LENDAS TRADICIONAIS TRANSMONTANAS

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Lenda da Nossa Sr.ª de Jerusalém do Romeu No Romeu, num local conhecido por Horta de N.ª Sr.ª, no Lugar de Vale de Couço, conta a lenda que “andava uma pastorinha no campo com o seu rebanho e, como esta padecia de uma enorme sede, foi beber a um charco de água através de umas palhinhas. Foi então que lhe apareceu a Senhora e em confirmação da sua sobrenaturalidade fez brotar uma fonte de água em grande quantidade. Nesse mesmo local a Senhora incumbiu a pastora de dizer ao povo que lhe construísse uma capela. O dinheiro para a obra foi dado pela pastora, que o tirava de um buraco, ou de uma lapa, que ficava afastada da Igreja cerca de 40 ou 50 passos entre umas grandes pedras, de onde a Senhora mandara que a mesma pastorinha o tirasse, porque neste lugar acharia o que fosse necessário para a edificação da sua casa.” Certo é que a nascente de água, que é puríssima, ainda hoje existe com igual quantidade de água, quer de Inverno, quer de Verão e o local onde está situada ainda hoje é conhecido por Horta da Senhora. Conta-se também que a imagem de Nossa Sr.ª de Jerusalém, de noite, fugiu para o local da aparição junto da fonte, até que, por último, tantas vezes a levaram de volta para a capela que lá se resignou a ficar. Igualmente em Santa Bárbara, Vale de Prados de Ledra, apareceu a Senhora, que o povo levou para as Múrias. Mas de noite fugia para as ruínas, até que, tantas vezes a levaram que, por último, lá ficou. Lenda de Abreiro No termo de Abreiro há um local com vestígios de civilização neolítica, a que chamam de Arcã. Na povoação está um elegante Cruzeiro com o brasão de armas de Diogo de Mendonça Corte Real, ministro de D. João V, que foi quem mandou fazer a ponte de 1

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Lenda da Nossa Sr.ª de Jerusalém do Romeu

No Romeu, num local conhecido por Horta de N.ª Sr.ª, no Lugar de Vale de Couço, conta a lenda que “andava uma pastorinha no campo com o seu rebanho e, como esta padecia de uma enorme sede, foi beber a um charco de água através de umas palhinhas. Foi então que lhe apareceu a Senhora e em confirmação da sua sobrenaturalidade fez brotar uma fonte de água em grande quantidade. Nesse mesmo local a Senhora incumbiu a pastora de dizer ao povo que lhe construísse uma capela. O dinheiro para a obra foi dado pela pastora, que o tirava de um buraco, ou de uma lapa, que ficava afastada da Igreja cerca de 40 ou 50 passos entre umas grandes pedras, de onde a Senhora mandara que a mesma pastorinha o tirasse, porque neste lugar acharia o que fosse necessário para a edificação da sua casa.”

Certo é que a nascente de água, que é puríssima, ainda hoje existe com igual quantidade de água, quer de Inverno, quer de Verão e o local onde está situada ainda hoje é conhecido por Horta da Senhora.

Conta-se também que a imagem de Nossa Sr.ª de Jerusalém, de noite, fugiu para o local da aparição junto da fonte, até que, por último, tantas vezes a levaram de volta para a capela que lá se resignou a ficar. Igualmente em Santa Bárbara, Vale de Prados de Ledra, apareceu a Senhora, que o povo levou para as Múrias. Mas de noite fugia para as ruínas, até que, tantas vezes a levaram que, por último, lá ficou.

Lenda de Abreiro

No termo de Abreiro há um local com vestígios de civilização neolítica, a que chamam de Arcã. Na povoação está um elegante Cruzeiro com o brasão de armas de Diogo de Mendonça Corte Real, ministro de D. João V, que foi quem mandou fazer a ponte de Abreiro sobre o Tua, formada por dois arcos, um de grandes proporções. Então diz a lenda local que a ponte, a arcã e o cruzeiro foram construídas de noite pelo diabo, que prometeu também fazer uma estrada da ponte à povoação a troco da alma que uma moça lhe entregaria para mais comodamente passar o rio, a fim de ir buscar água a uma fonte na margem esquerda. Conforme o acordo dizia, o diabo dava a ponte concluída numa só noite e antes de cantar o galo. Quanto mais intensamente trabalhava uma legião de demónios, carregando, aparelhando e assentando pedras, o galo canta.

