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56 Lendas Brasileiras Rodrigo Cicchelli Velloso 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected] Resumo: Neste texto, trato da suíte para flauta e piano denominada Lendas Brasileiras, composta em 2015 em torno de figuras mitológicas oriundas do folclore brasileiro. O contexto em que as peças foram compostas, aspectos de sua poiesis e considerações a respeito de sua relação com o legado da música brasileira nacionalista e de sua posição na contemporaneidade são abordados. Palavras-chave: Folclore. Lendas. Música Brasileira. Brazilian legends Abstract: In this text, I discuss a suite for flute and piano entitled Lendas Brasileiras composed in 2015 around characters of Brazil’s folklore. The context in which the pieces were composed, aspects of their poiesis and considerations regarding their relation to the legacy of Brazil’s musical nationalism are tackled. Keywords: Folklore. Legends. Brazilian Music. Introdução Lendas Brasileiras é uma suíte para flauta e piano composta em 2015 em torno de figuras mitológicas oriundas do folclore brasileiro. Cinco peças perfazem o ciclo: I Curupira; II Boto; III Uirapuru; IV Iara; e V Saci. As peças podem, a critério dos intérpretes, ser antecedidas por curtos diálogos que retratam o encontro de uma criança com um adulto, onde é a criança quem ensina ao adulto quem são os personagens. A suíte foi estreada pelo Duo Barrenechea na Festsaal da Universität für Musik und Darstellende Kunst Wien em Viena (Áustria) em 24 de maio de 2016, com apresentação um mês depois no Auditorio Dai Hall do Centro Cultural Peruano Japonês em Lima (Peru) durante o Festival Internacional de Flautistas. Em ambas as ocasiões, os diálogos não foram encenados, executando-se apenas a parte instrumental. Há uma versão midi, antecedida pelos diálogos lidos por mim e por meus sobrinhos em gravação e edição caseiras, servindo de demonstração da composição, que pode ser encontrada em meu perfil no soundcloud: https://soundcloud.com/rodrigo-cicchelli/lendas-brasileiras-i-versao-de-demonstracao 1 Compositor, flautista e Professor Titular do Departamento de Composição da Escola de Música da UFRJ. Graduou-se em Composição Musical e em Flauta Transversa pelo Instituto Villa-Lobos da UNIRIO. Foi também aluno de César Guerra-Peixe e de Hans-Joachim Koellreutter. Pós-graduado na Europa nos anos 1990, realizou Doutorado na University of East Anglia na Inglaterra com bolsa da CAPES e Especialização no IRCAM de Paris como bolsista do governo francês. Sua produção composicional vem sendo premiada no Brasil e no exterior. Além de suas atividades acadêmicas e artísticas, Rodrigo Cicchelli produz e apresenta o programa radiofônico Eletroacústicas, que vai ao ar toda quarta-feira à meia-noite pela MEC FM (99.3 MHz).

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Lendas Brasileiras

Rodrigo Cicchelli Velloso1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

[email protected]

Resumo: Neste texto, trato da suíte para flauta e piano denominada Lendas Brasileiras, composta em 2015 em

torno de figuras mitológicas oriundas do folclore brasileiro. O contexto em que as peças foram compostas, aspectos

de sua poiesis e considerações a respeito de sua relação com o legado da música brasileira nacionalista e de sua

posição na contemporaneidade são abordados.

Palavras-chave: Folclore. Lendas. Música Brasileira.

Brazilian legends

Abstract: In this text, I discuss a suite for flute and piano entitled Lendas Brasileiras composed in 2015 around

characters of Brazil’s folklore. The context in which the pieces were composed, aspects of their poiesis and

considerations regarding their relation to the legacy of Brazil’s musical nationalism are tackled.

Keywords: Folklore. Legends. Brazilian Music.

