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269 LEO WEIL 1 (Augsburg, Alemanha, 1922) 1 Entrevista concedida por Leo Weil a Rachel Mizrahi e Laís Rigatto Cardilo, pesquisadoras do Arqshoah/Leer-USP, com a presença da Sra. Carmen Littwach, sua esposa. S. Paulo, 30 de janeiro de 2013. Segunda entrevista concedida a Maria Luiza Tucci Carneiro. S. Paulo, Transcriação: Samara Konno e Maria Luiza Tucci Carneiro. Pesquisa: Blima Lorber. Leo Weil. S. Paulo, 30 de janeiro de 2013. Acervo: Arqshoah/Leer-USP.

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LEO WEIL1

(Augsburg, Alemanha, 1922)

1 Entrevista concedida por Leo Weil a Rachel Mizrahi e Laís Rigatto Cardilo, pesquisadoras do Arqshoah/Leer-USP, com a presença da Sra. Carmen Littwach, sua esposa. S. Paulo, 30 de janeiro de 2013. Segunda entrevista concedida a Maria Luiza Tucci Carneiro. S. Paulo, Transcriação: Samara Konno e Maria Luiza Tucci Carneiro. Pesquisa: Blima Lorber.

Leo Weil. S. Paulo, 30 de janeiro de 2013.Acervo: Arqshoah/Leer-USP.

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Vozes do Holocausto

Minhas raízes judaico-alemãs

Meu nome é Leo Weil. Nasci em 17 de junho de 1922, em

AugsburgA, no estado da Baviera, bem no sul da Alemanha,

perto de Munique mas longe de Berlim. Sou filho de

Hermann e Selma Weil, Oberdorfer de solteira. Ela nasceu

na cidade de Hainsforth (Alemanha) e o meu pai nasceu

em 9 de junho de 1883 em Buchau (Alemanha). Minha

família era de judeus liberais. Eu tinha uma irmã chamada

Edith Weil, dois anos e meio mais nova que eu, nascida

em 1924. Em Augsburg eu frequentei a escola básica até

1936, quando tinha 14 anos, alguns amigos e também um

grande inimigo: Adolf Hitler. Morávamos em uma casa na

Kaiserstrasse n° 25, em Augsburg. Depois mudamos para

outra rua próxima dali.

A-A cidade de Augsburgo ou Ausburgo está localizada no atual estado da Baviera e possui hoje cerca de 270 mil habitantes, sendo a terceira maior cidade da Baviera, depois de Munique e Nuremberg. Situa-se na confluência dos rios Wertach e Lech. Augsburgo existe desde a Antiguidade, quando era conhecida como Augusta Vibdelicorum, em latim. Foi fundada em 15 a.e.c. no reinado do imperador romano Augusto (r. 27 a.e.c – 14 e.c.). No século V foi tomada pelos hunos, por Carlos Magno no século VIII e por Guelfo I da Baviera no século XI. Em 1276, foi agraciada com o título de cidade-livre do Império Sacro Românico Germânico. Cresceu em importância e prosperidade, exceto durante a Guerra dos Trinta Anos e durante a Segunda Guerra Mundial. Ali nasceu um dos primeiros jornais impressos, o Relation oder Zeitung, em 1609, no mesmo ano em que foi criado o jornal Ordinarii Avisa em Estrasburgo.

Augsburg, no sul da Alemanha, cidade natal de Leo Weil.Google Maps.

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Leo Weil

Tive aulas de hebraico e cultura judaica,

duas vezes por semana, na sinagoga local, que

frequentávamos também nas Grandes Festas.

No Shabat*, todas as sextas-feiras, rezávamos

o kidusch*, algumas vezes na casa dos meus

tios, outras na nossa residência. Fiz o meu

Bar Mitzvá* em 1935, quando vieram todos

os meus tios de Munique e de Hainsforth.

Tivemos uma festa muito animada. Lembro-

me também de ter frequentado o clube de

esporte israelita, onde praticava esporte, jogava

futebol, fazia ginástica, além de frequentar as

reuniões sociais. Era uma vida restrita, pois não

tínhamos muitas possibilidades financeiras.

Augsburg, cidade de residência da família Weil, 1930. cartão-postal.Fotógrafo não identificado. Acervo: Deutsches-arquitektur; Arqshoah/Leer-USP.

Disponível em: <http://www.deutsches-architektur-forum.de/forum/showthread.php?t=12412&page=9. Acesso em: 1° ago. 2018.>

Leo Weil (bebê) no colo da sua bisavó (à esquerda), Karoline Oberdorfer; sua avó materna (à direita) e sua mãe Selma Weil (em pé). Pfersee,

Augsburg, Alemanha, 1923/24.Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Vozes do Holocausto

Tempos de mudanças

Com a ascensão do nazismo fiquei impedido de continuar estudando, como aconteceu

com muitos outros judeus da minha cidade. Logo sentimos o antissemitismo. Meu pai

e seus dois irmãos tinham uma fábrica de máquinas agrícolas e motores a gasolina, mas

foram obrigados a fechar em 1933. Depois, meu pai foi trabalhar em uma empresa para

não judeus, onde conseguiu ficar entre 1936/37, mas teve que largar o emprego.

Comecei a sentir a discriminação por volta de 1935 devido ao nazismo. Então, minha

mãe resolveu me levar para Amsterdã, na Holanda, onde já estavam os irmãos do meu

pai. Fui em férias e por lá fiquei. Tanto o meu pai como a minha mãe permaneceram na

Alemanha por um tempo, assim como a minha avó Karoline e a minha irmã Edith.