Que galo é? perguntou o rei das trevas infernais.Galo branco responderam lhe.Ande o canto ordenou ele.Em breve novo cantar do galo se ouviu.Que galo é? perguntou de novo.

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Galo preto. Pico quedo vociferou ele.

Faltava apenas uma pedra para assentar nas guardas da ponte e assim ficou, pois que, por mais vezes que os homens a tenham colocado no lugar, aparece derrubada pelo diabo no rio na noite seguinte.

Lenda da Flor que nasceu na Lama

Havia dois irmãos, um rapaz e uma rapariga que viviam em Trás-os-Montes, mas que ninguém sabia donde tinham nascido. Ela era jovem e bonita. Ele mais velho mas com muita sabedoria que deixava as pessoas embaraçadas. O passatempo preferido deles era andar pelos campos falando das coisas do Céu e namorando as coisas da Terra. O Rei Mouro que governava aquelas paragens quis conhecê-los e foi ao encontro deles sem se aperceberem. Trocaram palavras, ficando ela a desconfiar desse Cavaleiro que lhe dirigia elogios, mas que não gostava que lhe falassem em Deus. Ele ficou a saber que os dois irmãos o tinham por tirano (ao Rei Mouro), porque `foi por ordem desse tirano que mataram nossos pais" diz o irmão. O cavaleiro deixou os mas não se afastara dali. E, em plena noite raptou a moça "que era tão bonita, tão fresca, que faz entoitecer o coração de qualquer homem", como dizia o cavaleiro. Este levou a até uma pequena comba convencido de que ali ficava em segurança. Só que, de repente, não consegue ver a linda jovem e amaldiçoa a feitiçaria, gritando alto. Quando o irmão acordou ficou aflito, e foi à procura da irmã. Pelos gritos deu com o cavaleiro no fundo da pequena comba. Lutaram os dois tendo o cristão descoberto que o cavaleiro era o próprio rei mouro. Este levava a melhor e, nesse momento, aparece a irmã. O irmão acabou de morrer ali mesmo.

O rei avançou para a jovem, enraivecido. Só que ela diz lhe "Nem mais um passo"... " Se derdes um passo mais... ficareis atolado nesse lodo que está em vossa frente ". Era lodo o que o rodeava. Mesmo assim consegue decapitar a moça cristã... Depois, para esconder o crime que cometera afogou nesse lodo o corpo decapitado da jovem e o cadáver do o irmão. Convencido de que ninguém descobriria o crime, desapareceu. Só que alguém assistira à cena, pois no dia seguinte, gente que foi ao lameiro para recolher os corpos, viu que no lodo nascera uma flor lindíssima, viçosa e pura... A notícia espalha se de terra em terra, e, como se tinha passado numa pequena comba perto de uma terra que se chamava Orelhão, naquele sítio passou a ser conhecido por Santa Comba das Lamas de Orelhão. O povo encarregou se de santificar a jovem que morreu sacrificada às mãos bárbaras e sanguinárias do rei mouro.

Lenda da Torre de D. Chama

Segundo a lenda, o topónimo Torre de D. Chama terá vindo "pela Torre que nela havia no Castelo e que por isso se chamou Torre. E acrescentara-se Dona Chama porque era a vila e a Torre de uma grande Senhora gentia, no tempo em que os mouros residiam nestas terras, chamada Dona Chamorra. Sendo inclinada ilicitamente aos cristãos mandava chamar aqueles de melhor perfeição e os metia na torre para satisfazer o seu apetite. Para que a não fossem descobrir não tornavam mais a sair por lhe fazer ir conhecer o mundo da verdade. Sucedendo ir um mais avisado diz se que satisfizera o seu apetite e adormecera se acostada a ele. Como a sentisse dormindo se retirou como pode levando lhe um anel que lhe tirara do dedo, coisa de grande valor, e bem conhecido dos criados (o dito anel). E o levara no dedo para sinal que a Dona Chamorra lhe dera para assim os enganar para que o deixassem passar as guardas, o que passou. Estando já livre, Dona Chamorra despertara, acudiu mandando o chamar para que voltasse ali que a "Dona Chama".

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Pensando que ele a descobrira matou se a si mesma". Daí se chamar a Torre de Dona Chamorra, passou a chamar se a Torre da Dona (que) Chama".

