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LEITURAS E LEITORES DA COLEÇÃO BIBLIOTECA DAS MOÇAS. PONTOS PARA UMA PESQUISA A PARTIR DAS MARCAS DE LEITURA FEITAS POR NORMALISTAS i Cássia Aparecida Sales M Kirchner ii Faculdade de Educação – Unicamp – Grupo Civilis [email protected] Palavras-chave: leitura; leitores; Coleção Biblioteca das Moças. INTRODUÇÃO O presente artigo tem por finalidade levantar pontos acerca do desenvolvimento de uma pesquisa historiográfica voltada para a história da leitura. Para o desenvolvimento desta proposta, foi tomado como ponto de partida a análise das marcas de leitura e registro de empréstimo encontrados nos livros da Coleção Biblioteca das Moças disponíveis na biblioteca da antiga Escola Normal de Campinas, atual Escola Estadual Carlos Gomes. A escolha pela análise desta coleção deve-se ao sucesso conquistado junto ao público feminino durante as décadas de vinte a sessenta do século XX. O mercado editorial brasileiro inicialmente foi marcado pela importação de livros estrangeiros, em grande parte, franceses e portugueses. A partir dos anos vinte é possível verificar iniciativas voltadas para a expansão do mercado editorial no Brasil e são utilizadas estratégias para a formação de uma cultura da leitura no intuito de contribuir para a constituição de uma cultura brasileira. Essa expansão editorial tinha além do aumento de interesse pelo livro a busca de públicos específicos, entre eles as mulheres. A possibilidade para essa modificação foi vislumbrada através de um inquérito promovido pelo jornal O Estado de São Paulo no intuito de caracterizar o movimento editorial na cidade. O resultado

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LEITURAS E LEITORES DA COLEÇÃO BIBLIOTECA DAS MOÇAS. PONTOS

PARA UMA PESQUISA A PARTIR DAS MARCAS DE LEITURA FEITAS POR

NORMALISTASi

Cássia Aparecida Sales M Kirchnerii

Faculdade de Educação – Unicamp – Grupo Civilis

[email protected]

Palavras-chave: leitura; leitores; Coleção Biblioteca das Moças.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade levantar pontos acerca do desenvolvimento de

uma pesquisa historiográfica voltada para a história da leitura. Para o desenvolvimento desta

proposta, foi tomado como ponto de partida a análise das marcas de leitura e registro de

empréstimo encontrados nos livros da Coleção Biblioteca das Moças disponíveis na biblioteca

da antiga Escola Normal de Campinas, atual Escola Estadual Carlos Gomes. A escolha pela

análise desta coleção deve-se ao sucesso conquistado junto ao público feminino durante as

décadas de vinte a sessenta do século XX.

O mercado editorial brasileiro inicialmente foi marcado pela importação de livros

estrangeiros, em grande parte, franceses e portugueses. A partir dos anos vinte é possível

verificar iniciativas voltadas para a expansão do mercado editorial no Brasil e são utilizadas

estratégias para a formação de uma cultura da leitura no intuito de contribuir para a

constituição de uma cultura brasileira. Essa expansão editorial tinha além do aumento de

interesse pelo livro a busca de públicos específicos, entre eles as mulheres. A possibilidade

para essa modificação foi vislumbrada através de um inquérito promovido pelo jornal O

Estado de São Paulo no intuito de caracterizar o movimento editorial na cidade. O resultado

apontou um deslocamento lento em direção à produção nacional a partir da década de vinte,

levando os editores publicarem algumas obras brasileiras (TOLEDO, 2001).

A mesma pesquisa aponta o crescimento do público feminino que inclusive passa a

escolher e comprar livros, contudo, demonstra interesse particular pela então chamada

literatura de água doce, grande parte constituída por traduções e não produções nacionais. A

escolha desses livros pode ser relacionada às estratégias editoriais que ofereciam publicações

voltadas para determinado público, nesse caso, as moças. Essa estratégia consistia em oferecer

o adequado, prescrito, apropriado e desse modo operava um ordenamento de leituras e leitores

possível de ser verificada através da publicação de coleções, entre elas a Biblioteca das

Moças.

