Letramento e Alfabetização

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93 LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: IMPACTOS DA ESCRITA NA VIDA DE ADULTOS NÃO ALFABETIZADOS Gilton Sampaio de SOUZA 22 Adriana Morais JALES 23 Francisco Edson Gonçalves LEITE 24 Resumo: Com base nas discussões sobre a relação entre oralidade e escrita e sobre o impacto da escrita em nossa sociedade, vinculandose aos estudos sobre letramento, este trabalho visa, num primeiro momento, a estabelecer uma distinção teórica entre alfabetização e letramento a partir de suas semelhanças e diferenças. Para tanto, serão discutidos os posicionamentos de Soares (2004, 2006), Matencio (1994), Kleiman (1995), Tfouni (1995) e Marcuschi (1995). Num segundo momento, partiremos para uma análise de duas entrevistas concedidas por dois sujeitos da cidade de MossoróRN, observando as representações que estes fazem da escrita, bem como a relação deles com as práticas de alfabetização e de letramento. Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Práticas Sociais de Escrita. Abstract: Based on the discussions about the relationship between orality and writing and about the impact of writing in our society, linked to the studies about literacy, this paper aims, firstly, to establish a theoretical distinction between literacy and initial reading instruction from their resemblances and differences. In order to do that, we will discuss Soares’ (2004, 2006), Matencio’ (1994), Kleiman’ (1995), Tfouni’ (1995) and Marcuschi’ (1995) theories. Secondly, we will analyze two interviews granted by two individuals from Mossoró-RN city, observing the representations they have about writing, as well as the relation they have with literacy and initial reading instruction practices. Key words: Alphabetization; Literacy; Social Practices of Writing. 22 Docente do PPGL/UERN; Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP – [email protected] e Bolsista de Produtividade em Pesquisa UERN. 23 Professora do Departamento de Letras/UERN; Doutoranda em Linguística Aplicada pela UFRN [email protected] 24 Mestrando em Letras pela UERN [email protected]

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LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO IMPACTOS DA ESCRITA NA VIDADE ADULTOS NÃO ALFABETIZADOS

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93 LETRAMENTO E ALFABETIZAO:IMPACTOS DA ESCRITA NA VIDA DE ADULTOS NO ALFABETIZADOS Gilton Sampaio de SOUZA22 Adriana Morais JALES23 Francisco Edson Gonalves LEITE24

Resumo:Combasenasdiscussessobrearelaoentreoralidadeeescritaesobreo impacto da escrita em nossa sociedade, vinculandose aos estudos sobre letramento, este trabalhovisa,numprimeiromomento,aestabelecerumadistinotericaentre alfabetizaoeletramentoapartirdesuassemelhanasediferenas.Paratanto,sero discutidososposicionamentosdeSoares(2004,2006),Matencio(1994),Kleiman (1995),Tfouni(1995)eMarcuschi(1995).Numsegundomomento,partiremospara uma anlise de duas entrevistas concedidas por dois sujeitos da cidade de MossorRN, observando as representaes que estes fazem da escrita, bem como a relao deles com as prticas de alfabetizao e de letramento. Palavras-chave: Alfabetizao. Letramento. Prticas Sociais de Escrita. Abstract: Based onthe discussions about the relationship betweenorality and writing and about the impact of writing in our society, linked to the studies about literacy, this paperaims,firstly,toestablishatheoreticaldistinctionbetweenliteracyandinitial reading instruction from their resemblances and differences. In order to do that, we will discussSoares(2004,2006),Matencio(1994),Kleiman(1995),Tfouni(1995)and Marcuschi(1995)theories.Secondly,wewillanalyzetwointerviewsgrantedbytwo individualsfromMossor-RNcity,observingtherepresentationstheyhaveabout writing,aswellastherelationtheyhavewithliteracyandinitialreadinginstruction practices. Key words: Alphabetization; Literacy; Social Practices of Writing. 