Letícia Dissertacao Barbados

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E DA EDUCAO - FAED

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PLANEJAMENTO TERRITORIAL E DESENVOLVIMENTO SOCIOAMBIENTAL - MPPT

    ARGONAUTAS DO SUPERAGUI: IDENTIDADE, TERRITRIO E CONFLITO EM UM PARQUE NACIONAL BRASILEIRO

    Letcia Ayumi Duarte

    Dissertao de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado Profissional do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental do Centro de Cincias Humanas e da Educao da Universidade do Estado de Santa Catarina, sob orientao do Prof. Dr. Pedro Martins.

    Florianpolis, fevereiro de 2013.

  • Aos moradores de Barbados, Renato Caiara e todas as comunidades da baa de Pinheiros e Laranjeiras

  • Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. [...] Quando tudo permite imaginar que se tornou possvel a criao de um mundo veraz, o que imposto aos espritos um mundo de fabulaes, que se aproveita do alargamento de todos os contextos [...] para consagrar um discurso nico. Seus fundamentos so a informao e o seu imprio, que encontram alicerce na produo de imagens e do imaginrio, e se pem ao servio do imprio do dinheiro, fundado este na economizao e na monetarizao da vida social e da vida pessoal.

    Milton Santos

  • DUARTE, Letcia Ayumi. Argonautas do Superagui: identidade, territrio e conflito em um parque nacional brasileiro. Dissertao de mestrado - MPPT / FAED / UDESC. Florianpolis, 2013.

    RESUMO

    O objetivo desta dissertao investigar os conflitos territoriais decorrentes do estabelecimento do Parque Nacional do Superagui no territrio tradicionalmente ocupado da comunidade de Barbados, no municpio de Guaraqueaba - PR. Os conflitos decorrentes da sobreposio de interesses de diferentes agentes em um mesmo espao so identificados em grande parte da literatura consultada, e demonstram o carter polissmico da temtica bem como do posicionamento dos pesquisadores que se propem a discuti-la. Os conceitos norteadores utilizados como referencial terico so os de Formao Scioespacial, Identidade, Territorialidade Especfica, Comunidades Tradicionais e Sociedade civil. A abordagem qualitativa utilizada na metodologia envolveu a adoo do mtodo etnogrfico possibilitado pela observao participante, entrevistas semi-estruturadas e mapeamentos participativos. Conclui que a identidade dos moradores de Barbados est sendo formada a partir da relao deles com determinados agentes contrastivos. A partir de uma leitura gramsciana busquei identificar os aparelhos privados da hegemonia que esto atuando na regio e trazendo, com isso, a discusso acerca as comunidades tradicionais, tratando-a de maneira reificada e em prol do gerenciamento ao invs da resoluo dos conflitos locais. O levantamento da formao scioespacial da regio possibilitou a identificao de diversos agentes e acontecimentos que influenciaram a configurao scioespacial atual de Barbados. O conflito vivido pela comunidade e a Unidade de Conservao se configura em duas perspectivas: uma mais imediata e aparente que se refere oposio de interesses no acesso aos recursos e gesto do territrio, e outra mais universal, resultante das exigncias do modo de produo atual em relao regio. De maneira geral, a luta das comunidades tradicionais e a formao das identidades locais so legtimas, mas preciso que os sujeitos envolvidos nesta luta estejam atentos pedagogia da hegemonia imbuda nos discursos de algumas organizaes no-governamentais, bem como em polticas pblicas que instrumentalizam este fragmento da classe proletria como uma ferramenta do capital ao invs de contriburem ao enfrentamento dele.

    Palavras-Chave: Comunidades Tradicionais; Conflitos Territoriais; Parque Nacional do Superagui; Unidades de Conservao.

  • DUARTE, Letcia Ayumi. Argonauts of Superagui: identity, territory and conflict in a brazilian national park. Masters dissertation - MPPT / FAED / UDESC. Florianpolis, 2013.

    ABSTRACT

    This dissertation aims to investigate the territorial conflicts resulting from the establishment of the Superagui National Park inside the traditional territory of the community of Barbados in Guaraqueaba (Paran Brazil). The conflicts occur due to diverging interests over the same space. The conflicts are identified in much of the literature by the different approaches and meanings around the issue as well as the positioning of the researchers who propose to discuss it. The concepts used as guides for this research are Tradicional Communities, Civil Society, Identity, Specific Territoriality and Socio-espacial Formation. The qualitative approach used in the methodology involved the adoption of ethnographic method enabled by participant observation, semi-structured interviews and participatory mapping. The conclusion is that the identity of the residents of Barbados is being formed from the community's relationship with other constrasting groups. From the perspective of Gramsci was able to identify the private apparatus of hegemony that are operating in the region and bringing with it the discussion about traditional communities, treating it as a reified way and in favor of management rather than resolution of local conflicts. The survey of the region's socio-espacial formation enabled the identification of several agents and events that influenced the current socio-spatial configuration of Barbados. The conflict experienced by the community and Conservation Unit is configured in two perspectives: a more immediate and apparent regard to conflict of interests in access to resources and land management, and other more universal, deriving from the requirements of the current mode of production in relation to the region. In general, the struggle of traditional communities and the formation of local identities are legitimate, but it is necessary that the subjects involved in this struggle are attentive to pedagogy steeped in the discourses of hegemony of some non-governmental organizations as well as public policies that instrumentalize this fragment of the proletarian class as a tool of capital rather than contribute to facing him.

    Key-words: Traditional Communities; Territorial Conflicts; Superagui National Park; Natural Protected Areas.

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................01

    CAPTULO I Territrios Tradicionalmente Ocupados e Espaos Protegidos............................................... 19

    CAPTULO II O Processo Histrico e a Dinmica da Comunidade de Barbados...........................................60

    CAPTULO III Entre Ser Caiara e Pescador Artesanal: Controvrsias, Consonncias e Dissensos..............131

    CONSIDERAES FINAIS..................................................................................................174

    BIBLIOGRAFIA CITADA .................................................................................................. 179

    ANEXOS

    ANEXO IMAGENS

  • INTRODUO

    A proposta desta dissertao foi a de analisar como se d a relao da comunidade tradicional de Barbados, no litoral norte do Paran, com o seu territrio e com o Parque Nacional do Superagui em Guaraqueaba PR, com o fim de identificar conflitos territoriais provenientes da sobreposio de interesses desses dois agentes antagnicos que ocupam o mesmo espao. Este estudo teve como embasamento a teoria sociolgica gramsciana, alm de se basear tambm na geografia crtica e em aspectos antropolgicos. Tendo em vista a aproximao do leitor rea de estudo, cabe aqui descrever brevemente o seu contexto. Barbados uma comunidade autoidentificada como tradicional que desenvolve prticas como, por exemplo, a pesca artesanal, roa, cura natural e extrativismo. Essa comunidade, no entanto, teve seu territrio tradicionalmente ocupado delimitado como uma Unidade de Conservao (UC) de proteo integral, o que, de certa forma, impede sua reproduo social tendo em vista as restries legais inerentes a esta categoria de UC. A delimitao da rea como Unidade de Conservao tem gerado conflitos entre a comunidade, o Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade - ICMbio (rgo gestor da UC) e as demais instituies e organizaes no governamentais atuantes na regio. A comunidade demanda seu reconhecimento como comunidade tradicional para a efetivao de seus direitos culturais e territoriais, enquanto o rgo gestor e demais ONGs ambientalistas da regio desejam que os objetivos de conservao das UCs sejam efetivados.

    A motivao para o desenvolvimento desta pesquisa teve origem na minha trajetria acadmica e profissional com temas relacionados ao planejamento e gesto do turismo em reas naturais, turismo de base comunitria e permacultura com grupos rurais e tradicionais. A formao em Turismo pela Universidade Federal do Paran, aliada experincia profissional no Servio Social Autnomo Ecoparan foram decisivas em meu processo de aprendizagem em relao ao tema.

    Foi pelo contato mais intenso com as comunidades tradicionais tratadas como caiaras, localizadas no interior e entorno do Parque Nacional de Superagui, em Guaraqueaba PR, que pude notar seus conflitos com a Unidade de Conservao. At ento no imaginava como um Parque Nacional poderia gerar tantos aspectos negativos quanto os citados pelos moradores e assim senti despertar a necessidade de conformar os diferentes modos de relao da humanidade em seus distintos contextos de organizao social com a natureza e os espaos que ocupam.

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    Tive contato com os dois lados de conflito e isto me proporcionava ainda mais dvidas uma vez que via a demanda legtima das comunidades em se produzir materialmente e reproduzir culturalmente e tambm notava que os gestores da UC tentavam ser mais flexveis (dentro das limitaes impostas por se tratar de uma UC de proteo integral). Aos poucos, atravs de vivncias locais comecei a identificar outros atores que influenciaram ou continuam influenciando nessa lgica local e, nesta trajetria, pude perceber os complexos desafios de se tentar conciliar os interesses das sociedades e a conservao da natureza num cenrio de exploraes e injustias sociais determinadas por um modo de produo que se faz presente globalmente.

    No identifico, no entanto, uma separao to clara entre a questo ambiental e a questo social a ponto de nos levar a discutir estes assuntos como se eles no estivessem extremamente relacionados. De certa forma, e teoricamente, a discusso sobre as UCs gira muito em torno da preocupao ambiental e da possibilidade das geraes futuras acessarem os recursos naturais, mas acredito na importncia de que esta preocupao tambm passe a abranger a questo social, vislumbrando a perspectiva de que outras realidades so possveis. Desta forma me proponho a tentar refletir sobre o tratamento de impasses entre desenvolvimento e conservao ambiental que se conforma atualmente em uma problemtica to urgente e amplamente discutida pela sociedade global.

    importante ressaltar que a produo desta pesquisa visa contribuir na luta poltica das comunidades tradicionais, sobretudo Barbados e demais comunidades da regio da baa de Pinheiros frente a seus agentes antagnicos. Neste sentido, num plano imediato, me coloco a favor da comunidade no que se refere sua permanncia e uso do seu territrio tradicionalmente ocupado, considerando que as estratgias de conservao e preservao da natureza s sero efetivamente viveis e justas se considerarem a cultura tradicional de seus moradores, ao invs de reproduzirem modelos ocidentais no aplicveis de maneira satisfatria nesses locais. Em um plano mais universal e a longo prazo acredito que os conflitos que permeiam o tema desta pesquisa so socialmente construdos e que permanecero existindo enquanto houver agentes antagnicos e relaes de poder intrnsecos ao modo de produo capitalista. Parto do princpio de que a mediao dos conflitos socioambientais e territoriais pode estar deslocando seu propsito de soluo das causas dos conflitos para a sua administrao, o que pode vir a diluir e despolitizar as lutas de movimentos sociais como o dos povos e comunidades tradicionais no Brasil.

