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IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília – DF – Brasil _________________________________________________________________________________ Os Asuriní da Terra Indígena Trocará (PA) e os Impactos Etnoambientais: do contato à instalação da UHE Tucuruí GABRIEL PEDRAZZANI (FUNAI) Mestre em Sociologia Política/UFSC WILMA LEITAO (UFPA) Doutora em Antropologia Resumo: Esse artigo descreve algumas impressões sobre um diagnóstico de impactos etnoambientais da UHE Tucuruí na Terra Indígena Trocará (Pará). Foram realizadas entrevistas não- estruturadas com os moradores mais antigos, buscando, por meio das histórias de vida, os elementos de explicação sobre os conhecimentos tradicionais relacionados aos manejos dos recursos naturais e o histórico do contato relacionados aos impactos da UHE. Destacamos o fato que mais chama a atenção quando se ingressa na Terra Indígena Trocará: a diversidade de instituições que atuam junto àquela população. A antiguidade do contato e suas conseqüências, que foram pautadas pela inserção dos indígenas à população regional, e a proximidade do núcleo urbano de Tucuruí, que explodiu nos últimos anos atingindo diretamente a TI, foram fatores que contribuíram para a interação intensiva de indígenas e não-indígenas, nas mais diversas direções, e que geraram, portanto, uma série de impactos. Palavras-chave: etnologia tupi, Asuriní, impactos.

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IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília – DF – Brasil _________________________________________________________________________________ Os Asuriní da Terra Indígena Trocará (PA) e os Impactos Etnoambientais: do

contato à instalação da UHE Tucuruí

GABRIEL PEDRAZZANI (FUNAI) Mestre em Sociologia Política/UFSC

WILMA LEITAO (UFPA) Doutora em Antropologia

Resumo: Esse artigo descreve algumas impressões sobre um diagnóstico de impactos

etnoambientais da UHE Tucuruí na Terra Indígena Trocará (Pará). Foram realizadas entrevistas não-

estruturadas com os moradores mais antigos, buscando, por meio das histórias de vida, os elementos

de explicação sobre os conhecimentos tradicionais relacionados aos manejos dos recursos naturais e

o histórico do contato relacionados aos impactos da UHE. Destacamos o fato que mais chama a

atenção quando se ingressa na Terra Indígena Trocará: a diversidade de instituições que atuam junto

àquela população. A antiguidade do contato e suas conseqüências, que foram pautadas pela

inserção dos indígenas à população regional, e a proximidade do núcleo urbano de Tucuruí, que

explodiu nos últimos anos atingindo diretamente a TI, foram fatores que contribuíram para a interação

intensiva de indígenas e não-indígenas, nas mais diversas direções, e que geraram, portanto, uma

série de impactos.

Palavras-chave: etnologia tupi, Asuriní, impactos.

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INTRODUÇÃO

O presente artigo traz algumas impressões acerca da situação atual do grupo indígena Asuriní

da Terra Indígena (TI) Trocará, localizada no município de Tucuruí (PA). Tais impressões são

oriundas de um diagnóstico de impactos etnoambientais realizado durante o ano de 2006,

especificamente sob a óptica de como se dá a organização social do grupo, destacando as mudanças

ocorridas nos últimos anos, em decorrência dos impactos sociais, culturais e ambientais sofridos pela

implementação de um grande pólo de desenvolvimento na região, culminando com a instalação da

Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí. Foram registrados os aspectos demarcadores da identidade

cultural dos Asuriní e suas práticas sociais tradicionais relativas ao meio ambiente, considerando que

seu modo de vida tradicional tem sido alterado por sucessivas intervenções de diversas instituições

governamentais e não-governamentais, em ações desordenadas desenvolvidas junto ao grupo

indígena.

Todo o trabalho foi realizado utilizando-se o método antropológico de observação direta da

vida social do grupo indígena, como forma de facilitar a interlocução com eles e permitir a

subseqüente coleta de dados etnográficos e demográficos. Por ocasião das estadias na aldeia, foram

realizadas entrevistas não-estruturadas com os moradores mais antigos, buscando, por meio das

histórias de vida, os elementos de explicação sobre processos migratórios, histórico do contato e

práticas sociais tradicionais.

Durante os dias que passamos na Terra Indígena Trocará, embora o não conhecimento da

língua dificultasse um pouco, foi possível empreender conversações onde os indígenas discorriam

sobre vários pontos importantes para o entendimento da situação em que se encontram. Além da

perspectiva histórica de ocupação da área e do contato, foi possível conhecer muitos dos aspectos de

sua vida diária, morfologia da aldeia, composição dos grupos domésticos, genealogias e nomes

pessoais, incluindo os irmãos Tembé que residem a alguns anos nessa TI. Dentre os materiais

produzidos, encontram-se os diagramas de parentesco representando toda a população Asuriní da

Aldeia Trocará.

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1. HISTÓRICO DO CONTATO1

Os Asuriní2, atualmente residindo no Igarapé Trocará, afluente do Rio Tocantins, têm um

antigo histórico de contato, se comparados aos outros grupos Tupi da região3. Na realidade, sua

localização tradicional foi alvo de diversas investidas no processo de colonização das margens do Rio

Tocantins. Desde o século XVII, os não-indígenas chegaram àquela área atraídos pelas “riquezas do

sertão”, isto é, produtos como cravo, canela e castanhas. Mais tarde, já no século XVIII, foi a criação

de gado que fixou um pouco mais esses “invasores”, principalmente na margem direita do rio.

Contudo, foi o interesse em estabelecer ligações por via fluvial entre o norte e o sul do país

que levou os colonizadores a fundarem a vila de Alcobaça, em 1724, hoje denominada Tucuruí.

Apesar das facilidades proporcionadas pelo governo, as condições precárias do vilarejo e o temor

constante de ataques dos indígenas4 não permitiram a ocupação mais extensiva da margem

esquerda do Tocantins. Foi somente no século XX, com a exploração do caucho e da castanha, que

a região conheceu maior desenvolvimento. Este último produto, aliás, até bem pouco tempo, gerou

um impulso jamais visto naquela região. Praticamente toda a calha do médio e baixo Tocantins foi

tomada pela economia da castanha, atraindo milhares de trabalhadores que ingressavam nas matas

coletando os ouriços e que, freqüentemente, “topavam” com os indígenas. A maioria dos castanhais

era de propriedade do Governo do Estado do Pará, que os arrendava para sua exploração. Tamanha

era a importância dessa atividade que já em 1927 começou a ser construída a Estrada de Ferro

Tocantins, com a finalidade de contornar o trecho encachoeirado do Rio Tocantins, facilitando assim

o transporte da castanha (e o caucho) proveniente da região do Itacaiunas, que embarcaria, então,

para o transporte por via fluvial de Tucuruí até Belém.

O traçado da EFT encontraria os aldeamentos indígenas e, em 1928, foi criado, pelo Serviço

de Proteção ao Índio (SPI), o Posto Indígena de Atração do Pucuruí, às margens do igarapé de

mesmo nome (próximo ao km 67 da ferrovia), para tentar o contato com os indígenas Parakanã e

Asuriní que, até então, acreditava-se serem os mesmos. Esta medida visava à proteção máxima

desses grupos, uma vez que a diretoria da EFT, em reação aos ataques sofridos pelos trabalhadores

da ferrovia, promovia constantes expedições de extermínio aos indígenas, com homens armados de

1 Os Asuriní foram primeiramente estudados pelos antropólogos Roque de Barros Laraia e Expedito Arnaud, no início dos

anos 1960 e anos 1970 (somente este último). O primeiro passou três meses em 1962, depois de ter permanecido entre os Suruí com igual propósito: entender os processos de inserção daqueles grupos tupi na sociedade regional. Arnaud, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, publicou diversos artigos notadamente sobre o sistema de parentesco Asuriní e sobre o processo de contato. Vinte anos após as primeiras análises, a antropóloga Lucia de Andrade realizou pesquisa com fins de elaborar sua dissertação de mestrado, entre os anos 1982 e 1989. Apresentamos aqui uma narrativa bastante resumida, considerando-se que as obras citadas acima, todas referidas na bibliografia deste artigo, discorrem mais detalhadamente sobre o tema.

2 Não foi possível identificar um termo que possa ser usado adequadamente como autodenominação do grupo, este ponto vem sendo trabalhado pela lingüista da UnB, Dr. Ana Suely Cabral.

3 Parakanã, Asuriní do Xingu e Araweté. Laraia, em 1962, menciona apenas os Asuriní do Trocará, Parakanã e Suruí. 4 Que destruíram a nascente Alcobaça, no início do século XIX (Laraia & Da Matta, 1978:51).

