Leitura do Poema MEIO FIO

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1 TECENDO O FIO DA LEITURA Fátima BARROS / UFPE Resumo Leitura crítica do poema “Meio Fio”, tecida a partir da análise do tema e de aspectos visuais, fônicos, morfológicos, sintáticos e semânticos. Procura-se revelar a intrínseca correlação entre esses elementos constituintes do tecido poético, da qual emerge um efeito de sentido plural. Palavras-chave: leitura crítica, poesia contemporânea. MEIO FIO Chacal tem um fio de queijo entre eu e o misto quente recém mordido tem um fio de goma entre o chiclete e eu recém mascado tem um fio de vida entre eu e teu corpo recém amado tem um fio de carne entre teu corpo e teu filho recém nascido tem um fio de saudade entre eu e você recém passado tem um fio de sangue entre a razão e eu recém partido tem um fio de luz entre eu e mim recém chegado

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TECENDO O FIO DA LEITURA

Fátima BARROS / UFPE

Resumo

Leitura crítica do poema “Meio Fio”, tecida a partir da análise

do tema e de aspectos visuais, fônicos, morfológicos, sintáticos

e semânticos. Procura-se revelar a intrínseca correlação entre

esses elementos constituintes do tecido poético, da qual emerge

um efeito de sentido plural. Palavras-chave: leitura crítica,

poesia contemporânea.

MEIO FIO

Chacal

tem um fio de queijo

entre eu e o misto quente

recém mordido

tem um fio de goma

entre o chiclete e eu

recém mascado

tem um fio de vida

entre eu e teu corpo

recém amado

tem um fio de carne

entre teu corpo e teu filho

recém nascido

tem um fio de saudade

entre eu e você

recém passado

tem um fio de sangue

entre a razão e eu

recém partido

tem um fio de luz

entre eu e mim

recém chegado

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O fio da modernidade

Uma primeira leitura do poema nos revela de imediato

que estamos diante de um texto de vanguarda em face da

disposição gráfica das estrofes e da escolha de palavras. Não

encontramos no poema uma variação ornamental da prosa como

na poesia clássica. O texto contrapõe-se à fluidez da linguagem,

construindo-se em torno de blocos de significado que lembram

quadros isolados, meramente justapostos. A ausência de

pontuação e o emprego de letras minúsculas no início das

estrofes são elementos nítidos da modernidade. A sintaxe

relacional e discursiva dá lugar ao valor unitário da palavra que

explode como unidade de significado, capaz de traduzir a

singularidade da experiência. O próprio título, MEIO FIO,

parece-nos de todo improvável em um poema lírico que

obedecesse aos cânones da tradição literária. A concretude do

termo desafia o valor abstrato da palavra na poesia clássica, que

se ordena em superfície, segundo normas de economia e

elegância. Cada semema tem um peso específico na construção

do significado do texto, não a partir de relações abstratas, mas

de uma leitura motivada dos elementos da realidade. Estamos

diante de uma nova ordem da qual o poema emerge como um

mosaico de cenas quotidianas. Sua poeticidade reside em

buscar, no absurdo da banalidade, a essência do homem

dilacerado.

O fio da imagem

A feição plástica do poema lembra um tabuleiro de jogo

infantil com suas várias casas, cada uma das quais encerra um

destino específico para o jogador: avançar, recuar, esperar.

As estrofes em número de sete parecem corroborar o aspecto

lúdico do poema, que se desdobra em torno de um número de

sorte ou azar.

Se lembrarmos a solidez que João Cabral atribui ao

número quatro, percebemos nas estrofes compostas por três

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versos justamente o oposto - a idéia de instabilidade. Embora o

título do poema nos sugira o conceito de metade, MEIO FIO, o

número de estrofes e o número total de versos, vinte e um, não

são divisíveis por dois. Tal fato aparentemente casual é mais

um índice das incertezas que minam o texto poético. O meio, o

equilíbrio, que segundo a estética clássica, é sinal de harmonia,

confirma-se, de início, como uma impossibilidade.