Enquanto eu estava na Holanda, fui orientado pelo meu tio a ter aulas de holandês para

poder ingressar em uma escola técnica. Consegui e assim aprendi eletromecânica, a ler e

escrever, sendo o único judeu da classe. Me formei técnico em 1940. Eu não tinha muitos

Leo Weil e a irmã Edith Weil (em segundo plano), Selma Weil e a avó materna Karoline Oberdorfer (à frente). Augsburg, Alemanha, 1935. Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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amigos pois, além de estudar, ajudava o meu tio a receber mercadorias na sua empresa. Assim,

eu não tinha muito tempo para os amigos e lazer. Em 1938, meu pai e minha irmã vieram

para a Holanda, menos a minha mãe, que precisou permanecer em Augsburg para cuidar

da minha avó materna que estava doente. O meu pai foi internado durante a quarentena,

período exigido para todos que entravam no país, judeus principalmente. Podíamos visitá-lo,

mas ele não podia viajar. Para ele era bom, quer dizer, tinha certa liberdade e não precisava

trabalhar, sendo mantido pelo Estado. Minha irmã Edith entrou para uma instituição de

preparação para fazer Alyá*, pois pretendia emigrar para a Palestina. Ainda não existia o

Estado de Israel.

Karoline Oberdorfer (à direita), Herbet Oberdorfer, irmão de Karoline e tio de Leo Weil, antes da guerra. Fotógrafo não identificado. s.l.; s.d.

Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Consegui um estágio de técnico na Philips entre 1940 e

1941, mas com a ocupação da Holanda pelos nazistas, tudo

mudou para os judeus.A A Philips agradeceu e comunicou

que eu não podia ficar, não. Tinha que me mandar embora.

Meu tio e o meu pai pensaram em ir para a Inglaterra, pois

perceberam que tudo ia ficar ainda mais difícil. Fomos

até o porto da cidade onde já estavam várias pessoas que,

como nós, pretendiam fugir. Achamos um pescador que,

por alguns chilins, aceitou nos levar de barco. Felizmente,

fomos avisados por um policial holandês que, percebendo a

nossa movimentação, informou que não adiantava, pois os

alemães metralhavam aqueles que tentavam fugir. Voltamos

para a cidade.

Entre 1940 e 1941, durante os primeiros meses da

ocupação, não percebíamos nada de mal, mas já haviam as

milícias que colaboravam com os alemães, atrapalhando a

A-A partir de agosto de 1940, um conjunto de leis antissemitas começou a ser aplicado pelos nazistas na Holanda ocupada. A pri-meira proibia que os açougueiros matassem os animais por hemorragia, de acordo com as exigências kasher*, alegando que essa prá-tica “manchava a honra nacional holandesa” e, assim, “preservava os animais da violência judaica”. Em setembro, os comerciantes e lojistas foram proibidos de vender seus pro-dutos nas ruas, e, em seguida, os judeus de exercer cargos públicos, prestar serviços ao governo e ocupar cargos nas universidades.

Edith Weil, irmã de Leo Weil (à direita). Amsterdã, Holanda, 1938.Fotógrafo não identificado. Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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vida dos judeus. Batiam em nós na rua, nos humilhavam. Nessa época eu usava uma capa

e, por debaixo dela, escondia um tubo com areia para me defender. Felizmente, não tive a

oportunidade de usar. Fomos obrigados a usar a estrela amarela costurada em nossas roupas,

mas eu não obedeci. Fiz uma chapa de metal, colei atrás um alfinete e quando precisava eu

tirava ou colocava, dependendo do local por onde passava.

Como eu já havia reunido os conhecimentos necessários de técnico, distribuí meu

tempo entre a comunidade judaica de Amsterdã e o meu trabalho como técnico

independente. Fazia consertos de aparelhos domésticos como, por exemplo, ferro de

passar roupa, enceradeira, geladeira [não tinham muitas], aspirador de pó etc. Mas,

com a guerra, não podíamos sair à noite ou acender a luz dentro de casa. Então, a gente

usava cortinas escuras para não deixar passar claridade pelas janelas. Se por acaso os

alemães vissem alguma luz, eles atacavam. Algumas empresas judaicas ainda estavam

funcionando e eu cheguei a fazer cortinas para elas, assim os nazistas não poderiam

ver as pessoas trabalhando dentro dessas empresas.

Getuigschrift (certificado) de eletrotécnico outorgado a Leo Weil. Amsterdã, 16 de fevereiro de 1940. Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Das prisões aos campos de trabalho forçado

O próximo passo foi quando os alemães começaram a

apertar o cerco entre 1940 e 1942. Eu escapei de uma razzia

[batida policial], por sorte. Já morava com o meu pai em

um apartamento pequeno no primeiro andar. Eu sabia o

que estava acontecendo e, então, preparei-me para fugir

e esconder-me em algum lugar. Eu tinha uma corda, que

coloquei na janela do fundo que dava para um pequeno

jardim e, ao lado, havia uma escola. Então, quando os nazistas

bateram à porta do nosso apartamento, eu desci pela corda

e consegui me esconder entre os arbustos do jardim. Fiquei

lá até eles irem embora. Não quiseram levar meu pai, não.

Queriam apenas os jovens judeus para os campos de trabalho

forçado. Aqueles que foram transportados para o campo de

concentração de MauthausenA não sobreviveram. Nenhum

deles! Duraram pouco.

