Ler Osman Lins, a partir da sua própria teoria sobre o ... · 2 obra de Osman, conhecido,...

20
1 Ler Osman Lins, a partir da sua própria teoria sobre o espaço literário: ilações possíveis no seu conto lírico "Os gestos". Fernando Alexandre de Matos Pereira Lopes – Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viseu. Na nota de apresentação à obra organizada pela nossa insigne convidada Elizabeth Hazin , sem dúvida uma das mais lúcidas especialistas de Osman Lins a nível internacional, cujo título significativo é O Nó dos Laços, diz a pesquisadora, com aquele tom, em que a voz da poetisa ilumina o encanto do discurso ensaístico: "Primeiro encontre, depois procuresão as instigantes palavras de Cocteau, cujo significado profundo emerge, precisamente, da inversão lógica dos verbos por ele utilizados: encontrar é que devia ser resultado de procurar. Cito-as aqui, porque configuram à perfeição o meu percurso mental em relação a Osman Lins. Lido por primeira vez nos longes da vida, ainda à época em que residia no Recife, se me afigurou desde o primeiro instante como o objeto de uma procura, que a partir de então eu deveria encetar. Há muito seduzida por seu fascínio literário, transformei Avalovara no texto eleito de minhas leituras e reflexões. Tanto o folheei, tanto minhas mãos o manusearam, que o volume, envelhecido, acabou transformado num alfarrábio andrajoso: não pode haver maior prova de amor por um livro do que essa maceração de suas páginas, tal como as pétalas de uma flor se maceram entre as páginas de um livro. (Hazin, 2013: 7) Depois, no douto estudo que escreve, intitulado A espiral e a página: criação e intertextualidade em Osman Lins(Hazin, 2013: 69-90), procede a ensaísta a um tipo de análise intertextual muito peculiar: a relação da literatura com a geometria, a propósito do dialogismo que averiguou existir entre o texto osmaniano e Matila Ghyka poeta, romancista, matemático, historiador e diplomata, nascido na Roménia, em 1881, que ensinou Estética em universidades americanas, e que veio a falecer aos 83 anos de idade, em Londres, no ano de 1965. Este foi, sem dúvida, um dos grandes inspiradores da

Transcript of Ler Osman Lins, a partir da sua própria teoria sobre o ... · 2 obra de Osman, conhecido,...

  • 1

    Ler Osman Lins, a partir da sua prpria teoria sobre o espao literrio:

    ilaes possveis no seu conto lrico "Os gestos".

    Fernando Alexandre de Matos Pereira Lopes Escola Superior de Educao do Instituto

    Politcnico de Viseu.

    Na nota de apresentao obra organizada pela nossa insigne convidada

    Elizabeth Hazin , sem dvida uma das mais lcidas especialistas de Osman

    Lins a nvel internacional, cujo ttulo significativo O N dos Laos, diz a

    pesquisadora, com aquele tom, em que a voz da poetisa ilumina o encanto do

    discurso ensastico:

    "Primeiro encontre, depois procure so as instigantes palavras de Cocteau, cujo

    significado profundo emerge, precisamente, da inverso lgica dos verbos por

    ele utilizados: encontrar que devia ser resultado de procurar. Cito-as aqui,

    porque configuram perfeio o meu percurso mental em relao a Osman

    Lins. Lido por primeira vez nos longes da vida, ainda poca em que residia no

    Recife, se me afigurou desde o primeiro instante como o objeto de uma

    procura, que a partir de ento eu deveria encetar.

    H muito seduzida por seu fascnio literrio, transformei Avalovara no texto eleito

    de minhas leituras e reflexes. Tanto o folheei, tanto minhas mos o

    manusearam, que o volume, envelhecido, acabou transformado num alfarrbio

    andrajoso: no pode haver maior prova de amor por um livro do que essa

    macerao de suas pginas, tal como as ptalas de uma flor se maceram entre

    as pginas de um livro. (Hazin, 2013: 7)

    Depois, no douto estudo que escreve, intitulado A espiral e a pgina: criao e

    intertextualidade em Osman Lins (Hazin, 2013: 69-90), procede a ensasta a um

    tipo de anlise intertextual muito peculiar: a relao da literatura com a

    geometria, a propsito do dialogismo que averiguou existir entre o texto

    osmaniano e Matila Ghyka poeta, romancista, matemtico, historiador e

    diplomata, nascido na Romnia, em 1881, que ensinou Esttica em

    universidades americanas, e que veio a falecer aos 83 anos de idade, em

    Londres, no ano de 1965. Este foi, sem dvida, um dos grandes inspiradores da

  • 2

    obra de Osman, conhecido, sobretudo, pelos ttulos, que citamos na lngua

    original em que foram escritos: The geometry of art and life, Le nombre dOr e

    Esthtique des proportions dans la nature et dans les arts. Como bem esclarece

    a especialista, e o que nos d logo um entendimento sobre a importncia do

    espao na obra de Osman Lins, que, na sua grande fonte que foi Matila Ghyka,

    os temas fundamentais so os da simetria e da analogia, atravs de conceitos

    como simetria dinmica, composio sinfnica, sistema de propores, que

    conduzem o leitor necessariamente ideia de harmonia e beleza no mundo

    (Hazin: 2013: 71).

    Por isso, tem Matila Ghyka em consequncia das suas especulaes,

    derivadas da analogia a convico da similitude entre O Grande Criador do

    Cosmos e o artista. Nesta perspetiva, existe tambm a certeza da

    correspondncia entre o Macrocosmo (O Universo Criado pelo Grande

    Ordenador) e o Homem, o Microcosmo. este pensamento que Ghyka deixa

    escrito, no prefcio do seu primeiro volume, do grande Le nombre dOr:

    Les plus intressantes parmi ces hypothses saccordent aussi incidemment

    avec la thorie pythagoricienne de lharmonie des Sphres, les ides

    philosophiques et cosmogoniques nonces par Platon dans le plus

    pythagorisant de ses dialogues (le Time), et les spculations drives sur

    lanalogie, la correspondance, entre le Macrocosme (lUnivers cr par le Grand

    Ordonnateur) et lHomme, ou Microcosme. (Ghyka, 1980: 12)