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fuzis e granadas que matavam adultos e crianças encontrados pela mata. Durante os anos 1930,

registram-se alguns ataques de indígenas aos castanheiros e trabalhadores da EFT, que continuava

avançando sobre o território indígena. Até que, em 1937, os funcionários do SPI conseguiram

encontrar, pela primeira vez, alguns indígenas.

O contato não tranqüilizou a vida dos indígenas, ao contrário, foram muitas as mortes

ocorridas devido a doenças inexoravelmente associadas ao contato entre indígenas e brancos,

sobretudo àquela época. Quando se aproximaram do Posto, eram em torno de 190 indígenas, dos

quais cerca de 50 morreram em poucos meses. Os surtos de doenças que os dizimavam os

assustavam sobremaneira e os faziam voltar para a mata em sucessivas ocasiões. Todavia sofreram

ainda muitos outros problemas, como o fato de que, na ausência de representantes do SPI, pessoas

inescrupulosas influenciaram o grupo a abandonarem as terras do posto, orientando os indígenas a

saquear as roças da região e prostituírem suas mulheres. Laraia & Da Matta (1978:71) narram que,

em 1962, havia apenas 34 indígenas residindo junto ao posto, 10 vivendo entre não-indígenas e

cerca de 14 dispersos na mata.

Laraia (1972) descreve a população do Posto Indígena Trocará, por ocasião de sua pesquisa

em 1962, como pertencendo a duas aldeias, a saber: Itotawa, próxima ao rio que denominavam

Paranoawé; e Itohoa, que os indígenas traduziam como cachoeira grande. Anos mais tarde, a

antropóloga Lúcia Andrade refere-se à aldeia Ty.Apyra, localizada na cabeceira do Igarapé Trocará,

na região da Serra Grande, acrescentando que é este o grupo que ficou conhecido como o "grupo do

Trocará", na época do contato (Andrade, 1992). Trata-se, aqui, de uma referência à identificação

explicitamente diferenciada dos grupos que se tornaram conhecidos sob a mesma denominação

Asuriní do Tocantins (ou, mais atualmente, do Trocará), pois ao grupo inicialmente contatado pelo

SPI nos anos cinqüenta e que permaneceu na margem esquerda do Rio Tocantins veio finalmente

juntar-se, por volta de 1975, os indígenas que continuavam residindo na região do Pacajá.

Por essa época, foram iniciados os estudos para demarcação da Terra Indígena5. Até por

volta de 1980, os Asuriní ainda se organizavam aos moldes dos padrões tradicionais, ocupando

diferentes pontos no território que ficou compreendido na TI. Os grupos de famílias constituíam como

que “pequenas aldeias” separadas e ainda hoje referenciadas, como, por exemplo, a Aldeia Urubu ou

Massaranduba. Com a chegada de um novo chefe de posto e da construção da escola, em 1982,

foram incentivados a viverem todos juntos, já na parte alta onde se encontram hoje. Mesmo assim,

predominou a ordenação das casas em forma de aglomerados, onde residiam as mulheres e suas

filhas casadas (Andrade, 1985:26), seguindo as casas o padrão regional de construção (madeira e

palha) com assoalho suspenso.

5 Data de 1976 o que seria, provavelmente, o Relatório de Identificação, de autoria do antropólogo da Funai, Alceu Cotia

Mariz. Cf. item 1.3.

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A Terra Indígena Trocará está totalmente demarcada desde 1982, tendo sido homologada

pelo decreto 87.845/82. Está localizada 24 Km ao norte de Tucuruí, distante, portanto, cerca de 40

minutos utilizando-se voadeira pelo Rio Tocantins ou duas horas e meia de barco; ou, depois da

abertura da estrada, cerca de 40 minutos de carro. Hoje, a TI Trocará constitui uma das poucas

reservas de mata em toda a região, cercada pelos pastos das fazendas de gado. Com isso, tornou-se

refúgio para a caça ainda existente e, conseqüentemente, alvo de invasão por moradores do entorno

que penetram na área para caçar e pescar.

2. ORGANIZAÇÃO SOCIAL ASURINÍ

Os estudos lingüísticos sobre o grupo Asuriní iniciaram-se em 1961, no âmbito do Summer

Institute of Linguistcs. O pesquisador Carl Harrison pôde, junto aos indígenas, realizar os primeiros

estudos, os quais foram continuados por intermédio de Robin Solly, Velda Nicholson e Lois Griffin.

Tratava-se de pesquisas que observavam menos o interesse científico pela língua ou seu aspecto

definidor de identidade que o objetivo religioso da instituição. Uma digressão mais embasada se faz

necessária aqui, para explicar porque, de fato, os Asuriní foram deixando de se expressar em sua

língua e hoje apenas as pessoas com mais de cinqüenta anos falam corriqueiramente. Todos os

outros são capazes de entender quando alguém se dirige a eles na língua materna, embora

respondam em português.

Há cerca de quinze anos, novas pesquisas foram implementadas pelos departamentos de

lingüística das Universidades Federal do Pará e de Brasília, objetivando salvaguardar o pouco que

restava da língua e que se encontra, hoje, unicamente com apenas alguns falantes. Por motivos

adversos, tais trabalhados foram interrompidos e vemos aqui uma excelente oportunidade de retomá-

los, buscando resgatar nos Asuriní o sentimento de querer expressar-se em seu idioma.

Uma tal reserva no uso da língua, ao longo de tanto tempo, provocou um certo

empobrecimento no reconhecimento de categorias, transformando, assim, as possibilidades de

narrativas e explicações sobre seu próprio modo de vida (acrescentado aqui a dificuldade de alguém

conseguir compreender ou se expressar plenamente naquela língua). Um exemplo poderia ser a

interrogação (ou curiosidade) sobre a autodenominação do grupo: Awaeté, como categoria mais

inclusiva de Tupi, que os coloca lado a lado com seus inimigos tradicionais, os Parakanã, mas os

distingue de indígenas do grupo Jê. Torna-se, por isso, difícil crer que esta seja sua

autodenominação. Akuawa6 é ainda mais abrangente, na medida em que parece designar todos os

indígenas que têm práticas estritamente tribais em oposição, portanto, aos “modos” dos não-

indígenas.

6 Laraia (1972:24) observa que esta é também a autodenominação dos Suruí.

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Desnecessário discorrer aqui sobre o domínio da língua indígena como elemento demarcador

de identidade cultural e, neste sentido, encontramo-nos diante de um momento bastante importante

registrado entre os Asuriní do Trocará, que têm sido incentivados a usar sua língua, legitimando

assim sua existência social e garantindo o reconhecimento pela sociedade nacional. Por exemplo, por

ocasião das viagens realizadas no âmbito do Projeto Esporte Para Todos, os participantes fazem

questão de usarem a língua materna quando falam entre si, a fim de que as outras pessoas

participantes no evento possam saber que eles ainda falam sua própria língua (depoimento nesse

sentido foi dado por um dos participantes).

Muitos pesquisadores destacam a grande semelhança lingüística entre os Surui7 e os Asuriní.

Laraia é convencido de que os grupos faziam parte de um mesmo grupo indígena, em tempos

remotos, tendo se separado através de cisões internas (Laraia, 1972:16). Para tal afirmativa, o autor

leva em consideração as coincidências lingüísticas, as terminologias de parentesco dos dois grupos

que partilham, ainda, ampla identidade em aspectos culturais como cerimônias mágico-religiosas,

adornos, artefatos e mesmo a narrativa de trechos de sua história. E, com isso, classifica os dois

grupos sob a denominação genérica de Tupi do Tocantins (Laraia, 1972:29), considerando as

semelhanças desses dois grupos em relação a outros grupos tupi até então conhecidos (ainda não se

tinha contato com Parakanã, Araweté ou Asuriní do Xingu).

Da perspectiva das manifestações culturais Asuriní, pelo que se pôde observar em campo e

ler nos trabalhos até então consultados, são pouquíssimos os dados referentes a festas, cerimônias e

rituais. O distanciamento da língua afastou-os, obviamente, das demais manifestações culturais, que

foram desaparecendo sob os olhos desesperançados dos estudiosos e, talvez até sem consciência,

dos próprios indígenas. Os primeiros relatos dos inícios dos anos sessenta registram que ainda

persistiam a couvade e a crença nos poderes do xamã, inclusive na cura de doença, apesar da

aceitação por todos de tratamento por meio de medicamentos não-índios.

