Lendo Georges Canguilhem o Normal e o Patologico Vinicius Siqueira

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biologia médica filosófica

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  • Lendo Georges Canguilhem: O Normal e oPatolgico

    O e-book presente uma resenha comentada daobra O Normal e o Patolgico, de GeorgesCanguilhem, tese de doutorado defendida em1943 e revisada pelo prprio autor no perodo de1963 a 1966.

    Por Vinicius Siqueira, da revista eletrnica Colunas Tortas

    So Paulo2015

  • Sumrio (clique para ir direto ao captulo)

    Histria.............................................................................................5

    Augusto Comte................................................................................8

    Claude Bernard..............................................................................13

    Rene Leriche...................................................................................23

    As implicaes de uma teoria.................................................28

    Cincias do normal e do patolgico.................................32

    O normal..........................................................................................37

    A anomalia e a doena...............................................................40

    O normal e o experimental.......................................................44

    O homem mdio norma e mdia.......................................45

    Doena, cura e sade..................................................................49

    Definindo fisiologia e patologia.............................................53

    Resumo.........................................................................................60

    Revisitando 20 anos depois..................................................62

    O normal..........................................................................................62

  • A normalizao..............................................................................63

    O erro................................................................................................65

    A importncia de Canguilhem.............................................67

  • 5O normal e o patolgico

    Histria

    O objeto de pesquisa de Canguilhem1 a separao do

    normal e do patolgico. Qual a linha que divide ambos

    os termos? Em que consiste? O autor assinala duas

    maneiras qualitativas de se enxergar o problema que

    fazem parte da histria das cincias mdicas:

    A egpcia, em que a doena entra e sai do homem

    como por uma porta [p.12]. O autor entende que

    esta viso da doena representa a total falta de

    crena em uma modificao (em uma cura) vinda

    da prpria natureza, por isso que necessrio

    delegar tcnica, seja mgica ou positiva, a

    responsabilidade da cura.

    A grega que, ao contrrio da egpcia, no oferece

    uma concepo ontolgica da doena. A viso

    grega totalizante e dinmica, a doena vista

    1Todas as citaes sem nota de rodap so feitas de: Georges Canguilhem, O Normal e o Patolgico. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2009.

  • 6como resultado da perturbao de um equilbrio

    entre quatro humores, agrupados de dois em dois:

    quente, frio, seco e mido. O papel da doena,

    ento, tambm o papel do reestabelecimento da

    harmonia, do equilbrio, A doena no somente

    desequilbrio ou desarmonia; ela tambm, e talvez

    sobretudo, o esforo que a natureza exerce no

    homem para obter um novo equilbrio [p.12].

    Se trata do embate entre a viso ontolgica (egpcia) e a

    viso dinmica (grega) da relao entre normal e o

    patolgico.

    Segundo Canguilhem, essas duas vises oscilam at hoje

    entre os mdicos e ambas tem algo em comum: encaram

    a doena, ou melhor, a experincia de estar doente, como

    uma situao polmica, seja uma luta do organismo contra

    um ser estranho [viso ontolgica], seja uma luta interna

    de foras que se afrontam [viso dinmica].

    No entanto, a viso que forava o homem a realizar a cura,

    no podia sustentar uma passagem qualitativa entre

    normal e patolgico, no podia separar a patologia da

    fisiologia. A cincia das quantidades e da continuidade

  • 7teve espao para aparecer, posto que o mtodo

    quantitativo era o paradigma do sculo XIX.

    Desde Bacon, a ideia por trs da dominao da natureza

    tem a ver com obedincia s suas leis. Ou seja, s se pode

    domin-la quando se conhece suas leis. A partir disso (a

    partir da necessidade, portanto, de conhecer as leis da

    doena para identificar sua cura), nasce a teoria de que o

    patolgico nos organismos vivos uma variao

    quantitativa do normal, seja para mais ou para menos

    que, portanto, patolgico e fisiolgico esto sob as

    mesmas leis da natureza. A definio semntica do

    patolgico feita com prefixos hiper e hipo.

    interessante que a convico cientfica de poder

    restaurar o normal a partir de teraputicas que ajustassem

    essa variao quantitativa resultava na anulao do

    patolgico. A angustia da doena passa a no mais existir

    e esta, por sua vez, se torna objeto de estudo para tericos

    da sade.

    Canguilhem relata que, na Frana, este dogma mdico foi

    exposto principalmente por dois autores: Augusto Comte

    e Claude Bernard, ambos com intenes diferentes. A

  • 8diferena bsica de ambos est no caminho que leva

    descoberta cientfica: em Comte, o interesse se dirige do

    patolgico ao normal, com objetivo de encontrar

    (especulativamente) as leis do normal; j Claude Bernad

    pretende ir do normal ao patolgico com a finalidade de

    uma ao racional sobre o patolgico [p14].

    Augusto Comte

    Comte, pensador francs criador do positivismo, viveu de

    1798 1857, deu alcance universal ao princpio de

    Broussais2, de que todas as doenas so apenas sintomas

    (portanto, so sempre localizadas e nunca totalizantes,

    como acreditavam os gregos). Canguilhem explica,

    Com efeito, Broussais explica que todas as doenas

    consistem, basicamente, no excesso ou falta de

    excitao dos diversos tecidos abaixo ou acima do

    grau que constitui o estado normal. Portanto, as

    doenas nada mais so que os efeitos de simples

    mudanas de intensidade na ao dos estimulantes

    indispensveis conservao da sade. [p16]

    A genialidade de Broussais foi em fazer convergir os

    2Franois-Joseph-Victor Broussais (1772 - 1838), mdico francs famoso no fim de sua vida por suas palestras em frenologia.

  • 9mesmos princpios para o estado patolgico e o estado

    normal, que eram relacionados com leis completamente

    diferentes at ento. Esta novidade trazida pelo mdico

    francs se tornou base sistemtica da patologia.

    interessante que a base quantitativa de Broussais teve

    efeito, digamos, interessante em Comte. O autor foi

    obrigado a definir o normal (definio qualitativa) para

    conseguir determinar as variaes patolgicas em seu

    entorno. Em sua falta de prtica mdica, Comte chega a

    definir o normal como uma harmonia de influncias

    distintas, tanto externas quanto internas. O problema

    que este conceito de harmonia, basicamente, uma

    conceito qualitativo.

    Para Canguilhem, importante resumir a teoria de

    Broussais, neste momento.

    Broussais acredita que a excitao o fato vital primordial,

    O homem s existe pela excitao exercida sobre seus

    rgos pelos meios nos quais obrigado a viver. Muita

    excitao, pode se transformar em inflamao, pouca

    excitao, em falta. Ambas as situaes representam

    variaes quantitativas de um estado intermedirio

  • 10

    perfeito, sadio. Bgin, discpulo de Broussais, chega a

    definir o normal como o estado em que os rgos

    funcionam com toda regularidade e uniformidade que so

    capazes [p.20]. H um ideal de perfeio (portanto,

    qualitativo), pairando sobre este estado de regularidade.

    Isso importante devido ao horror de Broussais s

    explicaes qualitativas, o que demonstra sua prpria

    contradio.

    De onde vem a incoerncia de tal obra? Da combinao

    desajeitada entre Xavier Bichat3 e John Brown4. Ambos

    tambm merecem ateno de Canguilhem.

    John Brown carrega em sua teoria o princpio de que a

    vida s se mantm por uma propriedade peculiar, a

    incitabilidade, que permite aos seres vivos serem afetados

    e reagirem. A incitao excessivamente forte ou fraca

    causa a doena. Definio completamente quantitativa.

    At mesmo sua teraputica baseada em clculos,

    conforme a tabela de graus de incitao, supondo que a

    ditese estnica tenha subido a 60 graus na escala da

    3Marie Franois Xavier Bichat (1771 1802) foi um anatomista e fisiologista francs, considerado o pai da histologia moderna.4John Brown (1735 1788) foi um mdico escocs.

  • 11

    incitao, deve-se procurar subtrair os 20 graus de

    incitao excessiva e empregar, para esse fim, meios cujo

    estmulo seja bastante fraco [p.21].

    Lynch, discpulo de Brown, se apoiou no mestre para criar

    a escala de graus de incitao, termmetro cientfico de

    excesso de incitao, Essa tabela comporta duas escalas

    de 0 a 80 colocadas lado a lado e invertidas, de tal

    maneira que, ao mximo de incitabilidade (80)

    corresponde o grau 0 de incitao, e vice-versa [p21].

    Essas duas caricaturas de identificao mtrica da doena

    no fornecem, claro, medidas precisas e cientficas.

    Chegam a ser risveis, no entanto, mostram um esforo

    para definir os fenmenos patolgicos a partir deles

    prprios, sem pedir ajuda s fundamentaes ontolgicas.

    At agora percebemos que Comte utilizou (ou se

    apropriou) da teoria de Broussais. Este, por sua vez, a

    formulou com base em Brown e Bichat (que ser tratado

    adiante) e teve como discpulo obediente, Lynch, que

    formulou a escala de graus de incitao.

    O que Bichat trouxe para a teoria de Broussais? O

  • 12

    contrrio de Brown. Bichat se interessa pelas variaes que

    a mensurao cientfica no conseguiria captar. A

    instabilidade e a irregularidade so, segundo ele,

    caracteres essenciais dos fenmenos vitais, de modo que

    faz-los encaixar, fora, no quadro rgido das relaes

    mtricas desnatur-los [p.22]. Qual o problema de

    Bichat? Apesar de rejeitar a escala de graus de incitao,

    ele admite uma variao entre normal e patolgico que

    necessita de olhares quantitativos, como na afirmao de

    que

    A finalidade de qualquer processo curativo apenas

    fazer as propriedades vitais alteradas voltarem ao tipo

    que lhes natural. Qualquer processo que, na

    inflamao local, no diminua a sensibilidade orgnica

    aumentada, que, nos edemas, nas infiltraes etc., no

    aumente essa propriedade, nesses casos, totalmente

    diminuda, que, nas convulses, no restabelea um

    nvel mais baixo da contractilidade animal, que no

    eleve essa mesma contractilidade a um grau mais alto

    na paralisia etc., no atinge em absoluto seu objetivo;

    contra-indicado [p22].