Lenda de Mirandela

O Rei de Orelhão, que tinha uma orelha de burro e outra de cão e era o senhor das terras da bacia que hoje tem o nome Orelhão e Lila, vivia no castelo de Orelhão. Apaixonara-se por uma princesa que vivia na Serra dos Passos e tentara seduzi-la. Mas a princesa não respondia favoravelmente aos propósitos do rei.

Um dia a princesa fugiu do castelo em direcção ao rio Tua. O Rei começou a buscá-la mas tinha medo de descer ao vale. Algures nos píncaros da Serra, triste e cansado, olhava o horizonte.

Um vassalo perguntou: que tendes Alteza?

- Estou à mira dela! – respondeu com voz triste.

Desta expressão nasceu a palavra Mirandela e diz o povo que quem Mirandela mirou nela ficou. Afirmam ainda que a Princesa do Tua ao fugir do Rei de Orelhão deixou a sua coroa na Serra dos Passos.

Lenda do Bálsamo na Mão

Na freguesia de Chapim, concelho de Macedo de Cavaleiros, existia outrora um rei mouro que exercia o seu domínio sobre aquela região. Este rei tinha muito mau feitio e aproveitava todas as oportunidades para humilhar os seus súbditos. Um dia, decidiu instituir um novo tributo, diferente de todos aqueles que tinha mandado executar antes: todos os homens que se casassem eram obrigados a entregar-lhe a noiva logo após a cerimónia do casamento. Este tributo tornou-se um hábito que gerou ódios e vergonha. Mas quem se atrevesse a contestar as ordens do rei seria severamente castigado. Um dia o cristão Joaquim resolveu casar-se com Marianinha, a moça mais bela de toda a região. Marianinha nem queria pensar em pagar o infame tributo, mas Joaquim disse-lhe que não se preocupasse porque tinha um plano e, com a ajuda de Nossa Senhora, Marianinha não cairia nas mãos do cruel rei mouro. Casaram-se numa pequena igreja e, logo à saída, estavam os soldados à espera de Marianinha. Joaquim convenceu-os a juntarem-se a ele e a alguns amigos com o propósito de levarem ofertas ao senhor mouro daquelas terras. O rei mouro já tinha ouvido falar da beleza de Marianinha e mal podia esperar para tê-la nos seus braços. Mas quando lhe retirou o véu, verificou que não era ela mas sim Joaquim que apertava nos seus braços. Desembaraçando-se das suas roupas de mulher, Joaquim retirou um punhal que tinha escondido e cravou-o no peito do rei mouro antes de fugir. Agonizante, o rei pediu as cabeças de Joaquim e de Marianinha para as pisar antes de morrer. Os guerreiros mouros lançaram-se na caça ao homem. Joaquim e os seus amigos ainda lhes fizeram resistência mas a desproporção era grande e foram quase todos dizimados. Marianinha prometia fervorosamente um novo templo à Virgem enquanto Joaquim caía no chão ferido de morte. Por milagre, Joaquim reparou que nas suas mãos nascia um bálsamo que curava as feridas e começou a gritar aos seus companheiros moribundos que esfregassem as mãos com aquela substância. Os guerreiros mouros, aterrorizados, viram os mortos e os moribundos a erguerem-se do chão, a pegarem nas armas e a entregarem-se à luta com uma paixão desmedida. Apesar da desvantagem numérica, os cristãos

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conseguiram fazer com que os mouros partissem em debandada. Desde então, aquela terra conquistada aos mouros ficou a ser conhecida como Terra de Nossa Senhora de Bálsamo na Mão e, mais tarde, Lugar de Balsemão onde ainda hoje existe uma ermida em honra de Nossa Senhora de Balsemão, no alto do Monte Carrascal.

Lenda de Freixo de espada à cinta

Como sabemos, o nosso Rei D. Dinis nunca se entendeu muito bem com o seu filho, o príncipe D. Afonso.Soube-se na Corte que D. Afonso tinha armado umas zaragatas para os lados de Bragança, já muito pertinho da fronteira espanhola e D. Dinis lá se meteu ao caminho, com os seus melhores cavaleiros para "castigar os prevaricadores e salvar os inocentes".Nesta altura, D. Dinis estava mesmo zangado com o filho pois, fazia-lhe todas as vontades, umas vezes porque a el Rei, lhe apetecia, outras porque a Rainha D. Isabel, sua esposa, lhe pedia.Já decorria o caminho de regresso quando passaram por um terreno onde estava um freixo, plantado à beira do caminho, que fazia uma sombra enorme, acolhedora. O Rei achou aquele lugar tão agradável e tão cheio de paz que mandou os seus cavaleiros montarem acampamento um pouco mais adiante, aproximou-se da enorme árvore, tirou a espada e pendurou-a nos ramos, junto com o cinto.Sentia o corpo cansado de tanta cavalgada e tanta luta, por isso, estendeu-se no chão espreguiçando-se, absorveu uma golfada de ar puro e, encostando a cabeça ao tronco do freixo, adormeceu.