Os rituais de nascimento e de morte foram abandonados em virtude da diferença absoluta que

tais categorias têm para as sociedades que então se encontravam. Em relação à última delas, por

exemplo, entre os denominados Akuáwa-Asuriní, usava-se o sepultamento na própria residência do

falecido, com o posterior abandono pelos demais moradores (descrito também entre os Suruí-

Madjetíre e Parakanân)8. Tal prática estava baseada no fato de ser necessário impedir que os corpos

sejam profanados por seus inimigos, por isso enterrar seus mortos dentro de casa, garantindo, desta

forma, a inviolabilidade das sepulturas (Laraia, 1972:28). Após o contato, passaram a enterrar seus

mortos em cemitérios, sendo o atual praticamente no quintal de um dos aglomerados de casas,

bastante próximo da aldeia. Sobre os nascimentos, há uma tendência das mulheres recorrerem aos

hospitais da cidade, tanto para o tratamento pré-natal quanto para o momento dos partos. Há um

7 Em comunicação pessoal, Laraia informa que os Surui nunca deixaram de falar sua língua (Laraia, 2006). 8 Ver Laraia, 1972 e 1978; Arnaud, 1983.

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certo descontentamento em relação a isto, ao mesmo tempo em que se registram vários nascimentos

ocorridos na aldeia.

Laraia (1978) assinalava que os Asuriní não queriam mais praticar os rituais, pois estes

exigiam a perfuração de lábios. O significado mágico-religioso e o ideal estético de outrora davam

lugar à vergonha por serem considerados costumes “selvagens”, sendo, por isso, abandonados pelos

mais jovens, que mantêm intensos contatos com a população de Tucuruí, de quem querem se

assemelhar. Nesse ponto, contudo, é muito importante destacar que, motivados pela participação nos

jogos esportivos indígenas, os Asuriní estão retomando esta prática e jovens e adultos têm furado as

orelhas e os lábios.

No que se refere à crença nos poderes do xamã, pelos anos oitenta, quando iniciou sua

pesquisa na Aldeia Trocará, Andrade destacava que os Asuriní contavam com sua organização social

coerente, e bastante envolvidos com aspectos tradicionais do xamanismo e da cosmologia (Andrade,

1992). Há sete anos, o reconhecido pajé Nakawaé faleceu devido a uma mordida de cobra. Não se

sabe bem porque foi levado para Tucuruí no lugar de ser tratado na aldeia, com os remédios

fabricados pelos Asuriní e que, de acordo com Puraké, todos conhecem. Seu filho igualmente morreu

picado por cobra. Não houve ainda substituição de sua posição social e as manifestações rituais não

são observadas ou descritas. Quando insistimos no assunto, falaram, muito discretamente, que

pretendiam realizar uma festa (Festa do Jacaré), em outubro de 2006, e as poucas observações que

tivemos foram de pequenas “aulas” de taboca ou ensaios das danças que exibem por ocasião das

participações nos jogos indígenas. Por conta disso, também, Sakamiramé tem se ocupado em

compor novas canções, além das antigas que vão sendo ensinadas às crianças.

Os Asuriní não têm experiência de atividades diretas de grupos religiosos não-indígenas,

bastante conhecida de quase todos os grupos indígenas no país e com resultados, na maioria das

vezes, bastante danosos às práticas tradicionais cerimoniais e cotidianas. Exceto por períodos

relativamente curtos e de ação pontual, não são registradas muitas atividades de membros de igrejas.

Houve, inicialmente, a presença dos lingüistas do SIL; posteriormente, professoras do CIMI que se

responsabilizavam pelo ensino escolar.

Nos estudos antropológicos precedentes (Laraia, Arnaud e Andrade), observamos a existência

de alguns princípios do parentesco Asuriní, como características de casamentos: monogâmicos e

poligínicos, preferencialmente com primas cruzadas patrilaterais (casamento preferencial com a filha

da irmã do pai). Ao mesmo tempo em que assinala que essa prática começava a desaparecer, Laraia

discorre sobre o alto valor de prestígio que apresenta a poliginia (Laraia & Da Matta, 1978:78).

Inclusive, registra a forma de casamento entre um homem com a mulher e a filha desta, destacando

ser comum os matrimônios infantis, isto é, entre um homem e uma menina, com o casamento se

consumando após a maturidade sexual dela. Esses mesmos antropólogos destacam a forte

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solidariedade entre tios e sobrinhos (irmão da mãe com filho da irmã), e também entre irmãos

(siblings), o que traz como conseqüência forte rixa entre cunhados.

Já no começo dos anos sessenta, Laraia destaca que os padrões de organização tradicional

Asuriní foram alterados significativamente em razão dos altos índices de depopulação, nos menos de

dez anos subseqüentes aos contatos, que tornaram inviáveis a concretização de determinados

padrões sociais e também inviabilizaram a transmissão de muitos aspectos do conhecimento do

grupo. Aliás, considerando-se a inserção bastante grande desses indígenas à população regional,

onde podiam observar as formas sociais de organização, além, é claro, da intervenção direta através

do lema de integração nacional, procurava-se banir hábitos por demais bizarros aos olhos da

administração do órgão. Foram muitas as modificações advindas desse processo, embora ainda hoje

se registrem alguns poucos casos das regras de casamento tradicionais, como puderam ser

observadas nos diagramas de parentesco.

Há vários casais “interétnicos”, e interessante observar que os casamentos envolvendo os

Asuriní com indivíduos de outro grupo indígena têm a configuração mulher Asuriní/homem de fora,

sendo que, em dois casos, a mulher foi residir na aldeia do marido. Já os casamentos com a

população regional, têm sempre o homem9 Asuriní/mulher de fora e, em todos os casos, os cônjuges

passaram a residir na Aldeia Trocará. Esses casamentos entre os homens Asuriní e mulheres não-

índias geraram, até o momento, cerca de doze crianças com idade variando entre 0 e 10 anos10.

Não há muitos casos de mulheres Asuriní residindo fora da aldeia, exceto as casadas com

homens Parakanã que passam tempos em cada uma das aldeias; há um homem adulto que vive com

os Munduruku há muito tempo, sem manter contatos com o grupo; e outro que trabalha entre os

Anambé e que mantém contato regularmente com a família no Trocará (é viúvo, tem mãe, filhos,

irmãos). Há algum movimento de jovens que saíram para seguirem seus estudos fora da aldeia. São

cerca de seis indígenas, sendo três das famílias dos Tembé11.

Os vários grupos de famílias estão residindo na Aldeia Trocará, nas casas de alvenaria

construídas pelo governo do estado do Pará. A disposição atual das casas registra muitas discussões

com os sucessivos construtores e a tentativa por parte dos indígenas de acomodar as relações

familiares nas proximidades. O desenho atual, composto de pequenos grupos de casas, satisfaz em

parte esses arranjos.

Muito apropriadamente, Laraia (1972) destaca que, como foram os indígenas que fizeram

contato com o posto do SPI, não foi possível conhecer sua forma tradicional de residência, “(...) tudo

indica, porém, que possuíam diversas pequenas aldeias, constituídas às vezes por uma única casa,

9 Há uma criança filha de uma jovem Asuriní e um rapaz da cidade que nunca residiu na área. 10 Perto de 7% do total de crianças nessa faixa, sem contar as que vieram com suas mães (são cerca de cinco mulheres) e

que são frutos de casamentos anteriores. 11 Para efeitos de população total, estes indígenas são incluídos e também os residentes do “quilometro 18”; contudo, os

mesmos não fazem parte diretamente da dinâmica da aldeia aqui descrita.

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onde viviam todos os membros de uma família extensa” (Laraia, 1972:17). Esse padrão informado

pelo autor se transformou e deu lugar a pequenas casas de estilo regional que abrigam apenas a

família elementar. Com isso, a neolocalidade substituiu a regra de residência patrilocal. Bem mais

tarde, Arnaud (1983) descreve a organização social dos Akuáwa-Asuriní como famílias extensas com

residência patrilocal e/ou linhagens, ocupando, cada uma, geralmente uma habitação.

A forma atual da aldeia, como foi mencionado acima, apresenta características bastante

específicas, que revelam principalmente as intervenções junto ao grupo (posto da Funai, estrada, etc)

e não as práticas tradicionais de organização. Este formato é descrito pela antropóloga Lúcia

Andrade no seguinte trecho:

As habitações da aldeia alinham-se ao longo de um caminho que vai do posto da FUNAI até a casa de farinha – esta já localizada nos arrabaldes, ou seja, na periferia do espaço social. Ao longo desta reta principal formam-se também alguns aglomerados de casas, que costumam constituir as seções residenciais. Cada uma dessas unidades residenciais possui seu pátio de convivência, geralmente frente à habitação do casal mais velho. Cotidianamente, tais pátios marcam os espaços de interação no nível interno da aldeia (Andrade, 1992).