O estudo do impresso como produto de estratégia pedagógica e editorial pode ser

tratado a partir das proposições historiográficas de Roger Chartier e Michel de Certeau, sendo

o conceito de estratégia (CERTEAU, 1982) compreendida como dispositivo de normatização

de práticas estabelecidas por determinados lugares de poder. Ao considerar o livro, como

suporte que busca estabelecer uma ordem, também deve ser desconsiderado que o mesmo

revela significações de acordo com a apropriação dos leitores, estabelecendo a necessidade de

trabalhar com duas perspectivas: de um lado, o estudo da maneira como os textos, e os

impressos que lhes servem de suporte, organizam a leitura que deles deve ser feita e, por outro

lado, a leitura prática, criadora, atividade produtora de sentidos singulares, significações de

modo nenhum redutíveis às intenções dos autores de textos ou fazedores de livros: ela é uma

“caça furtiva”, no dizer de Michel de Certeau (CHARTIER, 1988).

A partir do indicado por Chartier, propõe-se nessa pesquisa o estudo das possíveis

apropriações da Biblioteca das Moças pelas normalistas da Escola Normal de Campinas como

uma coleção que possibilita oportunidades de interação e possíveis representações dos valores

sociais veiculados na época.

O SUPORTE

A Coleção Biblioteca das Moças era composta por aproximadamente 176 volumes

publicada pela Companhia Editora Nacional compostas de obras traduzidas, principalmente

do francês e do inglês escritos por vários autores organizados entre 1920 e 1960, com uma

tentativa de retorno em 1980, no Brasil. Os romances ambientados geralmente em lugares

requintados possuíam enredos com estrutura bem definida. A trama contava com um herói

nobre e rico e a heroína plebeia e pobre, após os conflitos e desventuras vividos, finalizava

com o casamento feliz, remontando características presentes nos contos de fada. O acesso e

consumo dessa coleção geralmente são associados apenas às mulheres jovens da elite

brasileira, considerando que era um modo de importar o modelo aristocrático para a educação

feminina, e assim, constituir culturalmente uma imagem da mulher burguesa (CUNHA,

1999).

As décadas de 30 a 50 aparecem como o período áureo em que a Companhia Editora

Nacional chegou atingiu publicações na casa dos milhões, Maria Rita Toledo (2001) chama

atenção para esse período em que houve um investimento na publicação de coleções.

Considera que entre as estratégias editoriais, as coleções que na década de 20 ainda são

tímidas, nos anos 30 vão se intensificar e difundir. Ordenando leitores e leituras, através da

montagem das coleções, das mudanças dos formatos, ou da própria especialização da editora,

a expansão da indústria inventa o público e enquadra textos e leitores às suas prescrições

tomando para si o direito de saber o gosto e as necessidades do público. A autora ainda

destaca outros fatores que poderiam influenciar e determinar essa escolha, como o preço do

livro, a recomendação e aprovação por autoridades expressivas, a divulgação das editoras e

livrarias. E em meio as normalistas estaria diretamente vinculada às recomendações feitas nos

jornais e revistas católicas “como leitura sã” (TOLEDO, 2001). Após essas três décadas as

publicações passaram por uma queda vertiginosa na década de 60.

A pesquisa a partir das coleções, na perspectiva da História Cultural possibilita uma

reconstrução das práticas empreendidas pelos editores, assim como possibilita a busca do

perfil de leitor que se pretendia atingir por estas práticas, ou seja, leitores em potencial

alvejados pela prática editorial. A possibilidade em desenvolver a pesquisa a partir do próprio

livro possibilita recompor projetos específicos voltados para determinado público leitor a

partir de sua materialidade. Dentre as estratégias utilizadas na produção de uma coleção está a

oferta de um conjunto de títulos organizados em uma determinada ordem, composta por uma

proposta específica, que inclusive norteia a forma de leitura de quem o lê.

