Ler, verbo transitivo: o jornal A Voz da Infância na ... · graduação divide comigo o amor por...

download Ler, verbo transitivo: o jornal A Voz da Infância na ... · graduação divide comigo o amor por Mário de Andrade. A todas as crianças que fizeram comigo o ... na criação do

If you can't read please download the document

Transcript of Ler, verbo transitivo: o jornal A Voz da Infância na ... · graduação divide comigo o amor por...

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE EDUCAO

    MERENICE MERHEJ

    Ler, verbo transitivo: o jornal A Voz da Infncia na gesto Mrio de Andrade

    SO PAULO - 2017

    Verso Revisada

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE EDUCAO

    Ler, verbo transitivo: o jornal A voz da infncia na gesto Mrio de Andrade

    MERENICE MERHEJ

    Dissetao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, como parte dos requisitos para obteno do grau de Mestre em Educao, sob orientao da Profa. Dra. Roseli Fischmann, junto rea Cultura, Organizao, Educao.

    SO PAULO 2017

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    371.862 Merhej, Merenice M559L Ler, verbo transitivo: o jornal A voz da infncia na gesto Mrio de Andrade/ Merenice Merhej; orientao Roseli Fischmann. So Paulo: s.n., 2017. 120 p. ils.; anexos

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de Concentrao: Cultura, Organizao e Educao) - - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.

    1. Leitura 2. Literatura 3. Andrade, Mrio de, 1893-1945 4. Crianas 5. Polticas pblicas 6. Cultura (Brasil) I. Fischmann, Roseli, orient.

  • MERENICE MERHEJ

    Ler verbo transitivo: o jornal A voz da infncia na gesto Mrio de Andrade

    Dissetao de Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de

    Educao da Universidade de So Paulo, como parte dos requisitos para obteno do grau de

    Mestre em Educao, sob orientao da Profa. Dra. Roseli Fischmann, junto rea Cultura,

    Organizao, Educao.BANCA EXAMINADORA

    Professor Dr.:

    Instituio:

    Assinatura:

    Professor Dr.:

    Instituio:

    Assinatura:

    Professor Dr.:

    Instituio:

    Assinatura:

    FOLHA DE APROVAO

  • Dedico esta pesquisa a

    Samira Jamil Skaff, minha me, que ao me contar histrias me ensinou a reivindicar o direito literatura.

    Mrio de Andrade, que sempre norteou minhas escolhas acadmicas e profissionais.

    Bruno Costa, pequeno Macunama que na sua voz da infncia desenhou comigo histrias de afeto.

  • Agradecimentos

    Ao CNPQ pela bolsa concedida no perodo de maio de 2015 a maio de 2017, possibilitando uma maior dedicao pesquisa.

    minha orientadora, Roseli Fischmann,pela possibilidade em desenvolver esta pesquisa e pela compreenso e interlocuo durante o processo de realizao.

    Aos professores que participaram da banca de defesa e qualificao Zeila B. F. Demartini, Marcelo Furlin e Lisete Arelaro.

    s amigas Emlia Vicente e Vera Alves, por me apresentarem o jornal A voz da infncia e pelos ensinamentos durantes esses anos tantos.

    A Azilde Andreotti, pela ajuda com os exemplares do jornal e a documentao da memria da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato.

    Aos funcionrios do IEB e do Arquivo do Centro Histrico do Municpio, sempre to solcitos e prestativos quando precisei pesquisar os acervos dessas instituies.

    Aos funcionrios da secretaria da ps-graduao da FEUSP pela prestatividade e gentiliza.

    s amigas Vivian Nascimento e Cristiane Paiva pela fora e interlocuo durante o processo de escrita da dissertao.

    Ao professor e amigo Cristhiano Aguiar pelo aprendizado nesses anos tantos.

    Ao professor e amigo Rodrigo Oliveira Fonseca pela leitura do meu memorial de qualificao.

    Aos amigos todos, sempre, por tudo, em especial Maralice Camillo, que desde a graduao divide comigo o amor por Mrio de Andrade.

    A todas as crianas que fizeram comigo o jornal A voz da infncia no ano de 2006, hoje j adultas, por todo aprendizado que me proporcionaram.

    E, por fim, mas no menos importante, aos meus familiares pela pacincia e

    companheirismo.

  • Resumo:

    Esta pesquisa tem como objeto o jornal A voz da infncia, publicao dos frequentadores da Biblioteca Infantil Municipal, fundada pelo Departamento de Cultura da Municipalidade, durante a gesto de Mrio de Andrade. Parte de uma poltica pblica de cultura idealizada pelo escritor, os jornais constituem importante documento produzidos pelas crianas. Centrado no perodo em que Mrio de Andrade esteve na chefia do Departamento de Cultura, os exemplares pesquisados compreendem os anos de 1936 a 1938 no qual se procurou examinar o dilogo entre a poltica pblica para criana, o processo de urbanizao da cidade de So Paulo e os textos do jornal, composto, escrito e ilustrado pelas crianas frequentadoras da biblioteca. O foco deste trabalho analisar o quanto a poltica pblica de cultura para crianas interferiu nos textos do A voz da infncia e como os projetos concebidos por Mrio de Andrade foram importantes na garantia do direito literatura s crianas em idade escolar, de 6 a 12 anos.

    Palavras chaves: leitura - literatura- Mrio de Andrade - crianas- polticas pblicas - cultura brasileira

    Abstract

    This work focuses on the newspaper A voz da infncia, produced by the children who attended the Municipal Childrens Library, founded by the Department of Culture of the Municipality, during the management of Mrio de Andrade. Part of a public policy of culture idealized by the writer, this newspaper constitutes an important document produced by children. The research comprises the years from 1936 to 1938, when Mrio de Andrade was in charge of the Department of Culture, in which it was sought to examine the dialogue between public policy for children and the texts of the newspaper A voz da infncia - composed, written and illustrated by children. The objective is to analyze how the public policy of culture for children interfered in the texts of A voz da infncia (The voice of childhood) and how the projects conceived by Mrio de Andrade were important in guaranteeing to children from 6 to 12 years old the right to literature.

    Keywords: reading - literature - Mrio de Andrade - children - public policies - brazilian culture

  • LISTA DE SIGLAS

    Biblioteca Infantil Municipal BIMBiblioteca Infanto Juvenil Monteiro Lobato BIJMLRevista do Arquivo Municipal RAMDepartamentamento de Cultura DCPartido Democrtico PDParques Infantis PIsA voz da infncia A voz

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA1 14

    FIGURA 2 71

    FIGURA 3 72

    FIGURA 4 77

    FIGURA 5 77

    FIGURA 6 86

    FIGURA 7 86

    FIGURA 8 92

    FIGURA 9 95

    FIGURA 10 97

    FIGURA 11 98

    FIGURA 12 99

    FIGUA 13 105

    FIGUA 14 105

  • SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS 8

    LISTA DE SIGLAS 8

    APRESENTAO: Um retrato na Parede 10

    Prefcio interessantssimo: Itinerrio da busca por respostas. 15

    1. PRIMEIRO ANDAR: 18

    1.2 - Da Pauliceia Desvairada Lira Paulistana: transformaes econmicas e o projeto civilizatrio 24

    1.3 - Pi no sofre. Sofre?: Entre o trabalho e a fome, a rua e os parques 35

    2 - MRIO DE ANDRADE, EMBEBEDADO DE AGIR: A Ao Pela Arte e Arte de Ao 46

    2.1 - Expressivas Crianas: A poltica pblica para infncia no regulamento de bibliotecas infantis 56

    2.2 TMULO TMULO TMULO : Um Departamento Polifnico 65

    3 - A VOZ DA INFNCIA EM DILOGO COM A POLTICA PBLICA DO DEPARAMENTO 69

    3.1 - A Fundao da Biblioteca Infantil 78

    3.2 -Os Frequentadores da Biblioteca 85

    3.3 - A voz da Infncia e a Poltica do Departamento de Cultura 91

    CONSIDERAES FINAIS 108 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS E DOCUMENTAIS 113 ANEXOS 118

  • 10

    APRESENTAO: Um retrato na Parede

    Esta pesquisa originada em uma motivao pessoal aliada minha prtica profissional

    como mediadora de leituras para crianas de 0 a 10 anos e professora de literatura e produo

    textual para adolescentes e jovens. Embora o cdigo escrito seja ainda privilegiado na formao

    escolar, as dificuldades de alfabetizao e em despertar o gosto pela leitura so desafios cada

    vez mais rduos diante de tantos outros estmulos, especialmente os visuais. No mbito escolar,

    esses desafios so aprofundados, no sentido de que a leitura no encarada como uma ato

    de prazer, ou mesmo de lazer; o ato de ler identificado como uma obrigao, na maioria

    das vezes. Lidando com essas dificuldades, encontrei na Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro

    Lobato - BIJML-, mais precisamente no perodo de sua fundao, ainda como Biblioteca

    Infantil Municipal - BIM-, a possibilidade de elucidar algumas questes que permearam minha

    prtica profissional.

    Em 2005, em razo do aniversrio de 70 anos da biblioteca, que seria comemorado no

    ano seguinte, fui convidada a fazer uma edio comemorativa do jornal A voz da infncia,

    um jornalzinho que circulava na biblioteca no perodo de sua fundao e que manteve sua

    publicao entre os anos de 1936 a 1970. As publicaes foram feitas de forma initerrupta at

    1950, tornando-se mais espordicas nas dcadas seguintes at que nos anos de 1980 foram

    quase que por completo terminadas, tendo algumas poucas edies nessa dcada e uma outra

    tentativa de reviver o jornal, no ano de 1995.

    Em princpio, o convite era para a organizao de apenas uma nica edio, junto com

    as crianas frequentadoras, para publicao no dia do aniversrio de 70 anos, poca, 14 de

    abril de 2006, porm o projeto caiu no gosto das crianas e foram feitas mais onze edies do

    jornal, publicadas mensalmente at julho de 2007.

    A elaborao das edies do A voz da infncia foi a minha primeira experincia na

    educao infantil, com crianas de 6 a 12 anos. A produo de um jornal no algo que atraia

    crianas menores que essa idade e, confesso, at me espantei com o fato de ter atrado crianas

    de qualquer idade para o projeto. O primeiro jornal, a edio comemorativa, contou com a

  • 11

    participao de cinco crianas, nas reunies, e alguns colaboradores que enviaram textos para

    serem publicados. Os menores, entre 6 e 9 anos, preferiam o desenho, assim coube s crianas

    entre 10 e 12 anos a tarefa da escrita. Foi, ento, que me deparei com a primeira dificuldade

    do projeto: a escrita da criana. Quando relatadas por meio oral, as histrias eram vivas e ricas

    em detalhes e o mesmo no ocorria no texto escrito, pois elas no dominavam o cdigo da

    mesma forma, apresentando uma enorme dificuldade na produo dos textos. Com o desenho,

    no era muito diferente, pois a preocupao com o belo, no s entre elas, mas tambm entre

    os adultos, tornava-se um entrave. A expresso das crianas daquela idade por meio do desenho

    no se mostrava to livre e algumas tentavam recorrer cpia, talvez incentivadas pelo meio e

    pela referncia dos jornais antigos, na tentativa de elaborar um desenho bonito para publicar.