Assim, no lugar de uma casa comum abrigando a família extensa, o desenho agora apresenta

aglomerados de pequenas casas que vão, dentro do possível, sendo concedidas aos grupos de

parentesco. Esta localização espacial das famílias é bastante nítida e cada seção residencial utiliza

um determinado ponto do mesmo igarapé, para lavar roupa, tomar banho. Tal prática é todo tempo

revelada pelos próprios indígenas que, quando querem designar algum lugar da aldeia, por exemplo,

referem-se ao Igarapé do Kaju ou do Serivia.

Como a maioria dos grupos do tronco Tupi, os Asuriní não tinham um único líder. Formavam

pequenas unidades locais, cada um com sua liderança, que, por sua vez, era escolhida de acordo

com o prestígio de um homem junto a seu grupo. Esse prestígio era medido em termos de sua

capacidade de liderança, seu valor como guerreiro e, sobretudo, pela existência de um grande

número de parentes capazes de apoiá-lo. De acordo com Laraia (1978), “todos os habitantes do sexo

masculino de um mesmo grupo local pertenciam a uma mesma linhagem patrilineal” e referiam-se

uns aos outros como “orokopan ipype” ou “ceiroa”. O mesmo autor prossegue assinalando que a

situação instável no nível das relações de casamento e de organização política entre as pequenas

unidades coloca os Asuriní numa posição de certa fragilidade, caracterizada por constantes lutas

internas entre as diferentes linhagens e diminuindo as chances de solidariedade do grupo (Laraia,

1978:84).

Por ocasião do contato com o SPI, o grupo que se aproximara era liderado por Koatinema,

porém, por conta de desentendimentos com um funcionário do posto, ele resolveu retornar com seu

grupo para a mata. Neste período teria sido morto pelo líder de outro grupo local, que acabou

trazendo os indígenas novamente para junto do posto. Este novo “líder”, contudo, sucumbiu às

doenças e novamente os indígenas abandonaram a sede do posto e foram para o mato (Arnaud,

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1983). Inúmeras vezes ocorreram essas aproximações e afastamentos da aldeia que se formava

junto ao SPI e os grupos foram se reconfigurando. Andrade (1992) discorre detalhadamente sobre

como o sistema político foi sendo incorporado à lógica do órgão tutor, que geralmente legitima como

liderança pessoas diferentes daquelas identificadas como tal nas relações observadas no seio do

grupo. Na medida em que essas hierarquias vão se alterando, problemas novos vão se colocando

para todos.

No caso aqui analisado há ainda a agravante de se tratarem de dois grupos diferentes que se

colocaram juntos sob a égide da FUNAI numa estratégia de sobrevivência. De acordo com Andrade

(1992), o grupo do Pacajá, no período anterior a sua transferência para o Trocará, era um grupo local

formado basicamente pelos filhos e filhas casadas de Amatasairohoa12, que lá viviam com suas

esposas e maridos. Prosseguindo, nas palavras de Andrade:

(...) sua liderança se consolidava na solidariedade de seus filhos, na relação de obrigação do genro para com o sogro e, ainda, no seu prestígio enquanto pajé. Faleceu, entretanto, antes da transferência para o Trocará e o único indivíduo que exercia as atividades de pajelança, o Velho Nakawaé, segundo contam os Asuriní, optou por não se envolver nas questões políticas, especialmente naquelas relacionadas com os não-indígenas. Não havia, assim, entre os anos 70 e 80, ninguém que preenchesse os requisitos tradicionais de chefia. O atual ‘capitão’ Cajuangawa (escolhido nos anos 60 para esta função pelo então SPI) foi tendo que construir lentamente sua legitimidade que, hoje, parece não ser mais contestada pelos Asuriní (Andrade, 1992:25).

Ao longo dos últimos anos, com a consolidação do contato e a complexidade das relações

com “a sociedade envolvente”, só tem crescido a demanda pela participação dos indígenas em

reuniões e discussões sobre um número cada vez maior de questões das quais dependem suas

vidas13. Nesse processo, já de mais de cinqüenta anos e com acontecimentos tão dramáticos, as

fórmulas tradicionalmente reconhecidas de gerar liderança não têm tido tempo suficiente de se

realizar e, mesmo assim, a cada dia novos problemas, em torno de situações recentemente criadas,

exigem maior conhecimento das exigências burocráticas do Estado Brasileiro. Neste sentido, na

aldeia Trocará apresentam-se intrincados arranjos de composição política para cada um dos mais

diversificados níveis de processos de tomada de decisão.

Há os homens maduros que são reconhecidos como lideranças, por suas posições sociais,

nos dois grupos principais de conjuntos de famílias ou por interações privilegiadas junto aos

administradores da FUNAI. Essas pessoas são solicitadas nas discussões e decisões de assuntos

internos da aldeia e, principalmente, nos inúmeros fóruns onde todo o grupo tem participação, que

hoje inclui os cuidados mínimos de saúde e educação. Muitos destes compromissos são realizados

fora da aldeia e exigem uma certa competência no entendimento das normas dos não-indígenas, com

12 Ele é pai de Takamona(�), Waweohoa (�casada com Sakamiramé), Ponakatu e Kujakuena (� casadas com Puraké),

Inawtaraohoa (� casado com Iranoa). 13 Não esquecer que as questões que eram resolvidas pela FUNAI agora tramitam nas mais diferentes instâncias de poder,

governamental e não-governamental.

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isso alguns homens mais jovens, como, por exemplo, Oliveira (filho do Purakê) e Saté (filho do

Serivia), têm tido participação importante em momentos de tomadas de decisão.

3. RELAÇÕES COM A POPULAÇÃO REGIONAL

Poderíamos dizer, sem erro, que os Asuriní foram envolvidos pela sociedade “brasileira” sem

qualquer chance de opção por uma outra via. Abrigados, digamos assim, junto ao SPI, da

perseguição violenta travada pela direção da Estrada de Ferro Tocantins, além dos problemas com

seus tradicionais inimigos indígenas (estes também pressionados pelo avanço dos regionais), os

Asuriní logo tiveram que enfrentar diretamente o contato com estes seus novos vizinhos. Instalados,

assim, na beira do Rio Tocantins, passaram a integrar a economia da região, constituindo-se em

mão-de-obra qualificada nos períodos de coleta de castanha-do-pará. Além da castanha, pelo menos

desde o início dos anos 1960, os Asuriní produziam farinha para comercialização em Tucuruí (Laraia

& Da Matta, 1978). A possibilidade de ingressar nas relações de mercado existentes, colocando a

venda alguns produtos, abriu igualmente as portas ao consumo de bens que não produziam, mas que

se tornaram indispensáveis no seu novo modo de vida.

Com o declínio da economia da castanha, enquanto os que enriqueceram com isso iniciavam

as fazendas de gado, os trabalhadores, incluindo os indígenas, voltaram-se para a comercialização

de outros produtos, como açaí e bacuri. De acordo com Andrade (1985:23), pelo menos desde 1984,

eles já comercializavam tais produtos em Tucuruí. E, também por essa época, a mesma

pesquisadora já registrava a aquisição de discos e fogões, com o dinheiro obtido pela

comercialização de farinha em Tucuruí, destacando que “agora os indígenas não dispensam mais

eletrodomésticos” (Andrade, 1985:15).

Aliás, analisando as conseqüências do contato entre os não-indígenas e os Asuriní, Laraia &

Da Matta (1978) destacam as drásticas perdas da tecnologia tradicional em favor das práticas

aprendidas com os não-indígenas. Espingardas substituíram o arco e flecha; utensílios de metal, as

peças de cerâmica; e mesmo os instrumentos básicos que os indígenas utilizavam já pertenciam “aos

brancos”: “nenhum de nossos informantes Asuriní, nem mesmo os mais velhos, têm lembrança da

existência de machado que não o de ferro” (Laraia & Da Matta, 1978:101).

Importante salientar que o contato retirou os indígenas de seu território, rompendo as

estruturas socioeconômicas tradicionais, além das expressivas baixas populacionais que impediam a

produção de alimentos em escala adequada para alimentar os “sobreviventes”. Laraia analisa com

extrema propriedade como a reduzida população tornava inoperável o sistema econômico e social

dos Asuriní que, diante da única possibilidade de vida, tiveram que aprender a trabalhar e produzir à

moda dos não-indígenas.