22DocentedoPPGL/UERN;DoutoremLingusticaeLnguaPortuguesapelaUNESP [email protected] Bolsista de Produtividade em Pesquisa UERN. 23ProfessoradoDepartamentodeLetras/UERN;[email protected] Mestrando em Letras pela UERN [email protected] 94 Consideraes iniciais Nos ltimos anos, uma das temticas que ganhou projeo dentro dos estudos e pesquisas da lingustica e da pedagogia a discusso sobre as prticas de alfabetizao eletramento,queestointimamenterelacionadosaquisioeusodaescritaem contextos sociais.Estando ambos relacionados diretamente escrita, pretendemos estabelecer uma distino terica a partir de suas semelhanas e diferenas. Nesse sentido, esses termos seroestudadoscomointuitodeselhesencontrarumadelimitao.Inicialmente, tentamos relacionar o que seja alfabetizao e letramento na viso de alguns estudiosos da rea. Nesse sentido, examinamos aqui as posies de Soares (2004, 2006), Matencio (1994),Kleiman(1995),Tfouni(1995)eMarcuschi(1995)paraumadiscussosobre escrita,alfabetizaoeletramento.Emseguida,medianteaanlisedefragmentosde duas entrevistas com dois sujeitos da cidade de MossorRN, buscamos entender qual a representao que estes fazem da escrita, bem como a relao deles com as prticas de alfabetizao e de letramento. Discusses tericas ParaMagdaSoares(2004),alfabetizaoeletramentodesignamprocessos interdependentes,indissociveisesimultneos,emborasejamprocessosdenaturezas distintas, que envolvem conhecimentos, habilidades e competncias diferentes. Para ela, a alfabetizao est relacionada aquisio da lngua escrita e envolve mltiplosprocessosefacetas:[]conscinciafonolgicaefonmica,identificao dasrelaesfonemagrafema,habilidadesdecodificaoedecodificaodalngua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de traduo da forma sonora da fala para a forma grfica da escrita (p. 15).Nessamesmalinha,oletramentovistocomoumfenmenocomplexo,uma vezque[]englobaumamplolequedeconhecimentos,habilidades,tcnicas, valores,usossociais,funesevariahistricaeespacialmente(SOARES,2006,p. 95 30).Nessesentido,aautorareconheceduasprincipaisdimensesdoletramento:uma individual e outra social. Do ponto de vista individual, o letramento25 entendido como umatributoindividual,compreendendoapossedehabilidadesdeleituraeescrita.Do ponto de vista social, o letramento compreendido como um fenmeno cultural, no que concerne a um conjunto de atividades e demandas sociais de uso da escrita (SOARES, 2006). O letramento no unicamente um atributo pessoal, mas essencialmente [] o queaspessoasfazemcomashabilidadeseconhecimentosdeleituraeescrita,em determinadocontexto,earelaoestabelecidaentreessashabilidadese conhecimentoseas necessidades, os valores e as prticas sociais (SOARES,2006, p. 33.Grifo da autora). Assim, sob essa tica, o letramento visto como um conjunto de prticassociaisqueenvolvemaleituraeaescritarealizadaporsujeitosemcontextos sciohistricos especficos. Para Kleiman (1995), letramento e alfabetizao so processos distintos, embora ambosstenhamasuaexistnciaapartirdaescrita.Oprimeiroestrelacionadoao coletivo,aosefeitoscausadospelaescritaatodaumasociedade;josegundodiz respeitoaosaspectosindividuaisdaaquisiodalinguagemescrita,aqualsedpor meio de tcnicas para