    Observando as edies do A voz da infncia - A voz -, da dcada de 1930, tem-

    se a impresso de que a escrita e o desenho eram mais desenvolvidos nas crianas da poca;

    contudo, na minha formao sobre a escrita da criana, alguns autores, contemporneos a Mrio

    de Andrade, j analisavam a dificuldade das crianas na criao do texto escrito e o prprio

    Mrio de Andrade, em seus estudos sobre o desenho da criana, traz a questo da cpia, como

    um recurso da criana na produo de seus desenhos. Assim, embora a questo temporal, na

    anlise diacrnica realizada, tenha uma diferena significativa no que diz respeito ao estmulo

    da escrita e das visualidades, era possvel haver algumas semelhanas.

    Segundo a ata de fundao, ocorrida em 14 de julho de 1936, o jornal foi criado para

    ser escrito, ilustrado e dirigido pelas crianas. No trabalho realizado em 2006, no entanto, no

    fomos to ousadas. ramos, na primeira edio duas coordenadoras e ao final do projeto, aps

    um ano dessa edio comemorativa, ramos em quatro coordenando uma equipe de vinte

    crianas.

    Durante o ano que permaneci fazendo o jornal, na BIJML, notei que as crianas tinham

    maior facilidade em escrever poemas e que seus interesses pessoais giravam em torno de

    assuntos ligados ao cinema (Harry Potter, o filme, os livros), e histrias de terror. O mgico

    e o sangrento.

  • 12

    A divulgao das atividades da Biblioteca no as interessava muito,

    exceto o jornal. Embora a coordenao fosse composta por educadoras, elas se

    apropriaram do discurso de que o jornal era uma publicao de crianas para crianas.

    O pouco interesse pela instituio e o entusiamos pelo jornal se justificava porque o projeto

    no se tratava de uma iniciativa BIJML, era uma atividade promovida por funcionrios que

    buscaram na histria do equipamento pblico comemorar o ano de sua fundao e, para a

    surpresa de todos, acabou despertando interesse das crianas. Ainda que o jornal fizesse parte

    das atividades e buscasse a continuao da histria da Instituio, no consistia uma poltica

    pblica pertencente s diretrizes do equipamento. J nos textos das crianas de 1936, a BIM

    era um assunto tratado com entusiasmo, incluindo a divulgao de outras atividades que ela

    oferecia, como o cinema, o orfeo, apresentaes teatrais e recitais de poesia.

    Assim, uma primeira pergunta surgiu na comparao do trabalho que eu estava

    realizando em 2006 e o trabalho realizado em 1936: eram as crianas as protagonistas do A

    voz, a expresso delas era, de fato, respeitada ou havia uma imposio dos adultos na escolha

    dos temas a serem tratados?

    Com o interesse das crianas pelo jornal de 2006, o pblico se tornou mais diverso.

    As primeiras crianas a participarem da edio comemorativa, eram de bairros distintos,

    algumas do entorno e outras que passavam a tarde na BIJML, aps o horrio escolar, porque

    a me trabalhava na regio central e a biblioteca era um lugar seguro para elas esperarem seus

    responsveis. As classes sociais no divergiam muito, naquele momento. Com o passar dos

    meses, a continuidade do projeto atraiu crianas de diferentes classes sociais e tambm de

    bairros de outras regies da cidade, em especial Zona Norte e Leste.

    O bairro da Vila Buarque considerado de classe mdia, em sua maioria abrigando

    universitrios que estudam nos arredores, porm os apartamentos originalmente construdos

    para esse pblico, acabam por abrigar famlias. H tambm um nmero grande de cortios.

    O fato de estar localizada na regio central da cidade, num espao metropolitano,

    confirmava que seu endereo influenciava na definio do pblico e que, apesar das

    distncias e dificuldade de locomoo, algumas crianas de outros bairros, cujas mes

  • 13

    trabalhavam no entorno, o que fazia com que estudassem na regio central, passassem a

    tarde na biblioteca como espao seguro e organizado, enquanto a me se encontrava no

    trabalho. Outro dado importante de salientar que a classe mdia da regio da Vila Buarque

    no participou do projeto que desenvolvemos na BIJM. Os participantes dessa classe social

    vinham de bairros mais distantes, em especial, da Zona Norte da cidade de So Paulo.

    Nos textos sobre a fundao da BIM havia a indicao de que era um espao pblico

    fundamentalmente criado para a elite brasileira, sobretudo na comparao aos Parques Infantis

    - PIs -, que eram orientados de forma explcita s crianas filhas de operrios. Houve uma

    transformao profunda da regio central entre os 70 anos que separavam a primeira edio do

    jornal A voz daquela que eu estava fazendo, porm os cortios, os bairros mais pobres e o

    trabalho mais concentrado na regio central, eram semelhanas que me despertram mais uma

    pergunta: qual era a interferncia do meio no pblico frequentador da biblioteca, eram mesmo

    todos brancos e ricos?

    A partir da leitura dos jornais para a realizao da edio comemorativa, os textos iam

    me surpreendendo dada a quantidade de informaes sobre o perodo e projetos realizados na

    ento Biblioteca Infantil Municipal. No entanto, acabou me chamando ateno o fato de que

    nas poucas vezes que se referiam ao Mrio de Andrade, era como escritor, ou o Senhor Mrio

    de Andrade; em outras vezes, se referiam a ele como folclorista. No havia meno ao escritor

    como fundador, ou como responsvel pela programao das atividades que eles relatavam

    sempre agradecendo Prefeitura de So Paulo e ao prefeito Fbio Prado.

    Em 2006, as referncias a Mrio de Andrade praticamente desapareceram, s havia

    um retrato que indicava a cerimnia de fundao da Biblioteca Infantil Municipal. Eis que

    surgiu mais uma pergunta, que tentei responder nesse trabalho: Mrio de Andrade era mesmo

    s um retrato na parede?

  • 14

    FIGURA1 - Inagurao da Biblioteca Infantil Municipal, 1936 - Retrato na parede em 2006.

  • 15

    Prefcio interessantssimo: Itinerrio da busca por respostas

    Este trabalho trata da narrativa das crianas frequentadoras da BIM, fundada em 1936,

    como parte do projeto do Departamento de Cultura, durante a gesto de Mrio de Andrade.

    Para conseguir as respostas que queria, primeiro pesquisei alguns dos estudos j

    elaborados sobre o Departamento de Cultura (DC), durante a gesto de Mrio de Andrade

    (Mrio1), especialmente sobre projetos especficos, como os PIs e a BIM, com maior nfase,

    assim como demais estudos que tivessem a gesto de Mrio como objeto.

    Alguns estudos, ainda que pesquisados, no foram abordados neste trabalho, como os

    de FONSECA (1981) e FISCHMANN (1982), pela maior distncia temporal com que foram

    realizados. Fischmann, embora dedique um extenso captulo a Mrio de Andrade, os Parques

    Infantis no so, especificamente, o seu objeto de estudo.

    A pesquisa centrou-se nas teses de doutorado de GOBBI (2004), FARIA (1992) e

    as dissertaes de mestrado de GUEDES (2006), FILIZOLLA (2002) sobre os PIs, a tese de

    doutorado de ANDREOTTI (2004) sobre o A voz da Infncia, parte central de anlise deste

    trabalho, e a dissertao de mestrado de ASSIS(2013), sobre a Diviso de Bibliotecas, durante

    o perodo tambm estudado nesse trabalho. Sobre o DC, as referncias mais significativas

    utilizadas nesta dissertao foram os trabalhos de RAFFAINI (2001) e SANDRONI (1989)

    ambas dissertaes de mestrado, tratando de todos os intelectuais envolvidos e especificamente

    de Mrio, respectivamente, e a dissertao de mestrado de ABDANUR (1992) que analisa o DC

    e a poltica de Armando Salles de Oliveira e Fbio Prado.

    As dissertaes de mestrado de Raffaini e Sandroni compreendem anlises seguindo a

    linha de vigilncia tambm utilizada na anlise feita por Filizolla sobre os PIs. Teses antagnicas

    s de Gobbi e Faria, que atriburam a Mrio a criao dos PIs, aproximando-se da dissertao

    de mestrado de Abdanur, sobre a poltica de Fbio Prado, que tambm atribui a idealizao e

    1 Aps mergulhar no universo epistolar de sua obra, partilhar de sua intimidade, sinto-me autorizada em cham-lo de Mrio, pois este trabalho foi elabarado quase que como uma carta ao querido Mrio, que me ensinou tanto sobre criana, esttica, potica e, principalmente, sobre a cidade de So Paulo.

  • 16

    criao dos PIs a Mrio. J Guedes, que tambm estudou os PIs, segue a linha de dominao

    pela educao, parecida com a de Abdanur, sobre a poltica de Fbio Prado, mas atribui a

    idealizao e criao dos PIs a outras instituies. Os documentos analisados, por todos os

    pesquisadores, so praticamente os mesmos.

    A partir desses estudos, tracei um rol de documentos para analisar, sendo que a pesquisa

    se iniciou no acervo da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, antiga BIM, onde foram

    pesquisadas as fotos utilizadas nesta dissertao. So considerados documentos centrais deste

    trabalho as edies do jornal A voz da infncia, de julho de 1936 a fevereiro de 1938, perodo

    em que Mrio de Andrade esteve na direo do DC.

    As fontes documentais encontradas no acervo do Arquivo Municipal, compreendem

    as Revistas do Arquivo Municipal - RAM-, as separatas publicadas pela Diviso de Educao e

    Recreio, Parques Infantis, 1937, e A marujada, 1937.

    Somam-se a essas fontes o Ato 861 de 1935, que determina a criao, o Ato 1.146 de

    1936, que regulamenta o DC, o Ato 767, 1935, de criao dos Parques Infantis, e o Ato 590, de

    1934, de criao da Comisso de Recreio Municipal.

    Alm dos documentos elencados, um Regulamento, encontrado no acervo de Mrio

    do IEB, e adicionado, em 2012, ao acervo do escritor no Arquivo Histrico do Municpio de

    So Paulo, como projeto de lei, tornou-se parte central, junto s edies do jornal A voz, nas

    anlises feitas para esta dissertao. Em todos os estudos aqui mencionados, o Regulamento

    o nico que no aparece.

    Esse Regulamento, sem data no IEB, consta como projeto de lei no Arquivo do

    Centro Histrico, no Processo -2003-0.094.591.9 - n de capa - 034.449/1937, em que foram

    anexados vrios ofcios pedindo o arquivamento em dcadas posteriores ao projeto. Segundo os

    documentos, o projeto ficou esquecido em gavetas da prefeitura, sendo encontrado nas dcadas

    de 1950 e 1970.

    Em uma das cartas2 de Mrio de Andrade a Paulo Duarte, ele menciona esse documento

    2 DUARTE, Mario de Andrade por ele mesmo. So Paulo: Hucitec, 1977, p. 148-149

  • 17

    e pede que o Art. 80 seja excludo, salientando que o Art. 303, no qual regulamenta que o Diretor

    do Departamento no poderia nomear funcionrios, trata-se de uma maneira de driblar os

    inmeros pedidos de emprego que havia recebido, desde a indicao de seu nome para a direo

    do DC. Em nota, Paulo Duarte menciona que a carta de 1935, contudo, na publicao e

    no original, a correspondncia no possui data. Apesar da confuso entre as datas atribudas

    por Paulo Duarte e a do processo que consta no Arquivo do Centro Histrico, atribuindo ao

    projeto de lei, o ano de 1937, na pasta consta o pedido de supresso do Art. 80, e o Art. 303

    do documento corresponde ao salientado por Mrio sobre nomeao de cargos, comprovando,

    assim, de que se trata do mesmo documento descrito na carta Paulo Duarte.