A-O complexo de Mauthausen-Gusen foi construído pelos nazistas na Áustria, a cerca de 20 quilômetros da cidade de Linz. De um pequeno campo, transformou-se num dos maiores complexos de trabalho escravo da Europa ocupada pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Os prisioneiros eram usados para o esforço de guerra alemão, trabalhando em pedreiras, fabricando armas, munições, peças de aviões e minas, sob um regime de trabalho forçado. Em janeiro de 1945 abrigava cerca de 85 mil prisioneiros, chegando a um total de 100 mil mortos. Recebia todos os tipos de gente de todas as classes e categorias, sendo destinado apenas aos integrantes da intelligentsia dos países ocupados, pessoas da alta sociedade e com melhor grau de educação e cultura. Em 5 de maio de 1945 foi libertado pelas tropas do 3o Exército dos Estados Unidos, quando a grande maioria dos SS já havia fugido. Entre os sobreviventes estava Simon Wiesenthal, engenheiro, que dedicaria o resto de sua vida a caçar criminosos de guerra nazistas.

Tropas alemãs recebem calorosa recepção por parte da população de Amsterdã, 16 de maio de 1940. Fotógrafo não

identificado. Acervo: Bundesarchives, Bild. 183 -L23001. Disponível em: <https://fatosmilitares.com/imagens-

mostrando-a-invasao-alema-nos-paises-baixos/Acesso em: 25 jul. 2018.>

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Assim que os nazistas saíram do nosso apartamento, eu procurei um quarto no último

andar. Quando começaram os bombardeios dos ingleses, em certo momento, eu estava lá

em cima. Então, procurei outro lugar, mais seguro. Acho que passei por uns três ou quatro

endereços, mudando quando necessário. Eu não sei dizer quanto tempo isso durou, mas

lembro-me de que fiz contatos com outros jovens de Amsterdã envolvidos com organizações

comunistas, principalmente judeus do leste da Europa. Eram comunistas mesmo! Eu não

tinha nada a ver com comunismo, mas frequentava o local porque lá eu tinha a possibilidade

de jogar tênis de mesa, assistir palestras em inglês e holandês. Mas isso não me satisfez, eu

queria fazer mais.

Eu sabia que se os nazistas me encontrassem, eu seria preso. Era normal que acontecessem

as razzias. Então eu entrei para uma outra organização, vamos dizer, mais particular, com

alguns amigos, onde formamos um grupo que se dedicou a procurar lugares para que pessoas

pudessem se esconder para não serem pegas. Essas pessoas precisavam de um lugar seguro,

precisavam de documentos e alimentação. Naquela época, eles (os nazistas) distribuíam

cartelas de alimentação, mas não dava para nada, era uma pequena quantidade, muito

pouco para poder sobreviver. Então, desse pequeno grupo participavam várias pessoas que

cuidavam de obter documentos pessoais falsos, que serviam também para conseguir as

cartelas de alimentação.

O grupo era formado por quatro, cinco e até seis pessoas. Havia uma senhora – Margot

Greenberg –, que mantinha muito boas relações com essas organizações clandestinas que

produziam esses documentos falsos. Creio que ela ainda vive, assim como outros amigos

que moram na Holanda. Eram alemães, mas acho que hoje têm a nacionalidade holandesa.

Mas um dia, é evidente, o nosso grupo foi descoberto, pois não era nada fácil trabalhar na

clandestinidade. Fazíamos tudo escondido, mas sabendo das consequências, né? A minha

atividade era de falsificação de identidades, cujos documentos roubávamos de pessoas não

judias. No entanto, esses papéis precisavam ser alterados, com foto e carimbo novos. As

pessoas que estávamos escondendo [judeus] recebiam esse documento, onde estava escrito

um outro nome com a fotografia delas e um carimbo. Uma parte do carimbo deveria ficar

sobre a foto e a outra metade sobre o documento. Eu mesmo desenhava aquela parte do

carimbo sobre as fotografias, um “carimbo antigo” em papel falso. Com uma mistura de

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acetona eu conseguia desgrudar a fotografia original do

documento roubado, substituindo pelo novo retrato. Então,

aquele judeu se tornava um “cristão”, usando um nome

diferente do seu, tendo a possibilidade de andar pelas ruas

sem ser preso, procurar um emprego. E, na Holanda, não

tínhamos muita ajuda dos holandeses. Nossa amiga Margot

explica tudo isso na entrevista que gravou em vídeo para o

cineasta Spielberg, contando tudo sobre estes dias difíceis.

Cada dia em um apartamento, em uma casa diferente e com

um pouco de ajuda. Foi difícil, muito difícil. Digo, ainda

hoje, que cada dia era um presente.

Aqueles judeus que não conseguiam se esconder eram

levados, geralmente, para o gueto de Amsterdã.A Então nós

recebíamos um dinheiro para produzir esses documentos,

pois não tínhamos mais trabalho, então nós vivíamos disso.

Era meio apertado, mas dava para viver. Evidentemente, nós

fomos perseguidos pois, em certos momentos, eram feitas

razzias, que funcionavam como um controle da polícia que

andava pelas ruas, indo de casa em casa, procurando por

judeus, cristãos e comunistas. Ou melhor: buscavam pelas

pessoas que estavam contra eles. Também estavam atrás de

membros da resistência que usavam esconderijos.