a aprendizagem do cdigo escrito da lngua26. Queremossalientarquetodosessesestudiosos dalinguagem,aquicitadospara distinguiralfabetizaoeletramento,fazemumaexceoparaoconceitode alfabetizao proposto por Paulo Freire. Vejamos o que diz Kleiman (1995, p.16): EximemsedessasconotaesossentidosquePauloFreireatribui alfabetizao, queav comocapaz delevaro analfabeto a organizar reflexivamenteseupensamento,desenvolveraconscinciacrtica, introduzilonumprocessorealdedemocratizaodaculturae libertao (FREIRE, 1980).Porm [...] esse sentido ficou restrito aos meios acadmicos. 25 No texto, Soares usa o termo alfabetismo para se referir ao que hoje se denomina letramento. 26 Enquanto Soares (2006) reconhece uma dimenso individual e outra social do letramento, Kleiman (1995) o v apenas sob uma dimenso social. 96 Sendoassim,aaopelalibertao,comconscinciacrticae transformadora,propostaporPauloFreireparaoprocessodealfabetizaodeadultos, nochegousaladeaula,localemqueaalfabetizaovistaunicamentecomo aquisioindividualdaescrita,ouseja,aprendizagemdehabilidadesespecficaspara lereescrever. Nessaperspectiva,aalfabetizaobemmaisrestritadoqueo letramento. (KLEIMAN, 1995). Observandoofenmenodoletramentoemsociedadesindustriaiscomoa nossa, Kleiman apresenta duas concepes diferentes para ele.O modelo autnomo e o modelo ideolgico27. Oprimeiro tem comopressupostosbsicos a superioridade da escrita sobre outrasformasdeinteraoecomunicaonumasociedade,comotambma superioridade das sociedades ditas letradas sobre aquelas de cultura predominantemente oral,ditas noletradas. A fim detornar mais explcitas essas questes, colocamosaqui asprincipaiscaractersticasdessemodelo:aassociaoentreletramentoe desenvolvimentocognitivo,adicotomizaoentreoralidadeeescritaeatesedequea escritatemqualidadesintrnsecas.Kleimanmostraquetodaselassopassveisde questionamento. Na primeira, o tipo de desenvolvimento cognitivo analisado relacionaseescolarizaoenoaoletramento;nasegunda,elamostraqueessaconcepo dicotmica de linguagem est sendo amplamente questionada, uma vez que oralidade e escrita esto mais para um contnuo do que para oposies; e, na terceira, a autora alerta queessasqualidadesintrnsecasdependemmuitomaisdoqueopesquisadorest considerandocomopositivoounegativodoquedeseuverdadeirovalor.As

27 Esses dois modelos de letramento apresentados por Kleiman aproximam-se muito de duas perspectivas do letramentoapresentadasporMatencio(1994).Aprimeira,dicotmica,defendeque[...]oresultadodo impactodapalavraescritarepresentaoprpriodesenvolvimentocognitivodoaprendiz(p.20).Dessa forma,apresenaounodaescritaemdadacomunidadesignificariacaracteriz-ladecivilizada/no-civilizada ou moderna/primitiva, respectivamente.Aqui, a escrita vista como tendo seus prprios poderes modernizadoresedemocrticos.Asegundaperspectivaapresentadapelaautora[...]voprocessode letramentocomonecessariamenteplural,pressupequediferentessociedadesecomunidadespossuem eventos de letramento distintos, o que acarreta efeitos sociais e estilos cognitivos tambm diversificados (p. 20). Nesta ltima perspectiva, o impacto social da escrita via processo de letramento apresentado de forma plural, vinculando-se aos aspectos socioeconmico-culturais da populao. As consequncias desse processo variamdecomunidadeparacomunidade.Estaperspectivasecontrapeprimeira,naqualaescritaest sempre relacionada a algo positivo para a sociedade. 