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    A literatura j produzida sobre o tema e tomada como ponto de partida para a realizao desta dissertao foi dividida em eixos terico temticos visando um melhor esclarecimento e posicionamento sobre os assuntos que seguem: As comunidades tradicionais como so tratadas pela literatura, bem como uma discusso sobre a formao deste conceito, alm do conceito de identidade e sociedade civil (que permite uma anlise sobre a pedagogia da hegemonia presente na matriz discursiva das agncias e instituies envolvidas com este tema), o Sistema Nacional de Unidades de Conservao e os Conflitos socioambientais. A discusso destes temas tem como objetivo aproximar o leitor da literatura que me auxiliou na construo do problema de pesquisa da dissertao que aqui se apresenta. No eixo temtico onde trato das comunidades tradicionais apresento, de maneira geral, como parte da literatura levantada visualiza essas comunidades em sua delimitao conceitual, o contexto do seu surgimento e suas especificidades. A partir da discusso de Almeida (2008a) voltada epistemologia acerca a utilizao dos conceitos, busco demonstrar como a categoria de comunidades tradicionais tem sido utilizada por diversos autores como uma noo operacional, como se ela estivesse dada, no como se fosse construda e dotada de intencionalidades polticas. Atravs deste levantamento, onde se destacam os trabalhos de Diegues (2004), Olmos et al. (2001) e Vivekananda (2001), busco demonstrar como este carter mais consensual pode acarretar na despolitizao da discusso sobre esses grupos. Concordo com outros autores como Almeida (2008a), Little (2002), Creado (2011), Gerhardt (2008) que partem do processo histrico de discusso desta categoria. A abordagem da matriz discursiva de agncias internacionais e instituies pblicas, privadas e ONGs visa demonstrar o cunho hegemnico do discurso dessas organizaes que, de certa forma, esto envolvidas com a realidade de Barbados. Para isto utilizo as contribuies de Fontes (2010), que faz uma leitura sociolgica de Gramsci, para demonstrar a entrada da pedagogia da hegemonia na sociedade civil de uma maneira geral. Este debate abrange o desenvolvimento do modo de produo capitalista e contribui para a relao deste tema com uma leitura sobre a formao socioespacial de Santos (1982). Busco demonstrar a partir desta abordagem como o capital imperialista se adqua s lutas sociais a partir da dcada de 1980 atravs da mercantil filantropizao dos movimentos sociais. Assim, a presente pesquisa visou aprofundar o entendimento sobre as questes culturais do grupo analisado, atentando para as mltiplas influncias que interferem no seu modo de vida e utilizao do seu territrio. Outro eixo temtico diz respeito ao processo de criao do Sistema Nacional de Unidades de Conservao do Brasil e como se desenvolveu o debate sobre as comunidades tradicionais dentro deste mecanismo legal. Para esta discusso acesso as contribuies de

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    autores como Sachs (1997), Dean (1996), Sarkar (2000), Gomez-Pompa & Kaus (2000), Colchester (2000), Guha (2000), Migliari Jnior (2004), Santilli (2007), Camargos (2008), Junior, Coutinho & Freitas (2009), Franco & Drummond (2009) e Creado (2011). Estes autores auxiliam em uma contextualizao histrica da forma com que a natureza tratada pela perspectiva do interesse pblico, fornecendo um panorama da concepo de proteo da natureza utilizado pelo governo brasileiro e suas formas de garantir que os objetivos de conservao e preservao nacionais sejam efetivados dentro das Unidades de Conservao. De acordo com estes elementos temticos abordados, esta dissertao buscou investigar: Qual o processo de formao socioespacial da rea de estudo? Quais os resultados socioespaciais deste processo na comunidade de Barbados? Qual a essncia do conflito territorial vivido pelos moradores de Barbados? Como este conflito se d em um plano imediato?

    Neste contexto, tomo como problema de pesquisa o desvendamento de como se d a formao socioespacial da rea de estudo (levando em conta os embates locais travados no mbito da sociedade civil durante o perodo imperialista do modo de produo capitalista) e de que forma este contexto tem gerado conflitos materiais e imateriais na comunidade de Barbados.

    O objetivo geral da pesquisa foi o de identificar a essncia dos conflitos protagonizados pela comunidade de Barbados. Para isto, os objetivos especficos se conformaram em caracterizar a formao socioespacial de Guaraqueaba e, mais especificamente, de Barbados; identificar o resultado desta formao socioespacial em como a comunidade de Barbados vive sua cultura e utiliza seu territrio; refletir sobre a essncia dos conflitos vividos em Barbados e identificar como este conflito se configura localmente em um plano imediato.

    A discusso sobre comunidades tradicionais e sobre reas naturais protegidas tem sido cada vez mais tratada pela agenda poltica brasileira, bem como na academia e na mdia nacional e mundial. O enfoque no conflito tem sido retratado, em alguns casos, a partir do

    senso comum de uma viso reificada dessas comunidades tradicionais e dessas reas protegidas. O debate sobre comunidades tradicionais tem resumido esses grupos ainda a uma viso arcaica, sem levar em conta o processo de produo desta categoria. Da mesma forma, aceita-se os moldes atuais das Unidades de Conservao como se fossem mecanismos fixos,

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    que no podem considerar a presena humana em sua configurao (independente da forma e do contedo de sua presena). comum, por exemplo, identificar na literatura uma viso das comunidades tradicionais como impactantes nesses espaos, colocando-as no mesmo contexto de impacto que grandes empresas poluidoras. A presente pesquisa buscou lanar um olhar que fosse alm das discusses j consolidadas na literatura para realizar uma leitura menos imediatista, partindo da reflexo de como essas comunidades esto inseridas no modo de produo capitalista e as consequncias disso. Em momento nenhum discordo das lutas atuais que buscam os direitos mais pontuais dessas comunidades, no entanto, a pretenso desta pesquisa foi a de apontar outros fatores que so importantes para a luta desses grupos aps o momento de conflito mais imediato - que aparentemente se d pela sobreposio de interesses distintos entre a comunidade tradicional de Barbados e o Parque Nacional de Superagui. A inteno a de no focar diretamente nas dicotomias entre a necessidade de se garantir direitos de livre acesso e usufruto do territrio tradicionalmente ocupado pela comunidade e da necessidade de criao de reas naturais protegidas para assegurar a continuidade de pores da biodiversidade. Este assunto por si s j justifica a produo de pesquisas direcionadas a este tema. No entanto, considero importante discutir o que causa esta dicotomia, como este conflito foi produzido, no apenas considerar que ele existe e que devemos tomar medidas para gerenci-lo. Desta forma, a presente pesquisa justifica-se pelas reflexes sobre os conflitos territoriais e socioambientais entre esses agentes, tanto em um plano imediato como em um plano mais universal.

    Alm de descrever como est ocorrendo a tentativa de gerenciamento deste conflito na rea de estudo, busco questionar certas leis ambientais e leis especficas sobre comunidades tradicionais no Brasil tentando apontar suas fragilidades e sua intencionalidade poltica diante de um contexto maior, o do enfrentamento da luta de classes. Justifico esta pesquisa, tambm pela tentativa de fornecer mais informaes que auxiliem na compreenso do fenmeno de um modo mais abrangente, em relao s comunidades tradicionais brasileiras que habitam o interior de unidades de conservao e, mais especificamente, no caso das comunidades de Guaraqueaba, possibilitando uma melhor compreenso sobre o conflito e um registro sobre como ele vem ocorrendo nesse local em especfico.

    A reflexo referente aos mecanismos legais utilizados para o reconhecimento e titulao de terras para comunidades tradicionais consiste em outro elemento importante que

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    justifica a pesquisa em questo, posto que novas metodologias como, por exemplo, as cartografias sociais, tm sido utilizadas, dando maior visibilidade a esses grupos historicamente excludos, demandando uma anlise sobre sua funcionalidade e efetividade. A anlise desses conflitos, embora possa parecer especfica, permite a formao de uma nova viso sobre a conservao da natureza e as estratgias utilizadas para alcan-la, atentando aos desafios do planejamento territorial como forma de se construir uma sociedade mais justa, minimizando as desigualdades sociais e a apropriao desigual da natureza. A partir deste enfrentamento a pesquisa buscou abordar as consequncias locais de polticas pblicas pensadas e impostas globalmente, fortalecendo tambm os questionamentos sobre a inflexibilidade do Estado e buscando, sobretudo, estender o conhecimento cientfico agregando-o ao conhecimento popular e contribuindo na articulao poltica da luta desses grupos.

    Os conceitos tericos utilizados como norteadores desta pesquisa foram o de Formao Socioespacial (Santos, 1982), Comunidades Tradicionais (Almeida, 2008a), Sociedade Civil (Fontes, 2010), Identidade social (Oliveira, 1976) e Territorialidade especfica (Almeida, 2008a).

    O conceito de formao socioespacial de Santos (1982) permite uma anlise mais profunda acerca da perspectiva espacial e socioeconmica da rea de estudo, tendo em vista que se refere s relaes sociais de produo que ocorrem materialmente em um lugar e momento histrico especfico. Esta perspectiva permite identificar, portanto, as especificidades do lugar associando seus aspectos histricos e geogrficos em uma dialtica entre a ao humana e natural em diferentes escalas, nos levando a perceber o local diante de suas influncias globais. Para o autor, os modos de produo escrevem a histria no tempo, e as formaes sociais escrevem-na no espao (Santos, 1982:15).

    Outro importante conceito norteador da pesquisa consiste na ideia de povos e comunidades tradicionais, tendo em vista que se trata da forma como os grupos sociais em questo se autoidentificam. Tendo em vista a polissemia desta categoria utilizada de diferentes maneiras como uma noo operacional, optei pelo uso do conceito de Almeida (2008a) para quem esta categoria no pode ser interpretada a partir de um elo com o passado, como uma remanescncia desse tempo ou como sociedades atrasadas. A categoria, para o autor, dotada de um sentido de direito autodefinio de identidades coletivas que passam por processos de construo a partir de reinvindicaes e conflitos perante o estado. Estas identidades coletivas aparecem como movimentos sociais politicamente construdos que se

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    mobilizam pelo seu contexto de luta atual face aos seus agentes antagonistas, no em relao aos seus laos com o passado.

