancho para a tropa; uma casa-enfermaria para
velhos (PAULA E PONDE ([19-], p. 137) apud MAUAD & MUAZE, 2004, p.
204).
Constata-se, assim, que a força escrava gerava lucros certos e o aumento do volume de
posses às famílias dos barões do café. Sabe-se, entretanto, que a segunda metade do século
XIX foi marcada pelo processo de libertação dos escravos, tendo seu ponto culminante em
1888, quando é assinada a Lei Áurea. As revoltas de escravos continuam a ocorrer e uma das
estratégias das famílias detentoras da força escrava era a da “aproximação”, acompanhada de
certa generosidade. Dessa forma, uma das preocupações da viscondessa era a de prestar uma
atenção maior em relação aos seus escravos. As mesmas autoras expõem que “todos os itens
ligados a gerencia da casa eram anotados detalhadamente [...] O pagamento de mercadorias
aos escravos [...] Os escravos libertos e os batizados”. E continuam: “numa terceira camada
estão os trabalhadores que sustentam a reprodução da riqueza: nesse caso, a proximidade é a
garantia do controle” (MAUAD & MUAZE, 2004, p. 205).
Em seu diário, os escravos são constantemente citados, fato que simboliza a
preocupação da viscondessa em relação àqueles que se configuravam a força responsável na
13
manutenção da sua fortuna. Além disso, em consonância com as anotações constantes no
diário, permite-se inferir que para aquela família, não diferente do que ocorreu com a de
outros barões do vale do Paraíba no referido período, o trabalho escravo ingressava numa
situação de franco declínio. Conforme as mesmas autoras,
Os escravos são presença constante e podem ser denominados pretos, mas também
pardos e creoullos, para diferenciá-los dos libertos, da gente da roça e dos feitores.
Evidencia-se, no relato, a decadência gradual do trabalho estritamente escravo, que é
substituído pelo trabalho remunerado, dentro e fora de casa (IDEM, IBIDEM, p.
206).
Outra passagem demonstra com nitidez refinada o prenúncio do fim da escravidão,
quando, em ilustração a um fato relacionado ao nascimento da primeira neta da viscondessa e
a necessidade de uma ama-de-leite, as autoras expõem que:
A ama cuidadosamente escolhida foi Agostinha, que partiu acompanhada do
empregado Joaquim para o Rio de Janeiro em 23 de dezembro, após ter recebido
uma gorjeta de 42$000 pelos serviços a serem prestados. Passados cinco dias, no
entanto, Maria Isabel registra que a ama-de-leite escolhida foi comprada e liberta,
obrigando-a a continuar a procurar outra para substituí-la. (IDEM, IBIDEM, p. 212).
O terceiro exemplo que ilustra a vital importância dos africanos escravizados na
dinâmica econômica brasileira nos períodos colonial e imperial está relacionado,
principalmente, às formas de tratamento à que eram submetidos, o que expressa o medo dos
seus “donos” em perder a sua única fonte de renda. Para que o leitor adquira ou reforce tal
visão, consideraremos os ocorridos na província de Goiás por intermédio ao que está
registrado nas folhas do Matutina Meiapontense, “primeiro jornal goiano e que circulou na
cidade de Pirenópolis, de 1830 a 1834” (ALENCASTRE, 1979, p. 9).
A professora Maria de Fátima Oliveira (2013) revisita certos aspectos da história de
Goiás por intermédio das edições do Matutina Meiapontense “detectando a incidência dos
diversos assuntos tratados no mesmo período e a visão de mundo nele veiculada” (p. 01).
Dentre os quinze assuntos principais do referido jornal, está o que faz referência à fuga de
escravos que ocorria na região de Pirenópolis.
Com a intenção de situar o leitor à época das edições do Matutina Meiapontense,
Oliveira (2013) descrevemos, em consonância com a referida autora, os aspectos históricos
conjunturais da Província de Goiás: “posição geográfica interiorana, ausência de infra-
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estrutura, escassez de meios de comunicação, economia de subsistência, esgotamento das
minas auríferas, constantes confrontos com os povos indígenas etc.” (p. 5).
De acordo com a mesma autora, no que diz respeito às fugas de escravos, o Matutina
Meiapontense é prioritariamente voltado para anúncios de fugas e as respectivas recompensas
para quem encontrar um escravo fugido, como mostra o seguinte exemplo:
...fugiu um escravo de nome José, crioulo estatura ordinária, cheio de corpo, cara
redonda, pinta de branco na barba, como na cabeça, com o nariz, e beiços feridos de
bobas; orelhas grossas da mesma moléstia, com um grande calo de ferida na perna
direita, de idade de 40 para 50 anos mais ou menos. O Anunciante promete dar
12$000 rs a quem o pegar, e trouxer, e se for fora da Província dará 30$000 (A
Matutina Meiapontense, 1832, n.º 326 apud OLIVEIRA, 2013, p. 8).