97 pesquisassofeitasapartirdoqueaescritafacilitaria,entoa oralidadegeralmente fica como secundria. O segundo modelo de letramento apresentado por Kleiman foi o ideolgico. Neste, ela tenta aprofundar as discusses realizadas no autnomo e alerta: Onossoentendimentodasdiferenasnasprticasdiscursivasde grupos socioeconmicos distintos devido as formas em que integram a escritanoseucotidianotemavanadodevidoaestudosqueadotam umpressupostoquepoderiaserconsideradobsiconomodelo ideolgico,asaber,queasprticasdeletramentomudamsegundoo contexto.(KLEIMAN, 1995, p. 39). Assim,ocontextoquemdeterminaquevalorteresteouaqueleeventode letramento.Nessascircunstncias,acreditamosque,separaumacomunidadecertas prticasdiscursivasrealizadaspormeiodaescrita,ouseja,certoseventosde letramento trouxeram benefcios, para outras podero trazer problemas. Tfouni (1995), discutindo a relao entre alfabetizao e letramento, mostra que hduasformasdeentenderaalfabetizao:[...]oucomoumprocessodeaquisio individualdehabilidadesrequeridasparaaleiturae escrita,oucomoumprocessode representao de objetos diversos, de naturezas diferentes (p.14). Nas questes de letramento, Tfouni (1995) faz uma anlise de trs perspectivas norteamericanasparaotermoliteracy(letramento):aindividualistarestritiva,a tecnolgicaeacognitivista.Aindividualistarestritivavoletramentocomo totalmenterelacionadoaquisiodaleitura/escrita;atecnolgica,enquantoproduto comusosestritamentesofisticados;eacognitivista,enquantoprodutodeatividades mentais.Tfouniesclarecequeemtodasessasperspectivashumasuperposioentre letramentoealfabetizao.Nohdistinoclaraentreumeoutro;aocontrrio,so tratados como se fossem sinnimos. Alm disso, a dicotomizao que aparece em todas essas perspectivas favorece atesedagrandedivisa.Teseestaque,seacomparamosspropostasdeMatencio

98 (1994)eKleiman(1995),aquirepresentadas,vemolacomoomodeloautnomode letramento discutido por Kleiman. a prpria Tfouni que vem explicar melhor a teoria da grande divisa: Acreditam alguns autores que a aquisio generalizada da escrita traz consequncias de uma ordem tal que isso modifica de maneira radical as modalidades de comunicao dessa sociedade.Passariam a existir usosoraiseusosletradosdalngua,eestesseriamseparados, isolados, caracterizando, assim, a grande divisa. (1995, p. 34). Paracriticaropontodevistadeautoresparaosquaisaoralidadeeaescrita estariamtoseparados,comomostraateoriadagrandedivisa,Tfounielaboraasua classificaoparaoletramento,colocandoessasperspectivasnorteamericanas,junto comadagrandedivisa,nasqueelaprprianomeiadeahistricas.Contrapenasas perspectivashistricas,paraasquaisaoralidadeeaescritainstauramsenum contnuum textual. Considerandotaisperspectivas,Tfouniesclarece:Deacordocomo conceitodeletramentoqueestamospropondoaqui,deveseaceitar quetanto pode haver caractersticasorais nodiscurso escrito, quanto traos da escrita no discurso oral (1995,p. 42). Sugere a autora que oralidade e escrita no devem ser vistas como oposies, e sim como modalidadesdiscursivaspertencentesaomesmosistemalingustico, queformam,naverdade,umcontnuumtextual,emqueamaiorou menorformalidadenodiscurso,nooralounoescrito,depende diretamentedocontextoemqueserempregadaenodotipode modalidade. Um discurso oralacadmico, tipo conferncia, ser bem maisplanejado,formaleeruditodoqueumdiscursoescrito,tipo bilhetes ou cartas de me para filho e viceversa. Concluindoestaprimeirapartedotrabalho,quetratadarelaoentre alfabetizaoeletramento,queremosaindaremeteraoquedizMarcuschisobreo assunto: H,portanto,umadistinobastantentidaentreapropriao/ distribuio da leitura e da escrita (padres de alfabetizao) e os usos /papisdaescritaedaleitura(processosdeletramento)enquanto prticas mais amplas (grifos do autor).Sabemos muito sobre mtodos de alfabetizao, mas sabemos pouco sobre a influncia