Maria Teresa Santos Cunha considera que os romances de amor eram amplamente

consumidos entre as mulheres da elite brasileira a partir de meados do século XIX. Em seu

livro Armadilhas da sedução – os romances de M. Delly (1995) utiliza o texto literário como

fonte dando destaque a representações de normas, condutas, valores passíveis de educar e

seduzir quem os lê. A restrição ao público leitor apontado por Cunha (1999) é posto em

dúvida por Hansen (2005) questionando o estabelecimento de uma correspondência simétrica

entre a situação social e o acesso à leitura. Reforça o questionamento destacando que as

classes sociológicas aplicadas para determinar os condicionamentos sociais do leitor – sexo,

faixa etária, origem familiar, profissão, letramento, hábitos etc. – não dão conta da forma

particular produzida no ato da leitura literária.

Transpondo os modos de produção e difusão destas coleções inicia o questionamento

sobre qual leitor está sendo construído por tal prática? Para buscar a resposta sobre qual leitor

manuseava a Coleção Biblioteca das Moças na Escola Normal Carlos Gomes a reposta

depende em parte dos vestígios encontrados nos próprios livros, na investigação das marcas

deixadas por esses leitores.

POSSÍVEIS LEITORES

As normalistas da Escola Normal de Campinas são descritas através de relatos como

aquelas que levavam alegria à cidade e pela combinação de azul e branco dos seus uniformes,

as normalistas de Campinas foram comparadas às andorinhas. O uniforme era uma

combinação de azul e branco: saia pregueada de casimira azul-marinho e blusa branca e de

mangas compridas, meias compridas e pretas, de algodão grosso, e sapatos pretos e

grosseiros. Usavam ainda um cinto de verniz preto e um laçarote de fita azul-marinho no

pescoço (PINHEIRO, 2007).

A normalista figura de bom exemplo e boa conduta também era a moça a espera do

casamento e nem sempre a formação na Escola Normal possuía o intuito de exercer o

magistério, e sim a preparação para um bom casamento. Uma vez formadas, poucas iam ser

professoras e as que seguiam a carreira do magistério o faziam por dificuldades financeiras ou

porque desejavam mesmo uma profissão que fosse reconhecida socialmente (PINHEIRO,

2007).

Considerando que a Biblioteca das Moças é apontada como inculcadora de normas e

condutas esperadas pela sociedade nas futuras professoras ou mães de família esperávamos

encontrar indícios nos livros que contribuíssem para a identificação de possíveis leitores da

coleção para tal foram desenvolvidas as seguintes etapas:

1) Levantamento dos exemplares presentes na Biblioteca da escola.

A partir da lista com os títulos dos 176 exemplares da coleção foram localizados 79

exemplares, sendo que apenas o volume 47, Sozinha de Henri Ardel tem dois exemplares. A

maioria dos livros apresenta um reforço na encadernação demonstrando que foi muito

manuseado.

Exemplares da Coleção Biblioteca das Moças da biblioteca da E.E. Carlos Gomes

2) Conferência se havia a coleção completa na biblioteca.

Após o levantamento dos exemplares disponíveis foi feita a comparação com as fichas

de organização da biblioteca. Estas fichas são organizadas por título, autor e no. de tombo.

Não foram encontrados fichas dos livros desta coleção impossibilitando a confirmação se

havia a coleção completa ou apenas os exemplares encontrados.

Arquivo de organização dos livros da biblioteca

3) Levantamento de indícios.

Através da lista completa dos exemplares foi feita uma tabela para o levantamento de dados

considerados relevantes para a pesquisa.

Vol Titulo - Autor Tradutor Título

Original

Ano de publicação e

Edição encontrada

Total

edições

Tombo Marcas e

empréstimos

Obs

4) Análise dos dados levantados.

Dos 79 exemplares 11 tinham inscrições provavelmente feitas por leitores. Destes 11,

6 apresentaram diferentes inscrições:

a) comentando o livro, como: muito bom/ O melhor livro que já li/+ ou -/Bakana;

b) anotações aleatórias;

c) Inscrições e assinaturas;

d) um cartão/convite com anotações:

Exemplares da Coleção Biblioteca das Moças da biblioteca da E.E. Carlos Gomes

Objetos guardados no interior dos livros

Apesar de a Coleção ter as primeiras publicações a partir da década de vinte os

exemplares encontrados na biblioteca são em sua maioria de publicações de 1954 a 1957

período já considerado de declínio da coleção.