A importância do título para a compreensão do texto é

ressaltada pelo uso de letras maiúsculas, as únicas do poema;

sua função de epíteto nomeia, de antemão, uma linha

interpretativa para o poema. MEIO FIO é inevitavelmente o fio

condutor para tecermos significados em torno do texto - entre o

meio e fio, o leitor em busca do código de leitura, capaz de dar

conta das transgressões do poético. MEIO FIO nos lembra uma

linha divisória entre dois planos: um fio tênue entre o ser e o não

ser, o eu e o outro, a vida e a morte, a dor e a alegria. O fio do

perigo, o risco: o sonho por um fio, entre o possível e o

improvável, o homem por um fio entre a lucidez e a loucura.

Um fio é também um resto, um resquício: um fio de esperança,

um fio de desejo. O adjetivo meio intensifica a noção de

proximidade entre duas instâncias opostas: menos do que um

fio, apenas meio fio separa dois elementos do real.

O título aponta ainda para uma encruzilhada de

significados que emergem do vocábulo homófono, meio-fio.

O sentido de limite, divisão surge em “arremate entre o plano do

passeio e o da pista de rolamento”, “chanfradura no batente da

porta ou em caixilhos”. Em todos esses significados, parece

implícita a idéia de que mesmo sendo um fio-de-pedra, o meio-

fio é uma estreita faixa entre dois planos contíguos que correm

paralelos, mas estão inevitavelmente separados.

Paradoxalmente, meio-fio, como termo náutico, carrega também

o valor de suporte e proteção, é um “anteparo que vai da popa à

proa, no porão, e serve para equilibrar a carga”. Além de linha

limítrofe, o meio-fio atua como uma barreira, impedindo a

coexistência de forças antagônicas em um mesmo espaço.

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O meio-fio subsiste na invisível linha reta que divide o

poema em duas partes: quatro estrofes à esquerda, três estrofes à

direita. A sensação de desarmonia se revela seqüência de

estrofes distribuídas irregularmente em duas colunas. O poema

traduz a impossibilidade do equilíbrio pleno, revelando, no

plano visual, a divisão ontológica do sujeito a quem resta, na

operação inexata do existir, um fio de luz entre eu e mim recém

chegado.

O fio sonoro

O poema é composto por estrofes heterométricas. Seis

das sete estrofes iniciam-se por versos pentassílabos: tem / um /

fio / de / quei / jo, tem / um / fio / de / go / ma, tem / um / fio / de

/ vi / da; tem / um / fio / de / car / ne, tem / um / fio / de / san /

gue, tem / um / fio / de luz. Apenas a quinta estrofe inicia-se por

um verso hexassílabo: tem / um / fio / de / sau / da / de. Essa

quebra na versificação intensifica o sentimento de perda que

acomete o eu-lírico: a saudade parece ser a mais duradoura das

emoções.

O segundo verso de cada estrofe tem entre quatro e sete

sílabas. É interessante ainda observar que o menor número de

sílabas encontra-se no segundo verso da última estrofe, em que o

poeta volta-se para o encontro consigo próprio: “entre eu e

mim”. Diante do abismo entre o eu-lírico e o mundo, fonte de

inúmeros conflitos, a busca de si mesmo encerra um breve

percurso, a menor distância transponível. Dois versos

pentassílabos, entre eu e teu corpo e entre eu e você, em meio a

versos mais longos, de seis e sete sílabas, ressaltam o encontro

amoroso como um espaço real de aproximação. Em

contrapartida, o hiato que se instaura entre o indivíduo e a

realidade reflete-se nos versos com um maior número de sílabas.

Mesmo a relação mãe e filho encerra, após o nascimento, um

espaço de separação inevitável: sete sílabas se interpõem entre

um fio de carne e recém nascido.

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O último verso de cada estrofe possui invariavelmente

quatro sílabas, atribuindo assim o mesmo peso aos vários

atributos do existir: re / cém / mor / di / do, re / cém / mas / ca /

do, re / cém / a / ma / do, re / cém / nas / ci / do, re / cém / pas /

sa / do, re / cém / par / ti / do, re / cém / che / ga / do.

A ocorrência de versos com menor número de sílabas na posição

final da estrofe cria uma anticadência, mas a simetria é

restaurada pela repetição do mesmo esquema em todas as

estrofes.

Excetuando-se o primeiro verso da quinta estrofe, que

apresenta um andamento ternário, os versos iniciais e finais das

estrofes caracterizam-se pelo andamento binário, com tônicas na

primeira, terceira e quinta sílabas. Dessa forma, ao longo das

estrofes, cada verso inicial e final ecoa o mesmo compasso,

embora as tônicas estejam distribuídas diferentemente.