  • 13

    Mas necessrio voltar nossa explicao e entender que

    todos esses autores so parte da histria da influncia sob

    Comte. Sua doutrina era positivista, o que os coloca para

    segundo plano: o princpio de Broussais funciona

    subordinado a um sistema. Foram, como explica

    Canguilhem, os mdicos, psiclogos e literatos de

    inspirao ou tradio positivistas que difundiram tal

    princpio como algo independente.

    Claude Bernard

    Claude Bernard viveu de 1813 1878, movido por um

    esprito experimental, teve trajetria diferente de

    Comte. notvel que ele estudou a fundo a obra de

    Comte, tomando inclusive notas (mais tarde,

    publicadas por Jacques Chevalier5), o autor foi o

    primeiro a adotar a lei positivista dos trs estgios6,

    em um artigo datado de 1865.

    5Jacques Chevalier (1882 1962) foi um filsofo espiritualista francs.

    6Segundo a lei dos trs estgios, a histria da humanidade passa necessariamente pelas etapas 1) teolgica, onde as relaes entre as coisas so explicadas por Deus ou a partir delas mesmas (como no animismo); 2) metafsica, em que a descrena em um Deus obriga ao esprito procurar relaes transcendentais entre as coisas, mas sem a crena meramente teolgica; e 3) positiva, a etapa em que a humanidade busca suas respostas a partir da cincia.

  • 14

    Claude Bernard foi segundo presidente da Sociedade

    de Biologia, instituio francesa fundada por Charles

    Robin em 1848. L, ele declarou os princpios da

    sociedade a partir de um artigo lido em pblico,

    nosso objetivo, ao estudar a anatomia e a

    classificao dos seres, elucidar o mecanismo das

    funes; ao estudar a fisiologia, chegar a

    compreender de que modo os rgos podem se

    alterar, e dentro de que limites as funes podem se

    desviar do estado normal. Retomando o exposto

    acima, o que interessa para o mdico agir

    racionalmente na patologia, mas segundo um

    caminho que comea do normal. necessrio estudar

    o normal para entender o que est alterado.

    Isto importante pois, para Claude Bernard, a

    medicina a cincia das doenas, j a fisiologia

    a cincia da vida. Seu foco na fisiologia tem a ver

    justamente com sua ideia de partir do normal para

    chegar ao patolgico: necessrio estudar a

    cincia da vida para agir racionalmente sobre a

    patologia. No entanto, ele se distingue do restante

    dos fisiologistas da poca por no considerar a

  • 15

    doena uma entidade extrafisiolgica, que viria

    reascrecentar-se no organismo. Seu foco era

    puramente quantitativo,

    Toda doena tem uma funo normal correspondente

    da qual ela apenas a expresso perturbada,

    exagerada, diminuda ou anulada. Se no podemos,

    hoje em dia, explicar todos os fenmenos das

    doenas, porque a fisiologia ainda no est bastante

    adiantada e porque ainda h uma quantidade de

    funes normais que desconhecemos [Bernard apud

    Canguilhem, p.25].

    Em outra passagem, o fisiologista francs afirma que,

    Essas idias de luta entre dois agentes opostos, de

    antagonismo entre a vida e a morte, entre a sade e a

    doena, entre a natureza bruta e a natureza animada

    j esto ultrapassadas. preciso reconhecer em tudo

    a continuidade dos fenmenos, sua gradao

    insensvel e sua harmonia [Bernard apud Canguilhem

    p21-22].

    Assim como os gregos, ele admite a continuidade entre a

    patologia e o normal. S h, como visto, diferenas

    quantitativas, em que a doena a expresso perturbada,

  • 16

    exagerada, diminuda ou anulada do normal.

    interessante que, mesmo com esta afirmao cientfica,

    determinista, Claude Bernard ainda assume uma interao

    especial na vida orgnica, rejeitando o materialismo

    mecanicista. Ele afirma categoricamente que os seres vivos

    esto sujeitos s mesmas leis gerais da natureza que

    qualquer corpo inorgnico, no entanto, as expresses

    dessas leis na vida orgnica so peculiares: No h um

    nico fenmeno qumico que se realize, no corpo, da

    mesma forma como fora dele [Bernard apud Canguilhem

    p.27].

    Mas aqui, Canguilhem expe um problema desta maneira

    de se ver a distino entre os efeitos que as leis gerais da

    natureza podem ter. Por exemplo, se existe uma mesma lei

    da natureza e devemos considerar que os mecanismos dos

    fenmenos fisiolgicos (ou seja, da matria viva, do

    orgnico) so especiais em oposio aos mecanismos dos

    fenmenos patolgicos, como podemos afirmar a

    identidade entre sade e doena (princpio bsico, quando

    se tenta dar foco somente em dados quantitativos), como

    afirmar essa continuidade? Para Claude Bernard, a

  • 17

    oposio da fisiologia e da medicina, como cincia da vida

    e cincia da morte respectivamente, era uma diferena

    qualitativa: morte e vida no coisas iguais. Mas se isso

    verdade, porque no podemos aplicar essa diferena entre

    sade e doena?

    Canguilhem continua a exposio de Claude Bernard

    ressaltando a metodologia cientfica que o mdico

    utilizava. Ao contrrio de Comte ou Broussais, tudo que

    escrevia era fruto de dados encontrados a partir de longa

    pesquisa e coleta, todos controlados e quantificados.

    curioso que, mesmo apelando para o senso cientfico das

    medidas quantitativas, seus enunciados levam em conta

    um fator qualitativo para a descrio da doena.

    Canguilhem ressalta que Claude Bernard, por exemplo,

    utiliza frequentemente em seus textos os termos

    variaes quantitativas e diferenas de grau. O

    problema que estes termos significam, ao longo de seus

    enunciados, homogeneidade e continuidade, desta

    forma, eles pedem tratamento diferente, afinal, quando se

    fala em dois termos homogneos, necessrio definir pelo

    menos um deles para se saber o outro, no entanto,

    quando se fala entre termos que se referem a uma

  • 18

    continuidade, pode se intercalar extremos sem reduzir um

    resultado a qualquer um dos termos. A intercalao de

    dados nunca chega a um nmero absoluto.

    O problema deste ltimo tratamento que ele elimina a

    existncia dos doentes, por no definir a doena. Afirma

    que, se a sade perfeita no existe, tambm no h como

    definir a doena (da a continuidade feita a partir da

    intercalao de resultados extremos sem nunca reduzi-los

    ao normal). Ento, Canguilhem conclui genialmente, ser

    que, afirmando seriamente que a sade perfeita no existe

    e que por conseguinte a doena no poderia ser definida,

    os mdicos perceberam que estavam ressuscitando pura e

    simplesmente o problema da existncia da perfeio e o

    argumento ontolgico? [p.28-29].

    Canguilhem, deste ponto em diante, tece argumentos para

    superar a oposio entre quantitativo e qualitativo,

    explicados at ento em sua pesquisa histrica. a partir

    daqui que ele comea a falar por si e se ope s bases

    mdicas e filosficas de Claude Bernard.

    Segundo o filsofo, ao se observar o diabetes, possvel

    perceber que pode l-lo como uma doena de

  • 19

    determinao quantitativa ou qualitativa. A citao

    grande, porm necessria,

    Se considerarmos a glicosria como o sintoma

    principal do diabetes, a presena de acar na urina

    diabtica a torna qualitativamente diferente de uma

    urina normal. O estado patolgico identificado com

    seu principal sintoma uma qualidade nova, em

    relao ao estado fisiolgico. Mas se, considerando a

    urina como um produto de secreo renal, o mdico

    volta seu pensamento para o rim e as relaes entre

    filtro renal e a composio do sangue, vai considerar a

    glicosria como o transbordamento da glicemia que

    ultrapassa um limiar. A glicose que ultrapassa o limiar

    e transborda qualitativamente a mesma que a

    glicose retida normalmente pelo limiar. Com efeito, a

    nica diferena uma diferena de quantidade. Se

    considerarmos, portanto, o mecanismo renal da

    secreo urinria travs dos seus resultados efeitos

    fisiolgicos ou sintomas mrbidos , a doena

    consiste no aparecimento de uma nova qualidade; se

    considerarmos o mecanismo em si mesmo, a doena

    somente variao quantitativa [p.29].

    possvel, relata Canguilhem, definir um fenmeno

    patolgica pela qualidade em sua expresso ou pela

    variao de quantidade em algum elemento, quando visto

  • 20

    a partir de seu mecanismo funcional biolgico. O que

    causa diferena na interpretao o ponto de vista que se

    toma sobre o fenmeno.

    E o erro de Claude Bernard est em s prestar ateno em

    rgos localizados, no no organismo como um todo.

    Algumas alteraes identificadas como mudana

    quantitativa (como a hipersecreo hipofisria) , na

    verdade, resultado de uma mudana na totalidade do

    organismo (puberdade, menopausa ou gravidez). As

    concluses de Claude Bernard so incorretas por serem

    ingnuas em relao ao ponto de vista adotado e porque

    extrapolam concluses de casos particulares sem qualquer

    legitimidade.

    Em meio as suas crticas s definies capengas da

    medicina puramente quantitativa, Canguilhem faz a

    primeira definio positiva do que uma funo normal:

    Antes de tudo, porm, no que se refere ao caso

    concreto da lcera, deve-se dizer que o essencial da

    doena no consiste na hipercloridria, mas sim no fato

    de que, nesse caso, o estmago digere-se a si mesmo,

    estado que, devemos admitir, difere profundamente

    do estado normal. Diga-se de passagem que esse

  • 21

    exemplo talvez sirva para fazer entender o que uma

    funo normal. Uma funo poderia ser chamada de

    normal enquanto fosse independente dos efeitos que

    produz. O estmago normal enquanto digere sem

    se digerir. Aplica-se s funes a mesma regra que s

    balanas: primeiro fidelidade, depois sensibilidade.