    O conceito de Sociedade Civil, tratado pela viso gramsciana de Fontes (2010), corresponde ao palco pela disputa do poder, o espao material e tambm imaterial da luta de classes. As classes tendem a organizar-se no interior da sociedade civil formando blocos que defendem e buscam convencer as pessoas da supremacia de suas vises de mundo e de seu funcionamento. Na viso desta pensadora haveria dois blocos bsicos: o hegemnico, que visa manuteno da ordem social, e o contra-hegemonico, que objetiva a mudana da ordem social. Neste sentido, a criao das ideias vinculadas aos consensos sociais desses blocos realizada pelos seus intelectuais orgnicos. Para a autora, o convencimento da populao em relao aos moldes e vontades do pensamento dominante no se d apenas pelos moldes produtivos, mas tambm pelas organizaes institucionais que visam diluir as lutas de classe e incorporar seu pensamento s classes subalternas. Este processo de persuaso aqui denominado como pedagogia da hegemonia. A forma atual que confere o imperialismo ao modo de produo capitalista gera a diviso das classes em pequenos segmentos, fragmentando e enfraquecendo a luta social.

    A identidade social tratada por Oliveira (1976) diante de seu carter contrastivo. Para o autor um grupo ou pessoa afirma sua identidade quando se diferencia em relao a outro grupo ou pessoa. Neste sentido, a identidade teria este cunho relacional, onde para se identificar necessria uma oposio entre ns e os outros, sendo tambm uma ideologia e uma maneira de representao coletiva.

    Considerando que a identidade tambm determinada pela forma de uso do territrio, cabe aqui a utilizao do conceito de territorialidade especifica, de Almeida (2008a), que consiste na configurao de um territrio delimitado a partir do pertencimento coletivo. A essncia deste conceito a existncia de laos culturais de um grupo social que s possuem sentido pela relao a um espao especfico. Levando todos estes aspectos e conceitos em conta, necessrio esclarecer tambm o caminho metodolgico utilizado para a elaborao desta pesquisa. A preocupao acerca do conhecimento da realidade sempre esteve presente na histria da humanidade e, conforme Minayo (2001), esta busca foi realizada a partir da cincia sem, contudo, transform-la numa forma definitiva, exclusiva e conclusiva de se alcanar a verdade, tendo em vista que na contemporaneidade da sociedade ocidental,

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    a cincia a forma hegemnica de construo da realidade, considerada por muitos crticos como um novo mito, por sua pretenso de nico promotor e critrio de verdade. No entanto, continuamos a fazer perguntas e a buscar solues. Para problemas essenciais, como a pobreza, a misria, a fome, a violncia, a cincia continua sem respostas e sem propostas (p.10).

    A cincia, portanto, permite a compreenso de uma situao em um dado momento histrico a partir de um mtodo de anlise. Levando em considerao as contradies e discordncias no campo cientfico, imprescindvel demonstrar com clareza as opes metodolgicas utilizadas para a realizao de estudos de maior credibilidade e que possibilitem ao mximo a compreenso das relaes de aproximao da realidade. A metodologia, segundo Goldenberg (1999:14), consiste em uma opo de caminho para a realizao da pesquisa cientfica que possibilita o entendimento de uma realidade, percepo compartilhada por Minayo (2001:16) que complementa, ao considerar que o incio da investigao cientfica se d a partir da formulao de um problema associado aos conhecimentos anteriores adquiridos pelo pesquisador que orientam, a partir de proposies, dados e conceitos que possibilitam uma reflexo acerca de um tema. A metodologia seria, ento, um conjunto de tcnicas, concepes tericas e a experincia e criatividade do pesquisador, formando assim o caminho da pesquisa. A estratgia metodolgica est vinculada ao problema e objetivos de pesquisa, podendo ser abordada por uma vertente qualitativa que busca expressar realidades no objetivas, ou quantitativa, para comparaes e uso de termos matemticos visando a compreenso da realidade (Haguette, 2005; Minayo, 2001:21). Devido s caractersticas da presente pesquisa, optou-se por uma abordagem qualitativa, visando aproximao com os sujeitos pesquisados que, segundo Goldenberg (1999), aprofunda a compreenso do objeto de estudo e suas dinmicas e, como ressalta Haguette (2005), destaca os detalhes de origem e justificativa de fenmenos sociais. A perspectiva qualitativa propiciou um panorama do modo de vida da comunidade de Barbados e das causas e caractersticas dos conflitos territoriais existentes na rea de estudo. Atravs do levantamento terico, temtico e, posteriormente, do levantamento emprico possibilitado por uma etnografia, foi possvel identificar como se do os conflitos territoriais provenientes da sobreposio de interesses no uso do espao do Parque Nacional do Superagui.

    Para Laplantine (1993:149), a etnografia vai alm da coleta indutiva de uma grande quantidade de informaes, tendo o etngrafo que viver a essncia da cultura estudada, se aprofundando na experincia de uma aculturao invertida, compreendendo no apenas os

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    elementos exteriores de uma sociedade, mas tambm as significaes dadas pelos prprios indivduos aos seus comportamentos. Essa perspectiva etnogrfica deve levar em considerao a complexidade do estudo da totalidade, analisando os fenmenos a partir da multiplicidade de suas dimenses polticas, econmicas, sociais, culturais, psicolgicas, ambientais e espaciais. Segundo Geertz (1989), a etnografia consiste em uma descrio densa onde o etngrafo deve aprender, para posteriormente apresentar as diversas estruturas conceituais complexas que podem se encontrar amarradas e sobrepostas, sendo ao mesmo tempo estranhas, inexplcitas e irregulares.

    A etnografia tem, para o autor, trs caractersticas marcantes: a de ser interpretativa, a do objeto da interpretao ser o fluxo do discurso social e a necessidade dela trazer o dito em formas pesquisveis. Para ele,

    Tal viso de como a teoria funciona numa cincia interpretativa sugere a diferena, relativa em qualquer caso, que surge nas cincias experimentais ou observacionais entre descrio e explicao aqui aparece como sendo, de forma ainda mais relativa, entre inscrio (descrio densa) e especificao (diagnose) entre anotar o significado que as aes sociais particulares tm para os atores cujas aes elas so e afirmar, to explicitamente quanto nos for possvel, o que o conhecimento assim atingido demonstra sobre a sociedade na qual encontrado e, alm disso, sobre a vida social como tal. Nossa dupla tarefa descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos dos nossos sujeitos, o dito no discurso social, e construir um sistema de anlise em cujos termos o que genrico a essas estruturas, o que pertence a elas porque so o que so, se destacam contra outros determinantes do comportamento humano. Em etnografia o dever da teoria fornecer um vocabulrio no qual possa ser expresso o que o ato simblico tem a dizer sobre ele mesmo isto , sobre o papel da cultura na vida humana (Geertz, 1989:37).

    O universo de pesquisa refere-se ao municpio de Guaraqueaba, no Estado do Paran, regio Sul do Brasil, entendendo que ele pode representar a mdia das situaes similares registradas no pas.

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    Mapa 1: Localizao do Municpio de Guaraqueaba

    Segundo dados do censo 2010, Guaraqueaba possui 7.871 habitantes (2.683 urbanos e 5.188 rurais) em uma extenso territorial de 2.020,093 km e uma densidade demogrfica de 3,90 hab/Km. De acordo com o Ipardes (2012) o municpio apresentava 8.288 habitantes no ano de 2000, sendo que, desse total, 4.724 encontravam-se em situao de pobreza. As principais atividades econmicas referem-se agricultura, pecuria, produo florestal, pesca e aquicultura, com 2.018 pessoas ocupando tais atividades. A administrao pblica a segunda maior ocupao da populao, contando com 295 funcionrios, seguida pela educao (176 pessoas) e o comrcio (com 146 pessoas). O ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Guaraqueaba de 0,659 (considerado mdio), o mais baixo de todos os municpios do litoral paranaense (Ipardes, 2012). O municpio possui grande importncia na conservao da Mata Atlntica devido ao fato de estar quase que totalmente inserido em Unidades de Conservao de diversas categorias. Pelo uso restrito das unidades de conservao, o turismo tem se conformado como uma das nicas alternativas para o desenvolvimento local desses lugares, sendo uma das poucas alternativas econmicas para as comunidades ali inseridas (Kinker, 2005).

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    Segundo Denardin et al. (2009) 98,76% do territrio de Guaraqueaba coberto por reas protegidas e Unidades de Conservao. O autor destaca a contradio do litoral paranaense que apresenta elevado valor de patrimnio natural, mas um quadro de subdesenvolvimento que aponta que a regio no acompanhou o ritmo de desenvolvimento das demais regies paranaenses, embora tenha sido a primeira a ser colonizada. Para o autor, paradoxalmente, essa regio que consiste em uma das mais pobres no Estado vem se mostrando como uma ltima fronteira para o desenvolvimento econmico do mesmo. Sobre a origem dos primeiros povos que habitaram a regio de Guaraqueaba h autores que interpretam que a etnia dos ndios era Tupi-Guarani, enquanto outros compreendem como sendo os Carij1. Embora exista esta lacuna, h informaes que ressaltam que esses ndios foram extintos com a chegada dos colonizadores (Vivekananda, 2001). Ainda segundo a autora, o municpio possui vegetao composta por Floresta Ombrfila Densa (Floresta Atlntica), que se caracteriza por uma grande biodiversidade. A regio possui ainda Formaes Pioneiras de Influncia Marinha (vegetao do litoral rochoso, praias, dunas e restingas), Formaes Pioneiras de Influncia Fluvio-Marinha (manguezais) e Formaes Pioneiras de Influncia Fluvial (brejos e caxetais). O recorte do objeto consiste na comunidade de Barbados, localizada no interior do Parque Nacional do Superagui, situada na baa de Pinheiros.

    1 Embora a autora tenha apontado a dvida sobre a real etnia dos ndios originrios de Guaraqueaba, os ndios

    Carij pertenciam ao tronco lingustico Tupi-Guarani, no havendo, portanto, diferena tnica (Santos, 1995).