Segundo conta a lenda, o rei começou a sonhar e, nesse sonho, apareceu-lhe um velho de longas barbas brancas que trazia à cintura a sua própria espada.O Rei surpreendido, perguntou ao ancião quem era ele e o que pretendia. E, com uma voz profunda e estranha que parecia vir do fundo de uma caverna, ele respondeu:- Sou o espírito desse freixo a que te encostaste. Estava encantado desde que aqui morri mas tu, quebraste o encantamento porque és rei e penduraste a tua espada no meu tronco, por isso, posso viver por alguns momentos...- Mas, afinal, ainda não me dissestes quem sois?- Sou um velho rei visigodo e também conquistei terras e dominei povos. Um dia, adormeci à sombra deste mesmo freixo e os meus inimigos, aproveitando a ocasião, mataram-me. Mas tu, podes estar descansado porque, a ti, nada te acontecerá.- Que sabeis vós da minha vida, bom Rei?- Sei tudo. Até sei o modo como encontrarás a felicidade entre ti, a Rainha Isabel e o vosso filho.D. Dinis que não era conhecido por ter bom feitio, respondeu logo que a Rainha estava sempre do lado do filho e contra ele.- Ela é uma óptima mãe, uma excelente esposa e, em grande parte, és tu o culpado das coisas que acontecem. Deves dar mais ouvidos à Rainha.- Está bem, darei mais atenção à rainha. Mas então, o que hei-de fazer com o meu filho?- Escuta Dinis, escuta com atenção porque é segredo...E, diz a lenda, que o ancião fez com que o Rei o ouvisse, sem palavras, sem mexer os lábios, só com o pensamento.- Oh! Mas isso é uma ideia perfeita! Como é que eu ainda não tinha pensado nisso?E com os seus impulsos habituais (até em sonho) tentou erguer-se e nem ligou mais à voz que lhe dizia:

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- Espera Dinis... Falta ouvires o resto... senão ficará tudo na mesma.Mas já era tarde. Com a sua excitação acordou e viu-se de novo, sozinho, junto do freixo.Olhou a árvore atentamente, e pensou:- Meu Deus! Como aquele rei visigodo era parecido com este freixo. Parecia o próprio freixo de espada à cinta.E, a pouco e pouco, de boca em boca e pelo país fora até que, logicamente, pela tradição, aquela zona passou a chamar-se:Freixo de Espada à Cinta.E tudo se passou como no sonho. D. Dinis conseguiu tréguas com o filho, durante algum tempo mas a guerra entre os dois voltou a acender-se.

Lenda do Castelo de Bragança

Quando a cidade de Bragança era ainda a aldeia da Benquerença, existia uma princesa bela e órfã que vivia com o seu tio, o senhor do Castelo. A princesa tinha-se apaixonado por um jovem nobre e valoroso, mas pobre, que também a amava, e que tinha partido para procurar fortuna, prometendo só voltar quando se achasse digno de a pedir em casamento. Durante muitos anos a princesa recusou todas as propostas de casamento até que o tio resolveu forçá-la a casar-se com um nobre cavaleiro seu amigo. Quando a jovem foi apresentada ao cavaleiro decidiu contar-lhe que o seu coração era do homem por quem esperava há 10 anos, o que encheu de cólera o tio que resolveu vingar-se. Nessa noite, o senhor do Castelo disfarçou-se de fantasma e entrando por uma das duas portas dos aposentos da princesa, disse-lhe que esta seria condenada para sempre se não acedesse a casar com o cavaleiro. Quando estava a ponto de a obrigar a jurar por Cristo, a outra porta abriu-se e, apesar de ser de noite, entrou um raio de sol que desmascarou o falso fantasma. A partir de então a princesa nunca mais foi obrigada a quebrar a sua promessa e passou a viver recolhida numa torre que ficou para sempre lembrada como a Torre da Princesa. As duas portas ficaram a ser conhecidas pela Porta da Traição e a Porta do Sol.