Cheguei a ir para o interior da Holanda, onde trabalhei

com os agricultores. Uma vez, estava andando pela estrada

quando vi um jovem da minha idade. Foi aí que eu perguntei

se ele tinha um documento de trabalho. Eu sabia que os

cristãos recebiam um salvo-conduto para poderem trabalhar

na Alemanha. O rapaz disse ter este documento, que eu

“recolhi” como se eu fosse um policial. Disse-lhe o seguinte:

“Bom, amanhã você vai até a delegacia para receber o seu

A-Até 10 de maio de 1940, a Holanda man-teve-se como país neutro diante do avanço alemão em direção ao Leste Europeu. Alguns dias depois ocorreu sua rendição às tropas nazistas, que ocuparam o país entre 1940 e 1945. Em 16 de maio de 1940, o Exército alemão entrou em Amsterdã, sendo ajudado por parte da população desta cidade. Os nazistas começaram a levar os judeus das cidades holandesas para o gueto de Amsterdã sob o pretexto de transformar a cidade “no porto de êxodo dos judeus da Europa”. Mas, na verdade, as autoridades nazistas pretendiam concentrar no local a população judia da Holanda. A supervisão foi confiada à polícia alemã com o obje-tivo de evitar que os policias holandeses ajudassem os judeus. O jornal Joodsche Weekblad, editado por Joachim Tahl, foi o único periódico judaico permitido pelas autoridades da ocupação nazista. Calcula-se que cerca de 110 mil judeus holandeses pereceram durante o Holocausto, dos quais 80 mil eram de Amsterdã, entre os quais estavam Anne Frank e sua irmã Margot.

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documento de volta”. Com este documento eu consegui fazer outros e ajudei outras pessoas

a conseguir um trabalho ativo.

Com estes documentos falsos eu consegui ir e vir entre a Alemanha e a Holanda. Eu

achava que esses documentos deviam ser mais que um papel, um documento impresso,

“tipo oficial”. Então, eu fui até uma gráfica e mandei imprimir. Essa gráfica, por acaso, ficava

do lado de um posto de polícia. Fiquei de retirar os impressos no sábado, porque – vamos

dizer assim – não era tão perigoso! Assim fiz: fui buscar, como combinado, mas assim que

entrei na gráfica, fui recebido por um sujeito da Gestapo. Então, eles me levaram preso

para uma célula da polícia alemã. Em certo momento, pedi para ir ao banheiro e, assim

que o policial da Gestapo saiu, eu fui embora. Agora, pensando bem, alguém me entregou,

não? Ali pertinho havia uma casa, que estava com a porta aberta. Entrei, subi as escadas em

direção ao telhado, onde havia uma chaminé e uma espécie de plataforma. Entrei debaixo

dessa plataforma, mas não tive sorte. A polícia estava atrás de mim e conseguiu me pegar.

Fui levado até a central da Gestapo em Amsterdã e lá não me fizeram nada. Nada! Mas,

um dia depois – não me lembro bem – eles me mandaram para a prisão de Amstelveenseweg,

também em Amsterdã, onde fiquei preso por alguns dias ou uma semana. Nessa prisão,

fiquei em uma cela com um advogado [não recordo o nome, também judeu] mais um

outro preso. Nós conversamos sobre o que deveríamos fazer. Esse senhor era muito, muito

conhecido meu, ou seja, eu estava em boa companhia. Mas, dessa vez eu perdi...! Fui levado

de trem para o campo de concentração de Buchenwald2 onde os judeus faziam trabalhos

forçados em oficinas, na pedreira do campo e também trabalhavam para algumas empresas.

Eu fui levado para trabalhar na fábrica de armamentos Wilhelm Gustloff Werke.3 No meio

2 Buchenwald, juntamente com seus subcampos, foi um dos maiores campos de concentração criados pelos nazistas. Foi construído em 1937 em uma área arborizada na encosta setentrional da floresta de Ettersberg, a cerca de 8 quilômetros a noroeste de Weimar. Entre julho de 1937 e o final de 1943, Buchenwald abrigava apenas prisioneiros masculinos, que ficavam confinados ao norte do campo, na área principal, enquanto que as barracas dos guardas da SS e o complexo administrativo ocupavam a parte sul. Os prisioneiros eram frequentemente fuzilados nos estábulos ou enforcados na área do crematório. Após a Kristallnacht, os agentes da SS e a polícia alemã enviaram para Buchenwald cerca de 10 mil judeus, dos quais 255 morreram devido aos maus tratos. Além dos judeus, prisioneiros políticos e criminosos reincidentes, ali ficaram também ciganos e Testemunhas de Jeová. A liberação de Buchenwald ocorreu em 11 de abril de 1945 pelas tropas do 3o Exército estadunidenses que, após esta data, ficou sob a administração da União Soviética, In: Enciclopédia do Holocausto. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em: <http://ushmm.org/wlc/ptbr/article.php/Moduleld=10005198. Acesso em: 26 jul. 2018.>3 Trabalhos forçados em Buchenvald: As autoridades do campo utilizavam os prisioneiros para trabalho escravo

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do caminho, eu tentei escapar do trem, pois para mim a liberdade é fundamental. Eu não

me sujeitava não! Tentei... tentei abrir a porta do trem para escapar. Tinha lá um policial

alemão, que percebeu que eu estava querendo sair do transporte. Foi quando ele me bateu

com o rifle, deu uma coronhada e fiquei meio tonto. Assim que cheguei no campo, como

estava meio machucado, fui levado para um posto de atendimento hospitalar, onde fiquei

internado para me tratar. Ah, pensei: “Agora, como vou sair daqui?”. Lá tinha médico,

médica, médicos... E quando eles não trabalhavam, deixavam pendurados na parede esses

uniformes, roupas de médico.4

Um dia, acho que um domingo ou segunda-feira, não me lembro, durante a hora de

visita, eu conversei com um judeu que, semanalmente, trazia os judeus de Amsterdã para

esse campo. Ele me disse que fazia sempre esse transporte. Tentei saber mais um pouquinho

e ele me deu a indicação: “O trem chega aqui dentro do campo à noite, sempre à noite.

Então, o pessoal vai saindo dos vagões e quando tudo termina, o trem volta vazio”. Bem,

com essas informações fiz um plano que tinha um início, mas não sabia o fim.

Eu consegui sair da cama e entrar naquela sala onde estavam os aventais dos médicos.