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    Mapa 2: Localizao da Comunidade de Barbados

    O Parque Nacional do Superagui faz parte do territrio do Complexo Estuarino Lagunar de Iguape Canania e Paranagu e foi criado pelo Decreto n 97.688 de 25 de abril de 1989 e ampliado pelo Decreto n 9.513 em 20 de novembro de 1997. Embora tenha sido criado h 22 anos, o Parque ainda no possui Plano de Manejo, documento obrigatrio com o prazo de 5 anos para sua elaborao aps a data de criao da UC. Bon et al. (2004) afirmam que o Parque Nacional de Superagui, alm da conservao dos ecossistemas existentes, tambm possui a funo de proteger espcies em estado crtico e endmicas, como o mico-leo-da-cara-preta (Leontopithecus caissara) e o papagaio-da-cara-roxa (amazona brasiliensis). Vivekananda (2000) complementa a variedade de espcies ameaadas de extino inserindo a sussuarana (Felis concolor), bugio (Alouatta fusca) e ainda o jacar do papo amarelo nessa lista. A grande incidncia de estudos cientficos na regio, sobretudo voltados a questes biolgicas (Kasseboehmer & Silva, 2009) despertam na comunidade a impresso de que a proteo da fauna e flora mais valorizada do que questes histricas e culturais. A presena

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    de diversos pesquisadores gera desconfiana entre os moradores que, devido s restries ambientais, acreditam que exista uma relao entre a presena deles e a atuao cada vez mais intensa dos rgos ambientais. Este contexto imps algumas dificuldades para a presente pesquisa, uma vez que a comunidade se mostrou bastante receosa em fornecer informaes sobre sua cultura e seus conflitos com o ICMbio e demais instituies ambientais que desenvolvem seus projetos na regio. A partir da etnografia da comunidade, realizada a partir da observao participante e outras tcnicas de pesquisa, como entrevistas semiestruturadas (com a comunidade e a gestora da UC) e mapeamentos temticos, foi possvel alcanar os objetivos propostos, tendo em vista que este mtodo abrange a anlise de todo o modo de vida mais precisamente no espao vivido, bem como possibilita considerar fatores externos ao espao habitado, mas que, de alguma forma, influenciam na comunidade. O mtodo etnogrfico foi possvel atravs da permanncia na comunidade, em diversos encontros, entre eles um de durao aproximada de trs meses, utilizando a observao participante que, para Minayo (2001), consiste em uma tcnica de pesquisa que oferece um maior contato do pesquisador com o objeto de estudo, possibilitando uma compreenso da realidade mais efetiva. Clifford (2008) discorre sobre a observao participante ressaltando que a mesma

    serve como uma frmula para o contnuo vaivm entre o interior e exterior dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrncias e gestos especficos, pela empatia; de outro, d um passo atrs, para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos singulares assim, adquirem uma significao mais profunda ou mais geral, regras estruturais e assim por diante. Entendida de modo literal, a observao participante uma frmula paradoxal e enganosa, mas pode ser considerada seriamente se reformulada em termos hermenuticos, como uma dialtica entre experincia e interpretao (2008:33).

    A minha permanncia em Barbados para a realizao da pesquisa (sem considerar as visitas durante o perodo anterior ao trabalho de campo) foram divididas em cinco visitas breves (com a permanncia entre quatro e nove dias) e uma visita prolongada (de aproximadamente trs meses). Pelo fato de no haver nenhuma pousada na vila, me hospedei na casa de uma famlia de treze pessoas, que se dividiam em trs casas bem prximas umas as outras. Neste ncleo familiar viviam descendentes de Willian Michaud (figura importante na regio) que desenvolviam, sobretudo, atividades de pesca, roa e reforma de barcos. Essa famlia se conformou como minha principal fonte de informao em Barbados, me indicando

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    pessoas desta e das demais vilas que poderiam fornecer informaes mais precisas. A famlia era formada por cinco crianas (abaixo dos quinze anos), dois jovens (entre 16 e 18 anos), e seis adultos (entre 30 e 65 anos), que se dividiam em duas religies: a catlica e a evanglica. Os homens da famlia desenvolviam atividades relacionadas pesca e trabalhos mais pesados na mata, enquanto as mulheres, geralmente, se encarregavam de atividades como a limpeza e preparo de peixes e frutos do mar, o cultivo de pequenas hortas e roas, o cuidado com animais e a extrao de lenha e outros recursos da mata. Alm disso, a famlia ainda recebia turistas em sua casa que procuravam iscas para a pesca e a limpeza de peixes. De maneira geral, a famlia participava da associao de moradores e da associao de mulheres. Pude realizar duas reunies com representantes de todas as famlias de Barbados e Saco do Morro (geralmente os patriarcas e filhos mais velhos), onde tratamos de assuntos mais gerais como a produo dos mapas e principais assuntos que cada famlia desejava abordar tanto nos mapas quanto para o meu esclarecimento acerca das lgicas locais. Alm destes momentos de reunio e conversas informais, realizei entrevistas mais densas por adeso com representantes de doze das dezenove famlias da vila, bem como com trs moradores de vilas prximas, indicados pelos moradores de Barbados. Geralmente participavam destas entrevistas os patriarcas de cada famlia e jovens que se manifestavam de acordo com a familiaridade com os assuntos. Tive alguns informantes principais que foram decisivos para a elaborao desta pesquisa. Entre os moradores de Barbados estavam cinco membros da famlia onde me hospedei, trs moradores de outras famlias da vila, duas figuras externas que moravam em vilas prximas e a gestora da UC. Cabe aqui realizar uma breve descrio destes informantes2. Paulo pescador, possui idade entre 40 e 50 anos, nascido e criado em Barbados e apesar da possibilidade de ter ido morar em Paranagu e Matinhos optou por continuar em sua vila por se adaptar melhor a este modo de vida. Tem trs filhos, catlico, participa da associao de moradores e uma figura muito conhecida na regio por ser um pescador bastante prestativo aos companheiros que passam por dificuldades no mar. Roberto pescador, trabalha com construo civil, reforma de barcos e possui entre 30 e 40 anos de idade. Possui trs filhos, catlico, no nascido em Barbados, mas aps morar em grandes centros urbanos e outras vilas da regio, optou por

    2 Atribui a cada um deles um nome fictcio para que eles no fossem identificados, respeitando, assim, o desejo

    deles prprios. Alm disso, descrevi suas idades de maneira abrangente, com classificaes como entre 20 e 30 anos de idade. Outro fato importante que no descrevi suas atividades caracterizadoras (como a caa ou cura natural, por exemplo), tendo em vista que isto poderia facilitar a identificao dos moradores pelo fato de muitas pessoas serem conhecidas como referencias nestas atividades.

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    morar em Barbados por condies de melhor acesso educao para seus filhos e melhor localizao da vila, uma vez que acredita que a posio geogrfica de Barbados permite muitos benefcios como um clima mais ameno, maior disponibilidade de agua e outros recursos. Roberto tambm participa da associao de moradores e tem buscado se articular com os demais moradores para as lutas da comunidade. Maria nascida em Superagui, mas se considera de Barbados pela relao com este lugar. Possui entre 50 e 60 anos, evanglica, no participa da associao das mulheres, pois prefere trabalhar sozinha, mas participa da associao de moradores por considerar importantes as discusses, principalmente as relacionadas ao Parque. Sua famlia participa de todas as reunies e projetos locais, e Maria tenta fazer com que os jovens vivam prticas de sua cultura e trabalhem com o resgate de prticas que foram diminuindo com o tempo. Renata tem entre 30 e 40 anos, possui trs filhos, participa das duas associaes da comunidade e bastante envolvida com as lutas locais. Recebe visitas de turistas e moradores da regio e muito conhecida pelas comunidades vizinhas por ser trabalhadora e sempre participar de atividades locais. Trabalha com a pesca, a roa, horta e criao de pequenos animais. Germano aposentado, mas ainda trabalha com a pesca e a roa. Tem entre 60 e 70 anos de idade e, apesar de no se envolver muito com assuntos como o conflito com o Parque, uma referencia por conhecer a histria da regio e entender sobre especificidades das atividades e recursos locais. Jos tem entre 20 e 30 anos, nascido em Barbados, mas tambm j viveu em outras vilas. casado, catlico, participa da associao de moradores e, apesar de alguns conflitos internos na vila, considerado um dos representantes dela por sempre buscar esclarecer todas as situaes e estimular os moradores a no aceitarem todas as imposies externas de projetos e rgos ambientais. Dalva tem entre 50 e 60 anos, no nascida em Barbados, j viveu em outras vilas, mas optou por Barbados tambm pelas caractersticas locais. Ela e sua famlia esto bem envolvidas em questes locais referentes a projetos externos e atuao de rgos ambientais. respeitada por todos os moradores por ajudar na criao das crianas e possui um ttulo informal de lder da comunidade por ser mais velha e com mais experincia sobre a vida na regio. evanglica e participa da associao de moradores. Janana tem entre 30 e 40 anos, casada, tem dois filhos, catlica e tambm considerada informalmente como uma liderana local por seu esclarecimento poltico e por sempre tentar esclarecer todas as questes que envolvem a comunidade. uma das principais incentivadoras na valorizao e resgate de prticas locais.

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    Jlio tem entre 40 e 50 anos, morador de outra vila da regio que se localiza na zona de amortecimento do Parque. Apesar de teoricamente estar fora dos limites do Parque, Jlio tem bastante envolvimento com as demais comunidades e um articulador local que representa e auxilia na organizao dessas comunidades. Jlio casado, tem dois filhos, transita entre as igrejas catlica e evanglica, trabalha com a pesca e a extrao de recursos da mata. Matheus tambm morador de outra vila da regio que se localiza na zona de amortecimento da UC. Tem entre 40 e 50 anos, arteso e guia turstico. Trabalha como um articulador e representante local na regio sendo muito respeitado por moradores de todas as vilas. Por ter um maior contato com pessoas de fora da comunidade, como estudantes e pesquisadores, Matheus sempre solicitado por diversos moradores para auxiliar nas lutas locais.

    As metodologias utilizadas me permitiram registrar no somente o discurso das pessoas com quem tive contato, mas tambm o no dito, como suas reaes a eventos cotidianos e s caractersticas mais banais do relacionamento entre os moradores e deles com o rgo gestor. Muitas vezes os discursos apareciam de uma forma mais planejada e formalizada quando o ambiente de conversa era uma reunio ou at mesmo em entrevistas individuais e com famlias, mas os momentos de interao mais valiosos foram quando no nos propnhamos a conversar sobre assuntos para a minha pesquisa, como conversas informais sobre as atividades dirias das quais participava ou sobre momentos em famlia.

    Houve algumas ocasies mais formais, como os encontros coletivos para a discusso do mapeamento participativo, mas a maioria dos momentos foi de entrevistas semiestruturadas ou de conversas informais e observao. Na etnografia busquei conversar com todos os membros da comunidade em diferentes momentos, conversava tambm com os visitantes da vila, que inclua parentes de outras comunidades prximas, turistas que apareciam atrs de iscas para pescar, funcionrios da Copel que estavam iniciando as obras para a energia, polticos que faziam churrascos para a comunidade em poca de eleio e em alguns casos at estudantes e pesquisadores que apareciam, embora com menor frequncia.