    [p31]

    Canguilhem conclui que se pode levar a srio a teoria de

    Claude Bernard somente se o fenmeno patolgico for

    restringido a um nico sintoma, desconsiderando seu

    contexto clnico, e na busca dos efeitos sintomticos em

    mecanismos funcionais parciais. Aqui, o autor continua sua

    crtica indicando o que vem a ser sua proposta: a

    hipertenso no pode ser considerada um simples

    aumento da presso arterial fisiolgica porque no se

    aplica medidas intempestivas para trazer a presso sua

    medida normal. Se trata de uma modificao profunda da

    estrutura e das funes dos rgos essenciais, um modo

    de vida diferente qualitativamente do organismo. O estado

    da doena no , assim, uma extenso da sade, em que o

    modo de vida da sade existe diminudo: o modo de vida

    aps a doena diferente e tem formas peculiares.

  • 22

    A definio de Canguilhem do fato patolgico dialtica.

    Mesmo a continuidade (que o predominante na viso

    quantitativa) pode significar novas formas de um

    comportamento (ou seja, uma mudana qualitativa). Um

    sintoma patolgico, diz o filsofo, pode muito bem

    expressar a hiperatividade de uma funo, mas o mal

    orgnico, que outro modo de ser da totalidade

    funcional, para o organismo uma outra forma de se

    comportar em relao ao meio. Por fim, o patolgico s

    pode ser admitido como tal, no nvel da totalidade

    orgnica [] e, se tratando do homem, no nvel da

    totalidade individual consciente, em que a doena torna-

    se uma espcie de mal.

    a que o diabetes deixa de ser somente uma doena do

    rim, devido a glicosria, ou do pncreas, por conta da

    hipoinsulinemia, explica Canguilhem, mas um estado em

    que todas as funes do organismo so mudadas, j que

    agora o indivduo concreto est mais vulnervel

    tuberculose, com infeces que se prolongam sem fim, ou

    pela artrite e gangrena que inutilizam os membros, ou at

    mesmo pela ameaa constante de impotncia e

    esterilidade. Um sintoma, sem relacion-lo com a

  • 23

    totalidade comportamental do indivduo, no explica

    muita coisa. A patologia, quer seja anatmica ou

    fisiolgica, analisa para melhor conhecer, mas ela s pode

    saber que uma patologia isto , estudo dos

    mecanismos da doena porque recebe da clnica essa

    noo de doena, cuja origem deve ser buscada na

    experincia que os homens tm de suas relaes de

    conjunto com o meio. [p34] termina o autor.

    Mas ento porque o clnico moderno no costuma escutar

    o que o paciente tem a dizer sobre sua situao? Porque,

    normalmente, a queixa subjetiva no coincide com a

    doena objetiva. Talvez, por isso no visto o fato de que

    a doena gera uma forma diferente de vida.

    Rene Leriche

    R.Leriche (1879 1955) foi contemporneo de Canguilhem

    e criador de uma teoria em que a opinio do paciente

    sobre a doena invlida. Sua teoria dita como uma

    extenso modificada e melhorada da teoria de Claude

    Bernard, por isso o aparecimento surpresa deste autor

    nesta etapa do livro.

  • 24

    'A sade, diz Leriche, a vida no silncio dos rgos []

    Inversamente, a doena aquilo que perturba os homens

    no exerccio normal de sua vida e em suas ocupaes e,

    sobretudo, aquilo que os faz sofrer [p.35] explica

    Canguilhem. Ou seja, o estado de sade, em Leriche,

    viver sem impedimentos fsicos, ou sendo inconsciente do

    corpo. justamente a conscincia do corpo que sinaliza os

    limites e ameaas sade. A noo de normal, por fim,

    feita de acordo com a possibilidade de infraes

    norma. Percebe-se que esta definio mais refinada que

    as anteriores por fazer da sade oposio da doena, mas

    sem se tornar primitiva, origem transcendente, e sem fazer

    da doena mera privao.

    H muitas doenas que no se mostram como tal at

    evolurem, mas elas existem de fato no organismo

    humano. Ento, Leriche teve que modificar sua tese sobre

    a doena, que passa a no ter relao com o a perspectiva

    do doente, mas sim com a perspectiva do mdico: a

    doena , portanto, ou uma alterao anatmica ou um

    distrbio fisiolgico.

    O resultado disso que a doena vista pelo mdico no

  • 25

    necessariamente foi sentida pelo paciente, segundo

    Leriche. Canguilhem discorda deste ponto, ora, achamos

    que no h nada na cincia que antes no tenha aparecido

    na conscincia e que, especialmente no caso que nos

    interessa, o ponto de vista do doente que, no fundo,

    verdadeiro. E isso dito no porque o paciente tem razo

    em sua individualidade como requerente ou no de ajuda,

    mas porque toda cincia mdica resultado de anos de

    reclamaes de pacientes. A previso do mdico s existe

    na medida em que outros pacientes foram diagnosticados

    e estudados (e fichados) por mdicos ao longo da histria

    da medicina e porque esses dados e tcnicas de

    diagnstico foram passados ao mdico (indivduo

    concreto) pela cultura mdica.

    E se, hoje em dia, o conhecimento que o mdico tem a

    respeito da doena pode impedir que o doente passe pela

    experincia da doena, porque outrora essa mesma

    experincia chamou a ateno do mdico, suscitando o

    conhecimento que hoje tem [p.35-36], sendo assim, o

    mdico evita que o paciente passe pela experincia da dor

    (e da disfuncionalidade social) que ele de fato passaria

    (pois j passaram por ele).

  • 26

    Leriche entende isso e precisa mudar sua teoria,

    recolocando a perspectiva do paciente como primria. Mas

    no se deve ir muito alm: ele ainda pensa o doente como

    um organismo em ao, no como um indivduo

    consciente de suas funes orgnicas. Posto isso, j se

    pode verificar a mudana desta terceira viso do doente

    em relao primeira, embora ambas sejam do ponto de

    vista do paciente: enquanto a primeira fala sobre o

    homem concreto, consciente de si e de suas

    possibilidades, esta ltima fala a respeito de um

    organismo funcional.

    O ponto do mdico tambm no abandonado, no fim

    das contas, pois o que vale a coincidncia da doena

    objetiva com a viso do mdico, mesmo se o paciente

    ainda no sentiu esta doena, afinal, o mdico, segundo

    Leriche, poder lev-lo conscincia da doena. Mesmo

    sendo, em ltima instncia, conscincia do sujeito (levando

    em considerao a histria da medicina e a cultura da

    medicina passada para cada mdico), o mdico ainda o

    responsvel primeiro da iniciativa da cura.

    O primeiro ponto celebrado por Canguilhem em Leriche

  • 27

    est em sua argumentao sobre a dor. Leriche argumenta

    que a dor a expresso da doena. A dor no , como

    antes dito, o local da doena: repetindo, ela a expresso

    da existncia do organismo doente. A dor no natural,

    um estado autenticamente anormal e, claro, no o

    local em que a doena se instala, mas a reao entre o

    excitante e o indivduo todo. A segunda genialidade das

    novas definies de Leriche est na sua concepo de

    experimentos em outros organismos vivos: ele no admitia

    valor de verdade nas experincias de doenas humanas

    em outros animais, mesmo que perfeitas, simplesmente

    porque a doena gera uma nova fisiologia, atingindo

    sutilmente os mecanismos normais da vida: a fisiologia do

    doente no uma fisiologia desviada, uma nova

    fisiologia que no pode ser reproduzida em laboratrio.

    A definio de Leriche para a doena, possvel ver, toma

    como nicos sinais os efeitos. No entanto, sua perspectiva

    da dor nos coloca no plano da conscincia concreta e no

    mais da cincia abstrata: como a doena e a dor (ou dor-

    doena, como diz Leriche) coincidem no todo do indivduo

    podem ser, por fim, classificadas (em sua unio) como

    comportamento.

  • 28

    A respeito de sua viso experimental, podemos traar um

    paralelo com ambos os autores j estudados: enquanto

    Comte acreditava que a doena substitui as experincias,

    Claude Bernard entendia que as experincias, mesmo em

    animais, nos davam material para conhecer as doenas

    humanas. Leriche, por sua vez, argumentava que a tcnica

    mdica deveria ser utilizada no momento da doena, para

    assim, conhecer mais do organismo e evoluir a prpria

    tcnica. a doena em seu estado que pode nos revelar

    funes normais, pois ela no as deixa em exerccio pleno,

    a doena que suscita a ateno especulativa vida, isso

    pois a sade a vida no silncio do rgos e, portanto,

    sade no se suscitar nada.

    As implicaes de uma teoria

    Este o momento de reunir todos os dados histricos.

    Para que Canguilhem estabeleceu uma linha histrica que

    pegou Comte, Broussais, Brown, Bichat, Claude Bernard e

    Rene Leriche?

    A teoria de uma poca sempre ligada s alteraes do

    pensamento desta poca. A medicina, por sua vez, revela

  • 29

    isso claramente, afinal, tudo que foi exposto acima mostra

    uma teoria que alm de mdica, filosfica e cientfica.

    Parece-nos que ela satisfaz simultaneamente vrias

    exigncias e postulados intelectuais do momento

    histrico-cultural no qual foi formulada [p.40], afirma

    Canguilhem.

    E continua, nessa teoria surge, em primeiro lugar, a

    convico de otimismo racionalista de que no h

    realidade no mal. O que distingue a medicina do sculo

    XIX sobretudo antes da era de Pasteur da medicina

    dos sculos anteriores seu carter decididamente

    monista [p40].