    Como parntesis e apenas porque Matila Ghyka cita o nome de Plato

    lembremos que este corifeu da filosofia, e tambm da literatura, tinha escrito, na

    entrada da sua Academia, l na antiga Grcia, a frase: No entre ningum que

    no saiba geometria -

    Tivemos uma surpresa enorme seja-nos desculpado o desabafo quando

    demos conta que o grande poeta Paul Valry (1871 1945) foi o autor do

    prefcio (Lettre lauteur) da obra Le nombre d'Or. Rites et rythmes

    pythagoriciens dans le development de la civilisation occidentale (1931), de

    Ghyka, em que se compraz com a magnfica anlise que o autor fez ao nmero

    de ouro, que se escreve pela letra grega (Phi), e que grafado na matemtica

    profissional pela letra (tau) grafema minsculo equivalente ao maisculo

  • 3

    (Tau), de grande profuso no romance Avalovara, e que simboliza a cruz, o mais

    totalizante dos smbolos, segundo Chevalier e Gheerbrant (1994: 245).

    Paul Valry, que se manifesta, neste curto, mas profundo prefcio, um entusiasta

    da relao intrnseca existente entre a matemtica (la mathmatique qui parat

    ou qui point dans les premires et les formules, arbitraires en apparence, qui

    servent dans les arts), a geometria, as artes e a literatura, afirma, em tom

    difano e at perentrio:

    En vous lisant, je ne puis mempcher de songer un peu la Littrature. Cet art

    le cde malheureusement aux autres, en ce qui concerne la recherche de

    rapports intrinsques, lobservance de proportions et de conditions formelles

    Pas le Section dor. Jai toujours rv de construire quelque uvre secrtement

    arme de conventions raisonnes el fondes sur lobservation prcise des

    relations du langage et de lesprit. Jai toujours recul devant la difficult

    excessive, - limmense travail de se refaire une conception si nette de la littrature

    quelle permt den raisonner. (Valry, 1980: 8-9)

    Hazin, na mesma linha em que Ghyka se referiu grande questo das palavras

    palndromas e dos anagramas, pondo em evidncia os seus efeitos quase que

    mgicos, e que a expresso latina SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS

    exemplifica sugestiva e singularmente, prope uma analogia que nos muito

    grata, atendendo sobretudo ao facto de a lngua de Homero se nos afigurar como

    a mais bela e a mais geomtrica que conhecemos: a palavra Avalovara, nome

    extrado de uma divindade hindu, aproxima-se, de certa forma apenas,

    obviamente, em termos visuais ou tico-grafemticos da palavra

    Elizabeth Hazin que examinou, de forma minuciosa, os arquivos que contm

    manuscritos, anotaes e correspondncias do escritor de Pernambuco, que

    viveu de 1924-1978, depositados em So Paulo (Instituto de Estudos Brasileiros

    USP) e no Rio de Janeiro (Museu de Literatura da Fundao Rui Barbosa)

    teve em mos o material que, como a prpria afirma, lhe desvelou novas

    possibilidades de compreenso da escrita de Lins, na fase do processo de sua

    elaborao. Mas no preciso estudar este esplio privilgio que tambm

    gostaramos um dia de experimentar para perceber, desde logo, o que pensa

    Osman Lins sobre o espao. Ainda que parea um pouco desproporcionado,

    precisamente por isso que estamos a invocar o romance Avalovara, talvez o seu

  • 4

    monumentum (mais perene que o bronze, como diria o poeta latino Horcio), a

    respeito do qual o escritor brasileiro afirma: A construo desta obra uma

    construo que nos remete ao Cosmos [] todo o romance construdo

    minuciosamente para nos remeter ordem csmica; a que acrescenta: Parti

    para uma construo que fosse significativa, evocando a ordem csmica, as

    medidas do mundo (Lins, 1979: 207). O mesmo estaria, decerto, a pensar o

    autor de Nove, novena, quando faz anteceder o corpus ficcional, propriamente

    dito, desta sua obra de uma epgrafe, que retirou da obra do grande Matila

    Ghyka, Esthtique des proportions dans la nature et dans les arts, que diz o

    seguinte: Uma concepo geomtrica sinttica e clara fornece sempre um bom

    plano. (Lins, 2012: 5). Nesta perspetiva, tm, assim, toda a pertinncia as

    palavras da Professora Elizabeth Hazin sobre uma caracterstica nodal da

    poiesis osmaniana: o rigor na ordenao, o domnio sobre a matria tratada,

    a recusa ao acaso, sem perder, todavia, a noo do potico, da beleza, do

    transcendente (Hazin, 2013: 70).

    Mas porqu tudo isto - reiteramos? Apenas para nos consciencializarmos de que

    a espacialidade foi o centro de interesse nmero um deste escritor

    pernambucano que, a propsito das suas grandes influncias a nvel literrio,

    elegia o prosador alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), mais at do que o

    prprio Lima Barreto (1881-1922), sobre quem fez a sua tese de doutoramento,

    e at o chamado Ea de Queirs brasileiro, que Machado de Assis (1839-

    1908), sobre quem disse que no desejaria t-lo conhecido - se esses

    anacronismos fossem possveis - prefiro ficar com Capitu, disse ele, em tom

    jocoso, no ensaio Do Ideal e da Glria: Problemas Inculturais Brasileiros (Lins,

    1977: 78).

    Em sntese, e depois de todo este arrazoado, que fios puxar e que files

    heursticos vamos privilegiar?

    - Osman Lins foi um grande criador literrio, demiurgo de grandes obras

    narrativas e dramticas, em que o espao, ainda que inconscientemente, era por

    ele sentido, talvez, como a categoria de eleio;

    - Osman Lins escreveu a sua teoria sobre o espao numa tese de doutoramento

    intitulada Lima Barreto e o Espao Romanesco, escrito, pelos vistos, em seis

  • 5

    meses incompletos, de 02/04/1973 a 30/09/1973 (obra que parece estar

    esgotada, a nvel mundial, mesmo entre os alfarrabistas);

    - Lima Barreto, at porque leu, como uma bblia de referncia, a obra de Matila

    Ghyka, tinha uma conceo harmnica entre o espao, que o universo, e o

    homem, tambm ele um espao.