    A partir desses documentos e da bibliografia especfica do departamento, dividi

    os captulos deste trabalho abordando primeiro o contexto histrico da modernidade e suas

    relaes com a cultura, a poltica na Europa e seus ecos no Brasil, que levaram criao do DC

    e como a modernidade passa a considerar a criana, no contexto especfico de So Paulo e sua

    industrializao.

    No segundo captulo, o trabalho analisa, especialmente a partir da obra de Mrio

    de Andrade, alguns projetos do DC e as ideias do escritor sobre cultura, arte, a criana

    e as convergncias do pensamento do escritor, a poltica de Fbio Prado e a execuo das

    atividades regulamentadas por ele, a fim de responder qual a importncia de Mrio nos projetos

    desenvolvidos na BIM e, principalmente, na idealizao da poltica pblica para criana

    desenvolvida pelo DC.

    Por fim, no ltimo captulo, o mais extenso, analiso as narrativas das crianas no

    jornal A voz e o dilogo dos textos com o Regulamento escrito por Mrio de Andrade, as

    mudanas da cidade de So Paulo e a dinmica da BIM, no intuito de responder como todos os

    processos descritos nos captulos anteriores eram reproduzidos nos textos escritos e ilustrados

    por elas e, principalmente, se a expresso das crianas era respeitada pelos funcionrios da

    BIM, especialmente a diretora Lenyra Fraccaroli.

  • 18

    1. PRIMEIRO ANDAR: Modernidade, Modernismo e Modernistas no Departamento de Cultura da Municipalidade

    O bonde abre a viagem,No banco ningum, Estou s, estou sem.Depois sobe um homem, No banco sentou, Companheiro vou.O bonde est cheio, De novo pormNo sou mais ningum. (Mrio de Andrade)

    Na constituio do Estado Moderno, os papeis tradicionais j no conseguem manter a

    sociedade unida (EAGLETON, 2011). A cultura, at ento relacionada ao meio rural, no sentido

    de cultivo agrcola, passa a ter um sentido poltico, por meio da lngua, da educao e valores

    comuns. Assim, cultura, no campo semntico da modernidade do sculo XVIII, passa a ser

    entendida como cultivo pessoal e de interveno nas sociedades para a unificao. O sentido

    de cultura como cultivado ser sinnimo de humanizao para unidade nacional e a palavra

    civilizao tambm ganha uma inverso semntica; o que antes significava nao (civilizao

    Maia, Inca, Grega), passa a ter o significado correspondente ao de cultura, contrrio de barbrie.

    O paradoxo moderno de humanizar, civilizar, para uniformizar e o cultivo pessoal, a subjetivao

    e individualizao, mas para o coletivo. No mbito das artes, Romantismo, escola artstica

    e literria do sculo XVIII, mantm essa ideia de civilizao e cultura, opondo-se a ela ao

    valorizar o no- civilizado, o inculto, como forma de crtica ao Estado e o processo civilizatrio

    da cultura. No incio do sculo XX, na Europa, auge da industrializao e da tcnica, a ideia de

    cultura enraizava-se como algo local, no universal, de diferentes naes e perodos, muito por

    conta da antropologia, da psicanlise Freudiana e do imperialismo do sculo XIX. Do mesmo

    modo que na escola literria do Romantismo, h uma valorizao das culturas entendidas como

    exticas e primitivas, conforme Eagleton:

    A ideia de cultura como uma forma orgnica de vida pertence alta cultura tanto quanto Berlioz. Como conceito, o produto de intelectuais cultivados e pode representar o outro primordial que pode revitalizar as suas prprias sociedades degeneradas. Sempre que se ouve a conversa elogiosa do selvagem, pode ter-se a certeza de que se est na presena de

  • 19

    gente sofisticada. Com efeito, foi preciso um sofisticado, Sigmund Freud, para revelar os desejos incestuosos que se escondem nos nossos sonhos de plenitude sensorial, no nosso enorme desejo por um corpo calorosamente tangvel, porm eternamente inatingvel. A cultura, entendida de ambas as formas, como realidade concreta e enevoada viso da perfeio, retm alguma desta dualidade. A arte modernista volta-se para estas noes primevas para sobreviver a uma modernidade filisteia, e a mitologia constitui um eixo entre ambas. Desta forma, os excessivamente refinados e os subdesenvolvidos estabelecem estranhas alianas. (EAGLETON, 2011, p. 40)

    Na Europa da tcnica, a cultura como civilizao e unidade perdia seu poder poltico,

    mas assim como no Romantismo, a oposio civilizado versus primitivo persistia nas vanguardas

    modernas, mas de modo separado da economia e da poltica. Na modernidade, em especial no

    Estado Moderno, a razo deveria imperar sobre a subjetividade.

    somente nas democracias industriais modernas que cultura e sociedade ficam excludas tanto da poltica como da economia.[...] a sociedade moderna entendida como distinta e incomumente associal, sua vida econmica e poltica caracteristicamente sem cultura. (MILNER apud EAGLETON, 2011, p. 49)

    As constantes e infrteis tentativas de ordenar a dinmica social e a organizao

    espacial, suprimindo o sujeito e as relaes que as pessoas constroem com as transformaes

    cotidianas na vida urbana, constituiro uma bifurcao, iniciada nas cidades modernas, que ser

    potencializada nas sociedade industrial, em que o cotidiano em sociedade excludo da poltica.

    Ao mesmo tempo em que a subjetividade se protagoniza em vrias vertentes artsticas,

    a concepo dos espaos, ainda que efmeros, fundamenta-se na lgica racional e funcional,

    provocando tenses que, aparentemente geram o caos e a desordem, mas que so justamente o

    que se tem vivo, dinmico e humano nas constituies das metrpoles.

    Desde o sculo XVI (BERMAN, 2007) e, mais a fundo, no sculo XVIII (AZEVEDO,

    2006), as correntes racionais buscaram incessantemente conter comportamentos a partir

    da organizao dos espaos, associando o homem a uma engrenagem matemtica, tentando

    suprimir o que h de humano nas cidades. O homem metropolitano resiste invisibilidade,

    efemeridade das relaes, dos espaos e das cidades na vida moderna, constituindo, tambm,

    comportamentos, resistncia e, por mais que a ordem monetria imponha um enunciado, como

    todo enunciado, a sua significao est sempre em negociao. A experincia moderna ,

  • 20

    portanto, paradoxal, na qual se busca romper com o passado, desconsiderar o antigo, mas com

    o qual, de certa forma, est em constante dilogo.

    O paradoxo da metrpole que convida o homem a individualizar-se, traz tona sua

    subjetividade e sua procura incessante por uma organizao racional numa tentativa v em

    determinar os usos sociais do espaos, suprimindo o que h de humano e vivo nas cidades,

    permeando, assim, o pensamento moderno da supremacia da mquina e da funcionalidade. No

    entanto, esse cenrio tambm propicia resistncia, subjetividade e interao.

    Assim como as paisagens, a dinmica das cidades com relao ao campo apresenta

    diferenas significativas que trazem ao homem moderno uma sucesso de conflitos e tenses.

    Ao mesmo tempo em que convidado a libertar-se de todos os padres, ele no est totalmente

    livre do Estado, da moral, muito menos da economia. na metrpole que prevalece a economia

    monetria, intimamente ligada ao pensamento racional e dinmica urbana. na cidade que o

    homem moderno passa a conviver com o outro, o desconhecido; no cotidiano urbano em que

    se individualiza e torna-se cada vez mais invisvel e descaracterizado em meio multido, uma

    massa amorfa que, na viso do Estado, precisa ser controlada:

    Na metrpole transvertem-se, quer a fisionomia, quer a fisiologia urbanas. O marcante ali a multido, o choque em meio refrega do trfego. Na moo multitudinria, as individualidades se dissolvem na viscidez do fluxo humano, e as personalidades so diludas no manadio ruidoso, embora calado, dos deslocamentos. (AZEVEDO, 2006, p.12)

    As trocas so feitas por meio do dinheiro; a concentrao monetria facilita a interao

    com o outro, sem que seja necessrio a convivncia interpessoal no processo. A monetarizao,

    portanto, interfere, tambm, na organizao dos espaos e na concepo da ordem, que busca

    conter certos comportamentos indesejados. A convivncia com o outro, o desconhecido e

    a multido entregam s cidades o smbolo do perigo, da criminalidade, da desorganizao.

    As constantes transformaes, na tentativa de organizar os espaos para conseguir abrigar

    essa grande concentrao de pessoas, tambm propiciam o testemunhar de uma profuso de

    descobertas e estmulos visuais, consolidando comportamentos e instituies (AZEVEDO,

    2006). O comportamento se modifica, a paisagem se modifica, numa relao de dilogo

  • 21

    constante entre as dinmicas e a paisagem da metrpole. Esse homem moderno vive uma

    experincia de desconstruo, (...) encontra-se em um ambiente que promete aventura, poder,

    alegria, crescimento, auto transformao e transformao ao redor.(...)(BERMAN, 2007). A

    convivncia permanente com o outro, a multido, as aparncias para impressionar o coletivo

    e as transformaes vo caracterizando os espaos urbanos e as prticas sociais. Ambos se

    modificam, dando lugar a outras formas de relao com os espaos e sua apropriao. Essa

    instabilidade, ainda que traga um turbilho de possibilidades fascinantes, tambm causa angstia

    e solido, evidenciando a morte: a efemeridade de tudo ao redor. Frente a essas tenses, o ser

    humano na metrpole precisa reagir com a razo, resistindo uniformizao imposta pelo

    Estado e pela economia, a partir do pensamento tcnico-social (SIMMEL, 1967). Tambm as

    cidades buscam resistir ao indivduo e suas subjetivaes, a partir da ordem e organizao dos

    espaos em que o inesperado no permitido:

    concepo isotrpica do espao corresponde a formulao de dispositivos panpticos, a partir dos quais se exerce espreita constante e impessoal. A polcia na acepo que os sculos XVII e XVIII conferiram palavra -, nas cidades cosmopolitas, esmera-se em arremedar, de certo modo, a ordem impositiva da empresa capitalista. Numa e noutra, o impondervel e o aleatrio devem ser expurgados; as expectativas necessitam se subordinar a um dado grau de previsibilidade; as marginalidades, quando no excludas, precisam ser controladas; a regra e a regularidade so impostas; os fins explicitam os meios e tudo h de ser estimado e contabilizado. Contudo, os diligenciadores da ordem iro sempre se surpreender com a extraordinria resistncia que o urbano ope aos mecanismos de controle e condicionamento.(AZEVEDO, 2006, p. 14)

    A resistncia do urbano faz com que essas paisagens estejam sempre em mutao,

    caracterstica principal da metrpole e da modernidade. A todo momento ergue-se um novo

    monumento, uma nova avenida, um muro. A metrpole construda a partir do progresso e da

    renovao, nada permanente, esttico e fixo.