    Aps todo o contedo citado acima sobre Claude Bernard

    e Comte, Canguilhem ainda nos presenteia com um

    achado: Dr. Victor Prus, mdico premiado em 1821 pela

    Sociedade de Medicina de Gard, aps indicar que a

    anatomia no pode jamais ser deduzida de fenmenos

    normais, o autor acrescenta: Se quisssemos esgotar a

    questo tratada neste artigo, teramos ainda de

    demonstrar que a fisiologia est longe de ser o

    fundamento da patologia, e, ao contrrio, s poderia

  • 30

    nascer desta [] Broussonnet perdeu a memria dos

    substantivos; quando morreu foi encontrado um abcesso

    na parte anterior do seu crebro, e fomos levados a crer

    que era ali a sede da memria dos nomes... Portanto, foi a

    patologia que, auxiliada pela anatomia patolgica, criou a

    fisiologia; ela que, a cada dia, dissipa antigos erros da

    fisiologia e favorece seus progressos.

    claro que a citao acima de Prus indica inclusive a

    possibilidade, dentro de um perodo histrico, da

    existncia de um argumento e de seu contrrio, todos com

    suas bases e tradies (que convergem na polmica da

    poca).

    incrvel que a influncia de Claude Bernard, era

    Magendie (cuja cadeira ele ocupou no College de France)

    e Laplace (colaborador de Magendie em fisiologia).

    Laplace foi responsvel pela criao do determinismo

    fechado (fechado em seu prprio contedo supostamente

    definitivo, em oposio ao aberto, sempre possvel de

    modificao por novas leis), sua criao filosfica foi frente

    da cincia junto com a mecnica newtoniana, que ditaram

    uma nova forma de se ver a natureza. O determinismo na

  • 31

    medicina fazia parte, portanto, da busca de uma patologia

    e fisiologia racionais, baseadas em leis cientficas. Enfim, e

    como conseqncia do postulado determinista, a

    reduo da qualidade quantidade que est implicada na

    identidade essencial do fisiolgico e do patolgico [p.42]

    diz Canguilhem.

    No entanto, para alm do mecanicismo Laplaciano, Hegel

    surge como argumento para Canguilhem, afinal, a

    quantidade a qualidade negada, mas no a qualidade

    suprimida, pois o filsofo alemo sustenta que a

    quantidade quando aumentada ou diminuda promove

    uma diferena qualitativa. O princpio de Claude Bernard ,

    ento, contestado por Canguilhem. Da mesma forma, no

    podemos esquecer, o princpio de Comte, em que a

    doena so apenas sintomas, tambm contestado pelo

    autor a partir de sua viso do indivduo concreto como

    sujeito da doena.

  • 32

    Cincias do normal e do patolgico

    A segunda parte de O Normal e o Patolgico se refere s

    possveis cincias do normal e do patolgico, ou seja, suas

    diferenas, as dificuldades encontradas pelos cientistas na

    hora de separ-las ou at mesmo defini-las. Tal

    empreendimento comea com Canguilhem expondo as

    vises de psiquiatras a respeito das relaes entre normal

    e patolgico. Charles Blondel7 diz que impossvel

    entender a partir do doente a prpria doena, j que sua

    expresso a respeito da doena se d a partir de palavras

    que no exprimem a verdadeira experincia que ele tem

    com o mal, afinal, no h conceitos adequados para esta

    comunicao.

    Daniel Lagache8, por sua vez, classifica as psicoses como

    compreensivas e no compreensivas. Enquanto as ltimas

    no possibilitam qualquer forma de compreenso a partir

    do doente, as primeiras mantm uma relao inteligvel

    com a vida psquica anterior, o que valida o uso da

    7Charles Aim Alfred Blondel (1876 - 1939) foi um filsofo e psiquiatra francs, discipulo de Levy-Bruhl.8Daniel Lagache (1903 - 1972) foi um psiquiatra e psicanalista francs. Seus esforos para unir a psicanlise freudiana psicologia social fundou o Laboratrio de Psicologia Social na Sorbonne.

  • 33

    psicopatologia como material para investigao da

    conscincia normal. No entanto, ao contrrio de Ribot,

    tratado anteriormente, Lagache nunca admite o uso da

    experincia como substituto da doena, j que, ao

    contrrio do experimento controlado, a doena no pode

    ser observada em seu nascer e nem pode ser

    alterada/modificada conforme os objetivos da pesquisa.

  • 34

    A grande diferena que isso tambm acarreta a acepo

    por parte de Ribot de fazer do estado patolgico como

    um simtrico oposto do normal. Lagache vai dizer que, ao

    contrrio de ser um simtrico, h caractersticas no estado

    patolgico que o estado normal nunca poderia ter e essas

    caractersticas tambm enriquecem a psicologia geral (no

    so, portanto, meros desvios do normal).

    J Minkowski9, continua Canguilhem em sua exposio de

    alguns psiquiatras, refere-se anomalia psquica com

    distino em relao doena somtica, por exemplo, a

    anomalia, diz Minkowski, est num primado do negativo,

    em que o mal se destaca da vida. Oras, no

    exatamente isso visto anteriormente na concepo das

    doenas somticas? No exatamente desta maneira que

    a doena, enquanto algo fora do normal, classificada?

    Enquanto a doena fsica pode ter uma preciso emprica

    maior, a anomalia psquica mais imediatamente vital:

    esta a grande diferente entre os dois tipos de doena.

    Em oposio, Canguilhem se posiciona,

    9Eugene Minkowski (1885 - 1972) foi um psiquiatra francs influenciado porBergson e Husserl que incorporou s reflexes da fenomenologia psicopatologia.

  • 35

    A respeito deste ltimo ponto, no podemos partilhar

    a opinio de Minkowski. Achamos, assim como

    Leriche, que a sade a vida no silncio dos rgos;

    que, por conseguinte, o normal biolgico s

    revelado, como j dissemos, por infraes norma, e

    que no h conscincia concreta ou cientfica da vida,

    a no ser pela doena. Achamos, como Sigerist, que

    a doena isola, e que mesmo se esse isolamento

    no afasta os homens mas, ao contrrio, os aproxima

    do doente, nenhum doente perspicaz pode ignorar

    as renncias e limitaes que os homens sos

    impem a si mesmos para dele se aproximarem.

    Achamos, como Goldstein, que em matria de

    patologia a norma , antes de tudo, uma norma

    individual. Achamos, em resumo, que considerar a

    vida uma potncia dinmica de superao, como

    Minkowski, cujas simpatias pela filosofia bergsoniana

    se manifestam em obras como La schizophrnie ou Le

    temps vcu, obrigar-se a tratar de modo idntico a

    anomalia somtica e a anomalia psquica.

    No h sentido no diferente tratamento dado aos dois

    tipos de anomalia. A primeira exposio, assim, termina na

    unio da anomalia psquica e fsica, voltando discusso

    propriamente do normal e do patolgico.

    O patolgico tem uma significao cronolgica: ele

  • 36

    interrompe uma atividade. Voltar ao normal sempre

    voltar a fazer aquilo que se fazia antes do acontecimento

    da doena, o essencial, para ele, sair de um abismo de

    impotncia ou de sofrimento em que quase ficou

    definitivamente; o essencial ter escapado de boa [p.46].

    Jaspers10 entendeu bem as dificuldades mdicas para uma

    concepo da sade, afinal, o mdico no trata da sade e

    da doena, mas dos fenmenos vitais (por isso no se

    interessam por conceitos que podem, a primeira vista,

    parecer excessivamente metafsicos ou at mesmo banais).

    A definio da doena feita a partir da prpria

    compreenso individual do paciente e do meio social,

    segundo o autor doente um conceito geral de no-valor

    que compreende todos os valores negativos possveis

    [Jaspers apud Canguilhem p.46]. Dado esta definio

    social da doena, entende-se que a medicina deu

    fisiologia a tarefa de definir o normal. Esta, por sua vez, lhe

    entrega um normal descritivo (estatstico, como j mostrou

    Claude Bernard) e teraputico, que se mostra terico

    (como Comte ou Bichat). Como a medicina vai conseguir

    transformar isso em um normal de fato, em um ideal

    10Karl Theodor Jaspers (1883 1969) foi um psiquiatra e filsofo alemo, uma das grandes influncias dos existencialistas.

  • 37

    biolgico? Parece, para Canguilhem, que a medicina

    retomou da fisiologia os problemas que ela havia lhe

    dado. Comea, ento, a tentativa de Canguilhem em

    examinar os conceitos de normal, anomalia e doena, e da

    relao entre o normal e o experimental.

    O normal

    A princpio, o Dictionnaire de mdecine de E. Littr e Ch.

    Robin ( j comentado acima), d a definio mais

    generalista do normal, normal (normalis, de norma,

    regra), que conforme regra, regular [p.48]. Lalande

    traz em seu Vocabulaire technique et critique de la

    philosophie um jeito mais especfico de definir o conceito:

    aquilo que no se inclina nem para a esquerda nem para

    a direita, portanto o que se conserva em um justo meio-

    termo [p.48], o normal o que deve ser, o ponto do meio.

    curioso que, ao longo do livro, Canguilhem mostra que o

    normal definido s vezes a partir de um fato e, s vezes,

    por um sujeito enunciatrio que fala sobre um fato

    especfico da medicina sob um ponto de vista adotado. Ou

    seja, a doena algo especfico ou algo ditado por um

    mdico. Por fim, a ltima confuso est no entendimento

  • 38

    de que o normal o estado habitual e ideal dos rgos,

    j que o restabelecimento desse estado habitual o

    objeto usual da teraputica [p48].

    A medicina coloca o normal como um dado a ser

    alcanado, assim, Canguilhem tambm se pergunta, ser

    que a teraputica tem o normal como objetivo porque ele

    considerado normal pelo paciente ou ser que ele

    considerado normal porque a teraputica visa o atingir?