    Esta ltima ilao afigura-se-nos como uma grande aposta a evidenciar, atravs

    do conto / short story Os Gestos, que, com um corpus apenas de seis pginas,

    tambm a esse nvel, se configura como um exemplo particularmente feliz. No

    foi por acaso que invocmos, com sintonia e agrado, Paul Valry, a respeito do

    prefcio que ele escreveu obra Le Nombre d'Or (1931). que este poeta

    francs, no seu Cahiers I, escreveu um texto sublime chamado Soma et C.E.M.,

    sendo C.E.M., a sigla de Corps, Esprit et Monde, fazendo notar, com esta trade

    indissocivel, o papel mediador do corpo, que fazia do esprito um momento da

    resposta do corpo ao mundo (Cahiers I, 1973: 1125). Notemos que tambm

    Merleau-Ponty, na sua obra Le visible et linvisible, afirmou que o seu corpo era

    feito "da mesma carne do mundo": "Cela veut dire que mon corps est fait de la

    mme chair que le monde (cest un peru), et que de plus cette chair de mon

    corps est participe par le monde []" (Merleau-Ponty, 1964: 302), ou ainda, na

    obra Nature, eu sou, atravs de meu corpo, parte da Natureza: Je suis une

    partie de la Nature et fonctionne comme nimporte quel vnement de la Nature:

    je suis, par mon corps, partie de la Nature." (Merleau-Ponty, 1994: 159) (Itlico

    acrescentado.)

    Todavia, devemos considerar, ainda, que um texto, segundo nos diz Michel

    Collot, em La Pense-paysage. Philosophie, Arts, Littrature tambm uma

    paisagem (o sentido de um texto, como de uma paisagem, assenta na

    disposio dos elementos que o compem (Collot, 2011: 202)) - a tal paisagem,

    que o protagonista de Os Gestos, Andr, se recusou a construir com grafemas

    alfabticos, quando a filha lhe deu uma folha branca, para que ele a utilizasse

    como meio alternativo de comunicao atitude que leva o incapacitado ancio

    a uma reao negativa, rasgando-a. o mesmo Collot, alis, que, citando o

    Merleau-Ponty do ensaio Le langage indirect et les voix du silence (Merleau-

    Ponty, 1960: 117), afirma que: a tarefa da escrita consiste () em fazer da palavra

    uma paisagem do pensamento (Collot, 2011: 202).

  • 6

    Antes de nos debruarmos sobre o conto, comecemos pela teoria proposta por

    Osman Lins sobre o espao, com uma transcrio que talvez, ainda que sub-

    repticiamente, tivesse servido de mote para o ttulo que demos a esta

    comunicao/ artigo. Desta forma, escreve Osman Lins, ao dilucidar o conceito

    de ambientao dissimulada ou oblqua:

    A ambientao dissimulada exige a personagem ativa: o que a identifica um

    enlace entre o espao e a ao. Leon Surmelian designa-a como o mtodo

    dramtico; description blending with the flow of action. tambm

    ambientao dissimulada que se refere Georg Lukcs, quando adverte, no seu

    ensaio Narrar e Descrever, no se deter a reconstituio do ambiente, em

    Balzac, na pura descrio, vindo quase sempre traduzida em aes (basta

    evocarmos o velho Grandet, consertando a escada apodrecida). Assim : atos

    da personagem, neste tipo de ambientao, vo fazendo surgir o que a cerca,

    como se o espao nascesse dos seus prprios gestos. (Lins, 1976: 83-84)

    Ora, parece-nos interessante a aproximao que existe entre o ttulo do conto

    Os Gestos e o segmento como se o espao nascesse dos seus prprios

    gestos, com que o ensasta Osman Lins termina a dilucidao deste tipo de

    ambientao que, como vamos aferir, no , de todo, a ambientao que

    predomina no conto que elegemos como objeto de anlise.

    O estudo Lima Barreto e o Espao Romanesco vale fundamentalmente pela

    novidade da teoria da ambientao, criada por Osman Lins, e que o ensasta

    muito bem aplica, sobretudo na obra Vida e Morte de M. J. Gonzaga de S, uma

    obra no muito longa, mas de grande beleza esttico-literria, do escritor, to

    genial, como neurastnico-dipsmano, Lima Barreto. A obra est dividida em

    sete captulos, com uma bibliografia, para o tempo, algo criteriosa, onde insere

    o grande escritor e crtico, desaparecido no pretrito agosto, Michel Butor (14-

    09-1926 24/08/2016), a quem justo fazermos uma homenagem num

    congresso sobre espacialidade. Osman cita o original francs Rpertoire II,

    porque ainda no existia a traduo brasileira Repertrio (1974), onde se

    encontra o estudo O Espao no Romance (Butor, 1974: 39-46), ainda hoje

    muito til sobre esta matria1.

    1 Quanto a Butor, porm, notemos que no Repertoire II (1964), existe, alm do estudo Lespace du roman, outro que devemos inserir tambm nesta especialidade, cujo ttulo Philosophie de

  • 7

    Os trs primeiros captulos do-nos uma viso global biobibliogrfica de Lima

    Barreto. O captulo quarto fala do conceito e possibilidades do que pode ser o

    espao romanesco; o captulo quinto relaciona, por sua vez, o espao

    romanesco e a ambientao, procedendo Osman Lins a uma destrina entre

    ambientao franca, ambientao reflexa e ambientao oblqua. O captulo

    sexto fala sobre as funes do espao romanesco, em que o autor estabelece

    proficientes relaes entre a personagem e o espao, desvelando tambm o que

    entende por espao-moldura e espao intil. No ltimo captulo, aplica toda a

    sua teoria obra de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de S.

    Ozris Borges Filho, para quem sabemos que Osman Lins uma referncia

    incontornvel na teoria da espacialidade, desenvolve esta perspetiva

    osmaniana, na sua obra Espao e Literatura. Introduo Topoanlise,

    fundamentalmente no captulo segundo, em que fala das funes do espao, e

    no captulo terceiro (Perspectivas Espaciais), numa rubrica especfica que

    intitula Espacializao termo que ele prefere a ambientao, proposto por

    Lins. Depois h toda uma proliferao de referncias linsianas, ao longo deste

    estudo de Borges Filho, nomeadamente quanto questo dos gradientes

    sensoriais.