Peguei um avental sabendo que, naquela noite, iria chegar um transporte. Guardei ele

embaixo do meu cobertor, e à noite fingi estar dormindo. Quando percebi que o trem estava

chegando, saí. Já estava escuro no barracão e eu não podia enxergar bem, sem luz. Felizmente,

eu vi uma banheira que estava em pé contra o muro e me escondi embaixo dela, coberto.

Fiquei lá até que o trem chegou, seguido de mais um trem. Em seguida, eles acenderam as

luzes, pois já estava noite. Quando os judeus já tinham saído do trem, apagaram as luzes.

nas oficinas, na pedreira do campo, e nas fábricas, dentre as quais a Deutsche-Ausrüstungs-Werk – DAW, a Fábrica de Equipamentos Alemães, uma empresa de propriedade da SS e por ela administrada. Em fevereiro de 1942, a empresa de armamentos Wilhelm Gustloff Werke montou uma pequena fábrica de apoio em um subcampo de Buchenwald e, em março de 1943, abriu uma grande fábrica de munições ao lado do campo. Um ramal ferroviário, concluído em 1943, ligava o campo às áreas de embarque em Weimar, facilitando o transporte de materiais de guerra. In: Enciclopédia do Holocausto. United States Holocaust Memorial Musem. Disponível em: <http://ushmm.org/wlc/ptbr/article.php/Moduleld=10005198. Acesso em: 26 jul. 2018.>4 Os “médicos” citados por Leo Weil integravam um amplo programa de experiências científicas realizadas com prisioneiros em barracas especiais montadas na parte norte do campo a partir de 1941. Ali foram testadas vacinas contra epidemia de tifo em 1942-1943, ministradas em 729 prisioneiros, dos quais 280 morreram. Devido à resistência que resultou das experiências em barracões, onde os prisioneiros viviam lado a lado em pouco espaço, o vírus que se desenvolveu matou mais pessoas e infectou mais rapidamente do que o tifo normal. In: Enciclopédia do Holocausto. United States Holocaust Memorial Museum. Disponível em: <http://ushmm.org/wlc/ptbr/article.php/Moduleld=10005198. Acesso em: 26 jul. 2018.>

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Leo Weil

O trem estava ainda lá, parado. Eu tive que sair debaixo da banheira para “não perder a

condução”. Entrei embaixo de um dos trens, pois sabia que os policiais estariam no trem

de volta. Debaixo do trem tem esse negócio de molas, sentei ali. O trem saiu dando marcha

a ré para fazer a manobra. Em seguida, consegui subir em um dos vagões, aquele pequeno

onde tem uma manivela para poder brecar, justamente naquele. Entrei e fiquei aguardando

o trem fazer a manobra e partir para Amsterdã. O trem estava vazio sem os prisioneiros,

apenas com alguns guardas lá dentro. Assim eu voltei para Amsterdã! Um pouco antes de

chegar na estação, o trem diminuiu a velocidade, foi andando mais devagar... e eu pulei

fora. Fui até os bondes – sem dinheiro, pois eu nem podia pagar – entrei e segui para o

centro da cidade, onde queria ir para ficar escondido.

Bem, os alemães não me pegaram porque não tinham controle, mas para andar de bonde

havia controle para pagar! Percebendo que o cobrador que fazia esse controle já estava

desconfiado, eu disse: “Eu não tenho dinheiro!”. Então, escapei novamente! Fui para a casa

de uns amigos, onde tive um pequeno problema: me senti mal. Mas, em algumas horas eu

já estava melhor, sentindo-me seguro. Passou um tempo, continuei em Amsterdã, fazendo

o trabalho que eu fazia antes. Um belo dia, eu estava andando na rua e entrei numa razzia,

uma batida, de novo. Fui transportado em um caminhão coberto com uma lona, onde

já estavam outros judeus que haviam sido presos. Fomos levados para o teatro antigo da

cidade para aguardar o transporte para Westerbork, novamente. Enquanto o caminhão

seguia, percebi que eu já conhecia o trajeto. Sabia que havia uma ponte sobre um rio em

Amsterdã e que o caminhão, para fazer a curva, deveria ir mais devagar. Naquele momento,

saí de debaixo da lona e consegui pular para a rua. Escapei novamente!

Mas ainda estive envolvido em outra razzia: também fui preso na rua e levado para a

sede da Gestapo em Amsterdã, onde havia – também igual a um teatro – uma parte para

aguardarmos o transporte. Assim que entrei, um desses guardas disse: “Olha, esse camarada

eu conheço!”. Então, me colocaram em um local – tipo uma escola grande de ginástica –

junto com o pessoal preso. Fiquei ali, creio eu, uns três dias dentro do “gabinete”, onde

havia medidores de eletricidade. Logo pensei: “Como eu vou sair daqui?”. Um dos guardas

ficou com pena de mim, porque eu nem conseguia deitar, dia e noite. Na terceira noite, este

guarda me levou para um grande salão, onde estavam os demais judeus presos. Ali havia um

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Vozes do Holocausto

pódio na entrada onde ficava um guarda alemão, próximo das escadas. Eu precisava aguardar

a noite, quando ele [o guarda] ficaria sonolento. E ficou! Essa era a minha oportunidade

de ir embora. Então, como fazer? Eu estava deitado sobre uma plataforma, que era um

pouquinho mais alta que o rés do chão. Fiz uma bola com os cobertores imitando o corpo

de uma pessoa dormindo, fui para o fundo do salão, passando por todos aqueles prisioneiros

deitados e consegui chegar até três janelas grandes com cortinas, muito fortes. Subi agarrado

nessas cortinas e, quando eu cheguei lá em cima, abri os basculantes das janelas e desci de

novo. Falei para um dos prisioneiros: “Olha aqui, eu vou embora daqui a pouco, se quiser

pode me seguir”. Fui novamente para cima, me joguei para o lado de fora e caí no chão.