    Ele d a primeira opo como certa: o normal existe

    porque o vivente percebe como patolgicos estados e

    comportamentos avaliados com valores negativos (tudo

    em relao ao meio) que precisam de correo. O que isso

    significa? Que a vida que polaridade, posio

    inconsciente de valor - no indiferente em relao ao

    meio em que ela possvel, ela uma atividade normativa.

    Esta produo de normas j presente em seu germe, no

    somente na conscincia humana, mas em toda vida. A

    tcnica mdica, por si mesma, criada a partir desta

    reatividade polarizada que a vida tem em relao ao meio

    em que se encontra.

    A polaridade passada para a cincia mdia, se expressa na

  • 39

    diviso entre patologia e fisiologia, cincia da doena e

    cincia da vida, desviada e norma. No entanto, as cincias

    naturais ou fsicas no tm uma contrapartida, um

    contrrio, no h como criar uma cincia desviada da

    norma, no existe desvio das leis naturais na fsica, por

    exemplo. claro que o objetivo dos mdicos do sculo XIX

    foi conseguir realizar esta unio, com Comte e Claude

    Bernard, como j vimos. fcil de explicar, a partir de

    Galileu e Descartes, todos os movimentos passaram a ser

    descritos como naturais e explicados pelas mesmas leis:

    no haviam excees. Este esprito cientfico fsico foi o

    impulso para uma tendncia da biologia a se unificar.

    E aqui pode-se explicar a diviso entre normal e

    patolgico a partir de tudo j desenvolvido em relao ao

    normal e sua definio: com certeza o patolgico regido

    pelas mesmas leis que o normal, o que difere ambos no

    so as leis naturais que descrevem cada reao fsico-

    qumica presente em seus processos, mas sim a prpria

    relao do indivduo concreto com o meio. Afinal, o

    definidor de fato a norma, que a atividade do prprio

    organismo. Esse o fato simples que queremos designar

    quando falamos em normatividade biolgica [p.49], a

  • 40

    possibilidade de ainda ser normativo que vai definir a

    sade, sendo que a patologia est na impossibilidade de

    superar a normatividade atual, de se normatizar por isso

    a doena pede a conservao dos estados e dos

    comportamentos do doente.

    A anomalia e a doena

    Segundo I. Geoffroy Saint-Hilaire11, anomalia

    Qualquer desvio do tipo especfico ou, em outras

    palavras, qualquer particularidade orgnica

    apresentada por um indivduo comparado com a

    grande maioria dos indivduos de sua espcie, de sua

    idade, de seu sexo, constitui o que se pode chamar

    uma Anomalia [Saint-Hilaire apud Canguilhem P51]

    Um desvio estatstico, como argumenta Canguilhem. O

    mesmo autor da definio acima ainda classifica tipos de

    anomalia conforme sua importncia. A importncia torna a

    classificao objetiva, j que feita segundo as funes

    vitais do organismo, mas ainda uma medida subjetiva a

    partir do que favorece ou prejudica o indivduo segundo

    Saint-Hilaire, quando a anomalia nem mesmo percebida

    11Isidore Geoffroy Saint-Hilaire (1805 1861) foi um zologo francs, membro da Academia Leopoldina, primeira organizao cientfica do mundo.

  • 41

    pelo indivduo em toda sua vida, ela deve ser classificada

    em um tipo especial, que pode significar algo histria

    natural, mas no patologia.

    curioso que a medicina pretende observar as anomalias

    a partir do ponto de vista estatstico, cientfico, quando o

    que chama ateno das anomalias no bilogo o desvio

    normativo (que tem relao com os exerccios de

    atividades comuns pelo paciente). Nem toda anomalia

    patolgica, mas s a existncia de anomalias patolgicas

    que criou uma cincia especial das anomalias que tende

    normalmente pelo fato de ser cincia a banir, da

    definio da anomalia, qualquer implicao normativa

    [p.52-53].

    Se a anomalia a variao individual entre dois seres que

    impede sua mtua substituio, ainda assim, no devemos

    confundir diversidade com doena. O anormal no o

    patolgico [p.53] (na Frana, anormal adjetivo de

    anomalia - e esta, substantivo de anormal), isso porque o

    patolgico implica no sentimento de estar debilitado,

    impotente. at mesmo possvel entender que o

    patolgico normal, utilizando a mdia aritmtica

  • 42

    (refutada por Canguilhem) para classific-lo, como j

    vimos alguns cientistas fazerem, ao longo desta resenha. A

    patologia normal, da mesma forma que a vida sem

    doena anormal, pois normal adoecermos e, portanto,

    a norma da sade plena impossvel, irrealizvel, algo

    somente ideal.

    A anomalia no necessariamente doena tambm

    porque aquela se d numa variao espacial no

    organismo, enquanto esta, em uma mudana cronolgica,

    como j colocado. Enquanto a anomalia sempre

    congnita e pode se manifestar, por exemplo, numa

    variao gentica nas vsceras jamais sentida por seu

    possuidor, a doena interrompe o curso de uma histria,

    de uma atividade, de uma vida, prprio dela cortar uma

    linha contnua e separar o presente de um passado

    nostlgico. Caso a anomalia tenha de fato algum efeito

    sobre as atividades do indivduo, a chamada de

    enfermidade, que pode ser dividida naquelas j vistas

    desde o nascimento, que barram qualquer atividade; e nas

    que se expressam somente na atividade especfica. Nascer

    enfermo no considerado to ruim quanto ficar enfermo.

    Ficar enfermo contrrio noo de que o corpo humano

  • 43

    pode ser adaptvel a toda situao possvel.

    Em resumo, a anomalia pode transformar-se em doena,

    mas no , por si mesma, doena [p 54]. Caso nada mude

    a vida do portador da anomalia, no faz sentido classific-

    la como doena, o que faz da doena algo individual e no

    possvel de ser atribudo anomalia.

    A anomalia pode se tornar doena quando, ao estabelecer

    uma relao com o meio, o organismo se mostra ineficaz

    (ou parcialmente eficaz). O meio, por sua vez, tem papel

    importante da formao do sujeito normal ou patolgico:

    ele normal na medida em que permite o

    desenvolvimento do ser vivo a partir de sua norma, ao

    passo que o ser vivo normal no meio enquanto ele

    puder ser a soluo morfolgica e funcional para todas as

    exigncias daquele meio. O meio e o ser vivo so normais

    um em relao ao outro, nunca separados.

    Aqui temos outra profunda reflexo de Canguilhem:

    nenhum fato normal fora da norma que ele toma como

    referncia. Desta forma, nenhum fato normal ou

    patolgico por si, mas sempre de acordo com as normas

    em que ele est situado. At mesmo o patolgico (a

  • 44

    doena), que no a ausncia de norma biolgica, uma

    norma diferente, mas comparativamente repelida pela

    vida [p.56].

    O normal e o experimental

    Normal e experimental se separam pela prpria

    introduo do sujeito na experincia. Tanto o sofrimento

    quanto a anestesia so influncias que prejudicam o

    resultado do experimental quando comparado com o

    normal, admite Claude Bernard.

    Depois, ainda precisamos colocar outro ponto j discutido

    no item anterior desta resenha: se o estado normal de um

    ser vivo definido a partir de sua relao com o meio, o

    laboratrio pede um novo esquadrinhamento do normal,

    j que ele um novo meio.

    Normal e experimental no so coincidentes, como alguns

    pesquisadores teimavam em considerar justamente

    porque o normal no um ideal a-histrico e o meio um

    fator dependente na definio de qualquer normalidade.

  • 45

    O homem mdio norma e mdia

    A mdia aritmtica, assunto j tratado nesta resenha,

    fcil de refutar enquanto definidora do normal. No

    possvel estabelecer um normal a partir de mdias

    aritmticas porque no h situao em que a mdia de

    diversas amostras possa convergir: no se pode calcular a

    mdia glicmica entre duas pessoas e consider-la normal,

    porque a taxa de glicemia depende do horrio da coleta,

    das condies do indivduo coletado (que so distintas

    para cada organismo), enfim, ela uma maneira de fugir

    do qualitativo para entrar num campo nada prtico, da

    idealidade matemtica. Claude Bernard teceu esta crtica,

    seu conceito de normal era um tipo ideal em condies

    experimentais, sentido inverso da frequncia estatstica.

    Com a crtica acima, parece que a mdia individual a

    soluo para a querela da mdia aritmtica, no entanto,

    mesmo o clculo individual grosseiro, porque ele calcula

    a mdia individual, no humana. E quando o indivduo

    est doente, a sua mdia ser diferente, ser necessrio

    compar-la com a mdia de outros indivduos para

    entender que se trata de uma situao atpica.

  • 46

    Lambert Adolphe Jacques Qutelet (1796 1874) criou o

    conceito de homem mdio de suas pesquisas estatsticas.

    Posto que a mdia aritmtica no era satisfatria, o que

    interessava para Qutelet era a mdia tpica, real. Para este

    cientista, a regularidade de uma mdia tpica (ou seja, de

    um subgrupo com maior nmero de indivduos que se

    aproximam da mdia aritmtica) era a prova de um ncleo

    balizador da humanidade. Era a mensagem divina para a

    definio do normal. A mdia, portanto, no uma

    medida impossvel, um ideal inalcanvel: uma medida

    real, observvel.

    claro que achar a mdia uma traduo da vontade divina

    no condiz com os objetivos do livro de Canguilhem, mas

    a noo de que h uma mdia real lhe interessa. Como ele

    vai us-la? Relacionando com o meio. A altura das

    pessoas, o tamanho de suas mos, ombros, cabea ou a

    quantidade de dentes que efetivamente tm na boca no

    dependem somente de gentica, se assim fosse, todos os

    humanos seriam iguais em todos os cantos do mundo.

    Dependem tambm do meio. O meio no altera a

    gentica, isso j sabido, mas ele seleciona alguns

    exemplares para a reproduo e limita o desenvolvimento

  • 47

    do organismo.