    No que concerne, pois, espacializao - apropriemos esta preferncia

    terminolgica do especialista da topoanlise ao que Osman Lins teorizou ela

    diz respeito forma como o espao instalado na narrativa, no se devendo

    confundir (se bem que lhe prxima) com a questo da descrio do espao, de

    que muito se ocupou Philippe Hamon, sobretudo em Quest-ce quune

    dscription (Hamon, 1972: 465-485).

    A este respeito, e em traos muito gerais, devemos distinguir, assim, a

    espacializao franca, composta por um narrador independente, onde a

    descrio aparece eivada da maior objetividade, dependendo apenas dele,

    numa narrativa de terceira pessoa; a espacializao reflexa, em que a

    personagem que tem a perceo dos espaos, sem haja uma intruso direta do

    narrador, exceto se o narrador tambm for personagem; por fim, a

    lameublement. Estes dois estudos encontram-se, tambm, no livro de Michel Butor, Essais sur le roman, datado de 1969.

  • 8

    espacializao dissimulada ou oblqua, que exige uma personagem ativa, na

    medida em que so os seus prprios atos que fazem surgir o espao.

    Borges Filho, sublinhando a advertncia de Osman Lins, afirma que estes trs

    tipos de espacializao se podem matizar numa mesma unidade temtica,

    sendo, desta forma, tarefa do topoanalista a verificao cuidadosa, nos espaos

    estudados, dessas mesmas formas de espacializao, bem como os efeitos de

    sentido a que as mesmas do ensejo.

    A preferncia pelo termo espacializao, em vez de ambientao, justificada

    por Ozris, por um motivo sobretudo operacional, uma vez que o conceito

    osmaniano de ambientao pode, segundo aquele autor, levar a um equvoco

    com o conceito de ambiente. E, de facto, fica patenteada um pouco essa

    indistino no texto da tese de Osman Lins:

    por ambientao, entenderamos o conjunto de processos conhecidos ou

    possveis, destinados a provocar, na narrativa, a noo de um determinado

    ambiente. Para a aferio do espao, levamos a nossa experincia do mundo;

    para ajuizar sobre a ambientao, onde transparecem os recursos expressivos

    do autor, impe-se um certo conhecimento da arte narrativa (Lins, 1976: 76)

    O interesse pela ambientao, traduzido por Lins como equivalente ao interesse

    dos recursos literrios para estabelecer, nas histrias, o espao (Lins, 1986: 89),

    no foi descurado tambm por outros ensastas, nomeadamente por Antnio

    Dimas, que, em Espao e Romance, pegando na teoria de Osman, procede a

    uma destrina muito vlida, explicitada nos seguintes moldes:

    Em outras palavras: na medida em que no se deve confundir espao com

    ambientao, para efeitos de anlise, exige-se do leitor perspiccia e

    familiaridade com a literatura para que o espao puro e simples (o quarto, a sala,

    a rua, o barzinho, a caverna, o armrio) seja entrevisto em um quadro de

    significados mais complexos, participantes estes da ambientao. Em outras

    palavras ainda: o espao denotado; a ambientao conotada. O primeiro

    patente e explcito; o segundo subjacente e implcito. O primeiro contm dados

    de realidade que, numa instncia posterior, podem alcanar uma dimenso

    simblica. (Dimas, 1985: 20) (Itlico acrescentado.)

    Relativamente ao conceito de ambiente que, para Borges Filho, no se deve

    confundir com o conceito de espao e que, numa conceo topoanaltica, deve

    ser definida, segundo o autor, como a soma de cenrio ou natureza mais a

  • 9

    impregnao de um clima psicolgico (Borges Filho, 2007: 50) bom lembrar

    que ele mencionado, numa aura conceptual porfiada, na clssica obra de Ren

    Wellek e Austin Warren, de 1948, intitulada Teoria da Literatura, onde lemos,

    antes da dilucidao propriamente dita, o seguinte: a preocupao com o

    ambiente o elemento literrio da descrio, distinto da narrao parecia,

    primeira vista, diferenciar a fico do drama; mas, pensando melhor, afigura-

    se que tal preocupao mais uma questo de poca (Wellek & Warren, 1962:

    278). Depois, procedem os autores definio e exemplificao do conceito,

    pondo em evidncia um aspeto que veio a colher seguidores diversos, entre os

    quais o, ainda vivo, terico e professor francs Jean-Yves Tadi2 - a relao

    metonmica e metafrica que existe entre as personagens e o espao (ambiente,

    para Wellek & Warren):

    O ambiente o meio circundante, e este, especialmente o interior domstico,

    pode ser concebido como expresso metonmica ou metafrica da personagem.

    A casa em que um homem vive um prolongamento deste. Descrev-la

    descrever o seu ocupante. As pormenorizadas descries que Balzac faz da

    casa do mesquinho Grandet ou da Penso Vauquer no so nem relevantes

    nem esto a mais. Essas casas so a expresso dos seus donos; afetam, como

    atmosfera, as outras pessoas que l tm de viver. O horror pequeno-burgus da

    Pension constitui a provocao imediata da reao de Rastignac e, noutro

    sentido, da de Vautrin, enquanto mede a degradao de Goriot e proporciona

    constante contraste s grandezas alternadamente descritas. (Wellek & Warren

    1962: 279) (Itlico acrescentado)

    Nesta mesma linha, e com toda a acuidade, averigua Mrcia Rejany Mendona,

    na sua tese de doutoramento, Representaes do Espao em Narrativas

    ficcionais de Osman Lins, Goinia (2008), que as configuraes dos espaos

    so modificadas pelo modo particular como cada personagem apreende o

    2 Jean-Yves Tadi, a propsito precisamente da narrativa lrica, como o caso do conto Os

    Gestos, de Osman Lins, afirma no seu Le Recit Potique:

    lespace du rcit potique est toujours ailleurs, ou au-del, parce quil est celui dun voyage

    orient et symbolique. Le recours aux images accroit ce mouvement, puisque, grce lui,

    chaque phrase glisse de niveau: mtaphore et mtonymie font fuir ou juxtaposent les

    significations. Lespace du monde tel que le reprsente le livre saccorde avec lespace

    du langage quincarnent les figures, en mme temps quil se dlivre du rle subordonn,

    du rle de cadre ou de hors-duvre quil occupe dans le roman classique sous le nom

    dcri de description. (Tadi, 1978: 10)

  • 10

    espao e que, em certa medida, os espaos apresentam ambientes e atmosferas

    com significaes que se equivalem (Rejany, 2008: 63).