Ano de publicação do exemplares encontrados

Ano 1940 1951 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960

N. exemp. 1 2 1 7 24 17 19 2 3 1

Através dos cartões de empréstimo foi feito o levantamento dos usuários que

emprestavam os livros da Biblioteca das moças.

Cartão de empréstimo dos livros com número do usuário, dadta de empréstimo e data de devolução

A partir do levantamento de empréstimos foi possível identificar que houve uma

grande demanda de empréstimos entre 1957 e 1961. No período entre 1962 e 1965 não há

registro não sendo possível afirmar os motivos que ocasionaram esta ocorrência. Em 1966 os

empréstimos são registrados novamente demonstrando uma queda significativa de procura.

Através do número do usuário foi possível identificar que poucos usuários eram

leitores assíduos da coleção, em muitos casos havia um empréstimo esporádico geralmente

1

202234

161

418

0 0 0 0

71 5331 35 51 33 35 36

6386

N. emprestimo/ano

N. emprestimo/ano

dos mesmos títulos. Não foi possível estabelecer uma relação direta dos livros mais

emprestados coma as anotações feitas pelos leitores indicando a qualidade do livro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trabalhar buscando identificar o leitor desta coleção e estabelecer relações com a

instituição onde ela se encontra conduz ao trabalho com as práticas específicas que se

configuraram de diferentes modos e para serem identificadas exigem pesquisas sistemáticas.

Os levantamentos aqui apresentados demonstram práticas que precisam ser reorganizadas e

combinadas ao longo do trabalho que por hora apenas se inicia. Contudo, já foi possível

identificar aspectos além dos dispositivos e estratégias editoriais, ou seja, alcançar os modos

como o impresso pode ser apropriado por seus leitores.

Portanto é possível estabelecer a hipótese de que o procedimento de pesquisa aqui

adotado levanta dados para a compreensão dos processos de apropriação de livros que

141

75

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26

35

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112 5 7 2 2 2 3 1 2 1 1

0

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140

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1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

Levantamento do n. de empréstimos/usuário

N. de usuários

sintetizam sistemas de pensamento instituídos pelas editoras e aceitos ou não por seus leitores

dentro de instituições voltadas para a formação.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e Educação: a paixão pelo possível. São Paulo: Ed. da

UNESP. 1998.

DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,

1982.

__________________. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel.

1988.

_______________. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v.5, n.

11, p.173-191, jan./abr.1991.

_______________. Do livro à leitura. In: Práticas da Leitura. Tradutor: Cristiane

Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade. 2001.

CUNHA, Maria Teresa Santos. Armadilhas da sedução – os romances de M. Delly. Belo

Horizonte: Autêntica Editora. 1999.

LANG, Cíntia da Silva (s.d.), Bastidores da Produção da Coleção Biblioteca das Moças,

São Paulo: PUC. ISBN In: Bastidores da Produção da Coleção Biblioteca das Moças.

PINHEIRO, Maria de Lourdes. Práticas e representações na Escola Normal de Campinas

no período 1920-1936 educação temática digital, v.8, n.2, p. 69-79, jun. 2007.

TOLEDO, Maria Rita de Almeida (s. d.) . Coleção atualidades pedagógicas: do projeto

político ao projeto editorial (1931-1981)., São Paulo: PUC-SP, Departamento de

Educação. Tese de doutorado.

i Artigo produzido a partir dos estudos desenvolvidos na pesquisa sobre os livros da Biblioteca da E.E. Carlos Gomes,

Campinas. Pesquisa que integra projeto mais amplo voltado para a organização do acervo histórico desenvolvido

desde o primeiro semestre de 2002 pela professora Maria Cristina Menezes coordenadora do Grupo Civilis da

Faculdade de Educação da Unicamp . ii Doutoranda do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp. Orientanda da professora Maria

Cristina Menezes.