e penetrao da escrita na sociedade. (1995, p. 2). De acordo com a afirmao acima, feita por Marcuschi, e com as discusses de Tfouni (1995), Soares (2004, 2006), Kleiman (1995) e Matencio (1994), impese que 99 alfabetizaoeletramentosoprocessoscomcaractersticasprprias.Umligaseao aspectomaisindividualdaaquisioeaprendizagemdetcnicasdecodificaoede decodificao;eooutro,refereseaoimpactoqueaescritatemsobreasociedade, implicando aspectos socioeconmicoculturais de um povo. Dentro do que apresentamos at agora, podemos acreditar que j est claro que nohumnicoconceitodealfabetizao,nemdeletramento.Ambospodemser vistossobperspectivasdiferentes.Noentanto,algoficoutransparente, que podemos colocarasperspectivasdeletramentoelaboradasporSoares(individual/social);por Matencio (dicotmica / plural); por Kleiman (modelo autnomo / modelo ideolgico) e por Tfouni (ahistricas / histricas), em dois grandes grupos. Chamaremos o primeiro grupo deperspectivasautnomas, uma vez que a escrita aqui vista e analisada como tendoqualidadesintrnsecas,individuais,exclusivas,ahistricas,sendoestasempre concebidacomototalmentedistintadaoralidade.Almdisso,essasperspectivas sugeremumaautonomiadaescritasobreaoralidade, umasuperioridadedelasobreas outras formas de interao. O segundo grupo denominaremos por perspectivas sciohistricas.Isto porque aescritaaquiconcebidacomoproduto/prticasocial,coletiva.Podemoscrerque, comonaspropostasanalisadas,aimportnciaouno daescritaparauma determinada sociedade,oseuimpactonaculturadeumpovo,estintimamenterelacionado distribuiosocialdopoderpolticoeeconmico,queosefeitosdesseletramento podem ser positivos para certas camadas da sociedade e negativos para outras. Discusses dos dados Vivemoshojeimersosnumasociedadeletradaemqueaescrita supervalorizada e atua, algumas vezes, como um instrumento de poder e de excluso. O domniodessamodalidadelingusticasefaznecessrioparticipaoemdiversas atividades sociais e aqueles que no o tm acabam por serem excludos dessas prticas.Nesse sentido, teceremos, a seguir, uma anlise a partir de entrevistas concedidas porduaspessoas,buscandoverificararepresentaoqueelasfazemdaescritacomo instrumentoquepermiteaparticipaoematividadessociaisdiversas,bemcomoa relao delas com as prticas de alfabetizao e letramento. As participantes so de uma 100 classesocialeconomicamentebaixae,apesardejteremfrequentadoaescolaem algum momento na vida, dizem no saber ler e escrever28.A primeira participante reside na cidade de Mossor h muitos anos, casada e moranumapequenacasacomomaridonumbairroperifricodacidade.Comeoua trabalharmuitocedonalavourae,depois,comodomstica.Asegundaparticipanteda entrevista nasceu num pequeno vilarejo chamado Jucuri, prximo Mossor, mas logo criana mudouse para a cidade. Trabalhou tambm na lavoura, juntamente com os pais eosirmos,e,em seguida,comodomstica.Temdoisfilhose mora nomesmo bairro da primeira entrevistada.Vejamos abaixo alguns fragmentos destacados das entrevistas29: ENTREVISTA 1ENTREVISTA 2 [] E: certo (+) voc sabe l e escrev? P1:nuncaestudeinaminhavida(+)nunca(+)pramelh diz nem o meu nome eu no seiassin E: ? a e agora voc a sinhora cheg a frequent escola? P1: cheguei muitas vez mas parece que o (+) meu (+) sei l o meu sigo mesmo que no pra mim aprend E:]mas()porquantotempoasinhorafrequent escola? P1: eu passei poucos tempos passei s um ms (+) estudava denoite(+)aeuengrossavaacabeanelaivaieno dava certo e eu me aborrecia deixava de mo era assimE: eh:: alguma coisa impediu a sinhora de no aprend a l e a escrev? P1:no(+)eutenhoinvejadequemsabelquemsabe [] E: voc sabe l e escrev? P2: no (+) s sei escrev E: o nome? P2: sim E:vocchegafrequent alguma escola? P2: at a quarta sri E: por quanto tempo? P2: vixi (+) acho que no foi nem um ano E:oqueimpediuvocde aprend a l e a escrev? P2: eu sentia muitad de cabea (+) aisso meincomodava (+) a 28 Em virtude de limitaes de espao fsico do texto, optamos por colocar apenas fragmentos das entrevistas. 