    Desta forma, acredito que consegui captar o discurso desses sujeitos, mas tambm pude me aprofundar sobre o real sentido dos contedos que desejava estudar na realidade dos moradores de Barbados. A maior dificuldade encontrada foi o receio dos moradores quanto divulgao de informaes locais pelo medo das restries aplicadas pelos rgos ambientais se tornarem ainda mais incisivas. Desta forma, diversas informaes importantes no sero divulgadas nesta pesquisa por questes ticas, uma vez que assumi este compromisso com meus informantes. Esta situao, por si s, j contextualiza um pouco do ambiente em que me

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    inseri para a realizao da pesquisa. Apesar dos moradores buscarem seus direitos, muitos deixam de faz-lo por medo ou por no acreditarem em mudanas significativas, resultado do processo histrico pelo qual esto passando. Neste sentido, acredito que esta contextualizao anterior sobre meu trabalho de campo de extrema importncia para aproximar o leitor realidade vivida em Barbados.

    A estrutura da dissertao foi elaborada tendo em vista uma diviso mais didtica sobre a relao da comunidade de Barbados com o Parque Nacional do Superagui. De maneira geral, o primeiro captulo apresenta um levantamento terico temtico, enquanto o

    segundo captulo apresenta os dados levantados em campo e, por fim, o captulo III sintetiza algumas anlises sobre o objeto emprico.

    O captulo I, intitulado Territrios Tradicionalmente Ocupados e Espaos Protegidos, apresenta uma reviso terico temtica sobre os diversos aspectos relacionados com a questo de comunidades tradicionais em Unidades de Conservao. Neste captulo busco sintetizar como a literatura tem abordado os grupos autoidentificados como povos e comunidades tradicionais e, mais especificamente, a parcela desses grupos que tiveram seus territrios tradicionalmente ocupados delimitados como UCs. Discuto, tambm, a adoo de alguns conceitos norteadores para o embasamento sobre o tema.

    O segundo captulo, O Processo Histrico e a Dinmica da Comunidade de Barbados dedicado apresentao do objeto emprico a partir do vis que me predispus a estudar: a configurao territorial e os conflitos socioambientais. Neste captulo utilizo a bibliografia consultada para dialogar com os depoimentos dos moradores de Barbados, de moradores de outras comunidades da regio e da gestora do Parque Nacional do Superagui. No captulo III, intitulado Entre Ser Caiara e Pescador Artesanal: Controvrsias, Consonncias e Dissensos, relato algumas anlises elaboradas a partir do confronto entre a reviso terico temtica e os dados coletados em campo. De maneira geral, as anlises esto focadas na questo identitria de Barbados, na formao socioespacial da regio, bem como na configurao do conflito entre a comunidade e o Parque.

    A realizao desta dissertao s foi possvel pela contribuio de diversas pessoas a quem devo meus sinceros agradecimentos. Agradeo, primeiramente, a Renato Caiara e toda a comunidade de Barbados (sobretudo aos moradores que me acolheram em suas casas e me fizeram sentir como um membro de suas famlias). Este trabalho foi feito por muitas mos, e vocs so os maiores responsveis pelas reflexes aqui explicitadas. Gostaria de poder dividir

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    a autoria dessa dissertao com vocs. Agradeo imensamente ao meu orientador, Pedro Martins, sempre extremamente dedicado e atencioso, me motivando e incentivando a encarar novos desafios. Nossas conversas e orientaes me foram muito produtivas e inspiradoras. Tambm agradeo a Isa de Oliveira Rocha, Douglas Ladik Antunes, Raquel Mombelli e, novamente, Pedro Martins, por me apresentarem novos olhares sobre a cincia e, com isso, despertarem em mim cada vez mais dvidas que me motivam a estudar e me envolver naquilo que acredito. Agradeo ao meu companheiro, Marcelo Varella, por todos os questionamentos, contribuies, pelo apoio, troca e pacincia. Caminhar junto contigo me motiva e engrandece. No poderia deixar de agradecer o apoio da UDESC no fornecimento da bolsa de monitoria, pois sem ela no haveria a possibilidade de concretizar esta pesquisa.

  • CAPITULO I

    TERRITRIOS TRADICIONALMENTE OCUPADOS E ESPAOS PROTEGIDOS

    Queimem os manuais, eles so os templos da glaciao.

    Alfredo Wagner Berno de Almeida

    Introduo

    O presente captulo pretende apresentar uma discusso terico temtica acerca dos possveis conflitos socioambientais instaurados pela criao de Unidades de Conservao de Proteo Integral em reas de populaes autoidentificadas como tradicionais.

    O objeto emprico da pesquisa so as comunidades da baa de Pinheiros, no municpio de Guaraqueaba, no estado do Paran. Mais especificamente, o estudo tem seu foco na comunidade de Barbado, inserida dentro dos limites do Parque Nacional do Superagui (PNS).

    Guaraqueaba possui 98,76% de sua rea total delimitada como unidade de conservao (de diferentes categorias) ou reas de proteo. Devido, principalmente, a sua diversidade biolgica, o municpio considerado um forte alvo para o desenvolvimento cientfico. Kasseboehmer & Silva (2009) realizaram um levantamento das pesquisas realizadas na regio entre 1979 e 2005, constatando que, dentre os 109 estudos identificados, 37% possui a fauna e a flora como temtica central. Segue o tema socioeconomia, produo e sustentabilidade, com 17%, conflitos em reas protegidas e pesquisas multidisciplinares, com 11%, projetos e relatrios, com 8,3%, pesquisas antropolgicas, com 6,4%, sobre o meio fsico, com 5,5%, e os temas tecnologia, histria e cultura, com 1,8%.

    A partir dos dados apresentados, percebe-se o elevado interesse cientfico em questes biolgicas, indicando um menor enfoque em questes culturais e sociais. A populao, por sua vez, demonstra estar ciente da representatividade de seu territrio diante de aspectos cientficos, mas no aceita estar sendo utilizada como objeto para tais pesquisadores. Uma das reclamaes concerne carncia de retorno de pesquisadores para divulgar resultados de

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    pesquisa. Os moradores de Guaraqueaba apontam a contradio existente em um municpio de evidente importncia devido demanda de estudos cientficos e o seu estado atual de abandono em relao qualidade de vida de seus moradores (Kasseboehmer & Silva, 2009).

    Em trabalhos de campo preliminares, verificou-se a insatisfao das comunidades do interior e entorno do Parque Nacional do Superagui quanto s restries ambientais que impedem a reproduo do seu modo de vida. A fiscalizao violenta realizada por agentes ambientais de diferentes instituies e a falta de uma fiscalizao rgida para a pesca industrial uma das principais reclamaes. Alm disto, as populaes apontam a falta da valorizao cultural como resultado da legislao ambiental, visto que foram impedidos de realizar suas atividades tradicionais, como o plantio de roas de subsistncia, determinadas tcnicas de pesca, caa, retirada de lenha e demais recursos naturais. A impossibilidade de reproduzir algumas dessas atividades implica, direta e indiretamente, na reduo e enfraquecimento de diversas outras prticas, como o mutiro, os bailes de fandango, entre outras prticas simblicas.

    Diante deste contexto, o primeiro captulo que aqui se apresenta tem como objetivo apresentar um referencial terico temtico para compreender como o objeto de pesquisa abordado na literatura e como o mesmo pode ser analisado teoricamente. O referencial terico temtico permite o aprofundamento da compreenso da dinmica do tema, possibilitando constatar se o objeto emprico desta pesquisa segue a mdia dos casos apontados no Brasil pela literatura levantada.

    Para possibilitar uma compreenso mais profunda do fenmeno identificado em Guaraqueaba os temas abordados perpassam o processo de construo do conceito de populaes tradicionais e a formao da economia simblica acerca dessas comunidades; a trajetria do movimento ambientalista e o desenvolvimento de polticas ambientais protecionistas no Brasil; e os conflitos socioambientais e suas relaes com as territorialidades dos diversos grupos envolvidos na discusso.

    1.1 Comunidades Tradicionais: nuances da discusso acadmica e da construo poltica

    A produo literria sobre comunidades tradicionais e sua relao com reas naturais protegidas dividida em diversos enfoques, o que demanda uma delimitao clara sobre o vis pelo qual cada autor lana um olhar para esta temtica. Para a elaborao de um referencial terico temtico pertinente a esta pesquisa, irei discutir, inicialmente, a forma como este tema vem sendo retratado pela literatura. Este panorama ser seguido de uma

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    discusso conceitual das categorias comunidade tradicional e identidade. Realizo, tambm, uma abordagem de aspectos sociopolticos do mbito nacional que influenciaram direta e indiretamente no processo social do movimento dos povos e comunidades tradicionais e do movimento ambientalista. Este contexto visa apontar ambos os movimentos como uma construo poltica, permeada por lutas de classes e relaes de poder.

    1.1.1 Comunidades Tradicionais pelo olhar acadmico

    A literatura acerca das chamadas populaes tradicionais tm sido geralmente associada s temticas que envolvem conflitos entre esses grupos e agentes externos.

    Little (2002) chama a ateno para a problemtica do termo povos e comunidades tradicionais em consequncia da grande diversidade de grupos que o mesmo engloba. A partir do vis etnogrfico, tratar diferentes grupos como caiaras, quilombolas, indgenas e outros dentro de uma mesma classificao minimiza as complexas distines entre esses grandes grupos, bem como das prprias heterogeneidades internas referentes a cada um deles. No entanto, para este mesmo autor, essa classificao geral surgiu na tentativa de unir diferentes grupos sociais usurpados pelo Estado-nao e agentes externos, em aspectos distintos de sua cultura, como as suas relaes com seus territrios. Ainda que exista uma razo histrica em comum como o pertencimento a determinados lugares com fortes memrias coletivas quanto ao processo de ocupao histrica, bem como os regimes de propriedade de uso comum existem distines profundas em outros aspectos da prtica sociocultural, como nos planos identitrios, religiosos, lingusticos, cosmolgicos, entre outros.

    Se o olhar do Poder Pblico para as comunidades culturalmente diferenciadas j existia desde os tempos da criao de rgos especficos voltados para a questo indgena, ainda hoje no se concretiza por completo a justia social em relao a esses grupos. Ainda que com a grande contribuio da constituio de 1988 e as reafirmaes infraconstitucionais de convnios internacionais e legislaes estaduais e municipais (Almeida, 2008a), as discusses referentes aos grupos ditos tradicionais ganhou maior repercusso a partir da problemtica da presena humana em Unidades de Conservao (Creado, 2011; Little, 2002).