    Canguilhem, portanto, afirma que a posio de Qutelet

    limitada:

    Ora, isso insustentvel do ponto de vista humano,

    em que as normas sociais vm interferir com as leis

    biolgicas, de modo que o indivduo humano

    produto de uma unio que obedece a todos os tipos

    de prescries consuetudinrias e legislativas de

    ordem matrimonial. Em resumo, hereditariedade e

    tradio, hbito e costume so outras tantas formas

    de dependncia e de ligao interindividual e,

    portanto, outros tantos obstculos a uma utilizao

    adequada do clculo de probabilidades. [p.62]

    E continua,

    O homem um fator geogrfico, e a geografia est

    profundamente impregnada de histria, sob a forma

    de tcnicas coletivas. A observao estatstica, por

    exemplo, permitiu constatar a influncia da drenagem

    dos pntanos de Sologne sobre a estatura dos

    habitantes. Sorre admite que a estatura mdia de

    alguns grupos humanos tenha se elevado

    provavelmente sob a influncia de uma melhor

    alimentao. [p.62]

  • 48

    Por isso, a norma vista a partir do clculo estatstico, no

    mera normatividade vital, mas normatividade social. o

    fato de ser normal um certo gnero de vida (um tipo geral

    de viver) que causa a frequncia estatstica de certas

    caractersticas biolgicas.

    Na contramo da viso social, Flourens12 considera o

    normal como uma possibilidade virtual. Se possvel

    algum chegar a 100 anos, ento qualquer um pode

    desde que se retire os desvios acidentais, doenas e etc.

    Desta forma, de 100 anos a durao normal (ou natural)

    da vida de um homem.

    Canguilhem novamente tem um timo insight que

    reproduzo na ntegra abaixo,

    A durao mdia da vida no a durao de vida

    biologicamente normal, mas , em certo sentido, a

    durao de vida socialmente normativa. Nesse caso,

    ainda, a norma no se deduz da mdia, mas se traduz

    pela mdia. Seria ainda mais claro se, em vez de

    considerar a durao mdia de vida em uma

    sociedade nacional, considerada globalmente, essa

    sociedade fosse especificamente dividida em classes,

    12Jean Marie Pierre Flourens (1794 - 1867), mdico francs pioneiro em anestesia.

  • 49

    em profisses etc. Sem dvida, constatar-se-ia que a

    durao de vida depende do que Halbwachs chama,

    em outra ocasio, de nveis de vida. [p.63]

    Tudo aquilo que visto estatisticamente como normal em

    um dado grupo especfico, de fato uma normatividade.

    No h nada que no seja normativo. O segredo que

    precisamos ter sempre em mente com o tipo de

    normatividade que estamos lidando: uma constante

    fisiolgica um estado fisiolgico ideal em condies

    especficas, proporcionado pelo prprio ser vivo. por isso

    que o homem Neanderthal no pode ser classificado

    como um exemplar patolgico perfeito, apesar de ser um

    doente em comparao com o humano normal de hoje.

    Norma e mdia terminam por ser conceitos irredutveis

    um no outro. A vida normativa em seu ncleo, mas as

    normatividades destacadas pelas mdias no so

    biolgicas ou fisiolgicas, so sociais.

    Doena, cura e sade

    Para observar a doena, j constatamos que a

    normatividade do indivduo, suas condies de exerccio

    das atividades correntes, so determinantes para a

  • 50

    constatao da doena. Anomalia no sinnimo de

    patologia, como j constatamos, ento no possvel

    definir a doena a partir dela mesma. A responsabilidade

    da definio da doena est sob o prprio ser vivo dentro

    de suas condies imediatas. A norma deve ser

    comparada, revela Sigerist13, com as condies do

    indivduo examinado e no com mdias ideais. Esta

    positividade subjacente anlise do indivduo em suas

    condies leva concluso j dita anteriormente, de que a

    patologia, ou o estado patolgico, no representam

    estados ausentes de normas, mas sim estados com um

    tipo de normatividade diferente: uma norma inferior, que

    anula a possibilidade de criao e adaptao humanas,

    que no permite fugir das condies especficas que ela

    prpria determina.

    A doena pede criao de normas. Goldstein percebeu

    que seus doentes se relacionavam de maneira diferente

    com o meio aps a doena, limitadamente, mas a partir de

    novas normas. O doente s pode admitir uma norma, da a

    monotonia da vida doente, ele no mais normativo, no

    13Henry Ernest Sigerist (18911957), foi um historiador da medicina francs, diretor do intituto de histria da medicina na Universidade Johns Hopkins e lutou pela medicina social na Associao Mdica da Amrica.

  • 51

    pode escolher entre diferentes normas para sua vida. Ele

    s tem uma, relativa doena, mas uma norma criada,

    original, nova, no pode ser reduzida normatividade em

    estado sadio. A doena uma nova dimenso da vida

    [p.73].

    At mesmo na psiquiatria, quando se fala em regresso, se

    deve ter em mente que no h regresso de fato, pois

    toda regresso feita a partir do presente, portanto,

    uma formao nova na vida do indivduo. Ey e Rouart

    perceberam que os pacientes com involuo de

    personalidade estabeleciam novas relaes com o meio,

    mas no voltavam s relaes estabelecidas quando eram

    crianas, por exemplo. Admitir que a regresso torna o

    adulto uma criana, novamente, admitir que uma criana

    igual a um adulto doente.

    Goldstein14, apoiado na teoria da desordem bergsoniana,

    entende que a desordem, propriamente dita, no existe,

    h uma nova configurao da ordem que ns no

    conseguimos usar e que temos que aguentar. A doena

    14Kurt Goldstein (1878-1965) foi um psiquiatra e neurologista alemo. Conhecido por ser pioneiro em neuropsicologia moderna. Influenciou, alm de Canguilhem, Marleau-Ponty e Carl Rogers.

  • 52

    no desordem, uma ordem original que temos que

    lidar.

    A cura, reversibilidade, no existe. Se pensarmos na cura

    como voltar ao estado anterior, temos que nos corrigir, j

    que Canguilhem exps a nova formao de vida que a

    doena traz e que, ao mesmo tempo, a cura tambm

    representa (pois uma outra formao, to diferente

    quanto a doena ou a sade anterior).

    O que , ento, ser saudvel? ser curado? Nunca. Ser

    saudvel ter a possibilidade de interminveis

    normatividades. a capacidade de instituio de novas

    normas biolgicas [] e ultrapassar a norma que define o

    normal momentneo, a possibilidade de tolerar infraes

    norma habitual [p.77].

    A sade um seguro, uma forma de aguentar o risco

    presente na vida. Por mais que as leis da natureza possam

    explicar cada passo humano, a experincia humana ainda

    mostra uma multiplicidade de acontecimentos, no de

    fenmenos calculados pela cincia. Por isso, viver

    perigoso, viver dinmico, polaridade, sendo assim a

    sade um guia regulador das possibilidades de reao.

  • 53

    A vida est, habitualmente, aqum de suas possibilidades,

    porm, se necessrio, mostra-se superior sua capacidade

    presumida [p.78]. A doena, ento, diminui as

    possibilidades de reao ao meio, por isso que a

    preocupao do paciente no est fixa na doena, mas nas

    subdoenas que vm aps a primeira: no o diabetes

    que preocupa, mas sim a gangrena. E o que na gangrena

    perturba? As consequncias disfuncionais que ela causar

    no paciente. A doena e a sade precisam ser vistas para

    alm do corpo, mas na relao do corpo com o meio,

    sempre.

    Definindo fisiologia e patologia

    Aps longa anlise, possvel entender que a velha noo

    da fisiologia como cincia das funes normais da vida j

    no faz sentido. Afinal, o que este normal? J foi

    demonstrado que o anormal no mais que um normal

    diferente e no algo fixo, esttico. Normal relacionado

    com normatividade, que sempre social. Mas ento no

    possvel chamar a fisiologia de cincia? Em seus

    procedimentos, sim, ela uma cincia, mas seu objeto

    fluido. Canguilhem a define como cincia das condies

  • 54

    da sade, provisoriamente.

    A sade, por sua vez, gera a prxima incgnita. Segundo

    Raphael Dubois15,existe uma relao entre o conceito de

    natura medicatrix16 e a definio da fisiologia com base na

    sade: O papel da natura medicatrix se confunde com o

    papel das funes normais do organismo que so todas,

    mais ou menos diretamente, conservadoras e defensivas.

    Ora, a fisiologia estuda justamente as funes dos seres

    vivos ou, em outros termos, os fenmenos normais do

    prteon vivo ou bioprteon17 [Dubois apud Canguilhem

    p.81].

    Sigerist concebe a fisiologia com viso histrica. Segundo

    o autor, o nascimento da fisiologia no est descolado da

    emergncia do estilo barroco: sendo este para alm de

    um estilo artstico um tipo caracterstico de pensamento

    sobre o mundo a partir do movimento, no se concentra

    nos rgos como matria esttica, mas em suas relaes:

    no se v o olho, mas o olhar. A idia funcional, em

    15Horace Raphael Dubois (1849-1929) foi um farmaclogo francs famoso por seus trabalhos em anestesia e bioluminescncia.16Expresso utilizada por Hipcrates (460 a.c. - 370 a.c.) para definir o poder de cura da natureza, conceito relacionado com a tendncia dinamista e totalizante da medicina grega.17Prteon matria, enquanto bioprteon matria viva ou vida.

  • 55

    medicina, acompanha a arte de Michelangelo e a

    mecnica dinmica de Galileu [p.82], explica Canguilhem.

    Canguilhem modifica sua definio prvia de fisiologia.