Introdução

Lendas Brasileiras é uma suíte para flauta e piano composta em 2015 em torno de

figuras mitológicas oriundas do folclore brasileiro. Cinco peças perfazem o ciclo: I – Curupira;

II – Boto; III – Uirapuru; IV – Iara; e V – Saci. As peças podem, a critério dos intérpretes, ser

antecedidas por curtos diálogos que retratam o encontro de uma criança com um adulto, onde

é a criança quem ensina ao adulto quem são os personagens.

A suíte foi estreada pelo Duo Barrenechea na Festsaal da Universität für Musik und

Darstellende Kunst Wien em Viena (Áustria) em 24 de maio de 2016, com apresentação um

mês depois no Auditorio Dai Hall do Centro Cultural Peruano Japonês em Lima (Peru) durante

o Festival Internacional de Flautistas. Em ambas as ocasiões, os diálogos não foram encenados,

executando-se apenas a parte instrumental. Há uma versão midi, antecedida pelos diálogos lidos

por mim e por meus sobrinhos em gravação e edição caseiras, servindo de demonstração da

composição, que pode ser encontrada em meu perfil no soundcloud:

https://soundcloud.com/rodrigo-cicchelli/lendas-brasileiras-i-versao-de-demonstracao

1Compositor, flautista e Professor Titular do Departamento de Composição da Escola de Música da UFRJ.

Graduou-se em Composição Musical e em Flauta Transversa pelo Instituto Villa-Lobos da UNIRIO. Foi também

aluno de César Guerra-Peixe e de Hans-Joachim Koellreutter. Pós-graduado na Europa nos anos 1990, realizou

Doutorado na University of East Anglia na Inglaterra com bolsa da CAPES e Especialização no IRCAM de Paris

como bolsista do governo francês. Sua produção composicional vem sendo premiada no Brasil e no exterior. Além

de suas atividades acadêmicas e artísticas, Rodrigo Cicchelli produz e apresenta o programa radiofônico

Eletroacústicas, que vai ao ar toda quarta-feira à meia-noite pela MEC FM (99.3 MHz).

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Contexto

As Lendas Brasileiras foram compostas no momento em que passava por um

processo de reavaliação criativa, suscitado, entre outras razões, pelo processo de promoção a

que me submeti na instituição onde leciono, a Escola de Música da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, com o intuito de alcançar o cargo de Professor Titular.

Num certo sentido, foi também um esforço de “acerto de contas” com o legado da

música brasileira nacionalista. Ex-aluno de César Guerra-Peixe e admirador de Heitor Villa-

Lobos, vinha da composição de duas peças que revisitaram este universo, também compostas

em 2015. Na primeira, Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos (para quinteto de

sopros), coloquei em foco as lições aprendidas com o mestre petropolitano, “dialogando”, trinta

anos depois, com o Trio (1986), que compusera sob sua orientação. Na segunda, debrucei-me

sobre um ciclo coral de Villa-Lobos que cantara também três décadas antes no Coral Pró-Arte

sob a regência de Carlos Alberto Figueiredo, a Bendita Sabedoria, sobre o qual escrevi uma

série de Variações para quinteto de metais. Esta peça foi objeto de uma comunicação que

apresentei no I Simpósio Nacional Villa-Lobos, com título homônimo ao da composição:

Variações sobre a Bendita Sabedoria. (Ver: Velloso 2015). Naquele texto, discuto a relação

ambivalente de minha geração com o legado do nacionalismo musical e da grande admiração

que nutríamos por Villa-Lobos e pelos grandes mestres que o sucederam, sequiosos, porém, de

maior informação sobre o que ocorria na vanguarda internacional.

Em outro texto, o Memorial apresentado em julho de 2016 como requisito parcial

do processo de promoção a Professor Titular na Escola de Música da UFRJ, aprofundei esta

discussão, rememorando os anos de minha formação em Composição Musical na década de

1980, realizada no Instituto Villa-Lobos da UNIRIO, em aulas com César Guerra-Peixe na

Escola de Música Villa-Lobos e em aulas particulares com Hans-Joachim Koellreutter,

escrevendo sobre a relação ambivalente que mantinha com o legado da música nacionalista:

Quando disse acima que mantinha uma relação ambivalente com o legado da Música

Brasileira Nacionalista, isto se devia ao fato de perceber nela e em seus praticantes

uma rejeição pelas vanguardas daquele tempo, vanguardas que queria conhecer tanto

técnica quanto esteticamente, já que era sensível ao chamado de Reginaldo Carvalho.