Soube depois que outras quatorze pessoas fugiram depois de mim nessa época. Assim foi

noticiado em um jornal alemão.

Estratégias de salvamento de judeus

Eu tinha o contato de uma pessoa no sul da Holanda, perto da fronteira com a Bélgica,

que me disse saber o que estava acontecendo com os judeus e que eu deveria ir primeiro

para lá. Da Bélgica saímos andando e no caminho pegamos carona até Maubeuge, no

norte da França, perto da fronteira com a Bélgica, onde apanhamos um trem e seguimos

para Amiens. Esse meu contato levou-me para o chefe da Grötzinger, uma firma alemã que

construía plataformas para lançamentos de foguetes. Consegui trabalhar lá usando papéis

falsos, pois ninguém podia saber que eu era judeu. Todo mundo tinha um papel falso. Eu

mesmo tive que trocar sete vezes a minha identidade, sete vezes, depois de cada prisão. Cada

vez que me pegavam eu tinha um nome, um nome falso. Morei uns tempos em Domvallier

(Vosges, França) com identidade falsa.5

Vejam as cópias destes documentos com assinatura do diretor da Grötzinger, acompanhada

do carimbo com o símbolo nazista. Este carimbo, por isso era uma cópia, eu usei várias vezes.

Então, a cada transporte de funcionários que eu fazia, era preciso um papel igual, emitido

pela empresa alemã. A primeira versão desta autorização era verdadeira, veja aqui, e os demais

5 Leo Weil, segundo entrevista concedida a Shoah Foudation, usou os seguintes nomes falsos: Johannes Verbraak e Lodewyk Smuders.

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Leo Weil

eu copiei. Assim eu fazia para transportar

os judeus que fugiam de algum lugar. Eles

trabalhavam nessa empresa [como eu] por

certo tempo, umas semanas e depois caíam

fora. O endereço que eu fornecia ficava em

Paris, onde atuava uma organização chamada

“grupo holandês” ou “grupo da Holanda”.

Estes “falsos” funcionários tinham este

endereço em Paris e, de lá, poderiam ir para

a Espanha, mas aí cada um se virava por conta própria. Até Paris eles estavam seguros, porque

tinham essa papelada de identificação, tudo “oficial”, quer dizer, falsificado.

Cheguei a levar da Holanda para França, mais ou menos, 80 a 100 judeus. Este transporte

ficou muito conhecido na Holanda. Atendi pessoas que eu sequer conhecia. Eles chegavam

na estação de trem onde eu as aguardava com estes papeis e, em seguida, eu falava com um

oficial alemão que organizava o embarque dos soldados. Eles tinham sempre um ou dois

vagões só para os soldados alemães. Eu entrava nesses vagões com esses meus “funcionários”,

viajando sempre à noite quando tudo estava mais escuro, sem a luz do sol. Uma vez, um

desses alemães entrou no vagão onde eu estava com mais 30 pessoas sentadas em vários

compartimentos e olhou bem para a cara de cada um de nós. Alguns, só pela cara, podia-

se ver que eram judeus, não tinham cara de alemão ariano. Muitas vezes, devido aos

bombardeios, ocorria um blackout.

Quando passava o controle alemão, eu já estava aguardando com aquela papelada, e

dizia: “Quando passava o controle alemão, eu já estava aguardando com os documentos

nas mãos e ia logo dizendo: “Olha aqui, esse pessoal vai “pagar trabalho” na França. Aqui

está... Atenção à papelada!”. Conferiam e constatavam que não havia nenhum problema,

nunca... Eles eram tão bitolados, bitolados mesmo, impressionante...! Mas foi a salvação

para 80 a 100 pessoas, incluindo soldados e pilotos que haviam sido abatidos e salvos pelos

holandeses, mas que precisavam ir embora, usando esta mesma papelada falsa holandesa.

Depois desses transportes eu me dediquei à resistência francesa, envolvendo-me com o

grupo holandês, uma organização de combate composta por judeus e não judeus.

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Vozes do Holocausto

A - Autorização com carimbo e assinatura de autoridade nazista [falsos] para viagem de trem [ida] que levava trabalhadores de Amsterdã para Abbeville via

Bruxelas-Paris, ida. Amsterdã, 23 de abril de 1944. Frente e verso. Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Leo Weil

B - Documento falso em papel timbrado da empresa A. Grötzinger, produzido por Leo Weil para transportar judeus desde a Holanda até a França.

Amsterdã, 1° de maio de 1944. Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Vozes do Holocausto

Infelizmente, não consegui salvar a minha família. Selma Weil, minha mãe – que havia

ficado em Augsburg por causa da sua mãe, minha avó, que estava doente – foi deportada

para Auschwitz em 1943. Eu queria levar meu pai e minha irmã Edith para a França, já que

eu consegui salvar outros. Meu pai foi preso e transportado da Holanda com o seu irmão;

ambos morreram em Auschwitz. Minha irmã Edith, que trabalhava para uma organização

Selma e Hermann Weil, pais de Leo Weil, e Edith Weil (à esquerda), irmã de Leo Weil. Última vez em que Leo Weil viu os pais e a irmã.

Alemanha, 1937.Fotógrafo não identificado. Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Leo Weil

judaica, também foi assassinada em Auschwitz em 28 de janeiro de 1944, conforme meu

testemunho registrado na Base de Dados Yad Vashem.