    O entendimento da vida moderna, ento, dividiu-se em duas perspectivas que parecem

    antagnicas, mas que coincidem na desumanizao da dinmica metropolitana, suprimindo

    as tenses, negociaes e reconstrues do humano, como se funcionassem separadamente.

    As subjetivaes so consideradas uma produo indivudal de atores sociais e no como

    resultado dos enunciados postos e impostos pela metrpole, descolando-as dessa dinmicas e

  • 22

    descontextualizando-as dos processos polticos e econmicos, em especial os artistas e sua arte,

    no perodo denominado vanguarda, como explicita Berman:

    Nossa viso da vida moderna tende a se bifurcar em dois nveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao modernismo, encarado como uma espcie de puro esprito, que se desenvolve em funo de imperativos artsticos e intelectuais autnomos; outras se situam na rbita da modernizao, um complexo de estruturas sociais que, em princpio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta prpria, com pouca ou nenhuma interferncia dos espritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contempornea, dificulta nossa apreenso de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fuso de suas foras materiais e espirituais; a interdependncia entre o indivduo e o ambiente moderno. ( BERMAN, 2007, p. 158)

    A lrica de Baudelaire, por exemplo, traz essa fuso entre o homem e o meio, enfatizando

    o dilogo entre o passado e o futuro, a casa e a rua, o cotidiano em seus detalhes, que se perde

    em meio s engrenagem da mquina, da pressa com hora marcada. A vida, que se configura

    em dilogo constante com o ambiente e suas negociaes e reconstrues de significados, em

    meio a espaos em transformao contnua. O humano, que se descaracteriza quanto mais se

    individualiza. Berman traz Eliot, para aprofundar essa compreenso:

    No apenas no uso de imagens da vida comum, no apenas nas imagens da vida srdida de uma grande metrpole, mas na elevao dessas imagens uma alta intensidade - apresentando -a como ela , e no obstante fazendo que ela represente alguma coisa alm de si mesma - que Baudelaire criou uma forma de alvio e expresso para outros homens. (ELIOT, TS apud BERMAN, 2010, p. 158)

    Na vivncia urbana que a dinmica metropolitana se faz, nas aes e reaes aos

    enunciados que, mesmo tentando suprimir o sujeito como no caso das vanguardas tecnicistas,

    como o Futurismo, ou na total autonomia das subjetivaes, como na lrica de Baudelaire,

    constroem e reconstroem a vida na cidade, a relao com os espaos e as negociaes dos

    significados desses enunciados. No h como dissoci-los, ou definir um como consequncia

    do outro. A cidades permitem abstraes e conflitos que so a prpria experincia moderna

    (BERMAN, 2010) que em si dialtica. A angstia e a solido nos fenmenos urbanos esto

    intimamente ligadas aos processos de coletivizao, uniformizao. A racionalidade monetria,

    e sua organizao, causa e consequncia da individualizao e resistncia do homem a elas

    (SIMMEL, 1967, p. 16).

  • 23

    A dinmica das cidades se organiza paradoxalmente, com duas foras agindo, mas

    que no compem um discurso nico, mesmo com toda tentativa de uniformizao espacial,

    ainda que se diluam e se caracterizem em massas e sob um urea estereotipada, os usos sociais,

    as trocas, as relaes pessoais tambm contribuem, e muito, na compreenso da cidades, das

    metrpoles (MAGNANI, 2012) e, por que no dizer, nas megalpoles contemporneas. nas

    relaes humanas e na interao com os espaos (Vigotsky, 2010) que est a metrpole e nas

    construes e reconstrues de mltiplos discursos que se transformam em outros mltiplos

    discursos, sejam eles artsticos, polticos, religiosos e/ou econmicos. A sociedade, ento, est

    em constante negociao e dilogo com esses discursos.

    Nesse sentido, as tentativas de ordenao do Estado fogem s generalizaes de seu

    discurso, ao que no se constituem ou no so apreendidos com um nico significado, pois

    tambm a ordenao polissmica, afinal, no cotidiano da metrpole que ela acontece.

  • 24

    1.2 - Da Pauliceia Desvairada Lira Paulistana: transformaes econmicas e o projeto civilizatrio

    Mas o pior desta naoE ter fbrica de gs Que donos-da -vida fazIanques e ingleses de ao, Tudo vem de convulso Enquanto se insulta o Eixo,Lights, Tramas, Corporation,E a gente de trs pra trs, Isso paz? (Mario de Andrade)

    O perodo Histrico da Modernidade compreende no campo artstico, especialmente

    literrio, as escolas do Romantismo, Realismo, Pr-modernismo, Modernismo, que mesmo

    entre si, apresentaram correntes diferentes. No mbito das artes, a orientao artstica e literria

    brasileira tiveram a Europa como modelo esttico. Apesar da reproduo do modelo esttico

    europeu, as escolas literrias, em especial Romantismo e Modernismo, intersectam-se na

    questo da identidade nacional e local, na tentativa de encontrar uma arte e uma cincia que

    fosse genuinamente brasileira e que abarcasse as especificidades nacionais (MELLO E SOUZA,

    2010, p. 88)

    Apesar dessa busca pelo nacional, o espelho europeu, sobretudo no que diz respeito s

    constituies sociais, acabavam provocando uma certa distncia entre os movimentos artsticos

    e sociais, nas dinmicas de nossas cidades, ainda com razes agrrias. A Revoluo Industrial,

    grande vetor do Romantismo e das ideias iluministas, no que diz respeito ao Brasil, ainda

    agrrio e escravocrata, destoava ento, das filosofias vigentes do sculo XIX1, cuja estrutura

    econmica no condizia com com as ideias liberais. O trabalho livre e a Repblica, parte do

    iderio iluminista e liberal, chega ao pas apenas no final do sculo XIX e a intensificao da

    industrializao brasileira compreende o perodo da dcada de 1930, a chamada Era Vargas,

    pelos historiadores.

    , ento, na So Paulo do incio do sculo XX, que a correspondncia econmica,

    1 SCHWARZ, R. As ideias fora do lugar In: Ao vencedor as batatas. So Paulo: Editora 34, 2012, pp 9 -32.

  • 25

    de uma industrializao, ainda de base estrangeira, que as ideias racionais dos iluministas e

    liberais encontram eco. Contudo, os enunciados artsticos, desse perodo, j se configuravam

    na escola do Modernismo e de suas vanguardas, trazidas pelos jovens paulistas ao Teatro

    Municipal, em 1922, sem um iderio poltico, apenas esttico, de reformulao do verso e da

    forma2. Esse primeiro perodo do Modernismo brasileiro compreende uma cidade que assistia

    s transformaes de uma metrpole, como Baudelaire assistiu Paris na primeira metade do

    sculo XIX. Uma sociedade que mudava de uma economia agrria para industrial, tornando-

    se o palco mais expressivo das contradies modernas, quando deixou de ser uma cidade

    de fazendeiros e dar os primeiros passos rumo construo da metrpole, inaugurando seus

    primeiros bondes eltricos, na primeira dcada do sculo XX (MONBEIG, 1957/2004).

    A cidade e at o pas, com seu processo de industrializao, vivenciam transformaes

    num perodo de dcadas que, na Europa, constituam perodos seculares, configurando-se

    numa polifonia discursiva das Artes, Cincias, do Estado e suas organizaes. Enquanto na

    Europa a ideia de cultura enraizava-se como processo individual do esprito (EAGLETON,

    2011), no Brasil os ideais de cultura e civilizao como unidade nacional reforavam-se entre

    a inteligncia liberal do perodo, sobretudo a partir da dcada de 1930. No entanto, a unidade

    nacional por meio da cultura pouco assimilada pelo Estado, compreendendo perodos muito

    curtos da Repblica Brasileira, ou mesmo de forma isolada nos estados e municpios. O Estado

    Brasileiro, nesse sentido, conheceu a modernidade industrial antes de ter indstrias. No de se

    estranhar que Levy Strauss comea o seu captulo sobre So Paulo com o seguinte enunciado:

    Um esprito malicioso definiu a Amrica como um pas que passou da barbrie a decadncia

    sem ter conhecido a civilizao3.

    A industrializao, impulsionada nas primeiras dcadas, e propiciada pela eletricidade

    trazida pela Light, de origem Canadense, no incio de 1900, comea a mudar a paisagem de

    So Paulo j nos primeiros anos do sculo XX, mas entre os anos de 1920 e 1930, poca

    eufrica, que a formao do polo industrial consolidada e, alm das tecelagens cujos donos

    2 ANDRADE, M. O movimento Modernista In: Aspectos da literatura brasileira. So Paulo: Martins Fontes, 1974, pp. 231-258. O texto originado de uma conferncia dada por Mrio de Andrade, em 1942, em ocasio dos 20 anos da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal.3 STRAUSS, L. So Paulo in: Tristes Trpicos. So Paulo: Anhembi, 1957, p.96

  • 26

    eram imigrantes naturalizados brasileiros, Matarazzo e Jafet, fbricas norte-americanas como a

    General Motors e a Ford instalam suas linhas de montagem na capital paulista.

    A cidade se orgulhava de seu ritmo acelerado, das construes dos edifcios, das casas

    e das transformaes que a urbanizao proporcionava nova metrpole que se consolidava no

    Brasil, como menciona Strauss:

    Em 1935, os paulistas se gabavam do ritmo de construo em sua cidade; a media de uma casa por hora. Tratava-se,ento, de palacetes; asseguram-me que o ritmo continua o mesmo, mas para os grandes edifcios. A cidade desenvolve-se com tal rapidez que impossveI encontrar-lhe um mapa: cada semana exigiria uma nova edio. Dizem, mesmo, que a gente se arrisca, indo de taxi a um encontro combinado algumas semanas antes, a chegar com um dia de avano sobre o bairro. (STRAUSS, 1957, p. 97)

    A partir de 1929, os arranha-cus passaram a fazer parte da paisagem da cidade e

    durante a dcada de 1930, quando o ritmo de crescimento populacional passou a acelerar,

    transformando os bairros residenciais, por falta de espao e na inteno de imitar Chicago, So

    Paulo passou a se verticalizar (MONBEIG, 1957/2004, p.89).

    O modelo de industrializao a partir da dcada de 1930 torna-se o motor financeiro

    da cidade, atraindo trabalhadores das reas rurais e, principalmente, das periferias da cidade,

    pois as distncias tornaram-se cada vez maiores e o emprego, no s nas fbricas, estavam

    concentrados nas reas centrais da cidade (CANO apud ANDREOTTI, 2014).

    Como toda transformao acelerada, os contrastes foram surgindo e a necessidade

    de organizao espacial pelo Estado. Conviviam lado a lado o orgulho da dinmica urbana,

    intensificada pela gesto de Prestes Maia (1938 1945) e os desafios iniciais da recente

    metrpole cada vez mais latentes. A modernidade chegava a So Paulo com a rapidez de suas

    construes, mas com as desigualdade sociais abismais, que traziam paisagem da cidade,

    numerosos cortios, primeiramente nos bairros operrios do Brs e Bela Vista, mas que no

    perodo de intensa industrializao avanavam indiscriminadamente, chegando a adentrar pelos

    bairros residencias considerados mais nobres como Higienpolis e Avenida Paulista e por ruas

    adjacentes ( MONBEIG, 1957/2004, p.88).