O acesso à informação no Brasil dos anos 1980, porém, era dificultoso. As temporadas

de concertos eram muito conservadoras – viriam a sê-lo ainda mais uma década

depois! Os livros que tratavam de música contemporânea podiam ser adquiridos

apenas a peso de ouro (“dólar-livro”!) na Livraria Leonardo da Vinci. Poucas

gravações desta música estavam disponíveis no mercado e precisavam ser garimpadas

dentre os usados de uma loja de discos na Rua São José. Partituras, então, quase nada

havia do século XX nas bibliotecas públicas. Na Oscar Arani encontrávamos o

repertório clássico/romântico tradicional, com raras extensões para o começo do

século XX, que adquiria sempre que algo estava disponível e cujo preço não fosse

proibitivo. Recebia uma formação sólida na Unirio, mas o curso tinha um viés

tradicional forte. Assim, desconfiava haver um grande descompasso entre o que se

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fazia na Europa e no Brasil. A permanente crise econômica dos anos 1980 gerava

também a sensação de atraso e de fracasso nacional. Havíamos sido bem-sucedidos

na restauração da democracia, mas o descalabro inflacionário tornava penoso o dia-a-

dia. Além disso, reconheço, dominava-me o típico complexo tupiniquim de

subdesenvolvimento, que só viria a vencer muitos anos depois. E minha inquietude,

afinal, inquietava-me. (Ver: Velloso 2016)

O texto do Memorial prossegue relatando como enveredei pelo universo das

técnicas de vanguarda e dos recursos eletroacústicos, em que viria a me especializar na Europa

dos anos 1990, tendo seguido um doutorado na Inglaterra na University of East Anglia como

bolsista da CAPES e uma especialização em Composição e Informática Musical no Cursus do

IRCAM em Paris, na época a Meca do modernismo musical, como bolsista do governo francês.

Neste sentido, as Lendas Brasileiras são um passo inusitado e surpreendente para um

compositor dedicado há mais de duas décadas a questões distantes do universo folclórico

brasileiro.

As Lendas Brasileiras representam também mais uma peça de minha produção recente que

retrata o ambiente infantil. O já mencionado quinteto de sopros Invenções, Interlúdios e

Ritornellos Imperfeitos é dedicado a meu sobrinho e afilhado Luke, que tinha então seis anos

de idade, e foi composto enquanto ele convalescia de uma infecção. Enquanto trabalhava,

mostrava-lhe os esboços e dar-me-ia por satisfeito se ele aprovasse o resultado. Foi o que

aconteceu. De certa forma, essa experiência significou uma tremenda libertação criativa. O

compositor preocupado em pertencer ao cânone modernista elegia agora uma criança de seis

anos como o juiz de seus esforços. Por sua vez, as Lendas são dedicadas a outra criança, minha

sobrinha Juliana, irmã de Luke. Fora ela quem havia me reapresentado aos temas folclóricos

brasileiros, já que estes agora figuram como matéria escolar do Ensino Fundamental. Li os

textos que ela lia na escola onde estuda (Escola Parque), acompanhando-a em seus deveres de

casa e “surfamos” juntos nos sites dedicados à mitologia brasileira, a que ela recorria para fazer

seus trabalhos. Dentre estes, menciono: https://www.todamateria.com.br/lendas-do-folclore/ e

http://www.suapesquisa.com/folclorebrasileiro/folclore.htm Ao começar a compor a suíte,

beneficiei-me destas leituras e recorri também a um clássico da literatura folclórica: o

Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo. (Ver: Câmara Cascudo 2012).