29 Nas entrevistas, optamos por manter oculta a identidade das participantes. Para tanto, utilizamos cdigos: E para entrevistador; P1 para participante da primeira entrevista; e P2 para participante da segunda entrevista. O processo de transcrio e codificao dos dados est de acordo com as orientaes de Marcuschi (2003). 101 escrev(+)eu tenhoinveja (+) a nicacoisa queeutenho inveja da pessoa isso [] nunca aprendi [] Quadro n 1: Como se apresentam em relao escrita e alfabetizao P1 afirma no saber ler nem escrever. Embora tenha tido contado com agncias dealfabetizao(aescola),aindaqueporpoucotempo,eladiznoconseguirsequer assinaroprprionome.Dessaforma,podeserconsideradacomoumapessoanoalfabetizada,namedidaemquenodominaoscdigosconvencionaisdaescrita.Para justificaroseuinsucessonaescola,aparticipantealegaquequandoiaparaaescola, []engrossavaacabeanelaivaienodavacertoeeumeaborreciadeixavade moeraassim.Assim,emboratenhatidocontatocomprticasdealfabetizao, percebesequeissonosedeudeformasistemtica.DamesmaformaqueP1,P2 tambm frequentou a escola, mas afirma no saber ler e escreve apenas o seu nome. P2 afirmaterestudadoataquartasrie,demonstrandotertidoummaiorcontatocoma alfabetizaodoqueaprimeiraparticipante,masapresentaomesmomotivoparao insucessoeoabandonodaescola:[]sentiamuitaddecabea(+)aissome incomodava(+)anuncaaprendi.Assim,asduaspessoasentrevistadas(P1eP2) demonstram ter tido, ainda que de forma rpida e no sistemtica, contato com agncias dealfabetizao,maspodemserconsideradas,respectivamente,noalfabetizadae precariamentealfabetizada30,namedidaemquenodominam(ouofazdemodo precrio,nocasodeP2)astcnicasehabilidadesdecodificaoedecodificao lingustica,ouseja,noaprenderamalereescrever.Vejamosmaisumfragmentoda entrevista: 30OptamosporclassificarP2comoprecariamente alfabetizada porque,emboranocomeo da entrevista, afirme que no sabe ler e escreve apenas seu nome, num outro momento ela afirma que sabe pegar o nibus certo porque consegue soletrar os nomes dos locais de destino. 102 ENTREVISTA 1ENTREVISTA 2 [] E:vocachaqueasuavidaseriadiferentesevocsoubessele escrev? P1: era sim eu acho que era E: como? P1: eu digo assim que eu podia arranj um emprego melhor pra mim neutchegueiaquiemMossoreutinhadezesseisanotrabalhei (+) t vinte e dois ano nas casas dos outro empregada nas casas dos outro (+) qu diz se eu soubesse l eu tinha arranjado um emprego melh pra mim n esse tempo todinho uns assinava as carteira outros no assinava pagava micharia e nisso eu fiquei na minha vida desse jeito [] [] E:eh::vocachaque suavidaseriadiferente sevocsoubessele escrev? P2: vixi demais E: como? P2: () pra trabalh agoratavanum emprego bom [] Quadro n 2: A vida profissional para pessoas adultas no alfabetizadas Ambasasparticipantesafirmamquesuasvidaspoderiamsermuitodiferentes, casosoubessemlereescrever.Elasafirmamque,sefossemalfabetizadas,teriam possibilidadedeconseguirumempregomelhor;admitemaindaaimportnciaeo prestgio que a escrita exerce na vida social, configurandose, inclusive, como um meio que possibilita a ascenso socioeconmica. As entrevistadas, nesse sentido, reconhecem essepodersimblicoeefetivodaescritaemdeterminadoscontextosdassociedades grafocntricas,como,porexemplo,paraainseronomercadodetrabalhonum emprego melhor ou emprego bom. No entanto, vale aqui ressaltar que o prestgio e o poder atribudos escrita e a relao desta com ascenso socioeconmica (como ficou explicitadonafaladasentrevistadas)nolheintrnseco.Aocontrrio,so determinadosporquestessociaiseculturais.Aalfabetizao,emborapossa aumentar aschancesdeempregabilidadedoscidados,nolhegaranteautomaticamenteessa ascenso profissional. 