Sobre esse tipo de anúncio a mesma autora diz que “dois aspectos chamaram a atenção
nas notícias sobre esse tema: significativo número de anúncios sobre as fugas, com grande
variação no valor das recompensas e a omissão sobre a vida, cotidiano, alimentação e
tratamento geral dados aos cativos” (p. 9). Esse anúncio se configura como prova suficiente
de que em Goiás a força escrava indubitavelmente mantinha o nível de vida da alta sociedade
rural e urbana.
Em consideração aos três exemplos sugeridos para o presente artigo, pode-se inferir
que a força escrava representava o principal meio de obtenção e manutenção das riquezas de
fazendeiros e barões ao longo do século XIX, configurando-se como a energia necessária na
dinâmica econômica das províncias, conforme propõe Clóvis Moura (1987). Perdê-la
significava o prenúncio do prejuízo financeiro, do declínio econômico e do risco de um
desequilíbrio em pleno tapete da alta sociedade. Tais fatos, conforme elencado, são
observáveis com bastante limpidez no livro escrito pelo barão do Paty do Alferes, no diário
íntimo da viscondessa do Arcozelo e no jornal goiano Matutina Meiapontense.
Entretanto, conforme já exposto anteriormente, nem todos os escravos se sujeitavam
por muito tempo como mercadorias ou meros animais. Grande parte deles se rebelava na
primeira oportunidade que surgisse, o que resultava na fuga e na consequente formação de
quilombos. Segundo os estudos antropológicos, com destaque aos registros considerados pela
Fundação Cultural Palmares, além do quilombo dos Palmares, diversos outros quilombos se
formaram por todo o Brasil, inclusive na Província de Goiás. O próximo capítulo se direciona
a demonstrar que Goiás atraiu um grande número de escravos fugidos ao longo dos períodos
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Colonial e Imperial ocasionando a formação de quilombos em diferentes regiões de seu
território.
A constituição de quilombos em Goiás: um breve histórico2
Produções pontuais, tais como a obra de Martiniano José da Silva intitulada “Sombra
de quilombos” (1974) e a de Karasch com o título “Os quilombos do ouro na capitania de
Goiás” (1996), contribuem valorosamente no estudo do processo de escravismo e a
constituição de quilombos em Goiás.
É cabível aqui dizer, ao contrário do que muitos pensam, que as primeiras expedições
percorreram o território do atual estado de Goiás já no primeiro século de colonização do
Brasil. Luís Palacín e Maria Augusta de Sant´Anna Moraes (2001), registram que
Goiás era conhecido e percorrido pelas bandeiras quase que desde os primeiros dias
da colonização, mas seu povoamento só se deu em decorrência do descobrimento
das minas de ouro no século XVIII. Esse povoamento, como todo povoamento
aurífero, foi irregular e instável (PALACÍN & MORAES, 2001, p. 7).
Alguns historiadores consideram que a história de Goiás tem como ponto de partida o
final do século XVII, com a descoberta das suas primeiras minas de ouro, e início do século
XVIII, talvez pela documentação conservada relativamente abundante do século XVII
(PALACÍN & MORAES, 2001). De acordo com esses autores Goiás pertenceu até 1749 à
capitania de São Paulo. A partir desta data, tornou-se capitania independente.
Segundo o que é apresentado na vasta documentação histórico-geográfica, na qual se
encontram fontes históricas escritas e primordiais no processo de construção da historiografia
goiana, os colonizadores que chegaram à antiga capitania de Goyaz por meio de entradas e
bandeiras vieram em busca de riquezas, notadamente minerais como o ouro, o diamante, as
esmeraldas, os cristais e outras pedras preciosas. Quando aqui chegaram, os bandeirantes por
meio da força e agressão transformaram os indígenas em escravos e cativos de guerra, os
quais “procuravam escapar na primeira oportunidade que tivessem” (KARASCH, 1996 p.
242).
2 Este capítulo se configura como uma versão revisada de parte de nosso artigo publicado nos Anais do XIII
Encontro Regional de Geografia realizado em Anápolis-GO no ano de 2014.
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Quando se fala em bandeirantismo, paulatinamente, lembramos da mão-de-obra
escrava, oriunda do continente africano e utilizada em massa nas minas de ouro. Assim, pode-
se afirmar que a chegada do bandeirante tem relação direta com a evolução econômica do
país. Com o início da exploração das minas de ouro em Goiás, durante o período colonial, a
população passa a ser constituída por africanos e seus descendentes, que marcam a região dos
arraiais do ouro, através da formação de quilombos. Para Karasch (1996, p. 242) “[...] os
“maus-tratos e a brutalidade nas minas ou nos engenhos com freqüência levavam os africanos
à revolta e, se bem sucedidos, a formar quilombos nas montanhas vizinhas”.