    Little (2002) descreve trs contextos em que o surgimento deste conceito se fez presente: a partir da demanda dos preservacionistas para atingir os objetivos das UCs de proteo integral levando em conta a existncia de grupos residentes e usurios desses espaos; na aproximao entre grupos socioambientalistas e grupos dotados de mecanismos sustentveis de uso dos recursos naturais; nos debates acerca dos direitos dos povos em

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    relao sua autonomia territorial, como apregoa a Conveno 169 da OIT. O autor destaca a existncia do conceito diante de uma dimenso emprica e poltica, sendo estas duas quase inseparveis.

    As discusses em torno do termo tradicional partiam inicialmente de uma adjetivao poltica, jurdica e acadmica de grupos que supostamente teriam usos mais sustentveis e harmnicos com o meio ambiente dentro dos contextos da constituio das UCs. No entanto, a temtica no se restringiu apenas a esse espao, mas tambm as relativizaes das associaes desses sujeitos polticos e figuras jurdicas como correlacionados questo das UCs, extrapolando o campo de debates para alm da atuao desses grupos apenas nas reas naturais protegidas (Creado, 2011).

    Gerhardt (2008) em sua Tese de Doutorado demonstra como a discusso sobre populaes tradicionais em reas naturais protegidas permeada por uma diviso clara de posicionamentos dos pesquisadores que se propem a estud-la. Para ele, a temtica j amplamente presente nas publicaes cientficas permeada por antagonismos sedimentados.

    As divergncias terico-metodolgicas no se configuram como uma exclusividade deste tema em especfico. Demo (1981) analisa o dilema acerca da demarcao cientfica justamente pelo teor ideolgico ao qual a cincia produto e produtor. Para o autor, a cincia deve ser visualizada como um produto social. Neste contexto Frederico (2008) destaca a importncia da transparncia dos caminhos da pesquisa e das prprias motivaes dos pesquisadores ao estudarem determinados temas, uma vez que suas trajetrias pessoais influenciam suas formas de produzir a cincia e compreender os fenmenos estudados, colocando em prova a questo da confiana em relao aos resultados das pesquisas. A prpria evoluo da cincia colocada como elemento chave nessa discusso, ao abrir novas possibilidades de se interpretar as realidades.

    As discusses sobre comunidades tradicionais e unidades de conservao no ambiente cientfico vem sendo permeadas por dicotomias tanto de modos interpretativos acionados pelos pesquisadores visando compreender esta realidade polmica quanto de formaes acadmicas destes cientistas, com o objetivo de identificar o lugar que ocupam ao fundamentarem seus discursos3.

    3 Gerhardt (2008) identifica esquemas dicotmicos utilizados para a discusso da presena de populaes

    tradicionais em Unidades de Conservao a partir de diferentes escalas (nacional, internacional, local, regional) e orientaes, como o vis poltico, administrativo, tico, tcnico, cientfico e jurdico. O autor identifica at mesmo as dicotomias nas tticas discursivas dos principais eventos cientficos que vem buscado tratar sobre a temtica no Brasil.

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    A principal dicotomia identificada em relao ao tema formada, por um lado, de pesquisadores ligados ao scioambientalismo e, de outro, ao conservacionismo. A divergncia parte de diferentes interpretaes do mundo, mais especificamente do meio ambiente4. Para Gerhardt (2008), os principais esquemas dicotmicos utilizados nas pesquisas relativas ao tema (alguns como conceitos analticos, categorias polticas ou noes operacionais) seriam: conservacionismo x ecologismo; preservacionistas X conservacionistas; ecocntricos x

    antropocntricos; antropocntrico x biocntrico; sociocntrico x ecocntrico; naturalistas x culturalistas; ecologia social x ambientalismo; biologia da conservao x etnoconservao; ecologia social x biologia da conservao; scio-diversidade x biodiversidade; mito rousseauniano do bom selvagem x mito naturalista da natureza intocada; ecologia global x diversidade cultural; ecoconservacionistas x ecodesenvolvimentistas; sustentabilistas e desenvolvimentistas; protecionistas x parquistas5.

    Diversos foram os trabalhos levantados na presente pesquisa com o fim de se realizar uma reviso sobre o tema. Pode-se dizer que as produes cientficas que tratam especificamente sobre comunidades tradicionais em Unidades de Conservao dividem-se na tentativa de defender os direitos das populaes tradicionais (diante seu processo histrico e cultural) e, em certa medida, tentar conceitu-las, ou de questionar (ou afirmar) o carter harmnico em relao ao meio ambiente conferido a elas e, assim, sustentar que sua presena em UCs de proteo integral compatvel ou no aos objetivos de conservao.

    O debate sobre o descompasso entre o uso e ocupao das UCs e as leis que as regulamentam foi levantado por autores como Ferreira et al. (2004), Schwartzman (2000) e Arruda (1999). Estes autores relativizam sobre os possveis prejuzos da aplicao destas leis que desconsideram a questo social envolvida na criao e gesto de UCs com comunidades tradicionais em seu interior. Um dos aspectos que os autores questionam a efetividade da proteo destas reas sem o envolvimento efetivo das comunidades residentes no processo de planejamento, criao e gesto das UCs. A falta de articulao e envolvimento tem sido apontada como o principal motivo para os conflitos entre comunidades e gestores de parques. Como consequncia da no aceitao dos modos de vida locais por parte dos gestores das

    4 Gerhardt (2008) ressalta que no se pode ignorar o posicionamento poltico e cientifico de cada pesquisador

    que desenvolve estudos sobre o tema, uma vez que no existe um consenso que permitiria a anlise deste conflito como um fato social. As diferentes abordagens e utilizao de categorias distintas para caracterizar as dualidades acerca a temtica demonstram, justamente, os diferentes pontos de partida para analisa-la e as suas limitaes polticas e cientficas. Em sua tese o autor demonstra que, na verdade, o tema extrapola as dualidades e se conforma em um esquema de carter complexo e multidimensional. 5 Embora as categorias no sejam consensuais a todos os autores do tema e, ainda que a realidade se mostre de

    forma mais complexa e exija outras categorias que extrapolem os esquemas duais, eles continuam a ser utilizados (Gerhardt, 2008).

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    UCs, Arruda (1999) salienta que ocorre a criminalizao destas comunidades, agravando suas condies de vida, estimulando o agravo de problemas urbanos como o aumento de favelas devido ao deslocamento destas comunidades, intensificando a degradao ambiental (tanto pela necessidade de ocupao de outras reas para a moradia, como pela superexplorao dos recursos pelas comunidades que, ao perderem sua relao de pertencimento com o local, buscam explorar os recursos enquanto podem se tornando agentes contrrios conservao).

    Neste mesmo sentido importante destacar a influencia direta de polticas elaboradas em encontros internacionais que interferem localmente na reproduo social destas comunidades (Castro, 2000). A prpria adorao de um Sistema Nacional de Unidades de Conservao que deriva de preceitos estadunidenses de reas naturais protegidas serve como exemplo.

    Pimpert & Pretty (2000) falam sobre a desvalorizao das comunidades tradicionais e do modelo dominante de desenvolvimento que, por ser baseado na uniformidade, centralizao e controle, acabam por no compreender e, consequentemente, criminalizar o modo de se alimentar, vestir, construir e outros aspectos do modo de vida tradicional.

    Os autores apontam as desvantagens da excluso das comunidades tradicionais na construo de estratgias de conservao, relacionando as normas e prticas conservacionistas atuais ao insucesso das Unidades de Conservao. Neste sentido, eles discorrem tambm sobre o olhar parcial e, portanto, insuficiente dos cientistas sobre os ecossistemas. Os autores tambm falam sobre as diferentes e questionveis formas de participao popular nos processos que visam polticas para aes locais.

    Vianna (2008), em seu livro de invisveis a protagonistas traz o caso da Reserva Ecolgica da Juatinga em Paraty RJ. A autora conclui que existe uma confuso conceitual na definio de quem seriam as comunidades tradicionais e quais seriam suas caractersticas principais no mbito de discusso das unidades de conservao. Por uma linha de defesa da compatibilidade dessas comunidades e objetivos de conservao das UCs, a autora afirma que o reconhecimento desses grupos pelo etnoconhecimento confere a eles uma harmonia entre seu modo de vida e o meio em que vivem, demonstrando uma oposio dos grupos em relao s sociedades industriais. A autora destaca que, pelo vis do scioambientalismo, a conservao da natureza incorporada como um instrumento poltico desses movimentos sociais. Nesse contexto, Vianna (2008) aponta as contradies sobre a suposta harmonia entre homem e meio ambiente levantada por muitos autores que se propem a estudar as comunidades tradicionais em UCs.

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    Outro conflito vivido pelas comunidades tradicionais em relao ao seu territrio e cultura que pode ser citado proveniente da atividade turstica, como destacam Luchiari (1999) e Serrano (1999). A ineficincia e at mesmo ausncia de planejamento e mecanismos adequados para a implementao do turismo pode ameaar no somente a conservao da biodiversidade nas UCs, como tambm a reproduo das comunidades tradicionais por fatores como a especulao imobiliria. Por ser tratada por muitos autores como uma indstria sem chamins devido a suposta sustentabilidade da atividade turstica, Serrano (1999) crtica esta imagem estereotipada que se criou do sucesso dessa experincia de proteo ambiental aliada ao turismo que no condiz com a realidade em diversas situaes. Almeida (2002) trata sobre a histria e evoluo do conceito de quilombo no contexto brasileiro, trazendo a tona discusses acerca dos conflitos e caractersticas dos sujeitos envolvidos nesse processo. Por estar diretamente relacionada questo agrria, o autor retoma a discusso do ponto de vista das construes coletivas que os grupos sociais desenvolveram ao longo da histria como forma de conquista de seus direitos bsicos. Alm disso, o autor chama a ateno sobre a necessidade de se pensar a questo agrria brasileira associada questo tnica.

    Seguindo a linha de grande parte de suas obras, Almeida (2008b) parte do ponto de vista do conhecimento tradicional para analisar questes referentes aos conflitos ambientais brasileiros. O autor ressalta o desrespeito com diversos grupos culturalmente diferenciados quanto sua forma de conhecimento, apropriao e utilizao de recursos naturais por no existirem instrumentos legais eficazes de garantia de proteo dessas formas culturais de utilizao.