103 ENTREVISTA 1ENTREVISTA 2 [] E: hum huma agora assim o fato da sinhora no aprend a l(+)notaprendidoaleescrev(+)jtrouxealgum problema pra sinhora? [] P1:noeutenhooproblemaesseporqueeutenho assim as vezes eu quero escrev pro meu povo n a eu no tenhoquemescrevaalaivemeusaiopedindoaumea outro pra escrev uma carta pra mim uma coisa assim (+) a eu fico arrependida por causa disso sabe (+) me arrependo (+) [] E: a como que a sinhora faz pra peg um nibus ou ou ou pra realiz alguma atividade que precise l e escrev? como que a sinhora faz? Peg um nibus l uma uma receita (+) como que a sinhora faz no no seu dia a dia? P1: no sei E: pede ajuda a algum? P1:peoajudaapessoa(+)mulhermeensineissoassim assim E:[ a sinhora anda de nibus? P1: no (+) muito difcil eu and de nibus muito difcil E: e pra vot? faz falta l e escrev pra sinhora vot? P1: Peu vot? E: sim P1: faz (+)porque eunosei(+) eu nunca votei na minha vida (+) nunca votei E:no?aagoraasinhorasentivergonhapornoporno sab l e escrev? P1:sintomuito(+)aquandoeuvejoassimumapessoa chega pronto a pronto eu vou prum prum centro sade tem as fichinhas ( ) n a a mulher l mim d aquela fichinha prontoeuficosemrumosemeusabquequequala [] E: o fato de no sab l e escrev j trouxe algum problema? P2: no ainda no E: no teve problema nenhum P2:no(+)mesmosemsabl eu sei resolv as coisa E: d um jeito n? P2: d [] E:comovocfazparapegum nibus(+)ourealizumauma qualquercoisaquequeexijaque vocsaisaibaleescrev? Como que voc faz vai peg um nibus(+)comoquevoc(+)se viraouento(+)algumacoisa quevoctemquesab(+)o que est escrito ali? P2:nemonibusnntan difcil no deu peg no E: a como voc faz? P2:euseieuassoletroonomee digo E: hum P2: (rindo) E:eh::epravot?nomomento de vot (+) como que voc faz? P2: no tenho di dificuldade no E:fazfaltasabenosable escrev? P2:fazmaseunumtenho 104 minhafichaonmerodaquelafichaaprecisoeume encostapessoaeperguntfulanoeunoseilnunca estudei que nmero esse aqui a pessoa me diz assim [] dificuldade [] Quadro n 3: Os problemas cotidianos de pessoas adultas no alfabetizadas Nessapartedaentrevista,oentrevistadorperguntaaP1comoela,nosendo alfabetizada, faz para participar de uma srie de eventos sociais que requerem o domnio daescrita.Ela,pornoseralfabetizada,afirmaounoparticipardesseseventosou recorrer ajuda de outras pessoas para tanto. o caso, por exemplo, de escrever cartas parafamiliares,depegarumnibus,lerumareceita,saber,numatendimentopblico, aguardar sua chamada pelo nmero da ficha, votar. Uma das dificuldades apontadas por P1advindadofatodeelanosaberescrever,porexemplo,noconseguirse comunicarcomfamiliaresseuspormeiodecartas.NessecasoP1seriaexcludadessa prticasocialletrada.Paraparticipardessaatividade,P1temquerecorreraoutras pessoas,paraqueestaspossamredigirascartas.Jnocasodevotar,comotambm umaprticaquerequeralgumdomniodocdigoescrito(paradigitarosnmerosdos candidatos,porexemplo),eporserumaatividadequeoindivduodeverealizar sozinho, P1 afirma nunca ter participado. Percebese, assim, que P1 em razo de no ser alfabetizada,apresentadificuldadesparaparticipardeatividadessociaisquerequerem um domnio mnimo do sistema da escrita.JP2,devidopossuirumnvelelementardealfabetizao,consegueparticipar