    Segundo o autor, explic-la como cincia dos ritmos

    estabilizados da vida [p.82] abarca todas as crticas feitas

    ao longo de seu ensaio e consegue absorver as propostas

    feitas para definio da doena, do normal e do

    patolgico. Tendo uma definio oficial, resta-nos

    entender como situar a sade e a doena. H dois

    comportamentos inditos da vida, o primeiro que

    representa a adequao do organismo a uma norma, mas

    sem se limitar a ela, podendo, assim, se adequar a diversas

    outras normas sempre que necessrio, portanto, uma

    constante que no barra a possibilidade de super-la

    chamada pelo autor de constantes normais de valor

    propulsivo -, o segundo comportamento o inverso,

    quando o ser vivo se estabiliza, se adqua em constantes

    que ele no pode abandonar e, por isso, luta para mant-

    las, so constantes de valor repulsivo, matam a

    normatividade, so constantes patolgicas (mas ainda

    normais, enquanto o ser vivo puder viver nelas).

  • 56

    A definio antiga da patologia como fisiologia com

    obstculos, feita por Virchow18, tem como pressuposto de

    que a doena no mais que as funes normais alteradas

    devido a um elemento estranho, uma viso prxima

    medicina de Claude Bernard. Canguilhem observa dois

    erros nesta compreenso da patologia: um de ordem

    pedaggica e um de ordem heurstica. O mdico aprende

    na faculdade primeiramente a anatomia e a fisiologia do

    homem normal, a partir disso se deduz a razo de certos

    estgios patolgicos. No entanto, como j explcito

    anteriormente, o doente foi o primeiro a perceber em seu

    corpo (e em sua vida) alguma alterao, se dirigiu ao

    mdico e lhe pediu ajuda. Foi a partir da iniciativa do

    doente que o mdico pde investigar a suposta doena.

    caracterstica do mdico esquecer que o doente que

    traz a doena e do fisiologista esquecer que sua cincia

    precedida pela clnica e pela teraputica. Na medicina, o

    phatos precede o logos. A vida s se eleva conscincia e

    cincia de si mesma pela inadaptao, pelo fracasso e

    pela dor [p.83].

    18Rudolf Ludwig Karl Virchow (1821 - 1902) foi um mdico polons, criador da patologia celular.

  • 57

    Talvez seja por ignorncia a isso que Bernard e Virchow

    tentaram definir cientificamente a patologia como cincia

    das doenas, um a colocando como estatstica, o outro

    como anlise celular. Ricker19 apresenta a fisiologia unida a

    patologia: uma s cincia sem a menor preocupao com

    conceitos cientficos da vida, com objetivos ou fins,

    unicamente uma cincia da determinao causal dos

    fenmenos fsicos. Ele dispensa conceitos como de

    movimento, nutrio e gerao, por terem um sentido

    teleolgico, mas contrariado por Herxheimer20, que v a

    patologia indissocivel a estes conceitos, devido prpria

    condio psicolgica de quem a prtica.

    J A. Schwarz entende que o sentido a categoria (na

    linguagem kantiana) por excelncia da patologia, que

    junto com a noo de finalidade, atuam em conjunto

    para perceber a tendncia geral do organismo,

    Mas elas tm funes anlogas tanto no campo do

    conhecimento quanto no do devir, de onde tiram

    qualidades comuns: Assim, percebemos o sentido de

    19Gustav Ricker (1870-1948) mdico alemo, diretor do instituto de patolgiade Magdeburg.20Karl Herxheimer (1861 - 1942) foi um mdico dermatologista alemo. Junto com Adolf Jarisch, descobriu a reao Jarisch-Herxheimer no tratamento da sfilis.

  • 58

    nossa prpria organizao na tendncia

    autoconservao, e s uma estrutura do meio que

    seja dotada de sentido nos permite distinguir

    finalidades nessa mesma organizao [p.87].

    Em caminho parecido, o pesquisador Hueck indica que a

    valorizao e interpretao teleolgica necessria para

    explorar os resultados da patologia na medicina prtica.

    Afinal, o que diria ele [Ricker] se um patologista lhes

    respondesse, ao enviar-lhe suas constataes, aps a

    bipsia de um tumor, que saber se o tumor maligno ou

    benigno uma questo de filosofia, e no de patologia?

    [p.87].

    O ponto de vista cientfico, seja ele como for, fruto de

    uma escolha, de uma posio que se toma em relao a

    um objeto. No novidade que esta escolha tenha sido

    feita na poca em que o homem aplicava mtodos para

    determinar cientificamente o real. Ao tentar determinar

    sade e doena a partir das leis fsico-qumicas e

    processos biolgicos, se esquece que doena e sade so

    valores dependentes do indivduo concreto, de sua vida. O

    movimento polarizado que a vida precisa das noes de

    normatividade tanto da sade como da doena. Estas, so

  • 59

    categorias subjetivas, tcnicas, no cientficas ou objetivas.

    O mdico escolheu tomar partido dos seres vivos que

    preferem a sade em vez da doena, a sade no uma

    compreenso objetiva do mundo.

    A distino entre patologia e fisiologia, no fim, tem

    objetivos clnicos salutares, mas s. por essa razo que

    achamos, contrariamente a todos os hbitos mdicos

    atuais, que medicamente incorreto falar em rgos

    doentes, tecidos doentes, clulas doentes [p.89]. A

    doena um valor negativo ao ser vivo, indivduo

    concreto, no um objeto da natureza assistido por sua

    cincia especfica o exame bacteriolgico, por exemplo,

    gera um resultado, um punhado de dados, que no tm

    nenhum valor de diagnstico por si s.

  • 60

    Resumo

    O trabalho de Canguilhem se inicia com uma crtica aos

    princpios mdicos que definem a patologia como

    variao quantitativa de funes normais. O normal s

    pode ser definido tendo em mente a polaridade dinmica

    a qual a vida est sujeita, os valores que a vida estabelece

    ao meio e ao prprio organismo (ou seja, a normatividade

    biolgica) so os pilares da definio da doena.

    Normal patolgico e normal fisiolgico so normais

    diferentes, mas ainda so normais, ambos. Isso porque o

    anormal no constitudo de ausncia de norma, mas de

    um tipo de normas diferente. Desta forma, o estado

    fisiolgico, no pode ser chamado de estado normal,

    mas sim de estado so, o estado em que a

    normatividade posta ainda pode ser superada para a

    instituio de novas normas. J o estado patolgico no

    permite essa mudana, a norma estabelecida precisa ser

    conservada para garantir a vida, no h normatividade. Por

    sua vez, a cura se restringe ao retorno ao estado em que

    possvel estabilizar as normas fisiolgicas, mas nunca a um

    retorno biolgico a um estado anterior.

  • 61

    Atribuir s constantes fisiolgicas o valor de normal indica

    a relao das cincias da vida com a atividade normativa

    da vida, a relao das cincias da vida humana com as

    tcnicas biolgicas de produo e instaurao do normal,

    a medicina [p.92].

    Como a medicina uma tcnica que parte do princpio do

    ser vivo em dominar e organizar o meio que o cerca

    segundo seus valores, fato que ela existe porque os

    homens ficam doentes (primeiro o phatos, depois o logos).

    Qualquer conceito emprico de doena conserva uma

    relao com o conceito axiolgico da doena, portanto, o

    homem doente s pode ser identificado como tal na

    clnica, j que a doena e a sade so valores que o

    indivduo concreto pode dar para si.

  • 62

    Revisitando 20 anos depois

    Devido influncia que seu livro teve na Frana,

    Canguilhem se viu obrigado a revisitar O Normal e o

    Patolgico e, para alm de um prefcio, foi necessrio criar

    um captulo a parte.

    O normal

    O termo normal veio para a linguagem popular francesa a

    partir de dois imperativos institucionais: o pedaggico e o

    sanitrio. Ambos se constituram a partir de uma mesma

    causa, a Revoluo Francesa. A reforma da teoria da

    medicina se baseia em toda a reforma hospitalar e na

    reforma da prtica mdica nos tempos da revoluo.

    Tanto a reforma hospitalar como a pedaggica exprimem

    uma exigncia de racionalizao que se manifesta tambm

    na poltica, como se manifesta na economia, sob a

    influncia de um maquinismo industrial nascente que

    levar, enfim, ao que se chamou, desde ento, de

    normalizao [p.108].

    O normal, por sua vez, no existe sem a prpria norma, ao

    mesmo tempo em que a norma tem sua materialidade no

  • 63

    normal. Ele multiplica a regra, ao mesmo tempo que a

    indica. Ele requer, portanto, fora de si, a seu lado e junto a

    si, tudo o que ainda lhe escapa [p.108]. Isso pois, uma

    norma serve para impr exigncias a um estado de coisas,

    que aparece como hostil norma (e, por isso, precisa

    dela). Toda norma compara o real a valores, sempre em

    oposio em seus dois polos negativo e positivo, que

    fazem da infrao norma uma possibilidade prtica em

    seu campo de aplicao. Posto isso, a infrao a

    condio (mais que a exceo) da existncia da regra, pois

    na infrao que a regra aplicada, assim que acontece

    a regulao.

    A prtica da norma gera o normal, que tem como negao

    lgica o anormal. Anormal posterior ao normal

    logicamente, no entanto, o futuro anormal que gera a

    inteno normativa. Sendo assim, apesar de ser

    logicamente o segundo, o anormal existencialmente o

    primeiro da oposio.

    A normalizao

    O que acontece do sculo XVII adiante, com o nascimento

    da gramtica na Frana e a instituio do sistema mtrico

  • 64

    no sculo seguinte so funes de uma mesma

    transformao coletiva: a normalizao. Comea-se pelas

    normas gramaticais, para acabar nas normas morfolgicas

    dos homens e dos cavalos para fins de defesa nacional,

    passando pelas normas industriais e higinicas [p.111].