    Dourado (2010), por sua vez, faz um apanhado dos dispositivos legais que se referem ao conhecimento tradicional de diversos grupos culturais associado biodiversidade. Estes so alguns dos exemplos de pesquisadores que, de um modo geral, se posicionam a favor das populaes tradicionais. Ainda que algumas pesquisem foquem na tentativa de comprovar a contribuio destas populaes na conservao da natureza demonstrando a compatibilidade de modos de vida especficos aos objetivos de proteo de UCs, existem tambm os pesquisadores que se posicionam como contrrios a permanncia de populaes tradicionais em UCs. Um dos artigos mais representativos que adota um posicionamento contrrio s populaes tradicionais em UCs assinado por 11 autores e intitulado Correo Poltica e Biodiversidade: a crescente ameaa das populaes tradicionais Mata Atlntica. Neste artigo, Olmos et. Al (2001) listam prticas consideradas destrutivas realizadas por

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    comunidades tradicionais (Caiaras e ndios Guarani), comprovando suas percepes de elas seriam prejudiciais biodiversidade a partir de laudos tcnicos e interpretaes de pesquisadores. Tambm cabe destacar, devido a importncia para a anlise do objeto de estudo desta pesquisa, a contribuio da gestora do Parque Nacional do Superagui em sua dissertao de mestrado. Vivekananda (2001), afirma que, ao analisar entrevistas e realizar um estudo de fotointerpretao de Guaraqueaba, no se pode atribuir ao Parque a culpa no declnio de atividades tradicionais de subsistncia como a roa, uma vez que atividade teria entrado em desuso antes da criao da UC. Uma das concluses da autora de que as UCs no so compatveis com a presena humana, sobretudo quando a rea se conforma geograficamente em ilhas.

    1.1.2 Comunidades Tradicionais: objetivao e movimento

    Dentre a literatura levantada sobre o tema, diversos autores utilizam como conceito norteador a categoria de comunidades tradicionais, conforme preconiza Diegues (1998)6. Para ele, o conceito define os grupos que no utilizam fora de trabalho assalariado e realizam a acumulao de capital de maneira reduzida, tendo uma organizao tanto social quanto econmica prpria. Para o autor, a economia das comunidades tradicionais so baseadas no uso de recursos naturais renovveis, dos quais os grupos possuem um profundo conhecimento sobre suas caractersticas, ciclos biolgicos e sobre as possveis formas de uso para o fim de alimentao. Todo esse conhecimento transmitido de gerao em gerao. Para Diegues (1998), as comunidades tradicionais podem ser consideradas como pouco impactantes no meio ambiente, pois, para ele, o padro de consumo com caractersticas como a baixa densidade populacional e o fraco desenvolvimento tecnolgico seriam fatores que contribuiriam para a conformao das comunidades tradicionais como instrumentos para a conservao ambiental.

    Ainda segundo o autor, as comunidades tradicionais se caracterizam por um modo de vida baseado na dependncia da natureza; estratgias de uso e manejo dos recursos naturais transmitidos por geraes e provenientes do profundo conhecimento da natureza; noo de territrio e sua ocupao por vrias geraes, mesmo que alguns membros do grupo realizem movimentos de migrao; desenvolvimento de atividades de subsistncia com relao maior

    6 De acordo com Vianna (2008), o autor foi pioneiro nas discusses acadmicas sobre populaes tradicionais e

    reas naturais protegidas. Diegues tambm uma das principais referncias sobre a cultura caiara.

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    ou menor com o mercado; pouca acumulao de capital; importncia de relaes de parentesco para atividades sociais, culturais e econmicas; considerao de simbologias e mitos para atividades extrativistas, de caa e pesca; utilizao de tecnologias simples e de baixo impacto ambiental e diviso familiar do trabalho; poder poltico fraco; autoidentificao. importante destacar que no adoto a concepo de Diegues (2004) para embasar minha pesquisa. Considero esta definio inadequada por tratar as comunidades por prerrogativas que as vinculam uma imagem estereotipada e romntica, que pouco se enquadram a realidade social que elas vivem. Esta viso pode congelar estes grupos em uma definio arcaica onde fatores como a modernizao tecnolgica e o envolvimento no mercado no seriam aceitveis para sua identidade.

    Do ponto de vista que qualquer aspecto terico uma viso idealizada da realidade, destaca-se a concepo de Vianna (2008) para quem questionvel o rtulo de que as populaes tradicionais sejam harmnicas em relao ao meio ambiente e tenham prticas conservacionistas, visto que a prpria noo de harmonia no apresenta referenciais precisos. A viso de Diegues (2004), neste sentido, vincula a esses grupos o rtulo conservacionista, conferindo-lhes uma imagem de sustentabilidade e de mnima relao com o mercado. Esta viso, hoje considerada romntica, poderia condizer com a realidade identificada por Diegues na poca de sua pesquisa ou estar de acordo com objetivos especficos do autor na utilizao desta categoria como uma noo operacional, no entanto, no se adequa ao contexto atual que envolve as comunidades tradicionais.

    A polissemia que o conceito de Comunidades Tradicionais7 apresenta demanda uma reflexo acerca da prpria noo de conceito. Nenhum conceito tem um sentido consensual, todos eles esto num campo de disputa, visto que so frutos de uma construo social e visam defender um interesse especfico de quem o utiliza. O conceito nunca objetivo, apesar da tentativa de diversos cientistas em criar padres tericos controlveis para que ele o seja. Os conceitos que so objetivados e quantificveis so, na verdade, noes operacionais cujas lgicas servem basicamente para fins operacionais imediatos ou de aplicao genrica e direta (Almeida, 2008a:18). O conceito, portanto, possui significado, mas no possui definio, sendo ele um instrumento de anlise de autores. neste sentido que Almeida (2008a) destaca a necessidade de compreend-lo a partir de uma lgica de sua dinamicidade, no sendo pertinente frigorific-lo, torn-lo inflexvel e parado no tempo.

    7 Existe um debate, tambm, sobre as distines jurdicas no tratamento a Indgenas, Quilombolas e demais

    Comunidades Tradicionais. Esse tema abordado por Santilli (2005).

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    Diante do contexto histrico em que Diegues define o conceito de comunidade tradicional, acredito que sua idealizao pode ter surgido da prpria dificuldade de enquadrar na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservao grupos que estariam aptos a viver em reas naturais protegidas. A discusso da definio deste conceito para o referido sistema e seus desdobramentos ser abordada posteriormente neste mesmo captulo. O critrio da harmonia com o meio ambiente, dentre outras caractersticas que enquadram estas populaes to diversas em certa forma de estagnao, demonstram que a noo operacional utilizada por Diegues, e multiplicada por outros autores, acabou por congelar a definio de comunidades tradicionais em um padro desejado e compatvel com os interesses de conservao de UCs. Outra conceituao importante para a presente pesquisa a da viso oficial do Estado, para quem as comunidades tradicionais so definidas oficialmente pela Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) como grupos culturalmente distintos por suas formas de se organizar socialmente. Esses grupos ocupam e utilizam seus territrios e recursos naturais atravs de prticas transmitidas pela tradio e como preceito bsico para sua reproduo social, cultural, econmica, religiosa e ancestral, sendo que para serem reconhecidos como tradicionais precisam, antes de tudo, se reconhecerem como tais (Inciso I, do art. 3., do Decreto n. 6.040, 7 de fevereiro de 2007). Tal noo operacional visa enquadrar grupos sociais a essa definio com o objetivo de algum processo de reconhecimento ou regularizao dos mesmos em relao ao Estado. A objetivao deste conceito acaba por dar espao excluso de certos grupos. Albuquerque & Nakashima (2011), por exemplo, retratam a trajetria do grupo indgena Pankararu na cidade de So Paulo, atentando ao fato de que a utilizao de um territrio a partir de seus recursos naturais e modo de vida no se faz suficiente para a definio da tradicionalidade e identidade de um grupo. O elo do grupo com seu territrio tradicionalmente ocupado se deu apenas a partir de redes migratrias que perduraram atravs de um fluxo contnuo entre os membros das comunidades de Pernambuco e So Paulo. Atravs do resgate de manifestaes culturais especficas, o grupo at ento invisibilizado pela ausncia de traos fsicos indgenas e por residirem em um grande centro urbano, passa a incorporar sua identidade tnica por meio de uma manifestao simblica, fato que possibilitou visibilidade poltica ao grupo garantindo-lhe seu reconhecimento perante instituies pblicas.

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    A conceituao da PNPCT envolve, tambm, a categoria tradicional8, sem, contudo, explicitar seu sentido. Little (2002) ressalta a dificuldade gerada por tal categoria, ao passo que tende a ser interpretada numa conotao de atraso econmico e imobilidade histrica, quando deveria contemplar a atualizao e dinmica de transformaes constantes das tradies culturais. As conceituaes de comunidades tradicionais, como as citadas acima, congelam a definio das populaes em uma viso terica idealizada, pautada em padres de vida e comportamentos que limitam essas populaes a uma srie de caractersticas que ela deve possuir para poder acionar seus direitos. Apesar da grande contribuio de Diegues na defesa dos direitos das populaes tradicionais, sobretudo dos caiaras, atualmente seu conceito pe em risco uma perpetuao de uma economia simblica do que ser tradicional. A alimentao deste poder simblico cria um paradigma sobre essas populaes, que limita uma atualizao da prpria dinmica desses povos.

    Segundo Almeida (2002), a prpria utilizao do termo remanescentes, por exemplo, para designar os grupos quilombolas relaciona esses grupos a um sentido arqueolgico, remetendo s lembranas e resqucios do passado, quando, na verdade, esses grupos tm suas lutas dentro de um contexto histrico, mas tambm atual e urgente. O autor defende a dinmica da cultura, ao contrrio de uma viso mais esttica de Diegues (2004).

    Creado (2011), baseada na contribuio de Aug, destaca que uma das dificuldades em relao a uma conceituao de comunidades tradicionais a tentativa de se criar limites territoriais, de modo de vida ou de padro de consumo para balizar suas diferenas. Tal tentativa pode resultar numa concepo do sujeito como fruto do coletivo, ou do social apenas como um reflexo cultural. Tal perspectiva por vezes ignora os aspectos dialticos da cultura em seus conflitos internos e conduz segregao das sociedades complexas e do mundo no rumo da excluso.