Outrora, os Asuriní produziam roças individuais por grupos familiares. Por volta de 1982,

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12

começou a ser incentivada a produção por meio de roças comunitárias, visando, por um lado, à

comercialização do produto gerado (leia-se farinha). Na interpretação dada à época, a construção de

uma casa de farinha no posto geraria um problema em termos da localização das roças individuais e

das distâncias em relação à casa de farinha, pois todos iriam querer ficar mais próximos, evitando o

problema de deslocar o peso da mandioca para ser processada (Andrade, 1985:16). A produção de

farinha, então, reuniu todos numa roça coletiva, embora muitos ainda mantenham suas roças

familiares. Mas, durante um bom período, mantiveram, através da farinha comercializada em Tucuruí,

contatos diretos com os comerciantes da cidade. Aliás, de modo geral, é na feira de Tucuruí que os

indígenas são ainda vistos (ou representados) pela população da cidade:

Os conceitos emitidos pela população de Tucuruí sobre os indígenas são sempre desabonadores e consistem na sistemática repetição de velhos estereótipos tais como ‘o índio é indolente, sujo, traiçoeiro e ladrão’ (Laraia & Da Matta, 1978:103).

Àquela época, esses antropólogos justificavam, em parte, que tais preconceitos eram

motivados pelo fato dos indígenas terem direito a terra e de não terem que se submeter à ordem

quase escravocrata dos patrões dos castanhais, como ocorria com a maioria da população do

município, aliás, da região. A visão pejorativa que os residentes do núcleo urbano de Tucuruí têm dos

Asuriní pode, igualmente, ser devido ao período inicial de seu contato, quando elementos não-

indígenas os manipularam, obrigando-os a assaltar roças dos regionais, mendigar nas ruas e

prostituir suas mulheres.

Em Tucuruí, os Asuriní podem ser designados como aqueles que “ficam lá na feira”, bebendo

e “abusando” (isto é, arrumando confusões e brigas). Essa discriminação que os Asuriní

experimentam em Tucuruí, há anos, teria gerado neles a tendência em promover uma certa

invisibilidade cultural, onde quaisquer sinais ou práticas indígenas deveriam desaparecer. Seja pela

possibilidade mais recente de comparação com os Parakanã, que também passaram a freqüentar a

cidade, seja por qualquer outra motivação, em algum momento houve uma reversão desse processo,

destacando-se, aqui, a interpretação de Andrade (1992), que observa o fato do confronto com o

Governo de Estado, por conta das obras de ampliação da estrada PA-156, como o momento em que

os indígenas começaram a retomar sua identidade para reivindicar seus direitos. Agindo fora dos

trâmites político-administrativos da Funai, passaram a adotar procedimentos discutidos e

implementados pelo próprio grupo que passava, então, a se apresentar como “índio” e começando a

adquirir uma certa expressão, inclusive, na mídia.

Assim, por exemplo, em abril de 1991, os Asuriní compareceram a um debate sobre as conseqüências da UHE Tucuruí, na Câmara de Vereadores, todos pintados e empunhando arcos e flechas. Era a primeira vez que eu os via trajados desta forma na cidade de Tucuruí (Andrade, 1992).

Hoje, os Asuriní estão vivendo um franco processo de “valorização” de uma identidade

cultural, construção de cidadania através de sua etnia, que buscam nas mais diferentes fontes,

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13

gerando práticas que comportem tanto as suas relações com os não-índios, quanto as suas relações

com outros grupos indígenas com os quais são chamados a interagir em processos políticos ou

“esportivos”14.

4. OS IMPACTOS DA UHE E A PRESENÇA DE INSTITUIÇÕES JUNTO AOS ASURINÍ

Sem dúvidas, o fato que mais chama a atenção quando se ingressa na Terra Indígena Trocará

é a diversidade de instituições que atuam junto àquela população. A antiguidade do contato e suas

conseqüências, que foram pautadas pela inserção dos indígenas à população regional, e a

proximidade do núcleo urbano de Tucuruí, que explodiu nos últimos anos atingindo diretamente a TI,

são fatores que têm contribuído para a interação intensiva de indígenas e não-indígenas, nas mais

diversas direções. Há vários órgãos com ações e projetos dentro da área, traduzidos por muitos

diferentes “funcionários” e, da mesma forma, são vários os motivos que solicitam a saída dos

indígenas da aldeia, seja para a jornada de apenas um dia em Tucuruí, seja para viagens dentro ou

fora do estado.

Inicialmente, registra-se a presença da Funai que, substituindo o Serviço de Proteção ao

Índio15, sempre esteve junto ao grupo através da Administração Regional de Marabá. Há, na aldeia,

uma casa do Posto Indígena Trocará, onde reside o chefe do Posto, curiosamente o filho de um

antigo funcionário que trabalhou com esse mesmo grupo durante anos. Esse rapaz formou-se em

técnico agrícola e hoje segue o caminho de seu pai, na mesma aldeia onde, como dizem os

indígenas, foi criado. Ao chefe do posto cabe o acompanhamento das atividades cotidianas da aldeia

e das realizadas na cidade, como a venda dos produtos e recebimento das aposentadorias, vigilância

dos limites da área e algumas atribuições administrativas do órgão. No Posto Indígena Trocará, o

aparelho de rádio (para comunicação externa), diferente do que costuma ocorrer em outras aldeias,

pertence a FUNASA e é operado pelas enfermeiras desse órgão.

A Estrada de Ferro Tocantins começou a ser idealizada em 1895, com a finalidade de

contornar o trecho encachoeirado do Rio Tocantins16. Sua construção iniciou-se em 1927 e foi

concluída no início dos anos 1940. O objetivo era ligar Tucuruí à localidade de Jatobal (município de

Jacundá), onde os carregamentos de castanha embarcavam no trem até Tucuruí e, em seguida,

eram transferidos para os barcos que aproveitavam, a partir daí, as águas mansas do Tocantins em

navegação livre até Belém. Na safra, era grande o movimento de embarcações para transportar o

produto até Belém, a castanha girava grandes somas e incrementava a economia local (de

barqueiros a bordéis). 14 Referimo-nos aos encontros esportivos estrito senso e ficamos devendo a discussão sobre o aspecto político dos jogos. 15 O contato se deu por iniciativa dos indígenas, perseguidos pelos ataques dos trabalhadores da Estrada de Ferro

Tocantins e de outros grupos indígenas considerados inimigos. 16 Cachoeiras de Itaboca, Garganta do Inferno, Capitariquara e Vida Eterna (Laraia & Da Matta, 19978:51).

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14

Apesar do pequeno trecho e do pouco tempo de funcionamento, a EFT foi de fundamental

importância na consolidação do núcleo urbano de Tucuruí. Ao lado do pobre povoado de casas de

palha, sem qualquer infra-estrutura básica de luz, água ou esgoto, ergueu-se a vila que deste se

distinguiu, nitidamente, tanto nos aspectos urbanísticos quanto na situação econômica de seus

moradores. Os funcionários da EFT (que eram da esfera federal) dispunham de casas bem

construídas, dotadas de água encanada, esgoto e energia elétrica fornecida pela própria companhia.

A concentração populacional em área urbana gerada pela presença da EFT fazia com que

Tucuruí vivesse constantes crises de falta de gêneros alimentícios17 (Laraia & Da Matta, 1978). Neste

sentido, os indígenas eram fornecedores privilegiados, tanto de carne de caça, quanto de farinha de

mandioca, visto que se constituíam nos raros “produtores rurais” das imediações.

Ironicamente, o problema que pretendia ser superado pela Estrada de Ferro – a presença de

cachoeiras no Rio Tocantins – tornou-se solução econômica, não somente para a região, mas para o

Brasil. Primeiro grande empreendimento da Eletronorte (criada em 1973), a Usina Hidrelétrica de

Tucuruí teve suas obras iniciadas no final de 1975, entrando em operação em 1984 com o objetivo de

fornecer energia e viabilizar os denominados grandes projetos, a saber, Projeto Grande Carajás e

ALBRAS, no Pará, e ALCOA, no Maranhão.