  • 27

    Ao contraste da paisagem urbana, surge o contraste humano:

    A experincia ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geogrficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religio e ideologia: ela nos despeja a todos num turbilho de permanente desintegrao e mudana, de luta e contradio, de ambiguidade e angstia. (BERMAN, 2007, p.27)

    As pessoas sentiam as mudanas, as transformaes, mas tambm tinham a

    necessidade de preservao e de identidade. No obstante, o modernismo brasileiro, em especial

    o paulistano, tambm nacionalista e as correntes mais conservadoras desse nacionalismo

    eram fortes na cidade e, principalmente, no pensamento do paulistano mdio. A identidade

    nacional uma marca desse perodo, no sentido cultural, ainda que permeada por diferentes

    vertentes, uma nacionalista e conservadora, encabeada por Plnio Salgado, outra vanguardista

    e internacionalista, na qual Oswald de Andrade e Mrio de Andrade foram expoentes.

    Uma das caractersticas do Modernismo europeu que influenciou o brasileiro, era

    exatamente essa dualidade entre a modernidade, que destri tudo, e a tradio. O novo que se

    ergue para o passado. Para uma experincia artstica individual era preciso uma experincia

    cultural coletiva como tatado por Eagleton:

    A mentalidade mais vanguardista descrevia [..] um crculo completo indo ao encontro do mais arcaico; [..] Tendo atingido um ponto de complexa decadncia, a civilizao apenas poderia refrescar-se na fonte da cultura, e teria de olhar para trs para poder avanar. Em consonncia com isto, o modernismo ps o tempo em marcha atrs e encontrou no passado a imagem do futuro. (EAGELTON, 2011, p. 46)

    essa marcha atrs, o Modernismo encontra o Romantismo (MELLO E SOUZA,

    2010, p. 88), com seus anseios de lngua nacional, identidade nacional, valorizao do indgena,

    incluindo tambm os negros e a classe operria, que recm se formava na So Paulo do incio do

    sculo XX, e atuao poltica nacional por meio da arte e da cultura. Ao passo que a metrpole

    se industrializava com fbricas, quase todas estrangeiras e de imigrantes naturalizados, a

    metrpole se caracterizava cada vez mais plural, multilingustica e multicultural. Os conflitos

    operrios vo se intensificando e durante as primeira dcadas do sculo XX, a cidade torna-se

    palco de greves influenciadas pelos movimentos anarquista e comunista. Nas relaes entre a

    arte e sociedade, os artistas dessa poca passam a se envolver de forma mais atuante na poltica

    nacional.

  • 28

    Concomitante s transformaes da paisagem na cidade de So Paulo e seu crescimento

    econmico, a dcada de 1930, no que diz respeito ao Estado Brasileiro, foi marcada pela

    revoluo de 1930 e a chegada de Vargas presidncia, que abriu espao para a intelectualidade

    modernista nacional, em especial no tocante educao. Villa Lobos, msico presente na

    Semana de Arte Moderna de 1922, comps o hino da revoluo e foi nomeado para dirigir a

    Escola Nacional de Msica. Os modernistas, que at ento centravam-se em rupturas estticas

    na arte, passam a se engajar politicamente, conforme Antonio Candido:

    Os anos 30 foram de engajamento poltico, religioso e social no campo da cultura. Mesmo os que no se definiam explicitamente, e at os que no tinham conscincia clara do fato, manifestaram na sua obra esse tipo de insero ideolgica, que d contorno especial fisionomia do perodo. (MELLO E SOUZA, A.C. 1980/1984, p. 27-28)

    Algumas reformas educacionais j haviam sido feitas na dcada de 1920, sob

    a influncia de Fernando de Azevedo, sobretudo na cidade de So Paulo, mas foi nos anos

    de 1930, que, segundo Antonio Cndido, a ampliao da reforma educacional foi possvel.

    Houve nesse decnio, muitos modernos que tentaram promover uma reforma na educao, at

    ento doutrinadora e religiosa, sobretudo em So Paulo - e mesmo na vigncia de um Estado

    republicano, laico.

    O Governo Provisrio instalado nesse ano criou imediatamente o Ministrio de Educao e Sade, confiado ao reformador da instruo pblica em Minas, Francisco Campos. Este promoveu ato contnuo, mas, agora na escala nacional, a reforma que traz o seu nome e procurava estabelecer em todo o Pas algumas das ideias e experincias da Pedagogia e da Filosofia Educacional dos escola-novistas. Assim, a integrao e a generalizao, j mencionadas, eram promovidas como resposta a todo o movimento renovador dos anos 20. Os ideais dos educadores, desabrochados depois de 1930, pressupunham de um lado a difuso da instruo elementar que, conjugada ao voto secreto (um dos principais tpicos no programa da Aliana Liberal), deveria formar cidados capazes de escolher bem os seus dirigentes; de outro lado, pressupunham a redefinio e o aumento das carreiras de nvel superior, visando a renovar a formao das elites dirigentes e seus quadros tcnicos; mas agora, com maiores oportunidades de diversificao e classificao social. Tratava-se de ampliar e melhorar o recrutamento da massa votante, e de enriquecer a composio da elite votada. Portanto, no era uma revoluo educacional, mas uma reforma ampla, pois no que concerne ao grosso da populao a situao pouco se alterou. Ns sabemos que (ao contrrio do que pensavam aqueles liberais) as reformas na educao no geram mudanas essenciais na sociedade, porque no modificam a sua estrutura e o saber continua mais ou menos como privilgio. (MELLO E SOUZA, 1980/1984, p.29)

  • 29

    Em 25 de Janeiro de 1934, fundada, por Armando Salles de Oliveira, ento

    governador de So Paulo, a Universidade de So Paulo e a Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras, situada Rua Maria Antonia, como parte integrante, estruturadora da USP, a qual, a

    partir de ento, passa a funcionar de forma orgnica aos demais cursos existentes como Direito,

    Engenharia, Agronomia (em Piracicaba) e Medicina. Essa aglutinao alterou a dinmica das

    elites e esboou um esquema que diminua hierarquias onde partes deveriam funcionar como

    um todo, democratizando minimamente os setores privilegiados, provocando uma ascenso dos

    menos favorecidos (MELLO E SOUZA, 1980/1984, p.30).

    Essas medidas de ampliao da educao, ainda que no modificassem a estrutura

    social da cidade, mostram uma preocupao com as pessoas entre essa ordenao, no s

    com com ruas, prdios e automveis, desse curto perodo. O cidado moderno circula pela

    cidade, ainda que no soubesse que era moderno. Portanto, dependendo de sua classe social,

    precisava ser lapidado ou civilizado pelo Estado. preciso civilizar o povo contra o vandalismo

    e extermnio4.

    So Paulo, aps a revoluo de 1932, havia perdido seu poder, abalando as pretenses

    polticas nacionais. As reformas, iniciadas em 1933, tinham como objetivo a retomada do estado

    como fora poltica nacional. Fernando de Azevedo e Julio Mesquita foram os mais importantes

    aglutinadores desse projeto, sobretudo no que diz respeito universidade. A presena dos

    escola-novistas no Ministrio da Cultura e Sade, a partir da Constituio de 1934 propicia

    polticas educacionais e culturais que favorecem esse projeto que se estendeu tambm aos

    municpios.

    Armando Salles de Oliveira, ento governador e cunhado de Julio Mesquita Filho,

    indica Fbio Prado prefeitura de So Paulo. Representante tanto da oligarquia cafeeira e

    do recm polo industrial paulista, o prefeito defendia a civilizao paulista, que originaria a

    civilizao brasileira, mesmo projeto do governador, que alava a presidncia. Sua administrao

    tentava atender minimamente a classe operria, no sentido de conter as tenses sociais que

    4 Em carta a Paulo Duarte, Mrio de Andrade manifesta apoio campanha de seu remente contra o Vandalismo e Extermnio. J chefe do departamento nessa poca, Mrio fala sobre a necessidade de criar museus municipais e a defesa do nosso patrimnio histrico e artstico para conter o Vandalismo. (Duarte, 1977)

  • 30

    se intensificavam naquele momento no Brasil, no tratando apenas como um caso de polcia,

    embora impusesse limites e apoiasse o uso da fora em casos de maior organizao como

    na Intentona Comunista (em 1935). Assim, na tica do prefeito, era preciso manter a cidade

    em ordem: o trabalhador trabalhando com seus direitos mnimos garantidos e impor limites

    s manifestaes polticas atendendo as demandas (ABDANUR, 1992, p.38). Essa viso da

    nova poltica paulista e paulistana, criticava a forma do passado de fazer poltica, um embate

    prximo ao da arte, que se caracterizava entre modernistas e passadistas.5

    A reforma na paisagem urbana tambm era uma preocupao da gesto de Fbio Prado,

    que propunha substituir os cortios por vilas operrias, construir jardins, parques (o Parque

    Ibirapuera estava em construo nessa poca), entre outras modificaes para organizar a cidade.

    sua gesto, deve-se a criao do Departamento de Cultura, que por conta da Constituio

    de 1934, Art. 156, obrigava os municpios aplicarem no mnimo 10% de sua arrecadao na

    manuteno dos rgos educativos e tambm, em seu Art. 148, passa aos municpios o dever

    de animar e favorecer o desenvolvimento das cincias, das artes, das letras e da cultura. A

    reforma educacional tambm consistia numa reforma de paisagem urbana em que, alm da

    proximidade temporal de fundao, havia proximidade espacial das Faculdades de Filosofia,

    Letras e Cincia, Rua Maria Antnia, e a Escola de Sociologia e Poltica, na Rua General

    Jardim, fundada um ano antes.

    A criao do DC satisfazia o projeto civilizatrio de Fbio Prado, que acolheu a sugesto

    de Paulo Duarte, a quem chamou para chefe de seu gabinete. Paulo Duarte (1977) conta que

    nas reunies em seu apartamento, formadas desde de 1932, discutiam o que viria ser o futuro

    Departamento de Cultura. Nessas reunies, com a presena de Mrio de Andrade, a necessidade

    de uma educao voltada para arte e cultura era discutida com afinco pelos participantes e

    a necessidade de civilizar as massas. Dessas discusses entorno de uma mesa fria como um

    necrotrio, nasce o projeto de um Instituto de estudos que, segundo Duarte, impulsionado por

    um timo vinho, durante um jantar, aceito pelo prefeito :

    5 O movimento modernista foi marcado pela ruptura com a lrica e a Arte realista, uma nova esttica era defendida pelos modernos. Esse embate, ficou conhecido como modernistas X passadistas. Quando Prestes Maias assume a prefeitura, sobre o novo chefe do departamento, Paulo Duarte diz que este poderia compor tanto com Monteiro Lobato (passadista) quanto com Mario de Andrade ou Manuel Bandeira (modernistas) (op cit,..)