Nas frentes da resistência

Bem, ainda não acabou. Quando eu fui para Paris, entrei para esse grupo de resistência,

que era razoavelmente grande.6 Tinha muita gente: alemães, austríacos, poloneses, franceses,

que trabalhavam lá há muito tempo, um tempão. Esse contato foi feito por meio de uma

organização holandesa com pequenos grupos [células], que faziam parte de uma resistência

maior. Este era um grupo de combate, quer dizer, atuava quando precisava. A primeira

coisa que aconteceu – vamos dizer, de combate – foi uma ação contra um banco, um

assalto para conseguirmos dinheiro para sobreviver. Os grupos têm que sobreviver, certo?

Eu participei, sim: fomos até um determinado banco que ficava em uma avenida muito

larga em Paris. Veja bem, em Paris, Paris, Paris. Não me recordo o nome do banco, não,

não... Aliás, a gente não olhava o nome. Eu não andava sozinho e usamos dois carros, cada

um com quatro ou cinco pessoas armadas. Sim, estávamos armados. Fomos lá dentro e eu

só sei que peguei minha arma, enquanto um ou dois participantes roubavam o caixa. Isso

era preparado antecipadamente... Então, quando tudo acabou, nós fomos cada um para o

seu carro, mas sem saber que havia uma agência policial do outro lado da avenida, mais ou

menos a uns 50, 60 metros. Quando nós já íamos embora, vimos alguns policiais franceses

caminhando pela avenida. Eles se jogaram no chão, e começaram a atirar. Graças a D’us eles

não mataram ninguém. Como já estávamos com o carro em movimento, fomos embora.

Essas organizações francesas eram muito grandes, com pessoas que davam informações.

Os agentes alemães infiltrados denunciavam os membros da resistência e onde estavam

6 A Resistência Francesa [La Résistance] diz respeito a um conjunto de movimentos franceses que lutaram contra a ocupação alemã da França e contra o colaboracionismo do regime de Vichy durante a Segunda Guerra Mundial. As células pequenas eram formadas por homens e mulheres armados (nas áreas rurais eram chamados de maquis, palavra emprestada do dialeto corso do italiano), que além das suas atividades de guerrilha, também editavam jornais clandestinos, forneciam informações de inteligência e mantinham redes de fuga com o objetivo de ajudar os soldados aliados, aviadores presos em linhas inimigas, bem como ajudar a salvar os judeus das perseguições. Cerca de 60 mil refugiados espanhóis lutaram na Resistência Francesa.

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Vozes do Holocausto

os judeus; eram traidores. Se avisados,

deveríamos desaparecer.7 Em Paris eu

morava em um hotel, simples, mas

seguro. Um dia fomos pegos e levados

para a bem conhecida Rue de la Pompe,

onde havia um subterrâneo onde os

presos eram torturados. Foi terrível lá!

Quando cheguei lá no subsolo, tinha

mais ou menos umas trinta pessoas,

todas ajoelhadas. Até que fomos muito

bem tratados: dois morreram e os outros

não. Como aconteceu aqui em S. Paulo

durante a ditadura militar, no Deops.

Enquanto eu estava de joelhos, pegaram

um pau com uma borracha ou uma pedra

(ou qualquer coisa assim) e me bateram

muito, muito mesmo. Não consegui sair

dessa: fui para a prisão de Fresnes, em

Paris, uma prisão comum, onde fiquei

por duas semanas, e depois fui levado

para Buchenwald e, de lá, já em 1945,

fui transportado para a Tchecoslováquia. Me jogaram em um vagão repleto de cadáveres,

mas depois consegui passar para um outro vagão com prisioneiros.8

7 Leo Weil participou de uma das unidades operacionais da Resistência Francesa conhecidas, na sua fusão, como Forces Françaises de L’Intérieur – FF [Forças Francesas do Interior]. Essa organização mais formal dos componentes paramilitares da resistência ocorreu logo após o desembarque na Normandia e Provença, crescendo rapidamente. Chegou a atingir uma força de 400 mil integrantes entre junho e outubro de 1944.8 Terezín (Theresienstadt) era uma antiga cidade-fortaleza no noroeste da atual República Checa, que em novembro de 1941 foi ocupada pelos nazistas e ali estabeleceram um gueto e um campo de trânsito para receberem prisioneiros judeus da Bohemia e Morávia, anciãos e “privilegiados” do Reich e alguns milhares trazidos da Dinamarca e Holanda. Idealizado como um assentamento judeu modelo com fins propagandísticos, Terezín mantinha uma orquestra, teatro e atividades educativas e culturais, que serviram para “mostrar” à Cruz Vermelha, em junho de 1944, que Hitler tratava bem os judeus. Foi apenas uma imagem de aparência. A vida interna era dirigida por um Judenrat presidido por Yaakov Edelstein. O campo foi liberado em 9 de maio de 1945, ficando sob a administração dos russos. Yad

Carteira de Leo Weil como membro do grupo de Resistência: Forces Françaises de L’Intérieur – Forças

Francesas do Interior. Paris, 1° de setembro de 1944.Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Leo Weil

Nesse vagão havia setenta pessoas, mas apenas sete sobreviveram e um desses sou eu.

Quando o trem parou, os guardas foram nas casas particulares buscar comida, e conseguiram.

Nós pudemos sair dos vagões e fazer as nossas necessidades, mas eu já não conseguia andar,

fui ao banheiro rastejando. Cheguei doente, cheio de pulgas e piolhos na minha vestimenta,

com febre. Estava com tifo. Um dia, de repente, acordei e ouvi um pessoal que não conhecia,

falando uma língua diferente: eram os russos! Eles tomaram conta deste, daquele, nos

trataram muito bem. Os russos me salvaram!