Sobre a suíte

Conforme destacado anteriormente, as Lendas Brasileiras são compostas por cinco

peças para flauta e piano, antecedidas, opcionalmente, pela representação de curtos diálogos,

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com indicações de movimentação e indumentária, em que uma criança (Juliana) apresenta os

personagens a um adulto (Tio Rodrigo).

Nesta seção, apresento brevemente cada uma das peças, transcrevendo os diálogos

e instruções cênicas, de realização opcional, aspectos pertinentes à poiesis das peças, e a

reprodução de suas páginas iniciais.

I – Curupira

Diálogo:

Tio Rodrigo (flautista) – Quem vem lá?!

Juju (pianista) – É o Curupira! Aquele menino de cabelos vermelhos que tem os pés para trás.

Tio Rodrigo – Ele é bom ou mau?

Juju – Depende de você! Montado num porco do mato, ele protege as florestas armado com a sua

lança! (Faz o gesto de espetar o flautista.)

Tio Rodrigo – Ui!

Como retratar um menino (ou anão) de cabelos vermelhos, que tem os pés

invertidos (virados para trás) e que, sentado num porco do mato, porta uma lança para proteger

as florestas? Assim é descrito o Curupira, personagem folclórico considerado por Câmara

Cascudo como “um dos mais espantosos e populares entes fantásticos das matas brasileiras.” O

Curupira foi alçado à controvertida honra de guardião das florestas e dos animais por uma lei

estadual durante o período da Ditadura Militar, pelo Governador de São Paulo Abreu Sodré,

em 1970. (Ver: Câmara Cascudo 2012, pp. 246-247) Deixando de lado as apropriações políticas

de um período sombrio da história brasileira, recorri à minha experiência de compositor

eletroacústico para caracterizar metaforicamente os pés para trás como um som revertido, que

simulo entre flauta e piano já no primeiro compasso. A partir do gesto inicial, teço uma

elaboração livre, mesclando passagens diatônicas e cromáticas, movidas e lentas, em pares de

opostos para sugerir as diferentes ações do menino.

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Exemplo 1. Página inicial do Curupira.

II – Boto

Diálogo:

Tio Rodrigo – E agora, quem vem lá?!

Juju – É o Boto! Ele sai do rio em noite de Lua Cheia para namorar as moças bonitas. Ele as leva

para o rio e aí elas ficam grávidas...

Tio Rodrigo – Boto safadinho!

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Botos são golfinhos do Amazonas. A crença popular atribui ao boto a paternidade

de todas as crianças que nascem de pai desconhecido. (Ver: Câmara Cascudo 2012, p. 126) Em

meu Boto, imagino uma dança de corte e acasalamento sugerindo a imagem de um sedutor

amazônico que, saindo da água em noite de lua cheia, engravida as moças bonitas que encontra

pelo caminho. Procurei aproximar a peça de estilos populares brasileiros, sem, no entanto, tentar

emular qualquer dança em particular, fugindo de uma estilização imitativa.

Exemplo 2. Página inicial do Boto.

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III – Uirapuru

Diálogo:

Tio Rodrigo – Que canto é esse?!

Juju – É do Uirapuru! Ele é um pássaro mágico e quase ninguém o vê, mas quem conseguir vê-lo

poderá realizar um desejo!

Tio Rodrigo – Cadê você, Uirapuru?

(O flautista vai procurar o pássaro atrás do piano e dali deve tocar esta peça, sem que o público possa

vê-lo.)

Pássaro mágico da Amazônia, o uirapuru foi tema de uma das obras mais

emblemáticas do nacionalismo musical brasileiro, o poema sinfônico homônimo de Villa-

Lobos datado de 1917, que ouvi repetidas para evitar qualquer alusão direta! Não há nas peças

de minha suíte nenhum tema folclórico sendo harmonizado ou adaptado. Quando há alguma

alusão direta a material pré-existente, como no caso deste meu Uirapuru, faço a transcrição e a

adaptação de um canto de pássaro real, captado na internet (Ver:

https://www.youtube.com/watch?v=1ptgWSpK_RU). Para realizar a transcrição / adaptação

não recorri a qualquer programa computacional de extração automática de alturas e durações,

elaborando a peça com recursos de permutação ditados por minha fantasia.