  • 31

    Uma tarde, Fbio Prado me perguntou se queira ir trabalhar com le na Prefeitura. Foi em setembro de 1934. Acabava de ser convidado por Armando Sales de Oliveira. Tomaria posse no dia 7 dsse ms, se no me engano. De fato entramos juntos no casaro da Ru Lbero. Um belo dia, menos de uma semana depois, no sei por que motivo jantvamos juntos, o prefeito e eu, em casa do prprio Fbio Orado... S ns dois. Creio que foi o maravilhoso vinho Montracet, que me cutucou, no subconsciente, a velha ideia nascida no apartamento da Avenida So Joo. Contei tudo ao nvo prefeito descoberto por Armando Sales de Oliveira. Fbio Prado no respondeu nada, passando a outro assunto. sses homens ricos... A prefeiutra andava cheia de assuntos. Dimitri encheu novamente os copos daquele ouro lquido e fresco. Fbio fisgou-me com uma pergunta: - Por que no tentar sse Instituto? (DUARTE, 1977. p. 51)

    Segundo Abdanur6 (1992), no foi apenas o vinho que levou o prefeito a aceitar, mas

    a proposta de vulgarizao da cultura, que vinha ao encontro de seu projeto civilizatrio para

    a cidade e faria de So Paulo um modelo para o Brasil, ao manter, junto com a Universidade

    de So Paulo e a criao da Escola de Sociologia e Poltica, um projeto de educao, tambm

    na cidade de So Paulo. Contudo, a aceitao foi receosa, a implantao da poltica pblica

    idealizada foi implantada aos poucos, pois, de uma certa maneira ia alm dos objetivos polticos

    da prefeitura e do governo do estado, contemplando preocupaes de artistas e intelectuais em

    torno da cultura na sociedade daquele momento.

    Do apartamento na Avenida So Joo ao convite de Fbio Prado, foram 4 anos

    (DUARTE, 1977). O cenrio poltico e constitucional de 1934 era favorvel e a necessidade

    do Estado de ordenar os espaos, com o objetivo de conter as tenses sociais do perodo deu

    espao aos modernistas no governo. Entre o dinheiro e a mquina estava o ser humano, o

    brasileiro, a identidade nacional. Mas, principalmente, o paulista.

    Ainda segundo Paulo Duarte, ele se reuniu com Mrio de Andrade e juntos escreveram

    o primeiro esboo do que viria ser o Departamento de Cultura da Municipalidade Paulista.

    Ajudados por outros intelectuais e aps a divulgao na imprensa, reformaram o projeto final

    estruturando o que veio a ser o Ato 861, que instituiu o Departamento de Cultura e Recreao

    da Municipalidade, planejado a partir de algumas estruturas j existentes, como o Theatro

    Municipal, palco da Semana de Arte Moderna de 1922, o Parque Infantil Pedro II, criado pelo

    6 ABDANUR, Elizabeth F. Os ilustrados e a poltica cultural em So Paulo: departamento de cultura na gesto de Mrio de Andrade. (1935-1938). Dissertao de mestrado IFCH. UNICAMP. 1992.

  • 32

    prefeito Anhaia Mello7 e a Biblioteca Municipal, que estava em construo. Para chefia, Paulo

    Duarte convidou Mrio de Andrade:

    Foi na casa de Mrio, naquele mesmo quarto, de mveis modernos, do oratrio antigo (...) que, autorizado por Fbio Prado, o convidei ou melhor o intimei a ser diretor do Departamento. [...] E, numa manh, o Dirio Oficial punha na rua o grande sonho da Avenida So Joo. (DUARTE, 1977, p.52)

    O projeto final teve a seguinte estruturao : Diviso de Expanso Cultural, chefiadas

    por Mrio de Andrade; cujas sees deveriam cuidar do Cinema Educativo, Rdio Escola,

    responsvel tambm pela Discoteca Pblica, e dos Concertos Musicais. A Diviso de Bibliotecas,

    a cargo de Rubens Borba de Moraes8, que competia no s a criao de Bibliotecas Municipais

    e Bibliotecas Infantis, mas tambm o curso de Biblioteconomia do Departamento de Cultura,

    que funcionou na Escola Livre de Sociologia e Poltica; Diviso de Educao e Recreio,

    incorporada ao DC, sob o comando de Nicanor Miranda9, atribuda as atividades educacionais e

    fsicas e ao lazer das crianas filhas de operrios; Diviso de Documentao Histrica e Social,

    dirigida por Srgio Milliet10, que retomou a revista do Departamento Histrico .

    Apesar dos receios iniciais do prefeito, que preferiu implantar os projetos idealizados

    aos poucos, o Departamento de Cultura passa a ser a grande vitrine da gesto de Fbio Prado, que

    at hoje lembrado pela preocupao com a cultura em sua gesto, sobretudo em comparao

    gesto de Prestes Maia.11

    ...o novo Departamento tornou-se o projeto de maior repercusso da Prefeitura de Fbio Prado. Segundo o prefeito, o Departamento de Cultura, ao lado da Escola de Sociologia e Poltica e da Universidade de So Paulo, significou a possibilidade dos paulistas de realizarem as novas inscurses pelo Brasil de hoje com as bandeiras da nova mentalidade buscando

    7 Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o Prefeito Fbio Prado menciona o Ato 767, de 9 de Janeiro de 1034, criando os parques infantis, incorporando o Parque Pedro II, criado por Anhaia Melo. 8 Rubens Borba de Moraes era do grupo de modernistas, embora no tenha participado do evento, foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna e teve seu conto Sarah, publicado na revista Klaxon n 2, a revista do movimento modernista entre os anos de 1922-1929. (ANDRADE, G. In: Revistas do Modernismo: Klaxon, 2014, p. 11)9 Paulo Duarte afirma que a indicao de Nicanor Miranda foi sua, revelia de Fbio Prado e Mrio de Andrade que queriam Nini Duarte, irm de Paulo, como chefe da Diviso de Recreio.10 Srgio Milliet tambm fez parte do movimento modernista de 1922, com vrias contribuies revista KLAXON.11 Segundo Paulo Duarte, Prestes Maia no deu a devida ateno ao Departamento de Cultura: O caso de Prestes Maia pois um caso de incompreenso e estreiteza de viso. S. exa achou que as grandes avenidas vailam tudo, o Departamento de Cultura no significava nada. (DUARTE, 1977, p. 112)

  • 33

    cada vez maior aproximao de esprito, isto , buscando o fim das desavenas regionais, das contradies polticas e sociais que abalavam o pas, precisamente quando o Brasil deixou de ser iluminado pela luz de Piratininga. (ABDANUR, 1992, p.51-52)

    As aes do DC, no contexto brasileiro, em especial naquela poca, inovaram, no

    sentido de que iam alm de um simples projeto de caridade espirtual e ampliou o acesso, a

    pesquisa e difuso cultural, segundo Antonio Candido.

    Nas sociedades de extrema desigualdade, o esforo dos governos esclarecidos e dos homens de boa vontade tenta remediar na medida do possvel a falta de oportunidades culturais. Nesse rumo, a obra mais promissora que conheo no Brasil foi de Mrio de Andrade no breve perodo em que chefiou o Departamento de Cultura da Cidade de So Paulo, de 1935 a 1938. Pela primeira vez entre ns viu-se uma organizao da cultura com vista ao pblico mais amplo possvel. Alm da remodelao em larga escala da Biblioteca Municipal foram criados: parques infantis nas zonas populares, bibliotecas ambulantes, em furges que estacionavam nos diversos bairros; a discoteca pblica; os concertos de ampla difuso, baseados nas novidades de conjuntos organizados, aqui, como quarteto de cordas, trio instrumental, orquestra sinfnica, corais. (MELLO E SOUZA, 2011, p. 187)

    Por outro lado, como se trata de uma poltica pblica, cujo Estado o agente principal

    das aes, aliado ao discurso de Fbio Prado de projeto civilizatrio de conteno de tenses,

    as aes do DC foram alvo de leituras no sentido de assistencialismo, paternalismo e vigilncia

    das classes trabalhadoras, privilegiando a classe dominante alfabetizada (RAFFAINI, 2001), na

    democratizao do acesso.

    Vale ressaltar que ao analisar somente a partir do mbito do Estado Moderno-Industrial,

    nenhuma ao reformista fugiria da interveno, conteno de tenses e negociaes de classes.

    Sem os eufemismos que nos acostumamos ao longo dos anos, Fbio Prado descreve uma poltica

    de tentativa de conciliao de classes, em que a ao do Estado opta pela educao e no

    pela violncia policial, que era a regra dos governos da recm repblica brasileira e o modelo

    adotado no Brasil, aps a Intentona Comunista, de grande represso, que ser intensificada em

    1937, no Estado Novo. A literatura brasileira, da poca, traz em suas pginas, a relao polcia-

    povo como a nica ao do Estado/governos que muitos conheciam. Vidas Secas12 (1938), a

    12 Na obra de Graciliano Ramos, Fabiano explicita o que deveria ser governo e que o solado amarelo no poderia ser: E, por mais que forcejasse, no se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, no podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, alm da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteiracom os matutos e provocava-os depois. O governo no deviaconsentir to grande safadeza.

  • 34

    relao soldado amarelo/Fabiano ou o conto de Mrio de Andrade, Primeiro de Maio (1942),

    em que a polcia probe motins nas comemoraes do dia do trabalhador, so bons exemplos da

    interveno estatal apenas por meio da represso e uso da fora. Ainda que as aes reformistas

    do prefeito Fbio Prado paream inovadoras, principalmente no contexto das primeiras dcadas

    de Brasil Republicano, a revoluo de 1930 caracterizou-se por um governo provisrio, eleito

    indiretamente. No se tratava, portanto, de um contexto de democracia, de qualquer gnero.

    H mais foras e discursos que provocavam tenses do que a interveno do Estado na

    organizao e viglia ou apenas uma poltica emancipadora de educao por meio da cultura. H

    uma disputa de discursos mesmo entre os polos que se caracterizaram na poltica (conservadores

    versus ilustrados), na economia (industriais versus ruralistas) ou na arte (modernistas versus

    passadistas). Tambm no se pode retirar dos discursos a lutas dos trabalhadores organizados,

    que culminaram, por exemplo, na Intentona Comunista, de 1935, e que, embora tenham gerado

    uma forte represso do Estado, acabou por obrig-lo a atender algumas dessas reivindicaes.

    No campo da arte, outro ponto a salientar, a demarcao temporal desses

    intelectuais, pois embora, aos olhos de hoje, palavras como civilizar, ordenao, vandalismo

    paream elitistas e conservadoras, do ponto de vista diacrnico, para a cultura, essa poltica

    no encontrou precedentes no Brasil, caracterizando no apenas um ineditismo, como at

    um carter experimental, no universo autoritrio da poltica nacional e, tambm, paulista e

    paulistana. Os modernistas, do recm criado DC, tinham a preocupao em ampliar o acesso

    educao, sobretudo na cidade de So Paulo e, no se pode negar, que a poltica cultural

    desenhou um caminho nesse sentido, na tentativa de expandir as oportunidades edcucacionais.