Enquanto, no primeiro verso, a sílaba tônica antecede a átona;

no terceiro verso, ocorre o oposto – a átona precede a tônica.

O andamento ternário na quinta estrofe parece traduzir quão

longo é o fio de saudade que une o eu-lírico à amada. Enquanto

em todo o resto do poema prevalece o compasso binário, a

saudade prolonga a duração temporal do verso, deslocando a

sílaba tônica da quinta para a sexta sílaba.

O efeito da repetição rítmica sugere que em momentos

diversos, de separação, dor e reencontro, o homem experimenta

a vida praticamente com a mesma intensidade. Já o segundo

verso de cada estrofe apresenta uma irregularidade rítmica que

denota as inúmeras circunstâncias enfrentadas pelo “eu”.

A variedade de situações é retratada nas cadências binária e

ternária desses versos em que tônicas e átonas alternam-se sem

um padrão definido.

A maioria dos versos são femininos, isto é, terminam em

sílaba átona: tem um fio de quei/jo / entre eu e o misto quen/te

/ recém mordi/do // tem um fio de go/ma / recém masca/do

/ tem um fio de vi/da / entre eu e teu cor/po / recém ama/do

// tem um fio de car/ne / entre teu corpo e teu fi/lho / recém

nasci/do // tem um fio de sauda/de / recém passa/do // tem um

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fio de san/gue / recém parti/do // recém chega/do. Apenas

cinco versos são masculinos, ou seja, possuem a última sílaba

tônica: entre o chiclete e eu // entre eu e vo/cê // entre a razão

e eu // tem um fio de luz / entre eu e mim. Curiosamente, são

versos de grande densidade semântica, capazes de sintetizar o

percurso do eu em busca de autoconhecimento.

O poema em versos brancos, apresenta em todas as

estrofes a aliteração das nasais m e n, que dão origem a um tom

melancólico e sombrio: tem um fio de queijo / entre eu e o

misto quente / recém mordido”// tem um fio de goma / entre

o chiclete e eu / recém mascado”, etc.

Apesar da ausência de rimas entre os versos de uma

mesma estrofe, os versos finais das várias estrofes apresentam as

terminações ido e ado: mordido (A), mascado (B), amado (B),

nascido (A), passado (B), partido (A), chegado (B). Não é

observada, contudo, uma ordem de distribuição das rimas entre

as estrofes. Rimas entrelaçadas (ABBA) antecedem rimas

cruzadas (BAB). Essas irregularidades sinalizam as incertezas

do “eu” em face da realidade, refletem a inconstância de um

mundo em que nada é durável ou permanente. Não é possível

controlar as rimas ou o curso do destino.

Ao longo do poema, há um predomínio da vogal e

nasalizada sobre os demais sons vocálicos, devido a repetição

das palavras tem, entre e recém em todas as estrofes e da

ocorrência do vocábulo quente na primeira estrofe.

Observa-se no poema uma única aliteração na primeira

estrofe, embora em versos distintos, devido à repetição do

mesmo som inicial nas palavras queijo e quente. Ocorre ainda

uma rima interna na terceira estrofe entre os pronomes eu e teu,

e a repetição desse mesmo possessivo no segundo verso da

quarta estrofe: entre teu corpo e teu filho.

A ausência de rimas finais e de estrofes isométricas faz

com que a distribuição de sílabas tônicas e átonas, a incidência

de versos com o mesmo padrão métrico e a repetição de

expressões sejam determinantes para o ritmo do poema.

As irregularidades métricas ao longo do poema revelam que a

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afetividade está sujeita às vicissitudes da existência: nada se

repete, tudo é fugaz. Não há padrões rígidos de versificação

porque a vida não cabe mais em fórmulas previsíveis.

O poema, fio com que se tece a experiência do mundo, denuncia

a instabilidade do homem em face do quotidiano, revoga a

certeza das formas fixas, das rimas exatas. A poesia é um tecido

de inconstâncias.

O fio da palavra

O poema é construído em torno de substantivos (meio

fio, fio, queijo, misto quente, goma, chiclete, vida, corpo, carne,

filho, saudade, sangue, razão e luz) e de adjetivos (recém

mordido, recém mascado, recém amado, recém nascido, recém

passado, recém partido e recém chegado).