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Exemplo 3. Página inicial do Uirapuru.

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IV – Iara

Diálogo:

Tio Rodrigo – (Ainda detrás do piano.)* E agora, que canto é esse?!

Juju – Cuidado, é a Iara! Ela é uma linda sereia de cabelos negros, que com seu canto irresistível

atrai os homens para o fundo do rio.

Tio Rodrigo – E o que acontece com eles?

Juju – Eles morrem afogados, ué?!

Tio Rodrigo – (Saindo detrás do piano.) Ai meu Pai do Céu, isso daí devia ser chato de fazer...

* (Faculta-se ao flautista tocar esta peça com uma peruca de longos cabelos negros, caso ele já nos

os tenha naturalmente... Se optar pela peruca, deverá sair detrás do piano já caracterizado.)

Iara é o nome convencional e literário da mãe-d’água. (Ver: Câmara Cascudo 2012,

p. 344) Em minha Iara crio um canto de sereia que remete, é certo, ao impressionismo francês,

mas um impressionismo de sabor villalobiano, com sua melodia angulosa em marcha cromática

descendente. Quis descrever musicalmente o encontro da mãe d’água, sereia sedutora, com o

pobre diabo por ela seduzido, o embate entre ambos e o movimento de arrastar o iludido para o

fundo do rio, com seu consequente afogamento e morte, sem, no entanto, dotar a música de

aspectos gráficos grotescos ou assustadores, já que a peça procura refletir o universo infantil.

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Exemplo 4. Página inicial da Iara.

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V – Saci

Diálogo:

Tio Rodrigo – (Tira a peruca negra e joga um monte de papéis para o alto.) Mas que bagunça é

essa?!

Juju – Só pode ser o Saci que está passando por aqui, tirando tudo do lugar, pulando numa perna só,

com seu gorro vermelho e o seu cachimbo!

Tio Rodrigo – (Pensativo e irônico) O que será que tem no cachimbo do Saci...

(O flautista deve realizar a coreografia prescrita na partitura. É facultado a ele o uso de adereços,

tais como gorro vermelho e cachimbo. Recomenda-se, porém, não acendê-lo! Ao menos, enquanto

estiverem em cena!)

O Saci-Pererê é descrito por Câmara Cascudo como “entidade maléfica em muitas,

graciosa e zombeteira noutras oportunidades, comuns nos Estados do Sul”, que se diverte

criando “dificuldades domésticas.” (Ver: Câmara Cascudo 2012, p. 626) Para caracterizar meu

Saci, imagino um híbrido de valsa raveliana com inflexões melódicas alusivas ao choro carioca.

Conforme descrito acima, a partitura contém indicações coreográficas, sobretudo o “tocar sobre

uma perna só”, o que pode, porém, ser desgastante e arriscado para o flautista. Neste sentido,

trata-se de uma instrução que poderá ser ou não obedecida pelo intérprete. Definitivamente, o

caráter gracioso e zombeteiro do personagem prevalece sobre qualquer outra interpretação.

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Exemplo 5. Página inicial do Saci.

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Discussão

As Lendas Brasileiras representam um esforço de retomada da temática brasileira,

fazendo alusão a personagens folclóricos muito conhecidos, abordados despretensiosamente,

com um olhar “ingênuo” ou “infantil”. Neste sentido, as peças estão despidas de quaisquer

considerações sobre a eventual usurpação política ou ideológica que as personagens possam ter

sido objeto ao longo do século XX por governos antidemocráticos. Neste mesmo sentido,

tampouco levei em consideração o olhar “politicamente correto” contemporâneo que

porventura possa contaminar a percepção destas personagens. Por mais artificial que possa

parecer, trata-se de um esforço de lançar um olhar infantil sobre elas, em diálogo com crianças

de meu convívio cotidiano.