    A generalizao dos sujeitos englobados pelo rtulo da tradicionalidade pode limitar as discusses nas formas de uso dos recursos e aprision-los a uma denominao e aos traos a ela pertinentes. Para viabilizar o reconhecimento da diversidade na ao comunitria necessria uma reflexo acerca dos cdigos simblicos inerentes a ela, para que a comunidade no caia em categorias totalizadoras e oprima seus indivduos em detrimento de sua atuao como agente poltico. O direito s mudanas culturais e os ritmos, escalas e formas com que

    8 Mombelli (2009) realiza em sua tese um resgate sobre a categoria tradicional e suas implicaes nos estudos

    antropolgicos.

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    elas podem acontecer deve ser um direito dos povos tradicionais para que eles no se tornem vitimas de uma espcie de primitivismo forado (Creado, 2011). A necessidade de atualizao do conceito para se analisar os conflitos polticos e identitrios desses grupos encontra na concepo de Almeida (2006) uma melhor perspectiva de interpretao. Para ele, a noo de tradio que aparece na categoria povos e comunidades tradicionais no pode mais ser interpretada sob a tica do passado, como um resduo ou uma remanescncia, e sim como um direito e

    como forma de autodefinio, evidenciando identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. [...] as chamadas comunidades tradicionais aparecem hoje num processo de construo do tradicional a partir de conflitos e reivindicaes face ao estado. Alm de ser do tempo presente o tradicional social e politicamente construdo. [...] Estes povos no so necessariamente definidos pela origem, como advogam muitas interpretaes formalistas. Nesta nova modalidade interpretativa o tradicional encontra-se vinculado a reivindicaes e mobilizaes contemporneas [...] e afasta a preocupao com a origem que aparece por detrs de certas formulaes oficiosas (Almeida, 2008a:184).

    Ainda para o autor, a tradicionalidade dessas comunidades possui cunho dinmico e

    No se reduz histria, nem to pouco a laos primordiais que amparam unidades afetivas, e incorpora as identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilizao continuada, assinalando que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilizao. O critrio poltico-organizativo sobressai combinado com uma poltica de identidades, da qual lanam mo os agentes sociais objetivados em movimento para fazer frente aos seus antagonistas e aos aparatos do Estado (Almeida, 2006:25).

    Tal definio contempla de maneira mais pertinente e generalizada as novas configuraes das lutas dos movimentos sociais em questo.

    Almeida (2006, 2008) insere na discusso uma concepo baseada na alteridade, nos processos de autoidentificao e na transitoriedade, uma vez que esses sujeitos iro se identificar como tais a partir do momento que um sujeito externo, uma luta poltica ou o momento histrico exigir isso deles. Desta forma, o autor afirma que o conceito no pode ser

    objetivado, criando identidades fixas, transformando as vidas destes grupos em algo escrito, formalizado.

    A prpria questo da criao de identidades relacionadas noo de comunidades tradicionais surge num contexto de uma exigncia do Estado que demandou uma

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    diferenciao deles com o fim de solucionar, por exemplo, a questo da presena humana em Unidades de Conservao.

    Destarte, a concepo de Almeida (2008a) a que mais se enquadra nos objetivos da presente pesquisa. Desta forma, sempre que retomar a discusso sobre comunidades tradicionais neste estudo se estar partindo desta definio.

    1.1.3 A despolitizao da sociedade civil e a institucionalizao dos movimentos sociais rumo ao gerenciamento de conflitos

    O modo de produo capitalista, de acordo com Netto & Braz (2006: 168), passou a apresentar, a partir do sculo XIX, sua faceta imperialista, na qual o sistema passa a permitir e possibilitar diversas mudanas em seu interior, sem alterar, contudo, sua estrutura bsica o capitalismo de cunho poltico neoliberal que se instaura no Brasil a partir da dcada de 1990, assim, apresenta, acima de tudo, esta caracterstica fundamental: um sistema social pautado na produo da riqueza a partir da produo da pobreza, mas que cede direitos e recursos escassos populao pobre. O fato de ceder direitos, neste sentido, no significa, necessariamente, um enfrentamento contra-hegemnico: trata-se, ao contrrio, de uma artimanha do sistema capitalista para manter a ordem social.

    O levantamento acerca das polticas pblicas voltadas s comunidades tradicionais e criao de reas naturais protegidas demanda primeiramente, e de forma mais abrangente, uma reflexo acerca do processo de redemocratizao no Brasil. A categoria sociedade civil da pensadora gramsciana Fontes (2010) nos permite refletir sobre questes vinculadas ao capitalismo e democracia no Brasil. A autora afirma que a sociedade civil tem o conflito de classes como uma caracterstica intrnseca e que o Estado parte integrante da sociedade civil, sendo separado dela apenas por razes analticas. De qualquer forma, sendo a sociedade civil o palco da disputa do poder, pode-se afirmar que as classes organizam-se em seu interior, de maneira a formarem blocos antagnicos que tentam convencer as pessoas acerca de suas ideias sobre o mundo e seu funcionamento a luta de classes neste espao trata-se, portanto, de um processo pedaggico. Neste sentido, a sociedade civil poderia ser dividida em dois blocos bsicos: o hegemnico (que preza pela manuteno social) e o contra-hegemonico (que busca a mudana da ordem social). As pessoas que criam as ideias, os princpios sociais e as prprias mobilizaes de cada bloco, e que, portanto, fundamentam e propagam os processos pedaggicos que criam os consensos, so denominadas de intelectuais orgnicos (independente da classe qual pertencem).

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    Fontes (2010) complementa sua ideia de sociedade civil apoiada na concepo de Gramsci. Para ela,

    a sociedade civil no pode ser seccionada ou amputada da totalidade na qual emerge: responde a uma extenso da socializao do processo produtivo, mas no atua apenas nos espaos produtivos. Compem-se de aparelhos privados de hegemonia (...) que procuram diluir as lutas de classe (Fontes, 2010: 216).

    De acordo com a autora, o papel do Estado no contexto capitalista o de atuar na sociedade civil de maneira a legitimar e legalizar formas de ser, gerindo uma sociabilidade adequada, educando-a, alm de coagir os renitentes pela violncia, aberta ou discreta (Fontes, 2010:216). A ditadura militar no Brasil, iniciada na dcada de 1960, caracterizou-se pela modernizao capitalista bastante acelerada, com estratgias de expanso territorial e de industrializao. Devido aos enormes gastos nos projetos governamentais, a ditadura, no mais dando conta de estimular o desenvolvimento, cria uma grande dvida, uma vez que tais projetos eram realizados com emprstimos internacionais, principalmente a partir dos petrodlares (MIN, 2006).

    No restante do mundo, a revoluo ambiental estadunidense, desde meados de 1960, passava a ganhar maior representatividade na dcada de 1970, como um movimento ramificado multissetorial onde intelectuais passam a se organizar e produzir ideias sobre como pensar e agir em relao ao desenvolvimentismo apregoado mundialmente (Montibeller-Filho, 2008). A configurao deste cenrio faz culminar no fortalecimento do movimento ambientalista no Brasil. na dcada de 1970 que o pas passa a se inserir nas discusses sobre o ambientalismo a partir de propostas e aes junto sociedade civil e ao Estado (Leis & Damato, 1995).

    Tambm na dcada de 19709, a represso dos movimentos sociais pelo regime militar estimulou o surgimento de entidades crticas ao modelo econmico adotado no Brasil. Ao mesmo tempo, a atuao estatal nos grandes projetos e o avano agroindustrial ocasionam 9 Em 12 de dezembro de 1977 o Decreto federal n 80.978 promulgou a Conveno Relativa Proteo do

    Patrimnio Mundial, Cultural e Natural de 1972. A partir da dcada de 1980 o ecologismo social representado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimentos dos Pescadores Artesanais, Movimentos Indgenas, entre outros - surge no clima da redemocratizao com o trmino da ditadura militar, objetivando a valorizao de sistemas de produo com tecnologias alternativas, do extrativismo e ao acesso aos seus territrios e recursos naturais neles presentes (Diegues, 2004). No contexto das lutas dos povos e comunidades tradicionais cabe destacar que em 1980 foi publicada a Estratgia Mundial para a Conservao buscando incentivar os sistemas tradicionais de manejo dos recursos (Vianna, 2008). A Conferncia sobre Parques Culturais, de 1984, e a publicao da revista Cultural Survivor, em 1985, com seu nmero especial sobre Parks and People destacavam a necessidade de se proteger igualmente a diversidade cultural e biolgica.

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    significativa degradao ambiental e pauperizao social validadas pelo milagre econmico. No contexto da Conferncia de Estocolmo, em 1972, que reconheceu a importncia das comunidades tradicionais, mas no delimitou medidas protetivas (Alonso, 2005), o Brasil se posicionou a favor da atrao de indstrias internacionais ignorando os custos ambientais que tal deciso implicaria. Como um dos resultados desse processo histrico, quatro anos mais tarde surge o Manifesto Ecolgico Brasileiro: O fim do Futuro, no ano de 1976. O documento liderado por Jos Lutzemberger condenou a tecnoburocracia brasileira e defendeu relaes mais harmnicas entre sociedade e natureza, a exemplo dos grupos indgenas - ainda que em uma viso idlica deles (Diegues, 2004).

    A conjuntura histrica brasileira e mundial faz eclodir no final da dcada de 1960 diversas revoltas populares operrias, estudantis, feministas, ambientalistas, dos negros, homossexuais entre outras que materializavam o descontentamento social e poltico. Os pases chamados de terceiro mundo compartilhavam algumas condies estruturais vividas tambm pelas sociedades centrais como o avano da industrializao, o crescimento da urbanizao e estilos de vida e cultura de grandes metrpoles, o aumento do proletariado, das classes mdias assalariadas, a cultura de massa e a falta de capacidade por parte do Estado de representar a sociedade. Em suma, este perodo foi marcado pela politizao e rebeldia da populao (Antunes & Pochmann, 2007).

    Fontes (2010) destaca que a partir da dcada de 1970, ocorre um aumento de associaes empresariais divididas a partir de setores e ramos de produo. Nessa poca j existia um significativo nmero de organizaes empresariais dirigidas por pessoas prximas a entidades dos Estados Unidos que propagavam a democracia ocidental e o livre mercado. De acordo com este pensamento, a autora afirma que a represso seletiva havia favorecido a expanso de entidades de aglutinao de interesses e de convencimento social de cunho empresarial, ao mesmo tempo em que havia drasticamente constrangido e jugulado as iniciativas organizativas de cunho popular (Fontes, 2010: 226).

    Diante das lutas sociais das dcadas de 1970 e 1980 no Brasil, comea a ser influenciada a formao de vrias organizaes populares, sindicais e