Sem nenhuma dúvida, a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí foi o empreendimento de

maior impacto na vida dos Asuriní, após a situação de contato, nos anos 1950. Embora seu território

não tenha sido diretamente atingido pelas obras da barragem, como no caso dos Parakanã, com os

conseqüentes impactos ambientais, os Asuriní receberam em sua vizinhança a explosão da cidade

de Tucuruí. As instalações básicas para a construção da hidrelétrica e para a manutenção de seu

funcionamento provocaram alterações profundas na estrutura socioeconômica de toda a região e,

mesmo não tendo sido alagados, os impactos sofridos pelos Asuriní vieram de todos os lados,

traduzidos por problemas de toda sorte, não apenas ambientais. A movimentação da pequena

povoação que rapidamente se transformou em pólo de importância nacional gerou impactos

irreversíveis na vida daqueles indígenas que se encontravam, infelizmente, localizados tão próximos

do local.

Nas primeiras notícias sobre os Asuriní, no início dos anos 1960, Laraia e Da Matta já

mencionam que “o governo federal projetou a construção de uma barragem na cachoeira Itaboca,

com a finalidade de regularizar a navegação no rio e a produção de energia elétrica para toda a

região e norte de Goiás” (Laraia & Da Matta, 1978:99). Destacam, ainda, que, em novembro de 1962,

técnicos realizavam levantamento topográfico na área.

Naquela ocasião, a população do núcleo urbano de Tucuruí era de 3.403 habitantes (Laraia &

Da Matta, 1978). Face à construção da Hidrelétrica, a população regional foi apresentando aumentos

17 Agravadas pelo fato de que a principal característica da economia local era extrativista, com a coleta de castanha e pelo

temor de ataques de indígenas, que afastavam a população das áreas rurais.

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15

significativos, entre 1970 e 1980, com índices, em Tucuruí, na ordem de 517,1%, e em Jacundá, de

568,7% (Arnaud, 1983). Tais índices, por si só, são preocupantes e mais ainda se pensarmos na

localização da região, afastada de qualquer outro núcleo urbano expressivo. De lugar de passagem,

tornava-se, assim, o chamariz para gente de todo o país. Os transtornos para os indígenas eram

inevitáveis. Em relatório do então chefe do Posto Indígena (PIN), de outubro de 1978, já é

mencionada a saída dos indígenas daquela área (margem esquerda do Rio Tocantins), referindo-se à

inundação na área do Posto. O mesmo documento registra a presença constante de vários elementos

da Eletronorte e Camargo Correa18.

Como é de praxe nesses grandes projetos, as medidas de avaliação, minimização ou

neutralização dos impactos surgem após as decisões já terem sido tomadas, quando não há

quaisquer possibilidades de alteração no projeto e, desta forma:

(...) o social aparece no cenário como um problema a ser solucionado. As considerações sobre direitos dos moradores nas áreas afetadas não conseguem, assim, sequer alcançar a importância e a supremacia dos dados técnicos e as análises sociológicas são executadas como medidas complementares (SANTOS, Leinad & Andrade, Lucia M. M. 1988).

Assim, não consta qualquer forma de ação compensatória por parte da Eletronorte destinada

aos Asuriní, embora durante os anos oitenta, por outras vias e por breve período, tenham sido

contemplados com algumas ações incluídas no Convênio entre Vale do Rio Doce e Funai (Vieira,

1985:10). Este convênio previa a assistência aos grupos indígenas localizados nas áreas de

influência do Projeto Grande Carajás e, dentre as ações, estavam previstas a construção de

instalações no posto para o melhor funcionamento dos cuidados de enfermagem, com aquisição de

equipamentos (autoclave, geladeira e microscópio), instalação de gabinete dentário, aquisição de

camionete para uso dos indígenas em Tucuruí e na vigilância dos limites da Área e contratação de

enfermeiras de nível superior. Voadeiras, poços d´água, filtros de cerâmica, lanternas, pilhas,

mosquiteiros, sementes, mudas, máquinas de costura, carrinhos de mão e fornecimento de anzóis,

malhadeiras, querosene, espingardas e munição constituem outras reivindicações junto ao convênio

da Vale do Rio Doce, todas assinaladas no Relatório da antropóloga Lúcia Andrade, intitulado

“Recomendações para aplicação da verba do convênio CVRD/FUNAI” (1985), que descreve,

também, as reuniões de esclarecimento sobre o recebimento da verba (de duração limitada) e

possibilidades de sua aplicação.

No mesmo ano, em relatório, o médico João Paulo Botelho Vieira (1985) destaca a assistência

que a Eletronorte promovia aos Asuriní, indicando a internação de indígenas acometidos por malária

e picados por cobras, ou simplesmente consultas, no Hospital da Eletronorte de Tucuruí. Destacando,

inclusive, que a baixa taxa de mortalidade do grupo devia-se à proximidade da assistência prestada

pelo hospital da Eletronorte (Vieira, 1985:06). Essa assistência, entretanto, era destinada a todos os

18 Cf. Bibliografia sobre os Asuriní, organizada por Cláudio Emídio (Documento nº07).

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16

moradores do município, indistintamente, e não configurava nenhum tipo de ação especialmente

voltada aos indígenas.

Para os Asuriní, os impactos assinalados em sua interpretação sobre a construção da

hidrelétrica de Tucuruí giram em torno da grande enchente sofrida em 1980 e que os obrigou a mudar

a aldeia para a parte mais central da TI. Os dados pluviométricos estão sendo devidamente

analisados pela equipe de limnologia, a fim de esclarecer sobre a real influência da UHE no nível das

águas do Rio Tocantins, mas não se podem negar os “impactos simbólicos”, também analisados

pelos técnicos da Eletronorte junto à população de jusante19. Temos, em suma, uma representação

stritu sensu da hidrelétrica, compreendida nos termos daquela estrutura física instalada no meio do

rio. Contudo, impossível dissociar tal estrutura de toda a transformação que sua construção provocou

na macro-região de Tucuruí, com aumento surpreendente de população e serviços.

A disponibilidade de energia elétrica e o crescimento de Tucuruí e região do entorno

acabaram solicitando maior presença do Governo do Estado do Pará, que passou a atuar, por

exemplo, com a construção de rodovias e projetos de instalação de sistema de eletrificação rural,

causando influência direta sobre a TI Trocará. Além disso, no início dos anos 1970, a TI Trocará foi

cortada pela rodovia Cametá-Tucuruí, atualmente conhecida como Trans-Cametá. A PA 156, que foi

recentemente federalizada, tornando-se a BR 422, seguia como continuação da BR 153. Importante

lembrar que a abertura da rodovia Belém-Brasília, em 1960, da Transamazônica e da Cuibá-

Santarém, surgidas após 1970, fazia parte do Programa de Integração Nacional que previa, através

de diversas outras rodovias a elas ligadas, o desenvolvimento dessa região – no plano social,

interpretada como “desértica” ou isolada (Arnaud, 1983).

A Trans-Cametá mudou radicalmente a vida dos indígenas que, a partir de então, transferiram

sua comunicação com o núcleo urbano de Tucuruí do Rio Tocantins para a via terrestre, uma vez

que, a partir da estrada, qualquer meio de transporte pode ser utilizado, desde carros e caminhões,

bicicletas e até mesmo a pé. A estrada foi construída na década de 70, sem que os indígenas fossem

consultados, ou sequer informados do projeto. Os Assuriní contam que tomaram conhecimento da

obra quando os tratores começaram a atravessar a reserva.

No início de 1982, já se registra a solicitação de construção de estrada entre a rodovia Trans-

Cametá e a sede do PIN, para facilitar a vigilância e complementar a assistência à reserva, o que

ocorreu em 1985. No início dos anos 1990, quando se iniciaram os trabalhos de ampliação e de

conservação da Trans-Cametá, os índios, decididos a impedir a obra, exigiram como indenização

pelos prejuízos advindos da implantação da rodovia a eletrificação da aldeia e a construção de casas.

Após a extensão do sistema de eletrificação rural de Tucuruí a Cametá, que atravessou a TI

Trocará, a comunidade seguiu reivindicando como medida compensatória a disposição de energia

19 A pesquisa foi realizada com populações ribeirinhas, com exceção das populações indígenas, e suas análises foram

consideradas em nossa pesquisa.

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17

elétrica gratuita, nas casas e na aldeia. Hoje a aldeia é totalmente servida por energia elétrica, que

permite o funcionamento de bombeamento e distribuição de água encanada em todas as casas;

iluminação por meio de postes das áreas comuns, como pátio central, estrada, caminhos que ligam

as diferentes partes da aldeia. A energia elétrica permitiu, também, a aquisição de eletrodomésticos

como geladeiras, televisores e sistemas de som, cada vez mais potentes e que, literalmente, têm

tirado o sono de muitos. Conta-se hoje, na aldeia, cerca de cinco “PA”, sistema de som profissional

com os quais os jovens organizam festas semanais, com música (forró e brega) bem alta, o que tem

sido apontado como o motivo dos mais velhos terem decidido mudar para uma outra aldeia.