de algumas situaes sociais que requerem algum conhecimento da escrita, como pegar umnibus(euseieuassoletroonomeedigo)evotar.Comoaprpriaentrevistada afirma, [] mesmo sem sab l eu sei resolv as coisa. Dessa forma, percebese que P2 apresenta umnvel de letramentoescolar maior do que P1, ao participar de prticas sociais que requerem o uso da escrita. Portanto,vsequeasduasentrevistadaspertencemaclassesdesfavorecidas socialmente.Advmdefamliaspobresetiveramquetrabalhardesdecedo.Suas relaes com a alfabetizao so muito parecidas: ambas frequentaram a escola, mas de maneirapassageiraenosistemtica.Emboratenhamparticipadodeumaagnciade alfabetizao,aescola,P1eP2podemserconsideradasnoalfabetizadae 105 precariamentealfabetizada,respectivamente,namedidaemquenodominam(ouo fazemdemaneirainsatisfatria)osistemadeescrita.Asparticipantesreconhecemo papelimportantedesempenhandoporessamodalidadelingusticanumasociedade letrada,aexemplodanossa,eveemaescolarizaocomoumaformadeascender econmicaesocialmente.Quantoaoletramento, ambas se mostram incapazes de atuar demodoativoemcertasatividadessociaisquerequeiramdemodomaiscomplexoo usodaescritapornodominaremtcnicasdecodificaoedecodificaolingustica. Noentanto,principalmenteP2,mostraque,emborasejaprecariamentealfabetizada, consegue participar de forma satisfatria em eventos sociais que requerem um domnio, ainda que em menor grau, da escrita. Consideras finais Percebese que, apesar de apresentar particularidades, alfabetizao e letramento so prticas indissociveis e intercambiveis: a alfabetizao se d [] no contexto de epormeiodeprticassociaisdeleituraedeescrita,isto,atravsdeatividadesde letramento,eeste,[]spodedesenvolversenocontextodaepormeioda aprendizagemdasrelaesfonemagrafema,isto,emdependnciadaalfabetizao. (SOARES, 2004, p. 14. Grifos da autora).Quantosentrevistas,vsequeP1eP2pertencemaclassessociais desfavorecidasetiveramumcontatonosistemticoerpidocomaescola.Assim, embora tenhamtido contato uma agncia dealfabetizao, ambasnoobtiveram xito, podendo,respectivamente,seremclassificadascomonoalfabetizadaseprecariamente alfabetizadas.Pornoseralfabetizada,P1ouexcluda(comonocasodevotar)de prticassociaisquerequeremumdomnio,aindaquemnimo,daescrita,ourecorre ajudadeoutraspessoasparaparticipardetaiseventos(escreverumacarta,pegarum nibus).JP2consegueparticipardeprticasletradasquenorequeremumdomnio mais complexo da escrita (pegar um nibus, votar), em virtude de demonstrar um maior nvel de alfabetizao (saber soletrar, por exemplo). Sendo assim, P2 apresenta um nvel maior de letramento do que P1. 106 H,enfim,umimpactodiretoedanosospessoasadultasnoalfabetizadas(e tambm na percepo dessas pessoas), em sociedades ditas letradas como a nossa, uma vezquetodaestruturaeconjunturaeconmicaesocialdessasociedadepressupem pessoasalfabetizadas,especialmenteasadultas,leitoresempotencial,quetmdese locomover para resolver problemas do dia a dia e fazer usos dos servios pblicos para podersobreviverem.Nosdiscursosdasentrevistas,anoalfabetizaoseapresenta, acima de tudo, tambm como uma forma de excluso social e econmica. Referncias FREIRE, P. Educao como prtica da liberdade.10 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. KLEIMAN,A.B.Oqueletramento:modelosdeletramentoeasprticasde alfabetizaonaescola.In.:Kleiman,A.B.(Org).Ossignificadosdoletramento: umaperspectivasobreaprticasocialdaescrita.Campinas,SP:MercadodeLetras, 1995 (p. 15 61). MARCUSCHI, L. A. Anlise da conversao. So Paulo: tica, 2003. ______. Oralidade e escrita. 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