Lenda da Moura da Ponte de Chaves

Depois da retoma de Chaves pelos Mouros, em 1129, ficou alcaide do castelo um guerreiro que tinha um filho que adorava, de seu nome Abed, e uma sobrinha. Por vontade do alcaide, ambos ficaram noivos. A bela jovem não recusara Abed, pois os mouros poucos eram ali e nenhum lhe despertara paixão.

Uns anos depois, os cristãos do jovem reino de Portugal iniciaram a conquista da região de Chaves, tendo mesmo atacado a cidade. À frente do exército português estavam os cavaleiros Rui e Garcia Lopes, irmãos de D. Afonso Henriques. O alcaide e seu filho encabeçaram a resistência moura e a defesa do castelo. Mas a população da cidade, perante os ataques cristãos, começou a fugir da cidade desesperadamente. Era grande a confusão entre guerreiros e fugitivos. Impassível àquelas correrias, mantinha-se a sobrinha do alcaide. A vida pouco lhe dizia, desde que ficara órfã devido à guerra. Entretanto, o alcaide e o filho lutavam tenazmente, embora sem sucesso.

Numa dessas ocasiões, enquanto apreciava os combates, a moura fixou os olhos num belo jovem guerreiro cristão que ganhava com os seus homens cada vez mais posições no castelo. No mesmo instante, o guerreiro parou a ofensiva. Dirigindo-se a ela, interpelou-a acerca da sua presença ali. O que fazia uma tão bela mulher num triste espectáculo daqueles? Respondeu a jovem que queria

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perceber a guerra, coisa que o cristão lhe disse ser só para homens que na guerra jogam a vida. Retorquiu a moura que o mesmo faziam as mulheres, dando-lhe o exemplo da sua orfandade devido à guerra. O cristão lamentou o facto e quis saber se ela estava só. Quando a moura respondeu que vivia com o tio, alcaide do castelo, o guerreiro mandou levá-la imediatamente para o seu acampamento. A luta prosseguiu, entretanto.

O castelo acabou por ser tomado e oferecido pelos Lopes a D. Afonso Henriques. Contudo, a jovem moura manteve-se refém dos cristãos que não a trocaram por cativos mouros. Passou a viver com o cavaleiro que a raptara, num ambiente de felicidade.

Abed, conhecedor da situação, nunca lhes perdoou. Depois de restabelecido de um ferimento de guerra, voltou a Chaves, disfarçado de mendigo. E como não conseguisse acercar-se da sua apaixonada, um dia esperou-a na ponte. Pediu-lhe esmola. A jovem estendeu a mão para o pedinte e, nesse momento, algo de fatídico aconteceu. Olhando-a nos olhos, Abed disse-lhe:

- Para sempre ficarás encantada sob o terceiro arco desta ponte. Só o amor dum cavaleiro cristão, não aquele que te levou, poderá salvar-te. Mas esse cavaleiro nunca virá!

Ouviu-se um grito de mulher. A jovem tinha reconhecido Abed. Contudo, como por magia, a moura desapareceu para sempre. Abed fugiu de seguida. Só as damas cristãs que a acompanhavam testemunharam o sucedido.

Desesperado, o guerreiro cristão que com ela vivia tudo fez para a encontrar. Procurou incessantemente na ponte e até pagou para que lhe trouxessem Abed vivo para quebrar o encanto. Mas a moura encantada da ponte de Chaves nunca mais apareceu e o cristão morreu numa profunda dor e saudade, ao fim de alguns anos.

Ora, diz o povo, que certa noite de S. João, cheia de luar, pela ponte passou um cavaleiro cristão. Ouviu, surpreso, murmúrios. Não viu ninguém, mas ouviu uma voz de mulher pedindo ajuda e que lhe disse docemente:

- Estou aqui em baixo, na ponte, sob o terceiro arco.

Estranhou a situação. Procurou sob o dito arco; no entanto, continuava sem ver a moura. Ouviu outra vez a moura que agora lhe dizia estar "encantada" e lhe pedia que descesse e a beijasse para a salvar. Mas o cavaleiro hesitou. Tocou no crucifixo que ao peito trazia e recordou-se dos contos que a mãe que lhe costumava contar sobre as desgraças de cavaleiros entregues aos feitiços de mouras encantadas. Perante estes pensamentos, olhou para o cavalo, montou-o e partiu, jurando nunca mais ali passar à meia-noite.