    Esses intelectuais buscavam um dilogo mtuo entre as elites e as massas, tanto na produo

    artstica quanto na democratizao do acesso a elas, nas palavras de Oswald de Andrade, a

    massa ainda h de comer do biscoito fino que eu fabrico.13

    13 Oswald escreveu essa frase em Carta a Afrnio Zuccolotto publicada pela revista Ritmo, 1935, nmero nico.

  • 35

    1.3 - Pi no sofre. Sofre?: Entre o trabalho e a fome, a rua e os parques

    Mas ningum percebeu a delicadeza da minha vaidade infantil. Deixassem que eu sentisse por mim, me incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cachos, nada: uma deciso antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite s revoltas ntimas. (ANDRADE, 1976, p.153)

    Em meio s transformaes da cidade, das organizaes e projetos, a criana aparece no

    discurso de Fbio Prado como pblico de polticas pblicas. H, no entanto, duas interpretaes

    sobre essas polticas pblicas. FARIA(1993) e GOBBI (2004), que atribuem a criao dos

    Parques Infantis a Mrio de Andrade enquanto FILIZOLLA (2002) e GUEDES (2006), entre

    outras, atribuem os PIs a uma srie de outras instituies, iniciadas desde o comeo da dcada

    de 1930. Entre as diferenas de atribuies na criao, h, tambm, a diferena de leitura

    sobre os PIs, em que Filizolla segue a linha de RAFFAINI(2001) e SANDRONI (1988), de

    crtica ao indicar a vigilncia e disciplinarizao dos filhos de operrios, enquanto Faria aborda

    uma perspectiva de direito infncia, mais prximas a compreenso de ABDANUR (1992).

    Perspectivas que, embora analisando os mesmos documentos, mostram-se antagnicas.

    Apesar das diferenas de abordagens dos estudos sobre os PIs, o discurso das ruas

    perigosas vai aparecer, seja para contest-lo, seja para admiti-lo. Esse discurso passa a ser

    intensificado no incio do sculo XX, concomitante urbanizao de So Paulo. Segundo

    Santos14 (2004), desde que a cidade passou a ter boletins de criminalidade, os menores

    apareciam como autores criminais, e havia peridicos destinados s meninas para alert-las

    sobre os perigos da cidade. O destino desses menores eram os centros de exerccios fsicos para

    conter a criminalidade e o trabalho agrcola que era considerado mais eficaz, pois realizado ao

    ar livre, aumentava a fora fsica. A cidade, como j foi falado, vai se transformando e o contato

    com o outro dirio, diferente das reas rurais, em que todos se conheciam, as metrpoles vo

    se configurando como o lugar das multides e dos perigos.

    14 SANTOS, M. A. C. dos de. Criana e Criminalidade no Incio do Sculo In: Histria das Crianas no Brasil, 2004, p. 210.

  • 36

    Quando a industrializao se intensifica, ao discurso de que as ruas eram lugares de

    vcios e criminalidade, j cristalizados, so adicionados os perigos dos bondes eltricos e, mais

    tarde, com a chegada da General Mortors e da Ford, os carros passam a disputar as ruas. A

    morte das ruas uma das consequncias dos processos de urbanizao e, de uma certa forma, a

    cristalizao do discurso de que era um lugar de vcios e crimes, justificava a opo por carros,

    que se consolidar, principalmente, a partir do Estado Novo e da gesto de Prestes Maia.

    A sucesso de regimes autoritrios no pas, e, na cidade, foi esvaziando os espaos

    pblicos ao longo dos anos, redefinindo seus significados, dada a estreita relao entre

    democracia e o sentido do qual o espao pblico apropriado, como explicita Srgio Abraho:

    As desigualdades scio-econmicas implcitas na segregao urbana e, que definem a seleo das prioridades responsveis pela organizao de seu territrio, produziu, em consequncia, um sistema estrutural de vias tambm desigual em cada um dos vrios quadrantes da cidade, focado na reduo do tempo de deslocamento do automvel particular. A prioridade na cidade de So Paulo circulao sobre pneus, foi claramente sinalizada e posta em prtica a partir do Plano de Avenidas de Prestes Maia, publicado em 1930 e executado uma dcada depois, em seu primeiro mandato como prefeito (1938-1945). (ABRAHO, 2011, p.78).

    No se pode dizer que os PIs foram apenas uma medida para tirar as crianas da rua,

    lugar de vcios e crimes, ou s uma consequncia da urbanizao, que a partir da gesto de Prestes

    Maia, a sinalizao da opo por automveis colocada em prtica; e, desde ento, a cidade de

    So Paulo priorizou totalmente o transporte privado, consolidando a indstria automobilstica.

    Ambos discursos estavam postos, agindo na cidade, somados a uma outra realidade: o trabalho

    infantil nas fbricas, aliado filantropia para corrigir o problema da criminalidade infantil,

    quase sempre relacionada ao crime de vadiagem.

    A legislao das primeiras dcadas, embora existisse, no era respeitada e a idade

    mnima de trabalho era oscilante, entre doze anos como idade mnima, ou por meio de atestado,

    entre dez e doze anos15. Em O Capital, Marx j abordara que um dos efeitos dos modos de

    produo do capitalismo industrial era a explorao do trabalho infantil, pois custava menos

    ao empregador. Moura (2004) aponta um cenrio, nas primeiras dcadas do sculo XX, de

    15 MOURA, E.B. B. de. Crianas operrias na recm industrializada So Paulo in: Histria das Crianas do Brasil, 2004, p. 272.

  • 37

    crianas nos trabalhos urbanos de forma intensa, seja nas fbricas, ou na economia informal e,

    tambm, de mendicncia e criminalidade, corroborando o discurso de que as ruas eram lugar

    de vcios e escolas de crimes, disseminados pelos jornais da poca. Nos primeiros anos do

    sculo XX, ainda segundo Moura, alguns empresrios e a imprensa, mais precisamente o jornal

    O Estado de S. Paulo, de Julio Mesquita Filho, passaram a difundir a ideia de que o trabalho

    infantil seria o redentor da criana e do adolescente que estavam abandonadas, desamparadas

    e entregues aos vcios e s ruas. A questo dos menores considerados delinquentes mobilizou

    a sociedade e intensificou ainda mais o discurso das ruas como reflexo de abandono e perigo

    e, nessa poca, compreendeu tambm o enunciado de que o Estado no dispunha de lugares

    adequados aos menores.

    Em 1917, o Centro Libertrio de So Paulo, de tendncia anarquista, criou o

    Movimento Popular de Agitao contra a Explorao de Menores nas Fbricas, reivindicando

    leis que proibissem o trabalho a menores de 14 anos, assim como o turno noturno a menores

    de 18 anos. A mobilizao do centro era de instruir os trabalhadores para que reivindicassem

    melhores salrios, para que as crianas no precisassem trabalhar. Decises adiadas e que foram

    levantadas em todas as greves da segunda dcada do sculo XX.

    O trabalho infantil, que ganhou uma urea de filantropia durante as primeiras dcadas

    do sculo XX, tornou-se uma das causas dos movimentos grevistas e a luta operria exigiu do

    Estado leis para sua erradicao. Esse fenmeno acompanhou uma tendncia mundial

    Em 1926, o decreto n. 5.083, de 1. de dezembro, proibiu as indstrias de empregarem

    menores de 14 anos. Segundo Luiz Werneck Vianna 16, uma grande indstria txtil, a mesma

    que segundo Moura iniciou a campanha de trabalho infantil como filantropia, havia sido

    multada por empregar ilegalmente menores de 14 anos, durante a vigncia do decreto. Uma das

    testemunhas de defesa do industrial foi Fbio Prado, que se utilizou do discurso de que o Estado

    no conseguia suprir as necessidades dos menores e, por isso, o trabalho infantil era justificvel.

    Segundo ele, a deficincia estatal e a aplicao da lei fariam com que uma nova legio de

    16 VIANNA, L. W. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p 81.

  • 38

    candidatos a vagabundagem, ao vcio e a delito17 aparecessem. O estigma da criana pobre

    criminosa, ou pobre abandonada, era a tnica do processo de industrializao, urbanizao e

    formao das metrpoles.

    Voltando ao incio do sculo, as solues para a criminalidade infantil passavam por:

    educao, represso e trabalho. Diante da incapacidade do Estado em suprir as necessidades

    educacionais, durante a ausncia de fiscalizao e leis efetivas contra o trabalho infantil, o

    trabalho foi o principal meio difundido para diminuir o problema do abandono das crianas

    estigmatizadas pela classe social e, ainda que o discurso da poca no admitisse, tambm pela

    cor da pele, pois, as pesquisas das dcadas de 1930 iro apontar uma grande concentrao de

    pessoas negras em trabalhos informais nos centros urbanos e uma grande maioria de operrios

    de origem imigrante.

    Com o trabalho infantil proibido, a educao volta ao centro dos discursos para conter

    a provvel nova leva de candidatos vagabundagem. As crianas voltam a estar entre o

    crcere e a escola, quela altura, insuficientes para abrigar as que j haviam atingido a idade

    escolar.

    Assim, no mandato de Fbio Prado que os PIs, destinados aos filhos de operrios, so

    criados, ainda que para suprir a deficincia do Estado em fornecer escolas que alfabetizassem,

    o projeto no era escolar.

    Os discursos de que as ruas eram ambientes de criminalidade e de perigo estavam

    intimamente ligadas s questes da explorao do trabalho infantil e misria da classe operria,

    que mesmo denunciando as pssimas condies de trabalho nas fbricas, a demanda das crianas

    era grande. Mesmo com o decreto de 1926 e, mais tarde, o Estatuto de Menores, assinado por

    Washignton Luiz, em 12 de outubro de 1927, o trabalho infantil no fora totalmente erradicado,

    e ainda na dcada de 1930 se valorizava a criana que trabalha, como ser possvel verificar em

    algumas reportagens do jornal A voz da infncia .

    17 idem, p.82.

  • 39

    No se pode negar que a rua como ambiente de perigo e vcios um discurso cristalizado

    na nossa sociedade, mesmo na contemporaneidade, que, independente da orientao poltica

    ou poltico-partidria, aparece com frequncia. Falar em ocupao das ruas, ou de espaos

    pblicos no escolares, por crianas, algo que praticamente no aparece no mbito poltico

    ou cotidiano das pessoas. Em nossa sociedade, a associao entre a criana e o adolescente

    pobre criminalidade mantida, fortalecendo-se mediante a diversidade de situaes de risco

    que envolvem essas crianas e jovens, vista contudo, discriminatoriamente, como potencial

    violncia praticada contra a populao.

    Alm da leitura de tirar a criana das ruas, outra anlise presente sobre os PIs a

    de interveno no lazer das crianas filhas de operrios e, consequentemente, a integrao dos

    imigrantes na cultura nacional. Embora houvesse uma preocupao do DC nessa integrao, o

    estudo de Samuel Lowrie, publicado na RAM em 1937, aponta para uma maior concentrao

    de brasileiros nos PIs, cuja ascendncia imigrante concentrava-se, em maior nmero, nas avs.

    Assim, a proibio do trabalho infantil e a cristalizao do discurso da falha do Estado em

    abrigar essas crianas so mais presentes tanto nas justificativas de Fbio Prado, quanto naso

    do jornal O Estado de S. Paulo, para a realizao dessa poltica pblica e apresentam mais

    correspondncia com as preocupaes da poca.