    No excerto apresentado de Wellek & Warren, aparece-nos tambm o conceito

    de atmosfera, que, como podemos constatar, mantm, por vezes, uma

    correlao intrnseca com o ambiente, de modo que ambos podem ser tratados,

    circunstancialmente, como elementos comuns, no obstante, tambm em muitos

    textos narrativos, eles no se revelarem, de modo algum, equivalentes, j que a

    atmosfera depende, por via de regra, do estado psquico da personagem,

    enquanto o ambiente o resultado da aplicao de um conjunto de processos

    que Osman Lins denominou de ambientao. Este autor, no seu papel de

    ensasta e teorizador sobre o espao literrio, refere-se ao conceito de

    atmosfera, com uma finura e uma sugestibilidade inolvidveis. Perscrutemo-lo:

    Diremos, finalizando, que a atmosfera, designao ligada ideia de espao,

    sendo invariavelmente de carcter abstrato de angstia, de alegria, de

    exaltao, de violncia, etc. consiste em algo que envolve ou penetra de

    maneira sutil as personagens mas no decorre necessariamente do espao,

    embora surja com frequncia como emanao deste elemento, havendo mesmo

    casos em que o espao justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca.

    (Lins, 1976: 76)

    A anteceder este pargrafo, Osman Lins refere-se a um trabalho de Antnio

    Soares Amora, com o ttulo Classicismo e Romantismo no Brasil, pondo em

    evidncia, fundamentalmente, o captulo Iracema um Romance de

    Atmosfera, em que Soares Amora, a propsito do romance de Jos de Alencar,

    chega a concluses muito consentneas com o que acontece no conto Os

    Gestos, falando de atmosfera () dominantemente potica (Amora, 1966:

    125) e vivo sentimento lrico (idem: 125), dado que esta short story osmaniana

    tambm, como tentaremos provar - ainda que de forma sinttica, atendendo

    aos limites textuais que temos que cumprir , uma narrativa lrica.

    No ser ousado afirmar que a liricizao, nsita em Os Gestos, se combina, e

    , ao mesmo tempo, uma deriva do tipo de ambientao que, a nosso ver,

    prevalece nesta narrativa - a ambientao reflexa, com uma compleio, todavia,

    muito especfica, olhando a que tudo o que o narrador omnisciente nos descreve

    depende, apenas e s, do mundo interior de Andr, o protagonista do conto.

  • 11

    Efetivamente, so as suas pungentes, e indelevelmente incisivas, reflexes que

    do matria voz do narrador, que, por vezes, chega a materializar palavras,

    em discurso direto, daquele eu-personagem central, julgando-se, assim, o

    sujeito da enunciao um demiurgo do espao psicolgico do protagonista.

    A narrao excetuando transcries pontuais de alguns desafogos de Andr,

    em primeira pessoa feita na terceira pessoa, por um narrador que evidencia

    um conhecimento transcendente da histria e que utiliza uma exposio direta

    ou simultnea do pensamento da personagem focalizada, analisando

    permanentemente o seu fluxo de conscincia. O incipit da short story, prolongado

    ao longo do primeiro pargrafo, evidencia, em absoluto, o que acabamos de

    afirmar:

    Do leito, o velho Andr via o cu nublar-se, atravs da janela, enquanto as folhas

    da mangueira brilhavam com surda refulgncia, como se absorvessem a

    escassa luz da manh. Havia um segredo naquela paisagem. Durante minutos,

    ficou a olh-la e sentiu que a sua grave serenidade o envolvia, trazendo-lhe um

    bem-estar como no sentia h muito. E eu no o posso exprimir, lamentou.

    No posso dizer. Se agitasse a campainha, viria a esposa ou uma das filhas,

    mas seu gesto em direo janela no seria entendido. E ele voltaria a cabea,

    contendo a raiva. (Lins, 1994: 11)

    Em termos narratolgicos, estamos, efetivamente, em presena do discurso

    indireto livre que, como dizem Carlos Reis e Ana Cristina Lopes,

    um discurso hbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do

    discurso do narrador, como se ambos falassem em unssono fazendo emergir

    uma voz dual. A terceira pessoa e os tempos da narrao coexistem lado a

    lado com os decticos, as interrogaes diretas, os traos interjectivos e

    expressivos (Reis & Lopes, 1991: 312)

    Este tipo de narrao concitou, sem dvida, a uma profuso de lirismo, presente,

    alis, em toda a sintagmtica narrativa de Os Gestos, em que o intimismo, a

    sensibilidade e a verosimilhana foram estudados, ao pormenor, pelo autor,

    como tcnica de aprofundamento psicolgico da personagem principal,

    construda in fieri, ao longo de toda a horizontalidade discursiva, com o desvelo

    necessrio para que a sua densidade psicolgica fosse notada, merecendo, por

    isso, a designao de personagem modelada ou redonda.

  • 12

    Como podemos notar, o tempo e o espao esto explicitados no primeiro

    pargrafo do conto, circunscrevendo-se, desta forma, a primeira categoria a uma

    manh, em que durante minutos Andr ficou a olhar a paisagem, que o atraiu

    de uma forma como no era habitual; quanto ao espao, ele extremamente

    confinado, reduzindo-se a um quarto, com um leito, onde a personagem

    protagonista se encontra retida, por incapacidade fsica, e a uma janela que lhe

    possibilita, atravs do gradiente sensorial da viso, contemplar uma mangueira,

    envolta numa natureza nublada, mas com algum mistrio. Como parntesis,

    diremos, seguindo o pensamento de Gaston Bachelard, de A Potica do Espao,

    que o que a personagem consegue ver atravs da janela pertence tambm ao

    seu espao envolvente, j que A acolhida da casa to total que o que se v

    da janela pertence casa. (Bachelard, 2012, 79) (Itlico acrescentado)

    As coordenadas espcio-temporais, porm, ampliam-se, sobremaneira, devido

    imaginao e aos fluxos de conscincia que habitam no espao mental da

    personagem e que o narrador analisa detalhadamente.