Dentre os substantivos, onze são concretos e apenas três são

abstratos (vida, saudade, razão), motivo pelo qual o poema

impõe ao leitor um forte jogo de imagens. Palavras como queijo,

misto quente, goma e chiclete retratam o ambiente da juventude;

corpo, carne e filho aludem à descoberta da sexualidade; sangue

e luz traduzem o sofrimento e a descoberta do eu.

O substantivo corpo, mencionado em duas estrofes consecutivas

(entre eu e teu corpo // entre teu corpo e teu filho) sugere

conceitos distintos: intimidade e maternidade, respectivamente.

Nos substantivos e adjetivos compostos, percebe-se a

omissão do hífen determinando uma grafia marginal que escapa

à norma da língua. O Dicionário Escolar da Língua Portuguesa

registra meio-fio e misto-quente, além de prescrever que o

prefixo recém deve ligar-se ao particípio com hífen1, logo

cabem as grafias: recém-mordido, recém-mascado, recém-

amado, recém-nascido, recém-passado, recém-partido e recém-

chegado. É interessante observar que o prefixo refém é formador

de seis adjetivos e de um único substantivo, recém-passado. Se

1 Recém é de uso generalizado só como prefixo, unido a um particípio:

recém-chegado, recém-nascido, recém-vindo.

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fosse adjetivo, o termo deveria concordar em número com os

pronomes eu e você: tem um fio de saudade / entre eu e você /

recém passados. Trata-se, portanto, de um aposto, apesar da

omissão da pontuação – entre eu e você: recém passado.

O pronome pessoal eu tem um alto índice de ocorrência,

sendo omitido apenas na quarta estrofe, cuja temática é a relação

mãe e filho, da qual o eu-lírico se exclui. Os demais dêiticos teu,

você e mim deixam claro o dialogismo central da composição, o

qual se estende por três estrofes em posição mediana, limitadas

por dois monólogos, um inicial e outro final, formados pelas

duas primeiras e pelas duas últimas estrofes. O caráter

vanguardista da composição justifica o emprego do pronome de

tratamento você ao lado do possessivo teu, e do pronome pessoal

eu após a preposição entre. A Nova Gramática do Português

Contemporâneo (Cunha & Sintra; 1985:291-2) prescreve o uso

das formas oblíquas tônicas depois dessa preposição, logo

construções como entre o chiclete e eu // entre eu e teu corpo //

entre eu e você // entre a razão e eu // entre eu e mim são

licenças poéticas que refletem a linguagem coloquial.

Apenas o verbo ter repete-se ao longo do poema com

sentido impessoal de haver na expressão tem um fio de.

A escassez de verbos de ação é compensada por adjetivos

formados com prefixo recém e um particípio, alguns dos quais

são neologismos (recém mordido, recém mascado, recém

amado, recém passado e recém partido) que sugerem as ações

morder, mascar, amar, passar, partir. O eu-lírico parece

insinuar que a vida lhe foge ao controle, pois o ato é percebido

como passado, após haver sido concluído. O gesto escapa de

suas mãos, e somente é sentido como uma ação irrevogável,

fugidia, que se instaura no presente como recordação. Esse hiato

entre o sujeito e a ação marca a impotência do eu diante de todas

as situações, sejam elas banais como o misto quente / recém

mordido ou significativas como eu e você / recém passado. O

poema traduz o momento fugaz, recém-vivido, sobre o qual se

debruça o poeta em busca de respostas, pois entre o ontem e o

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hoje resta apenas um fio de recordação, que segundo Emil

Staiger, é a essência do lírico (Staiger; 1975:55).

O fio da sintaxe

A repetição de estruturas sintáticas ao longo do poema

dissimula as disparidades da mensagem, em que coexistem

opostos como misto quente, chiclete, teu corpo e teu filho.

Ao mesmo tempo, a repetição opõe-se ao caráter prosaico da

linguagem que resiste ao verso e tenta desdobrar-se em frase.

É a reiteração de expressões que faz do texto poesia, apesar do

tom coloquial das palavras. A repetição lírica, contudo, não

gera novos significados. Trata-se da mesma disposição anímica

que retorna e faz eclodir um sentimento de perplexidade diante

da vida. Tem um fio de queijo, tem um fio de goma, tem um fio

de vida, tem um fio volátil de tempo entre presente e passado.