    A criao e inspirao dos PIs outra fonte de antagonismos, como mencionado

    anteriormente, em que atribuem a Mrio sua criao, tanto nas teses aqui mencionadas, quanto

    na propaganda oficial da Prefeitura do Municpio de So Paulo, que consideram os PIs o incio da

    educao infantil na cidade. Foi assim na publicao de material sobre os 50 anos e, tambm, no

    ano de 2015, quando completou 80 anos de criao. Alm de material publicado pela Prefeitura,

    o Ita Cultural lanou um livro, neste mesmo ano, intitulado Os Parques Infantis de Mrio de

    Andrade.

    Em carta Oneyda Alvarenga, Mrio de Andrade (1935/1983) afirma que os nicos

    projetos existentes, quando nomeado Diretor, eram a Biblioteca Municipal e os PIs. Pela anlise

    documental, o Parque Infantil Pedro II foi uma criao de Anhaia Mello, que fez uma parceria

    com a Cruzada Pr-Infncia, fundada por Prola Byington (KULMMAN JR, 2014) deixada de

  • 40

    lado e recuperada na gesto Fbio Prado; a Comisso de Recreio foi criada em 1934, por meio

    do ato n 590 de 26 de maro, assinada pelo prefeito Antonio Carlos de Assumpo. A criao

    dos PIs anterior ao Ato de fundao do DC, que por meio do ato 767, de 9 de Janeiro de 1935,

    revoga o ato 590 e cria o Servio Municipal de Jogos e Recreao para crianas, subordinado

    ao prefeito Fbio Prado, enquanto o Departamento de Cultura no organizado. Segundo

    Guedes (2006), para a criao dos PIs, alm de Paulo Duarte e Nicanor Miranda, tambm foi

    chamado Fernando de Azevedo, responsvel pela reforma educacional do governo provisrio e

    percursor da Escola Nova.

    Sobre a legislao dos PIs, vale ressaltar o segundo pargrafo, na ortografia da poca:

    considerando que as actividades ludiccas exercem uma funco importante no processo educativo e social, podendo considerar-se os grupos de jogos como um dosconstructores essenciaes da vida social, e a fonte dos primeiros ideaes e impulsos sociaes, como a solidariedade,a communicabilidade a cooperao; (ATO 767/ 1935)

    Esse texto, datado de 1935, no parece to distante dos textos sobre educao infantil

    da atualidade, cuja preocupao com o ldico e a cooperao fazem parte do discurso oficial.

    Pelo ato 767, se a inteno era vigiar, ao menos no discurso e no texto oficial, no era punir,

    como possvel perceber na entrevista de Fbio Prado, para o jornal O Estado de S. Paulo:

    A recreao que levamos a efeito objetiva tambm educao social da criana e consiste em festivais nos parques com realizao de jogos infantis, teatro ao ar livre, alm de excurses como ao Museu do Ipiranga, ao Campo de Aviao, usinas de leite, fbricas, Parque de Indstria Animal etc. (O Estado de S. Paulo, 4 de maro, 1936, p. 5)

    No entanto, entre as atividades recrativas dos PIs, estavam a educao fsica, prtica

    utilizada, desde os primrdios da industrializao de So Paulo, para conter a vadiagem e a

    criminalidade, usando-se a justificativa de que ao ar livre aumentava a fora fsica, mas que

    tambm era uma das bandeiras da Escola Nova e, principalmente, da reforma de Fernando de

    Azevedo, que defendida o ensino da Educao Fsica e dos Esportes, nas escolas. Assim, no

    se pode afirmar que os PIs tinham a total influncia das ideias de Mrio, nem que foram criados

    apenas para conter a criminalidade e vadiagem, associando as crianas pobres somente a essas

  • 41

    questes. O projeto era o resultado de todos esses discursos, das ideias de Mrio, de Fernando

    de Azevedo e das intenes da poltica do Estado de manter a ordem.

    Voltando ao discurso de abandono e fome, as pesquisas feitas nos parques apontaram

    que 70% das crianas filhas de operrios eram desnutridas. As pssimas condies salariais dos

    operrios, que levaram as crianas a trabalhar continuavam sendo um problema mesmo quando

    o trabalho infantil foi proibido. Fabio Prado, por exemplo, afirmava:

    Alm do que venho enumerando, ainda preciso saber que hoje fornecido alimentao s crianas que frequentam esses jardins de alegria e de sade. Apressou a efetivao disso, um pormenor interessante, que pouca gente sabe em So Paulo. Parece um absurdo, mas a verdade est a demonstrada com as observaes realizadas nos parques com um ano e pouco de funcionamento: quase setenta por cento das crianas pobres de So Paulo so subalimentas! (...) Mais ou menos setenta por cento das crianas pobres paulistas passam fome! Ante a verificao, no hesitou a Prefeitura, nem esperou mais, o ano passado, ali por volta de agosto ou setembro, para abrir crdito extraordinrio e inaugurar o copo de leite s crianas dos parques. (Fbio Prado, entrevista em 4 de maro de 1936, para O Estado de S. Paulo, p. 5)

    Quanto mais se amplia a anlise sobre as atividades dos PIs, mais prxima vigilncia

    e interveno do Estado (SANDORNI 1989; RAFFAINI, 2001), quanto mais especficas nos

    aspectos das artes e as danas (FARIA 1993; GOBBI, 2004), mais emancipadoras estas se

    apresentam, at em anlises que admitem a interveno do Estado como forma de dominao,

    como no caso de Guedes:

    Como podemos notar, ainda que perpassadas pela questo moral, a iniciao artstica promovida pelos Parques invejvel, abordando aspectos da formao do sujeito ainda hoje tidos como desnecessrios ou superficiais pelas instituies educativas, que fazem com que a maioria de ns seja analfabeta musicalmente e tenha verdadeiro horror leitura. (GUEDES, 2006, p. 137)

    Nesse sentido, o Regulamento do Departamento de Cultura traz algumas elucidaes.

    As atividades dos PIs, das quais as artes faziam parte, estavam entre as competncias de

    bibliotecas infantis e acabavam se subordinando chefia da Diviso de Expanso Cultural,

    que estava sob a direo tambm de Mrio. As bibliotecas dos PIs e a BIM compartilhavam as

    mesmas diretrizes, com poucas diferenas: Em cada parque existe uma biblioteca com cerca

  • 42

    de 300 volumes onde os bibliotecrios so sempre crianas eleitas pelos companheiros (...).

    (MIRANDA apud ABDANUR, 1994, p.269).

    Assim como nas bibliotecas parquenas, embora houvesse um responsvel, na BIM, as

    crianas eram responsveis pela catalogao dos livros, segundo o prefeito Fbio Prado:

    Tudo organizado consoante os modernos mtodos, aplicados alis em toda organizao da Biblioteca, pois o trabalho de fichamento, catalogao, embora orientado por uma bibliotecria especializada - D. Lenira Fracaroli (sic), organizadora do mesmo servio no Instituto de Educao - todo ele organizado pelas prprias crianas frequentadoras. (O Estado de S. Paulo, 1936, p. 5)

    As artes, no discurso do prefeito, faziam parte do eixo de educao, como atividades

    intelectuais, tendo no desenho e na modelagem com argila, a maior recepo entre as crianas

    parqueanas:

    As educao intelectual visada por meios exclusivamente recreativos. Uma atividade cujo alvo a educao intelectual e que vem sendo recebida com grande agrado pelas crianas o desenho infantil, que, acrescida a outros jogos educativos, como modelagem de argila, realiza um trabalho educacional de real valor. (O Estado de S. Paulo, 1936, p. 5)

    Tanto as falas do diretor da Diviso de Educao e Recreio, quanto no discurso do

    prefeito sobre os PIs, voltam-se para atividades que esto previstas no regulamento do DC,

    contudo, no propriamente no regulamento dos PIs, mas no Regulamento da BIM, que em

    seu Art. 164 (p.49), determina que as bibliotecas deveriam promover audies, excurses ao

    campo e atividades artsticas (MA-CUL-0031, p.69). Mais adiante, nesse mesmo documento

    (Art 165, p. 49-50), h a discriminao dessas atividades, especificando as excurses ao campo,

    incluindo visitas a fbricas, museus e parques da cidade, bem como a discriminao das

    atividades de dana, festas, teatro e a elaborao de um jornal escrito e ilustrado pelas crianas.

    Outra determinao destinada s bibliotecas e utilizada nos PIs a realizao de inquritos e

    pesquisas sobre fenmenos psicolgicos, sociais e etnogrficos, reforando a integrao do

    projeto para as crianas com outros projetos do Departamento como o curso de Etnografia, os

    concertos no Teatro Municipal e a Discoteca, que faziam parte das Divises de Documentao

    Histrica e Social e a de Expanso Cultural.

  • 43

    A partir do regulamento dos PIs e da BIM, redigidos por Mrio de Andrade, h indcios

    de que a separao daquilo que compreendido como questes do esprito para crianas, em

    1936, competia s bibliotecas infantis, instaladas em qualquer equipamento, cujas atividades

    culturais estavam submetidas ao Chefe da Diviso de Expanso e Recreio, o prprio Mrio.

    Essa concepo, aparece em Paulo Duarte:

    Ao lado dessa assistncia assdua s crianas, vivia vigilante a espiritualidade, principalmente pelos instrutores que mantinham em cada parque uma biblioteca infantil, colees de slos, at pequenos jornais se publicavam. E realizavam-se competies de jogos entre diversos parques, exposies de desenhos infantis completando, enfim, aquele mundo de sonhos acordados para os pobres pirralhos de So Paulo ignorantes at ento da delcia de possuir um brinquedo que s viam nas vitrines do centro em poca de fim de ano, temporada de alegria dos meninos ricos, de suplcio e recalques para os pequenos infelizes das vrzeas e cortios. (DUARTE,1977 p. 86)

    Essa diviso de atribuies tambm gera confuso no que diz respeito alfabetizao e

    escrita das crianas, em sua maioria em idade escolar. Se por um lado Faria (1993), ao analisar

    os PIs de ento, no se preocupava com a escrita, por tratar de crianas de 0 a 6 anos de idade

    com a orientao voltada para as bases de uma educao infantil, por outro, Guedes (2006) ao

    abordar as formas de dominao que identifica naquele projeto, indica que a nica meno

    escrita que consta no regimento interno dos PIs o jornalzinho. No entanto, pelo regulamento

    da BIM, a preocupao com a alfabetizao e a leitura das crianas estava presente, afinal, a

    preocupao com a leitura da classe operria era uma das diretrizes do DC, expostas na criao

    da biblioteca circulante, aparelho cultural instalado em carros, e na dinmica de auxlio ao

    leitor, no intuito de estimular o gosto pela leitura e democratiz-la. Ainda nas palavras de Fbio

    Prado:

    Uma das coisas tambm que merece o melhor carinho da atual direo da Biblioteca a assistncia ao leitor. A maioria dos leitores das bibliotecas no sabe o que precisa. Procura a biblioteca para descobrir o que ela tem sobre determinado assunto. Os que no sabem procurar no encontram e no voltam mais. Por isso que se vo introduzindo ali mtodos especiais de assistncia ao leitor, de modo que ele se sinta auxilado em seus estudos e qui aconselhado. Essa assistncia bibliogrfica no ser dada s aos que vo pessoalmente s salas de leitur