    A este propsito, no podemos deixar no olvido o, tambm clssico, estudo de

    Robert Humphrey, O Fluxo da Conscincia, dado que a situao criada em Os

    Gestos, por Osman Lins, se coaduna teorizao de Humphrey, sobretudo

    quando o especialista americano se referiu ao monlogo interior indireto, numa

    aceo idntica ao que hoje designamos por discurso indireto livre. Atrever-nos-

    amos a afirmar que este pargrafo, citado de seguida, em traduo brasileira,

    explica, na perfeio, a realidade que encontramos no conto que estamos a

    analisar:

    Neste caso, o monlogo interior indireto o tipo de monlogo interior em que um

    autor onisciente apresenta material no-pronunciado como se viesse

    diretamente da conscincia do personagem e, atravs de comentrios e

    descries, conduz o leitor atravs dela. Basicamente, difere do monlogo

    interior direto no sentido de o autor intervir entre a psique da personagem e o

    leitor. O autor est em cena como guia para o leitor. Retm a qualidade

    fundamental do monlogo interior no sentido de que direto aquilo que

    apresenta em matria de conscincia; isto , vir no idioma e com as

    particularidades dos processos psquicos do personagem.

  • 13

    Na prtica, o monlogo interior indireto geralmente vem combinado com alguma

    outra das tcnicas do fluxo de conscincia especialmente com uma descrio

    da conscincia. (Humphrey, 1976: 27).

    Nesta conformidade, parece-nos que as lcidas palavras de Ana Luiza Andrade,

    no ensaio Osman Lins: Crtica e Criao (dos trabalhos particularmente

    inteligentes de crtica literria que j tivemos oportunidade de ler!) vm

    corroborar as ltimas asseres que temos vindo a expender. Fruamo-las

    atentamente:

    Os Gestos inaugura a coleo de contos de Osman Lins com uma nova forma

    de expresso criativa e crtica os gestos -, imagens gesticuladoras que lutam

    entre a represso imposta s palavras, ritual repetido, e uma nova forma de

    liber-las, na arte de narrar. Os gestos so reflexos mudos das palavras que os

    indicam. Por isso, o narrador onisciente preenche a ausncia de expresso dos

    gestos com as palavras textuais que os traduzem ao leitor. (Andrade, 2014: 87)

    Ainda para dirimir, concluindo, o problema do tipo de ambientao que julgamos

    prevalecer neste conto de Osman Lins e que ser a reflexa invocamos, de

    novo, o prprio autor, no seu vezo de ensasta, no estudo Lima Barreto e o

    Espao Romanesco, dado que o seu teor parece-nos vir confirmar a realidade

    textual do conto Os Gestos. Assim, numa primeira opinio, a propsito de

    Madame Bovary, de Flaubert, afirma Lins:

    H ainda a observar que essa ambientao, classificvel em princpio como

    franca, na verdade reflexa: as coisas, sem engano possvel so percebidas

    atravs da personagem. Atento eficcia da linguagem, reconhecia Flaubert a

    inutilidade de reiterar, mediante pronome pessoal e os verbos correspondentes,

    informaes j implcitas no texto. (Lins, 1976: 82)

    Logo de imediato, procede clarificao do conceito de ambientao reflexa,

    estabelecendo um cotejo entre o universo de Zola, estudado por Philippe Hamon,

    e o que se passa em Gonzaga de S, de Lima Barreto:

    A ambientao reflexa caracterstica das narrativas na terceira pessoa,

    atendendo em parte exigncia, proclamada pelo estudioso de Zola, de manter

    em foco a personagem, evitando uma temtica vazia. Sucede, porm, embora

    mais raramente, que mesmo o personagem-narrador transfira a outrem a

    perceo do ambiente, como podemos ver em Gonzaga de S. (Lins, 1976: 82)

  • 14

    No resistimos a transcrever tambm uma deixa terica muito importante de

    Osman Lins, a respeito ainda do mesmo conceito, cuja circunscrio no nos

    parece alheia totalmente ao que se passa no conto lrico que analisamos:

    A esta altura, uma pergunta se impe: os casos em que o espao nasce atravs

    o discurso direto, emitido por uma das personagens (no o personagem-

    narrador) representam uma modalidade da ambientao reflexa? Parece lgica,

    ao primeiro exame, a resposta afirmativa. Observemos, entretanto, que, nesse

    caso, desloca-se o eixo da enunciao. Assumindo a palavra, pode a

    personagem, por sua vez, empregar em segundo grau, diramos os mesmos

    recursos do narrador. A situao no se modifica substancialmente, sofrendo

    apenas uma gradao, se o discurso direto substitudo pelo discurso indireto

    ou indireto livre. (Lins, 1976: 83)

    Embora com um cdigo tcnico-compositivo ligeiramente diferente, tambm se

    nos afigura aplicvel ao conto Os Gestos, o que afirma Eileen Baldeshwiler, no

    artigo The Lyric Short Story: Sketch of a History, a propsito precisamente de

    um dos ingredientes do conto lrico e propiciador, por consequncia, s questes

    existenciais dos narradores, que se aproximam da inquirio filosfica. Assim,

    esta especialista lembra que, nos grandes autores russos do conto lrico, como

    foram Tchekov e Turguenev, o locus da narrativa se transfere, amide, da ao

    exterior para os estados mentais, concitando a que o eu narrante se aproprie,

    de forma indelvel, do texto, postergando, deste modo, a ao de outras

    personagens e depurando os eventos narrados:

    With these authors, de locus of narrative art has moved from external action to

    internal states of mind, and the plot line will hereafter consist, in this mode, of

    tracing complex emotions to a closing cadence utterly unlike the reasoned

    resolution of the conventional cause-and-effect narrative. (Balseshwiler, 1994:

    234)

    Numa situao de incapacidade, Andr tambm no podia fazer muito mais, em

    termos de ao, dado o duplo confinamento em que se encontrava. Os advrbios

    temporais sempre e nunca, do extrato a seguir apresentado, vo dar nfase

    a essa situao irredimvel:

    Para sempre exilado pensou. Minhas palavras morreram, s os gestos

    sobrevivem. Afogarei minhas lembranas, no voltarei a escrever uma frase

    sequer. Igualmente remotos os que me ignoram e os que me amam. S os

    gestos, pobres gestos

  • 15

    Os pensamentos fatigaram-no. Veio, como de outras vezes, a idia de que tudo

    aquilo poderia cessar, restituindo-o companhia dos seus, mas ele recusou a

    esperana. Nunca mais, insistiu. Nunca. Essa que a verdade. Sbita, febril

    impacincia f-lo agitar-se, trazendo-lhe mente o seu despertar um ms antes

    e o horror ao perceber que estava sem voz, mas ele tentou afastar a lembrana.

    Esquecer todas as palavras. Resignar-me ao silncio. (Lins, 1994: 11)

    Ana Luiza Andrade detm-se, de forma muito interessante, na destrina entre

    gestos rituais e gestos vivos, a propsito deste conto, considerando que os

    rituais so aqueles que se repetem automaticamente, de maneira incua e

    desprovida de significado; os gestos vivos manifestam-se em determinados

    momentos, quando a personagem ganha uma conscincia crtica da sua

    condio.

    No caso concreto de Andr, ele encontra-se impossibilitado de comunicar, quer

    por palavras, quer por gestos, numa situao, portanto, de total isolamento,

    atendendo sua situao compulsiva de acamado, num dos quartos da casa,

    sem quaisquer condies para se poder movimentar, ainda que fosse nesse

    espao interior, nem to-pouco de comunicar verdadeiramente com os seus

    familiares.

    Talvez, nesta linha de entendimento, possamos pensar nos efeitos perlocutivos

    desta incomunicabilidade, sinnima, possivelmente, de o autor ter querido

    afirmar o sentido inefvel da interioridade, sobretudo quando no existem

    afinidades eletivas (para utilizar o ttulo da obra de Goethe) entre as pessoas.

    Para isso, bastar recordar a antinomia que se estabelece no conto entre

    Rodolfo, aquele amigo que o visita, e a prpria mulher de Andr, que nem sequer

    aparece designada com nome prprio. Enquanto Rodolfo caracterizado como

    tendo o rosto largo, de mas salientes, o semblante sem malcia, o torso amplo,

    a alva roupa de linho (Lins,1994:12) e ar de vida, a lembrar um marinheiro que

    tinha uma amplitude de viagens (idem); a mulher surge com uma indumentria

    escura, apelidada de fria, magra e esquiva. por isso que Rodolfo lhe vem

    acicatar como que um renascer das cinzas, pelas similitudes que nele encontra,

    em termos de sensibilidade, alegria e liberdade, que o gosto pela viagem

    emblematiza.

  • 16

    O fragmento que se segue deixa plasmada essa identificao entre os dois

    amigos, precisamente depois da visita de Rodolfo ter terminado:

    Andr ficou s, olhando as rtulas fechadas. Quisera pedir esposa que as

    soltasse, deixando-lhe algumas nesgas de cu, mas nem ao menos esboou o

    gesto. Imobilizava-o novo acesso de fadiga e ele ficou a ouvir os passos da

    mulher um caminhar sorrateiro, em que os ps se encurvavam nos chinelos,

    contidos, pousando aos poucos no solo, de modo que ao fim do corredor j no

    eram escutados, embora ele os acompanhasse ainda em imaginao.

    A chuva anunciada chegou, banhando o arvoredo invisvel; algum correu na

    calada, as primeiras gotas bateram na janela, ressoaram nas telhas. Ele sorriu,

    enleado, mas uma viso trespassou-o: Rodolfo alcanado pela chuva, a mo

    protegendo a fronte, a roupa de linho a molhar-se. Foi como se o visse

    esmagado: oprimiu-o uma compaixo violenta; soergueu-se, tomou a campainha

    e agitou-a, frentico, at que a mulher voltou e ps-se a fazer-lhe perguntas, com

    tal rapidez que seria impossvel entend-la. As duas filhas surgiram na porta,

    assustadas; voltou-se para elas e entrou a gesticular, ainda aflito. Veio-lhe ento

    o desejo de estar s, sem aquelas presenas inteis; escorraou-as com um

    gesto brutal e deitou-se. (Lins, 1994:13)

    Podemos facilmente constatar que a incompreenso de que Andr se achava

    vtima, exceo, obviamente, do amigo Rodolfo e tambm da sua filha mais

    velha Lise, que (ao contrrio de Mariana, a mais nova) cumpria dignamente o

    seu dever filial, contribua, ainda mais, para o desenvolvimento da sua

    imaginao criativa, alm de ser tambm apenas, atravs da memria, que ele

    consegue resgatar os espaos que conheceu quando a sua mobilidade o

    permitia. nesta tica da lembrana que ele imagina ainda a filha a apanhar a

    roupa estendida no quintal, aps a me lhe ter dado essa ordem, num grito, que

    adveio da sala de jantar. Por outro lado, a par da lembrana, a imaginao tem

    um papel muito ativo na interioridade do protagonista. Por isso, um casal de

    pssaros, que esvoaava, veio-lhe lembrar a sua juventude, achando-se,

    durante algum tempo, debruado ante uma paisagem lacustre (Lins,1994:11).

    A murmurao daquelas trs mulheres, que nada conseguiram fazer perante a

    sua inquietude, face ao mpeto violento que ele manifestou, por no poder ser

    til ao amigo, que imaginava violentamente alcanado pela chuva, no seu

    regresso a casa, aps a visita, deu ensejo a que Andr fizesse uma indagao

  • 17

    existencial e ainda presentificasse uma memria de infncia, que uma analepse,

    algo inesperada, vem confirmar:

    De olhos cerrados, ouviu-as murmurar. Trs mulheres espantadas queriam que

    lhes dissesse algo. Deviam saber que isso era impossvel: sua voz estava morta.