Ainda em razão da construção da estrada e da instalação da rede de eletrificação rural, que

gerou acordo indenizatório por parte do Governo do Estado, foram construídos, na Aldeia Trocará, os

prédios da escola, da farmácia e quarenta e duas casas de alvenaria destinadas à residência dos

índios. Constou, ainda, do referido acordo a implantação de um sistema de abastecimento de água e

saneamento (com a construção de fossas). As obras somente foram concluídas em 2002, após forte

pressão por parte dos Asuriní. Isto gerou um grande problema, pois as novas gerações já não sabem

mais construir as casas, o que vem provocando uma superpopulação destas casas existentes.

É importante destacar que, em 1983, a escola do PIN Trocará foi incorporada à rede estadual

de ensino, tendo que seguir, a partir de então, o calendário oficial seguido pelas escolas não-índias

(Andrade, 1985:34). Desta forma, procedem as observações feitas de que, apesar do disposto na

Constituição Federal, que assegura o ensino diferenciado para as populações indígenas, há

dificuldades em realizar o ensino em língua indígena naquela aldeia.

Outro modo de impacto sofrido vem por meio de projetos, como, por exemplo, o “Esporte Para

Todos”, que iniciou suas atividades junto aos Asuriní da Terra Indígena Trocará em agosto de 2004,

seguindo a experiência considerada bem sucedida entre os Suruí. O Projeto é desenvolvido pela

Secretaria de Estado de Esporte e Lazer – SEEL e tem como objetivo “resgatar valores culturais” e

promover a auto-afirmação e auto-estima dos índios. Dentre as atividades propostas pelo projeto

estão futebol, cabo de guerra, arco e flecha, corrida, natação, dança e produção de artesanato.

Na Aldeia Trocará são cerca de trinta jovens envolvidos no Projeto que, além das atividades

na própria aldeia, organiza a participação dos índios nos Jogos Indígenas do Brasil e do estado do

Pará. Nessas ocasiões, os índios viajam para outras cidades onde disputam e se apresentam com

danças tradicionais. O envolvimento dos jovens com esse projeto é bastante significativo e, sem

dúvidas, essa atividade gerou um movimento de atualização das tradições na medida em que eles

procuram se pintar e aprender músicas e danças, ainda que “para inglês ver”. Outro ponto positivo,

constantemente destacado pelos funcionários e pelos próprios índios mais velhos, foi o fato de que é

vedada a participação nas atividades do membro que consumir bebida alcoólica (em toda e qualquer

circunstância). Como dizem: “só isso já valeu”.

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Também há, na aldeia, a presença de instituições diversas, como a Fundação Nacional de

Saúde (FUNASA), o que se deve à modificação instituída durante o mandato do presidente Fernando

Collor de Melo, quando foi editado um conjunto de decretos que estabeleceram novas diretrizes para

a política indigenista, repassando para diversos ministérios ações antes desenvolvidas pela Funai.

Dentre tais decretos, o de nº 24, publicado no DOU de 04 de fevereiro de 1991, dispõe sobre o

serviço de assistência médica às populações indígenas, retirando esta atribuição do órgão que desde

sempre o fizera, a Funai (como continuidade do SPI), e colocando tais populações indistintamente na

fila da FUNASA.

Além das diretrizes e ações20 que são realizados junto aos indígenas, também os funcionários

advêm da FUNASA que, além do atendimento básico no posto de saúde instalado na aldeia, é

responsável pela vacinação dos indígenas e acompanhamento quando algum doente precisa se

internar em Tucuruí. A equipe da FUNASA é constituída de uma enfermeira21, um odontólogo e três

técnicos de enfermagem que se revezam em turnos de vinte dias por dez dias de folga. Todos

residem na casa construída contígua à farmácia e muito bem mantida pelas funcionárias. A equipe

conta ainda com dois Agentes Indígenas de Saúde (AIS), um Agente Indígena de Saneamento

(AISAN), como previsto, indígenas que receberam qualificação para o cargo. Há, ainda, dois

motoristas responsáveis pela condução da camionete da FUNASA no deslocamento de doentes para

Tucuruí e dos funcionários, no início e término de seus plantões.

Programas como a aposentadoria rural por idade, benefício instituído pela lei 8213/91, que

garante o pagamento de um salário mínimo aos homens com idade superior a 60 anos e mulheres

com idade superior a 55 anos, também tem transformado a vida dos Asuriní. Há dois índios

aposentados pela FUNAI, por terem sido contratados como funcionários atuando em Frentes de

Atração. São, ao todo, 29 índios na Aldeia Trocará que contam com o benefício, concedido aos

idosos e a uma família que conta com o amparo assistencial a portador de deficiência (previsto pela

Lei 8742/1993), igualmente no valor de um salário mínimo. Também há alguns índios que são

funcionários públicos, como as três professoras e uma merendeira da escola, que são pagas pela

Prefeitura de Tucuruí; dois Agentes Indígenas de Saúde e um Agente Indígena de Saneamento,

pagos pela FUNASA. Além das aposentadorias por idade e agora cientes dos direitos que têm em

relação a tais benefícios, os Asuriní têm buscado nesses recursos um auxílio a sua subsistência.

Desta forma, as mulheres que dão à luz têm recebido o salário-maternidade (Lei 8213/91) e muitas

famílias têm recebido verbas assistenciais do governo, como Bolsa-família, vale gás e outros.

Essa renda, todavia, está localizada em poucas casas, como, por exemplo, os casais idosos

que recebem, cada um, sua aposentadoria (nove casos), da mesma forma que ambos os

20 A FUNASA fornece, ainda, cestas básicas para os desnutridos, grávidas, nutrizes e idosos. 21 A enfermeira que se encontra atualmente na TI Trocará obedece a um sistema de rodízio entre três aldeias indígenas:

Trocará, Anambé e Amanajé (Surubiju).

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19

aposentados da Funai cujos cônjuges recebem o benefício do governo. Nos poucos casos em que há

o recebimento de apenas um benefício, são idosos que moram ou sozinhos ou com um de seus filhos

e, certamente, destinam algum recurso a eles. Essa relativa “concentração de renda”, se podemos

falar assim, pode estar gerando hierarquias no plano de aquisição de bens e serviços e alterações

importantes nos princípios de organização social, aspecto este que, certamente, exige uma análise

mais cuidadosa quando pensamos em termos da continuidade do grupo social indígena e não de

indistintos regionais.

Embora não disponhamos de muitos dados que possam permitir uma adequada interpretação

das relações entre os Asuriní e a Prefeitura de Tucuruí, é fácil perceber que as mesmas prosseguem

de maneira bastante cordial, com acesso e apoio do poder municipal. Foi a Prefeitura quem doou o

caminhão que atualmente se encontra em plena atividade, sendo responsável igualmente por uma

cota de combustível semanal, consertos e manutenção do veículo. Doou também o computador que

se encontra a serviço da Associação Indígena do Povo Asuriní do Trocará (AIPAT).

E, ainda, outros projetos têm diversificado a atuação de instituições na TI, como o Projeto

“Manejo Agroflorestal Asuriní do Trocará”22, que teve início no ano de 2004 com financiamento do

Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas – PDPI (que integra o Programa Piloto para Proteção das

Florestas Tropicais do Brasil, o PPG7), com valor estimado na ordem de R$134.405,00 e previsão de

duração de 19 meses. Este projeto, gerenciado pela Associação Indígena do Povo Asuriní do Trocará

que, com isso, se fortaleceu, prevê a produção de mudas de árvores frutíferas nativas e exóticas,

visando ao replantio da área com espécies que beneficiem os índios em sua alimentação básica e na

comercialização de alguns dos produtos. Outro objetivo do projeto é a capacitação de Agentes

Agroflorestais Indígenas, isto é, cerca de quinze rapazes que têm desenvolvido as atividades de

manutenção do viveiro de mudas, semeadura e cuidados com as plantas, sob a orientação do ex-

chefe de posto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É muito difícil propor conclusões de um trabalho que apenas esboçou-se. O período de

pesquisa de campo, bibliográfica e documental que nos foi atribuído para a realização do mesmo foi

muitíssimo reduzido para que nos permita apresentar um quadro definido ou fidedigno da situação

vivida pelos Asuriní do Trocará. Para os Asuriní, o contato foi radical no que se refere ao abandono

das práticas tradicionais, tornando-os quase invisíveis às pesquisas antropológicas que abundam, por

exemplo, entre seus homônimos do Xingu.