Quando eu estava melhor, fui levado com outros sobreviventes para o gueto de

Theresienstadt (Tchecoslováquia), onde ficamos alojados em barracas. Após a liberação

pelos russos, em 9 de maio de 1945, uns quinze dias depois (mais ou menos) pegamos o

avião para Hannover.9 Fiquei em recuperação em um hospital. Após três semanas cheguei

em Amsterdã, onde comecei vida nova. Eu tinha apenas 37 quilos.

Vida nova

Lembro-me de que em 1950 aconteceu a Maccabiada em Tel-Aviv, Israel, a primeira

depois da guerra. Fui com os atletas, pois pretendia emigrar para lá. Tomei conta dos grupos

de pingue-pongue. Tinha alguns contatos e, pensei, poderia trabalhar na minha profissão.

Mas não me senti bem naquele ambiente. Ao retornar, fiz contato com um amigo que

estava morando no Brasil com sua família, há mais de um ano. Ele havia escrito dizendo que

tinha uma ótima oportunidade de trabalho em uma firma suíça e que eu deveria emigrar.

Eu também estava preocupado com o envolvimento dos americanos na Guerra da Coreia

(1950-1953).Vashem. Disponível em: <https://www.yadvashem.org/es/holocaust/about/ghettos/theresienstadt.html. Acesso em: 27 jul. 2018.>9 Segundo estatísticas elaboradas pela SS, para o “campo dos anciãos” de Theresienstadt foram enviados 87.183 judeus; dentre os quais 47.471 eram procedentes do Reich e 39.722 judeus procedentes do Protetorado. Até o começo do ano de 1943 o número total de habitantes no gueto era de 49.392, sendo 24.313 alemães e 25.079 do Protetorado. As tropas soviéticas entraram no campo de Therezín (Theresienstadt) em 9 de maio de 1945 e assumiram a responsabilidade pelos prisioneiros no dia seguinte. No final de agosto de 1945 a maioria dos prisioneiros já havia deixado o campo para ser substituído por alemães étnicos presos pelas autoridades tcheca e soviética. Até a sua liberação passaram por Terezín 155 mil judeus: 35.440 morreram no gueto e 88 mil foram enviados para campos de extermínio. Estatísticas da SS sobre a “Solução Final da Questão Judaica”, V. Evacuação dos judeus, 23 de março de 1943. Documento disponível em: <http://www.yadvashem.org/yv/es/holocaust/about/docs/estadisticas_de_los_ss.pdf. Acesso em: 27 jul. 2018.>

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Vozes do Holocausto

Em 1951, fui para Rio de Janeiro, deixando de lado outra oportunidade: a de ir para

América, com Isaac, meu tio. Decidi vir para o Brasil e começar uma nova vida. Cheguei no

Paraíso! Naquela época, o Brasil era realmente um paraíso, mesmo com um salário mínimo.

Desembarquei no Rio de Janeiro em 21 de maio de 1951. Ali conheci a minha primeira

esposa, Lydia Zimetbaum, belga, cuja família conseguiu sair durante a ocupação da França

com vistos concedidos pelo embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Tivemos

dois filhos: Harold Weil e Sylvia. Infelizmente, Lydia morreu de câncer em 1961, quando as

crianças tinham apenas 5-6 anos. Sylvia, por sua vez, tinha um problema cardíaco congênito

e, aos 10 anos, foi operada nos Estados Unidos. Melhorou, e foi morar nos Estados Unidos,

onde se casou.

Eu, viúvo, casei-me com Carmem Littwack, de família judia da Lituânia, filha de Eva

Agathe Hedwig Littwack e Bernahrd Littwack, médico. Seus pais participaram da Guerra

Civil Espanhola, e ela foi levada em um transporte de crianças para a Suíça. Depois da guerra

Ficha consular de qualificação de Leo Weil com visto liberado pelo consulado-geral do Brasil. Amsterdã, 8 de fevereiro de 1951. Acervo: Arquivo Nacional/RJ; Arqshoah/Leer-USP.

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Leo Weil

na Espanha, a família se juntou na França, onde tudo se complicou com a perseguição dos

judeus na França. Seu pai foi deportado para um campo perto de Auschwitz, mas conseguiu

sobreviver. Em 1945, eles voltaram para a Alemanha. Algum tempo depois, fui para a

Alemanha, e conheci Carmem quando procurava por alguém da minha família.

No Rio de Janeiro trabalhei inicialmente em uma firma de elevadores e, depois, mudei

para outra empresa, onde permaneci por uns 10 meses. Também não gostei! Depois, fui

contratado pela Companhia Siderúrgica Nacional em Barra Mansa, por indicação de um

cliente. Fiquei uns meses e, depois, voltei para o Rio de Janeiro, indo trabalhar na Panambra,

Lydia Zimetbaum, primeira esposa de Leo Weil. Rio de Janeiro, 1953/54. Fotógrafo não identificado.Acervo: Weil/SP; Arqshoah/Leer-USP.

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Vozes do Holocausto

cujo diretor era um jovem austríaco. Foi quando lhe ofereci para organizar um departamento

em Manguinhos, onde permaneci como gerente durante 15 anos, com uma sala na rua

Buenos Aires. Mas empregado é sempre empregado! Pensei assim: “Se eles ganham dinheiro,

eu também posso!”. Foi quando vim para S. Paulo e aqui estou.

Minhas marcas

Uma coisa que nunca esqueci foi a postura do povo holandês, por sua moral e franqueza.

Podem não ser sempre gentis, mas dizem o que pensam, são leais. Outra marca: poder livrar

tanta gente da deportação com aqueles documentos que eu consegui arranjar e falsificar.

Meu desejo é que essas pessoas tenham conseguido uma vida saudável para ir até o fim dela

e não passar mais pelo que passaram.