    Quando pereceriam os olhos? Quando seria a morte da memria?

    Afastaram-se os passos, confusos, entrelaando-se como os fios de uma trana.

    Mariana, Lise e a mulher fundiram-se numa sombra vaga, dispersaram-se e

    mergulharam na chuva que as dissolveu.

    Ele corre na manh invernal, os ps descalos cortando poas de gua. A prima

    chama-o janela; voam cabelos sobre o rosto infantil, que sorri. A viagem do

    barco de papel repousa nas mos da menina. Ele toma-o, curva-se, entrega-o

    enxurrada. Nascem veleiros, alvssimos, libertos no mar. (Lins,1994:13)

    Em suma, os espaos que Andr conheceu, quer na sua infncia, quer num

    passado mais recente, anterior sua doena incapacitante, vo ser valorizados

    e transformados pela memria - que impe distncia, emoo e subjetividade -,

    sendo, nessa ordem, elevados categoria de espaos lricos.

    Para concluir, e deixando em aberto vetores que a circunstncia no permitiu

    desenvolver, com Os Gestos, talvez Osman Lins quisesse provar a fragilidade

    das palavras face essncia da interioridade humana, que possivelmente s um

    gesto vivo e totalmente renovado pode manifestar. Assim se entende que, na

    parte final do conto, quando Andr se apercebe, de forma luminar, que na sua

    filha Mariana, que estava de costas para a janela, os cotovelos no peitoril e as

    mos cruzadas sobre o ventre (Lins, 1994: 16), se tinha operado uma mudana

    silenciosa, que ele no conseguiria transmitir por palavras, mesmo que tivesse

    a faculdade da fala, como anteriormente. Por isso, conclui, no seu foro mais

    ntimo, com palavras que o narrador transcreve na primeira pessoa:

    Isso inexprimvel, pensou. E que no o ? Meus gestos de hoje talvez no

    sejam menos expressivos que minhas palavras de antes. (Lins,1994:16).

    Querer este conto concitar o leitor a uma atitude de busca constante daquele

    signo primordial, confluente a um logos genesaco? Poder, nesta perspetiva, a

    literatura ser o lugar privilegiado desse logos, em que na limitao da palavra

    escrita, silente () esto a sua fora, sua vida, sua identidade, (Lins,1969:178)

  • 18

    tal como o prprio autor, em Guerra Sem Testemunhas, afirmou? Tentemos

    decifrar

    Bibliografia

    Amora, Antnio Soares (1966): Iracema um Romance de Atmosfera. In:

    Classicismo e Romantismo no Brasil. So Paulo Brasil: Conselho

    Estadual de Cultura. Comisso de Literatura: 123-147.

    Andrade, Ana Luiza (2014): Osman Lins: Crtica e Criao 2 Ed.,

    Curitiba/Paran: Appris.

    Bachelard, Gaston (2008): A Potica do Espao. So Paulo: Martins Fontes.

    Baldeshwiler, Eileen (1994): The Lyric Short Story: Sketch of a History. In:

    Charles E, May, The New Short Story Theories. Athens: University Press:

    231-241.

    Filho, Ozris Borges (2007): Espao & Literatura: Introduo Topoanlise.

    Franca, So Paulo: Ribeiro Grfica Editora.

    Chevalier, Jean, e Gheerbrant, Alain (1994): Dicionrio dos Smbolos. Lisboa:

    Editorial Teorema, Lda.

    Collot, Michel (2011: 202): La Pense-paysage. Philosophie, Arts, Littrature.

    Arles: Actes Sud.

    Ghyka, Matila (1980): Le nombre dOr. Rites et Rythmes Pythagoriciens dans le

    dveloppement de la Civilisation Occidentale. Paris: Gallimard. [1 ed. de

    1931].

  • 19

    Hamon, Philippe (1972): Quest-ce quune dscription. In: Potique 12. Paris.

    Seuil: 465-485.

    Hazin, Elizabeth (Org.) (2013): O N dos Laos. Braslia: Editora UnB.

    Holanda, Lourival (1992): Sob o signo do silncio: Vidas secas e O estrangeiro.

    So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo.

    Humphrey, Robert (1976): O fluxo da conscincia. Brasil: Editora McGraw-Hill do

    Brasil, Lda.

    Igel, Regina (1988): Osman Lins. Uma biografia literria. So Paulo: T.A Queiroz

    Editor.

    Lins, Osman (1969): Guerra Sem Testemunhas O Escritor, sua Condio e a

    Realidade Social. So Paulo: Livraria Martins Editora.

    __________ (1976): Lima Barreto e o Espao Romanesco. So Paulo: tica.

    __________ (1977): Do Ideal e da Glria: problemas inculturais brasileiros. So

    Paulo: Summus.

    __________ (1994): Os Gestos. In: Os Gestos. So Paulo: Editora Moderna.

    __________ (2012): Nove Novena. Narrativas. So Paulo: Companhia das

    Letras.

    Merleau-Ponty, Maurice (1960): SIGNES. Paris:

    http://bibliotheque.uqac.uquebec.ca/index.htm (27/05/2016).

    __________________ (1964): Le visible et linvisible. Paris: Gallimard.

    __________________ (1994): La nature. Notes, cours du Collge de France.

    Paris: Le Seuil.

    http://bibliotheque.uqac.uquebec.ca/index.htm

  • 20

    Reis, Carlos e Lopes, Ana Cristina (1991): Dicionrio de Narratologia. Coimbra:

    Almedina.

    Tadi, Jeau-Yves (1994): Le Rcit Potique. Paris: Gallimard.

    Valry, Paul (1973): Cahiers I. dition tablie, prsente et annote par Judith

    Robinson-Valry. Paris. Gallimard.

    Valry, Paul (1980): Lettre lauteur. In: Matila Ghyka. Le nombre dOr. Rites

    et Rythmes Pythagoriciens dans le dveloppement de la Civilisation

    Occidentale. Paris: Gallimard: 7-9).

    Wellek, Ren e Warren, Austin (1962): Teoria da Literatura. Lisboa: Publicaes

    Europa-Amrica.