Entende-se que é a partir da formação de agrupamentos quilombolas, o momento em
que há uma assimilação ou reconhecimento forçoso do território que passavam a habitar.
Associa-se à ideia de reconhecimento forçoso de um local, a opinião de que como estavam
constantemente sendo procurados pelos senhores das minas, escolhiam regiões por eles
consideradas de difícil acesso. Dessa forma, “embora muitas regiões do Brasil oferecessem
refúgios ideais para os quilombolas, a Capitania de Goiás deve ser considerada entre as
melhores para esse fim pela inacessibilidade de seus esconderijos naturais” (KARASCH,
1996, p.68).
O Estado de Goiás possui o seu histórico preenchido de situações que culminaram na
formação de quilombos em suas terras. De acordo com a historiografia goiana, com a
descoberta das minas, milhares de escravos foram trazidos à Goiás para trabalharem na
extração de ouro, pois “ao se divulgar a riqueza das minas recém-descobertas, acorria, sem
cessar, gente de todas as partes do país. Pelos registros da capitação, sabemos que, dez anos
depois, em 1736, já havia nas minas de Goiás 10.263 escravos negros” (PALACÍN &
MORAES, 2001, p. 12). Outra quantidade de escravos chegava à Goiás numa situação de
fuga: vieram escravos fugidos de diversas áreas de lavouras de cana-de-açúcar e de extensões
de mineração até mesmo dos territórios de outros estados brasileiros.
É importante considerar a trajetória apontada por Gusmão (1992), quando se trata da
realidade dos “povoados negros”, revela-se “uma trajetória resultante das condições de
inserção no sistema produtivo como escravo, depois como trabalhador na roça familiar e, mais
recentemente, num padrão associado a este, trabalhador assalariado para o capital”
(GUSMÃO, 1992, p. 27). O negro rural é então, o “pequeno produtor de bens de subsistência
ao mesmo tempo em que é também força de trabalho à disposição do capital” (IDEM,
IBIDEM, p.117).
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Com a decadência da mineração, a atividade agropecuária possibilitou, provavelmente,
a continuidade e/ou formação de agrupamentos negros rurais em todo o Estado: Cedro em
Mineiros (BAIOCCHI, 1983); (SILVA, 2003); Kalunga em Cavalcante, Monte Alegre de
Goiás e Teresina de Goiás; Moinho em Alto Paraíso (BAIOCCHI, 1991; 1999); (PAULA,
2005); (MARINHO, 2008), Mesquita dos Crioulos em Luziânia, dentre outros, cada qual com
as suas trajetórias sócio-espaciais.
Considerações Finais
A escravidão no Brasil foi caracterizada, principalmente, pelo intenso trabalho braçal e
pelas violentas formas de “correção” a que os africanos escravizados eram submetidos. Tudo
isso culminou nas mais diferentes formas de resistência da escravaria, especialmente, a fuga e
a posterior formação de quilombos.
Os senhores e “donos” de escravos produziam e mantinha suas riquezas por
intermédio da força escrava, o que lhes garantiam a intensa produção nos engenhos,
posteriormente, na mineração e, depois, nas lavouras de café. Os exemplos utilizados nesse
artigo nos ilustraram isso, haja vista que conforme nos deixa claro Clóvis Moura (1987;
2009), a força escrava foi decisiva na produção e manutenção da riqueza de grandes
fazendeiros.
Digno de nota é a questão do estudo relacionado aos quilombos brasileiros. Pensar em
quilombos não significa pensar em algo isolado no passado (Moura, 1987), ou, ainda, em uma
mera delimitação territorial em que os negros escravizados se refugiavam. Pensar em
quilombos, conforme os pensamentos de Beatriz Nascimento (1982; 1985) é considerá-los
além de um espaço delimitado, além de uma simples forma de reconstituição da cultura
africana, ou seja, deve-se levar em conta de que eles, os quilombos, representavam a
resistência do negro escravo frente a uma sociedade injusta, opressora e desigual.
Representavam, acima de tudo, a forma consolidada de união, de valorização de uma minoria
racial desprovida, fora do quilombo, de liberdade de expressão, de sentimentos e de vida.
Os estudos sobre os quilombos no Brasil não podem ser restritos ao passado, mas
devem considerar o presente, até porque, mesmo após a Abolição da Escravatura, os negros
não deixaram de ser maltratados, discriminados e apartados do convívio social. O fato é que
os quilombos não desapareceram, os guetos negros permanecem e a discriminação racial no
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Brasil nunca deixou de existir. As representatividades negras, o movimento negro e as
militâncias de intelectuais têm lutado e defendido os direitos dessas minorias com vistas a
uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais tolerante.
Referências
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Planejamento e Coordenação, 1979.
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