É relevante também observar que as peças foram compostas após minha

participação no encontro da Associação Brasileira de Flautistas, realizado em setembro de 2015

na Faculdade de Música do Espírito Santo em Vitória, em que pude aprender com o olhar e a

escuta da comunidade de flautistas brasileiros. Testemunhei o desprendimento (e desinteresse)

dos intérpretes em relação a dogmas composicionais tão caros aos compositores de vanguarda.

Não que, com isso, menosprezem a vanguarda, mas parecem não considerá-la um valor em si.

Neste sentido, realizo nas Lendas Brasileiras um esforço de aproximar-me daqueles que vivem

e transmitem a música sem preocupações com linguagens contemporâneas hegemônicas, com

este ou aquele credo estético em particular, do presente ou do passado. Em minha leitura desta

cena, são músicos que estão muito mais interessados na expressividade musical atemporal, do

que em dogmas estéticos.

Por estas razões, a suíte não procura emular ou impor nenhum estilo ou sistema

composicional em particular. Assim, nas peças são empregados livremente recursos

composicionais heterogêneos, tais como a reversão de um som, técnica tão cara ao ferramental

eletroacústico, mas como uma alusão metafórica às características da personagem de “pés

virados para trás”; alusões programáticas norteando a evolução harmônica de uma peça, como

no caso da “bemolização” progressiva do ostinato inicial da Iara, que metaforicamente

relaciono ao “puxar para baixo” de um sumidouro; a contraposição diatonicismo-cromatismo

como mecanismo de criação de contraste; danças e estilos populares ou eruditos (dança de corte,

choro, valsa); transcrição de canto de pássaro (uirapuru); música de compositores do passado

(Villa-Lobos, Ravel); e mesmo Teatro Musical, de caráter leve e jocoso. Este último aspecto

ficando mais evidente quando a execução das peças for precedida pela encenação dos diálogos

introdutórios opcionais.

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Esta abordagem eclética foi não só consciente como necessária ao desenvolvimento

das peças, que vejo assim inseridas em contexto de desprendimento pós-moderno.

Considerações Finais

Como destaca Herman Hesse no belíssimo prólogo do romance Demian em que

disserta sobre a singularidade e importância de cada um: “(...) cada homem não é apenas ele

mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os

fenômenos do mundo se cruzam uma só vez e nunca mais.” (ver: Hesse 2015, p. 10.)

Também os cruzamentos de uma cultura em um lugar específico são fenômenos

únicos e singularíssimos. Efetuado o esforço de renovação da linguagem, caberá à nossa

geração revalorizar estes fenômenos que nos são particulares. Neste sentido, a reaproximação

da temática brasileira tem me levado a compor obras que, refletindo sobre o legado da música

nacionalista, procuram revalorizar a singularidade de nossa experiência do mundo.

Referências

CÂMARA CASCUDO, Luís da. 2012. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global

Editora. 12ª Edição.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. 1987. Trio (1986). Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos. Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. Variações sobre a Bendita Sabedoria. Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. Lendas Brasileiras. Manuscrito.

Hesse, Herman. 2015. Demian. Rio de Janeiro: Record. 46ª edição

VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. 2015. Variações sobre a Bendita Sabedoria. In: AUGUSTO,

Antonio José et alii. Anais do I Simpósio Nacional Villa-Lobos: obra, tempo e reflexos.

http://www.festivalvillalobos.com.br/2015/wp-content/uploads/2015/09/09-

RODRIGOVELLOSO.pdf . Acesso em 05 de outubro de 2016.

VELLOSO, Rodrigo Cicchelli. 2016. Memorial. In:

https://ufrj.academia.edu/RodrigoVelloso https://www.academia.edu/28971688/Memorial .

Acesso em 05 de outubro de 2016.

VILLA-LOBOS, Heitor. 1948. Uirapuru. New York: Associated Music Publishers.

VILLA-LOBOS, Heitor. 1958. Bendita Sabedoria. Paris: Max Eschig.