Nesse universo efêmero, o poeta se volta ao instante passado à

procura de sua identidade no emaranhado de gestos entre o ser e

o mundo.

O fato de cada estrofe ser formada por uma oração sem

sujeito sugere que o poeta coloca-se à margem do processo de

escolhas em sua própria vida, renunciando à posição de agente

da ação. Os complementos verbais são formados pelo

substantivo fio e uma locução adjetiva que funciona como

adjunto adnominal. Já o adjunto adverbial de lugar inicia-se pela

preposição entre e apresenta dois termos ligados pela conjunção

e, seguidos, na quinta estrofe, por um aposto. Nas demais

orações, o último termo parece oscilar entre predicativo e

adjunto adnominal. Na segunda estrofe, por exemplo, julgamos

estar diante do predicativo recém mascado que se refere ao

pronome eu. Já na quarta estrofe, recém nascido parece

funcionar como adjunto adnominal do termo antecedente, filho.

Na primeira e na segunda estrofes, tem um fio de queijo /

entre eu e o misto quente / recém mordido // tem um fio de

goma / entre o chiclete e eu / recém mascado temos uma

hipotipose, descrição nítida e precisa de uma ação que se traduz

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em imagem plena e inconfundível. Já as demais estrofes soam

como epifonemas, elaborados em torno de reflexões curtas e

generalizadoras como tem um fio de sangue / entre a razão e eu

/ recém partido. Em tais construções, contudo, predomina a

abstração, e a metáfora se sobrepõe à denotação.

O fio semântico

O poema estabelece um jogo de significados em torno do

semema fio que se desenrola da primeira à última estrofe. .

Passamos da concretude instaurada em fio de queijo e fio de

goma à linguagem conotativa em fio de vida, fio de carne, fio de

saudade, fio de sangue e fio de luz. Fio de vida sugere uma

frágil relação amorosa e ao mesmo tempo uma breve esperança

de reencontro. Fio de carne nos remete à ligação entre mãe e

filho, mas paradoxalmente também à separação dos corpos com

o nascimento, deixando apenas um fio definitivo entre ambos –

a hereditariedade. Fio de saudade alude a uma tênue

recordação, em que se fundem o ontem e o hoje no percurso

inevitável da memória. Fio de sangue traduz a dor entre a razão

e o sentimento, o conflito entre o desejo de ficar e a decisão de

partir. Fio de luz representa uma esperança sutil, um passo em

direção ao reencontro interior.

A palavra fio assume um valor metafórico nas expressões

um fio de vida, um fio de carne, um fio de saudade, um fio de

sangue e um fio de luz, em que se encontra uma correspondência

nítida com a expressão um pouco de. Os substantivos carne,

sangue e luz igualmente encerram com o termo fio metáforas

por adjunto adnominal, referentes à maternidade, ao sofrimento

e à esperança. O poeta resgata a palavra de seus múltiplos

contextos e significados para, então, transformá-la em poesia.

Na segunda estrofe, ocorre um jogo sinestésico quanto ao

emprego do adjetivo recém mascado que, em co-ocorrência com

a palavra chiclete, refere-se, entretanto, ao pronome eu.

O adjetivo adquire, assim, por analogia, um novo sentido –

recém-magoado, criado a partir da metáfora. Livre das amarras

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da linguagem denotativa, o poema volta-se para sua própria

tessitura e refaz os percursos da palavra enquanto teia de idéias e

processos combinatórios.

Na última estrofe, surge um oxímoro, construído em

torno da oposição entre eu e mim, que à primeira vista parece

uma impertinência, mas traduz o conflito interior e a busca da

essência do ser. O eu-lírico descobre no presente a

impossibilidade de ser o que ontem fora possível: eu e mim são

duas faces de um vazio irrecuperável.

Entre a insensatez do gesto cotidiano de comer um

misto-quente e a dolorosa percepção de si mesmo, a estranheza

do ser no mundo, diante de ações impensadas e momentos de

intensa lucidez. Em um extremo do fio, o desencontro, a vida

sem sentido; no outro extremo, o rumo, a revelação.

Referências

BUENO, Francisco da Silveira. (1980). Dicionário Escolar da

Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Fename.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. (1985). Nova Gramática

do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985.

STAIGER, Emil. (1975). Conceitos Fundamentais da Poética.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.