Assim, a moura da ponte de Chaves ali ficou para sempre encantada. E nas noites de S. João, conta o povo, ouvem-se os seus lamentos como castigo do amor que tivera por um cristão.

Lenda da Praga de Fogo

Há muitos, muitos anos, vivia em Mourilhe, na região de Montalegre, Abed Ahmid, filho do chefe

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dessa aldeia moura. A sua tribo estava proscrita em relação aos outros muçulmanos que a abandonaram aquando do avanço cristão.

Ora um dia, Abed decidiu sair do reduto mouro de Mourilhe e cavalgou até ao Minho. Aí, conheceu uma bela jovem cristã chamada Leonor. Foi amor à primeira vista e como a jovem também o amava, Abed pediu-lhe que partisse com ele para Mourilhe. Depois de recusas e hesitações, pois era cristã, Leonor cedeu aos impulsos do coração e foi com Abed.

Contudo, a aldeia e o pai de Abed não receberam bem os jovens apaixonados, principalmente Leonor, que logo quis regressar à sua terra. Expulsos da casa do chefe, foram recolhidos por Almira, a mulher que criara Abed desde pequeno, pois era órfão de mãe. Almira acolheu muito bem Leonor, o que fez com que Mohamed, pai de Abed, ficasse colérico. E como gostava muito de Abed, correu a falar com Mohamed que já não o considerava seu filho. Depois do seu conselho se ter retirado, o chefe ficou a sós com Almira, que lhe pediu para se reconciliar com o filho e aceitar Leonor. Mohamed lembrou-lhe, então, que Abed estava prometido a Zoleima, uma moura da aldeia.

- Teu filho não a ama. Ninguém pode mandar no coração. - lembrou Almira ao renitente Mohamed e recordou-lhe que, na sua juventude, também ele se apaixonara por Anália, uma jovem cristã, abandonando Zuraida em vésperas de ser mãe de Abed. Só voltara porque Anália caíra doente e morrera pouco tempo depois. Zuraida recebeu-o e perdoou-lhe, mas foi maltratada por Mohamed e acabou por morrer também, deixando o pequeno Abed sem mãe.

Perante estas lembranças, era cada vez maior a ira do chefe mouro que, intransigente, correu com Almira. Leonor era, pois, um remorso vivo para Mohamed. O insucesso de Almina era evidente, o que fez com que Abed decidisse abandonar a aldeia, com a ama e Leonor. Mas não sem antes se despedir de seu pai, que adorava devotamente. Ainda na aldeia e em conversa com Leonor, Almina lembrou-se de um último estratagema para alterar a situação: tinha de falar com Zoleida, que amava Abed desde criança, ainda que este nunca tivesse correspondido a tal paixão.

Zoleida, contudo, não se encontrava em casa quando Almina a procurou. Ao saber da vinda de Abed para a aldeia com uma cristã, louca de dor e raiva, tinha corrido para a casa do jovem. Mas vendo-o, escondeu-se, até conseguir estar sozinha com Leonor. Mal Almina saiu ao seu encontro, Zoleida, silenciosa e esquiva, acercou-se de Leonor pelas costas e apunhalou-a, fugindo de imediato.

Pouco depois, surgiram Abed e Almina, que depararam já com a pobre Leonor morta, envolta numa poça de sangue. A dor logo invadiu Abed e Almina, deixando-os aterrados e inconsoláveis. Então, Abed decidiu cobrir com um manto o corpo sem vida de Leonor e levá-lo consigo para bem longe dali, com Almina. Esta ainda o tentou demover, mas nada conseguia vencer o desespero de Abed, louco de tristeza e dor.

- Leonor está morta. - lembrava-lhe Amina. O jovem respondeu que fugiria só com a sua amada, caso Almina não o quisesse acompanhar. Abed pegou então em Leonor e montou no seu cavalo, partindo de imediato em feroz galope para fora da aldeia.

Almina, petrificada, chamando insistentemente por Abed, sem sucesso, voltou-se para a aldeia atrás de si e disse:

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- Malditos sejam todos os desta terra! Que o fogo destrua estas casas! O fogo que hei-de pôr com estas minhas mãos! Hão-de saber quem é Almina, malditos cães danados. Esta terra só estará purificada depois de por três vezes ser destruída pelo fogo! Mourilhe, esta é a praga de Almina!

Verdade ou não, Mourilhe foi, de facto, três vezes devastada pelo fogo (na Reconquista Cristã, em 1854 e em 1875).

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