22 No Acervo Asuriní, na sede do Programa Parakana, em Tucuruí, encontra-se uma cópia do referido projeto, de onde

foram retiradas diversas informações.

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20

Há duas pesquisas, até o presente, que apresentam dados importantes sobre a vida destes

índios, com a descrição de transformações bastante drásticas exercidas sobre sua organização

social. Em dois momentos diferentes, contudo, foram registradas as estratégias de sobrevivência do

grupo frente aos impactos gerados pela situação de contato e as formas como passaram a se dar as

relações com a cada vez mais invasiva “sociedade envolvente”. E, com relação a esse aspecto, é

impossível imaginar todo o processo vivido pelo grupo após o seu contato sem ter em conta a

presença definitiva e definidora da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.

Como implicação mais direta destes acontecimentos, no imaginário dos Asuriní, encontra-se a

enchente de 1980, que atribuem a construção da UHE, fenômeno este que os obrigou, de uma hora

para outra, a transferir a aldeia que se localizava às margens do Rio Tocantins para uma área de

terra firme. Parte ou não do imaginário, fato é que a enchente provocou a saída de todos os índios da

beira do rio e a nova aldeia foi instalada onde se encontra atualmente. O momento da mudança, e

provavelmente porque se acreditava em uma nova vida para os índios, favoreceu a implantação de

alguns serviços, por parte da Funai, como atendimento de saúde e escola, com a construção dos

respectivos prédios, além da presença confortável do Chefe do Posto e sua família. Em torno deles

os Asuriní foram construindo suas casas e plantando suas roças.

A demarcação da Terra Indígena Trocará, ao mesmo tempo e em conseqüência da

implantação da UHE, garantiu aos Asuriní uma ínfima parte de espaço, agora já praticamente dentro

da cidade de Tucuruí. A expansão acelerada desta cidade exerce uma enorme pressão nos recursos

que precisam ser produzidos para suportar a demanda alimentar dos Asuriní. O que tem se tornado

cada vez mais difícil, pois, com a devastação do entorno, a TI Trocará foi se tornando uma estreita

ilha de reserva florestal, por si só já bastante explorada. As inúmeras fazendas e loteamentos

instalados nos arredores da terra indígena acabaram por desmatar toda a área, prejudicando os

mananciais e destruindo os habitats naturais de reprodução e desenvolvimento das espécies, além

de atrair outros caçadores que disputam esses animais com os índios.

Marca maior do vilipêndio com a área foi a construção da estrada Tucuruí-Cametá, cujo

traçado transformou para sempre a vida dos Asuriní e as formas de interação com a cidade. De

contato intermitente com a população regional vimos recrudescer as relações dos índios com a vida

urbana, em todas as suas vertentes: sem intermediações, a cidade chegou ao centro da aldeia. Os

Asuriní e a sua terra tornaram-se vulneráveis à presença inexorável dos hábitos da cidade e, com

poucas chances de reação, têm sofrido as devidas conseqüências desse que é o maior dos impactos

que a UHE provocou em suas vidas.

A fixação dos indígenas na atual aldeia, aliada à forte pressão externa, tem provocado sérios

problemas que demandam uma intervenção urgente como, por exemplo, o abastecimento alimentar.

A crescente e intensiva ocupação das áreas do entorno tem deixado os Asuriní acuados, fadados a

serem vistos como uma localidade dentre inúmeras outras encontradas nas vizinhanças (importante

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não esquecer que a Terra Indígena está localizada a 24 quilômetros do perímetro urbano, sendo

possível transpor o percurso a pé, inclusive pelas crianças.

A caça e a pesca realizada por não-indígenas dentro e fora da área contribuem para a

diminuição das espécies, da mesma forma que sua reprodução e ocorrência torna-se cada vez mais

difícil, dada a devastação das matas do entorno, o que, por sua vez, desequilibra os aspectos de

produção e distribuição de alimentos entre os indígenas.

Os estudos sobre a sustentabilidade dos recursos na TI Trocará devem vir acompanhados do

tratamento estatístico para os dados da população que dispomos até o momento. Ainda que simples

listagens de nomes, nomes de pais e datas de nascimentos, às vezes com alguns erros, acreditamos

que seja possível propor algumas observações no sentido de acompanhar as tendências de

crescimento da população Asuriní, mediante as atuais situações23.

Os Asuriní surpreenderam a todos, pois ainda mantêm traços importantes de sua organização

social tradicional e o relativo conhecimento da língua materna. Considerando a antiguidade e o tipo

de impactos sofridos já com o contato e, sobretudo, ao longo dos últimos vinte anos, e o quadro atual

em que se encontram, podemos mesmo dizer, contudo, que estamos diante de um quadro crucial que

pode apontar para uma descaracterização mais acelerada dado o aumento da população num

contexto demasiado desorganizado. Uma grande população de jovens se encontra no marco divisor,

podendo afastar-se ou se aprimorar nas práticas tradicionais do grupo. Nesta direção, é preciso

destacar o envolvimento do grupo com o projeto de esporte, que tem investido em atividades que

valorizam os aspectos étnicos, com o resgate de músicas, danças, do uso da língua materna e

também pela construção de uma presença junto aos outros grupos indígenas que participam do

mesmo projeto.

Trata-se de um momento decisivo, talvez mais agora do que antes, dada a intensificação do

contato e as possibilidades concretas de alterações significativas na organização social Asuriní,

como, por exemplo, a intensificação de relações de parentesco com famílias não-índias. Nota-se,

ainda, na Aldeia Trocará, a ampla introdução de aparelhos eletrodomésticos, que passaram a ser

adquiridos após a instalação de energia elétrica na aldeia. Poderíamos sugerir, carecendo analisar de

maneira mais consistente, que o uso de geladeiras e frigoríficos, na medida em que possibilita

armazenar os produtos da caça e da pesca, podem alterar padrões de distribuição de alimentos.

Mais diretamente observável, porém, é a presença de aparelhos de som e de televisores que

vêm tomando o lugar de formas tradicionais de convivência. Hoje, as músicas regionais predominam

em praticamente todas as casas da aldeia, tendo sido esse o motivo alegado pelos mais velhos para

terem saído do Trocará e formado uma aldeia nova, dizem: “é muito barulho lá, música muito alta”,

reclamando das festas, organizadas a cada final de semana. Há ainda a onipresença dos aparelhos

23 De influência dos programas assistenciais na taxa de nascimento do grupo.

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de TV, cuja programação é seguida por todos de todas as idades. Além da transmissão de padrões

de comportamento muito diferentes dos conhecidos pelos Asuriní, o tempo dedicado à televisão deve

retira-los, principalmente as crianças e os jovens, de suas sociabilidades tradicionais, da convivência

nas rodas de conversa ou das brincadeiras.

Diante do exposto e como reconhecimento pelos danos causados ao grupo e o

reconhecimento dos direitos inalienáveis dos indígenas sobre as áreas que lhes foram minimamente

destinadas para viverem de acordo com sua organização social, como está assegurado na

Constituição Federal, Art. 231º, deve ser assegurado aos índios o direito de participarem nos

recursos financeiros da UHE, na forma de uma alíquota sobre o potencial de energia gerada, visando

garantir a sobrevivência das futuras gerações do povo Asuriní.

E, como medida imediata, apresenta-se urgente, como garantia do compromisso histórico com

o povo Asuriní, a necessidade de um projeto para a coordenação do relacionamento dos índios com

as agências governamentais e não-governamentais que têm projetos de fomento ou apoio realizados

na aldeia. Uma equipe multidisciplinar se faz necessária, para análise dos aspectos técnicos que vão

da biologia das espécies envolvidas aos contornos culturais do grupo que devem ser resguardados;

dos problemas jurídicos aos administrativos.

Paralelamente a uma tal organização das ações praticadas na TI Trocará, é necessário um

programa de recuperação da língua materna e de algumas práticas tradicionais, por intermédio da

escola e envolvendo toda a comunidade. O registro de todas as possibilidades de conhecimentos e o

uso dessas narrativas como material no aprendizado da escrita (português e Asuriní) certamente irá

provocar o sentimento de unidade necessário para prosseguirem como índios e não como regionais,

se assim o quiserem.

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Museu Paraense Emílio Goeldi. Belém 71. 20 p. il. ARNAUD Expedito 1983. “Mudanças entre os grupos indígenas Tupi da região do Tocantins-

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