    As normas higinicas nascem com o aumento da

    importncia do ponto de vista poltico - do cuidado s

    populaes estatsticas, s retirando de locais insalubres e

    universalizando os cuidados da medicina. A norma nasce

    como algo que fixa o normal a partir de uma deciso

    subjetiva normativa. A norma tcnica tambm acontece

    com o estabelecimento da norma jurdica e a ligao de

    ambos com a economia. Corpos saudveis so corpos

    produtivos e, com normas jurdicas bem-feitas, a

    expropriao da indstria fica impossvel de se imaginar,

    portanto, os interesses da sociedade capitalista emergente

    garantido. A correlatividade das normas sociais:

    tcnicas, econmicas, jurdicas, tende a fazer de sua

    unidade virtual uma organizao [p.114]. A tendncia das

    normas sociais se tornarem normas orgnicas, relata

    Canguilhem.

  • 65

    Em relao associao do organismo com a sociedade,

    existe uma diferena bsica: o terapeuta sabe muito bem

    qual o estado normal que ele precisa alcanar com suas

    tcnicas, j na sociedade, no h um estado normal para

    se basear. Muitas vezes, o estado normal para um a

    continuao da doena para outro. Se o mdico no

    procura gerar um novo homem, porque o estado normal

    do organismo humano fornecido por ele prprio, est

    contido em sua existncia, mas o mesmo no se pode

    dizer da sociedade.

    De certa forma, a gentica uma maneira de normatizar

    biologicamente o organismo alheio a partir da cincia,

    com a criao de seres vivos experimentais: se o normal

    de um organismo coincide com ele prprio, o normal de

    um organismo criado sob a gide de um geneticista

    dever coincidir com os clculos deste cientista.

    As normas sociais no podem ser observadas para serem

    seguidas, precisam ser inventadas.

    O erro

    A noo de erro entra na medicina como uma substituio

  • 66

    (operada pela gentica) da fsica newtoniana pela teoria da

    informao. Uma doena gentica passa a ser vista como

    um erro inato, produzido pelo prprio organismo.

    A noo de erro estabelece uma nova dicotomia (vida x

    erro) e tambm dispersa o ideal iluminista de sade e

    doena. Ao invs da doena ser identificada a partir da

    culpa do indivduo, do meio ou de uma maldio

    corprea, ela admitida como um mal-entendido. No fim,

    no se trata da tentativa de reenquadrar a experincia da

    doena, mas de colocar em xeque a dicotomia vida x

    conceito, demonstrando sua relao dialtica.

  • 67

    A importncia de Canguilhem

    H cincias que se dizem cincias e no passam de

    impostura cientfica de uma ideologia social; h

    ideologias no cientficas que, em encontros

    paradoxais, produzem verdadeiras descobertas

    como se v o faiscar do fogo nascido do choque de

    dois corpos estranhos. Por isso mesmo toda a

    complexa realidade da histria, em todas as suas

    determinaes econmicas, sociais, ideolgicas, entra

    em jogo na inteligncia da prpria histria cientfica.

    As obras de Bachelard, de Canguilhem e de Foucault

    so a prova disso [Louis Althusser21].

    Canguilhem nasceu em 1904 e morreu 1995, foi um

    epistemlogo francs de renome no ps-guerra. Sua obra

    considerada como a extenso e tambm inovao em

    relao epistemologia de Gaston Bachelard. Ambos

    recusavam a pretenso da epistemologia em estabelecer

    critrios universais de cientificidade, assim como no

    aceitavam a noo de um tempo nico e homogneo da

    cincia e rejeitavam as pretenses positivistas de elaborar

    21Louis Althusser, apresentao de A Filosofia da Cincia de Georges Canguilhem: epistemologia e histria das cincias, de Pierre Macherey IN: Georges Canguilhem. O Normal e o Patolgico, 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2009. p.139.

  • 68

    uma histria cronolgica, como concatenao de fatos22.

    Sua filosofia, assim como a de Bachelard, tanto uma

    epistemologia histrica quanto uma histria

    epistemolgica23. Seu objetivo, comenta Roberto

    Machado, no revelar a verdade de fora da cincia, mas

    encontrar na prpria cincia sua normatividade, realizando

    o que ele chama de histria recorrente, a histria feita a

    partir da finalidade do presente. Que parte dos valores

    dominantes do presente para encontrar em seu passado

    as formaes progressivas da verdade.

    Na obra tratada aqui, O Normal e o Patolgico, o ttulo

    explica o objetivo do autor: entender a relao entre o

    normal e o patolgico e propor noes de vida, de normal

    e de doena. Pode-se dizer que o trabalho de Canguilhem,

    para alm da definio de normal e patolgico, permite

    entender as decises da razo a respeito de seu outro:

    como a patologia e a loucura24. Segundo Vladimir Safatle,

    uma das ideias fundamentais de uma combativa tradio

    epistemolgica do sculo xx, que tem nomes como Michel

    22Roberto Machado. Foucault, a cincia e o saber. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2006.23Foucault, a cincia e o saber...24Vladimir Safatle. O que uma normatividade vital? Sade e doena a partir de Georges Canguilhem. scienti zudia, So Paulo, v. 9, n. 1, p. 11-27, 2011.

  • 69

    Foucault e Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que

    a doena, o patolgico, no tem gramtica prpria, que

    ela, portanto, precisa ser vista em sua linha relativamente

    autnoma, enquanto cincia, mas tambm em sua

    localizao no espao social. A histria das cincias, e aqui

    Canguilhem se distancia de Bachelard, a histria dos

    conceitos cientficos e sua constituio, sempre

    relacionada aos fatos da cultura, s vises de mundo,

    poltica e a qualquer outro fato que determinasse os

    critrios de racionalidade para cada discurso (assim como

    o cientfico) em cada momento da histria25. Safatle

    sintetiza este pensamento,

    Se o pensamento cientfico no forma uma srie

    independente, mas est ligado a um quadro mais amplo

    de ideias historicamente determinadas porque a reflexo

    epistemolgica

    no deve se perguntar apenas sobre os

    poderes e direitos de tcnicas e proposies

    cientficas que aspiram validade, mas deve

    25Tiago Santos Almeida. A historicizao das cincias atravs da obra de Georges Canguilhem. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH. So Paulo, 2011.

  • 70

    esclarecer a gnese dos padres de

    racionalidade e as condies de exerccio

    que se encarnam em tcnicas e proposies,

    assim como se encarnam nas outras

    formaes discursivas que compem o

    tecido social26

    Seu trabalho gira em torno dos conceitos porque, para o

    autor, so eles os elementos fundamentais na cincia: so

    os primeiros a serem formulados (para depois de sua

    formulao, proceder experincia) e so mais ou menos

    independentes em relao as teorias. Os conceitos no so

    limitados pelas esferas cientficas, neles h uma certa

    autonomia em que possvel encontrar seu uso em

    diversas reas, como Canguilhem prova ao mostrar o uso

    do conceito de norma, na esfera jurdica, tcnica e na

    sade.

    Todos os estudos de Canguilhem consideram

    o conceito a manifestao mais perfeita da

    atividade cientfica, o que o faz dele o

    elemento a ser privilegiado, pela anlise

    26Vladimir Safatle. O que uma normatividade vital?...

  • 71

    histrica, com relao aos outros aspectos da

    cincia, pois atravs dele que o discurso

    expressa sua racionalidade [...] E, neste

    sistema, enquanto o conceito assinala a

    existncia de uma questo, a formulao de

    um problema, a teoria apresenta

    determinada resposta, sugere uma soluo.

    Privilegiar o conceito significa valorizar a

    cincia como processo27.

    a partir disso que os conceitos de normal e patolgicos

    so esmiuados por Canguilhem. Primeiramente, o filsofo

    expe duas vises qualitativas, uma egipcia, que

    considerava a doena como uma invaso externa ao corpo

    sadio; e outra grega, que considerava a doena uma

    variao natural da sade, localizada em potncia no

    prprio corpo. Esta ltima uma viso mais dinmica e

    totalizante do patolgico.

    No entanto, ambas no conseguiram se manter aps as

    exigncias cientficas da modernidade. A necessidade de

    se manter longe de qualquer julgamento de valor fez com

    27Foucault, a cincia e o saber...

  • 72

    que os mdicos considerassem somente os aspectos

    quantitativos do corpo normal em relao com o corpo

    patolgico. A definio da doena seria a alterao

    quantitativa de algum elemento do organismo, gerando

    falta ou inflamao.

    Criticando principalmente a viso de Claude Bernard,

    Canguilhem apresenta uma anlise epistemolgica

    descontnua, focada na histria do conceito, at concluir

    que a sade capacidade de instituio de novas normas

    biolgicas [] e ultrapassar a norma que define o normal

    momentneo, a possibilidade de tolerar infraes norma

    habitual [p.77]. O que interessa Canguilhem, como visto,

    a normatividade vital que, por ser vital, tambm social.

    A vida no termina em si, mas se relaciona com o meio, s

    a partir desta relao possvel entender o normal ou o

    sadio, afinal, o indivduo concreto s so na medida em

    que est adaptado e pode, potencialmente, superar as

    condies normais de seu estado atual, sendo assim, a

    normatividade vital sempre uma normatividade

    encontrada em um espao social determinado.

    Canguilhem colocou o indivduo em primeiro plano, fez da

  • 73

    medicina uma tcnica em que o phatos precede o logos, j

    que o doente que denuncia seu mal ao mdico. Ao

    contrrio da tentativa cientfica de retirar o doente da

    anlise da doena (como se a doena tivesse uma vida

    prpria), o filsofo devolveu a ele a autoridade da

    definio da doena, que s pode ser definida

    individualmente, a partir das relaes e das possibilidades

    do indivduo com o meio.

    Como grande influncia da gerao de tericos sociais e

    socilogos da segunda metade do sculo XX, Canguilhem

    merece seu espao.

  • https://colunastortas.wordpress.com/

    HistriaAugusto ComteClaude BernardRene LericheAs implicaes de uma teoria

    Cincias do normal e do patolgicoO normalA anomalia e a doenaO normal e o experimentalO homem mdio norma e mdiaDoena, cura e sadeDefinindo fisiologia e patologia

    ResumoRevisitando 20 anos depoisO normalA normalizaoO erro

    A importncia de Canguilhem