Letras 42

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42 Periódico cultural • Ano V • N o 42 • Outubro de 2010 • Tiragem: 2000 exemplares • Distribuição gratuita • Belo Horizonte • MG • Brasil

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Edicão número 42 do jornal Letras, produzido pelo Instituto Cidades Criativas.

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Periódico cultural • Ano V • No 42 • Outubro de 2010 • Tiragem: 2000 exemplares • Distribuição gratuita • Belo Horizonte • MG • Brasil

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Número 42 • Outubro de 2010

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ISSN 1983-0971

por Xande Peroccowww.azucrina.org

RealizaçãoPatrocínio

Ana Caetano

Poesia e música trazem consigo uma história antiga de afinidades eletivas. Dos poetas provençais até os versos ritmados da música popular brasileira ou americana, muito da dinâmica interna da sonoridade poética do verso e das energias que o movem fazem da poesia também uma epifania da voz, como bem disse o linguista Paul Zumthor. É nessa fronteira tênue entre a voz e a letra que se encontra a poesia de Tom Waits. Californiano de Pomona, ele é conhecido como músico, instrumentista, compositor, cantor e ator. Possui uma considerável obra, constituída de quase 30 álbuns (incluindo álbuns de estúdio, compilações e álbuns ao vivo), e mais de 50 participações diretas (como ator) e indiretas (compondo trilhas sonoras) em filmes. Um dos filmes onde participou como ator e músico, “Down by Law” (1986) de Jim Jarmusch, foi relativamente bem divulgado no Brasil no circuito Cult. Tom Waits lançou o seu primeiro álbum “Closing Time” em 1973 e, nesse início de carreira, fazia a primeira parte de shows de Frank Zappa e John Hammond. Já foi indicado a um grande número de prêmios musicais, tendo ganho Grammy Awards por dois álbuns, “Mule Variations” e “Bone Machine”. A música de Tom Waits não se prende a um gênero musical determinado. Pode-se facilmente encontrar em seus álbuns rock, jazz, folk, blues, dentre outros tantos gêneros e estilos musicais. Sua produção a partir de 1983 é claramente mais experimental aproximando-o da dicção da geração beat. O próprio Tom Waits considera que a participação de sua mulher Kathleen Brennan foi decisiva nessa fase da sua obra. De fato, a partir dos anos 80, eles assinam juntos várias letras. O poema “9a. com Hennepin” faz parte do álbum “Rain Dogs” de 1985. O músico explicou em entrevista que a esquina citada no título está em Minneapolis, mas todas as referências são de New York. O poema é um típico exemplo do seu repertório beat, falado em tomo arrastado com o acompanhamento abafado de piano, clarineta, percussão e baixo. Seu lirismo rústico e urbano soa como a lamúria mastigada de um mendigo de rua.

TomWaits

9th & HennepinWell it’s Ninth and HennepinAll the doughnuts have names that sound like prostitutesAnd the moon’s teeth marks are on the skyLike a tarp thrown all over thisAnd the broken umbrellas like dead birdsAnd the steam comes out of the grillLike the whole goddamn town’s ready to blow...And the bricks are all scarred with jailhouse tattoosAnd everyone is behaving like dogsAnd the horses are coming down Violin RoadAnd Dutch is dead on his feetAnd all the rooms they smell like dieselAnd you take on the dreams of the ones who have slept hereAnd I’m lost in the window, and I hide in the stairwayAnd I hang in the curtain, and I sleep in your hat...And no one brings anything small into a bar around hereThey all started out with bad directionsAnd the girl behind the counter has a tattooed tearOne for every year he’s away, she saidSuch a crumbling beauty, ahThere’s nothing wrong with her that a hundred dollars won’t fixShe has that razor sadness that only gets worseWith the clang and the thunder of the Southern Pacific going byAnd the clock ticks out like a dripping faucettil you’re full of rag water and bitters and blue ruinAnd you spill out over the side to anyone who will listen...And I’ve seen it all, I’ve seen it allThrough the yellow windows of the evening train...

Tom Waits

9a. com Hennepin Bom, aqui é esquina da Nona com HennepinTodos os donuts têm nomes que soam como prostitutasE vejo marcas dos dentes da lua no céuComo uma lona cobrindo tudo istoE os guarda-chuvas quebrados como pássaros mortosE a fumaça subindo da grelhaComo se a maldita cidade estivesse prestes a explodir ...E os tijolos todos marcados com tatuagens de prisãoE todos se comportam como cãesE os cavalos descem a Violin RoadE Dutch é morto em péE todos os quartos cheiram a dieselE você embarca nos sonhos de quem dormiu aquiE estou perdido na janela, e me escondo na escadariaE me dependuro nas cortinas, e durmo no seu chapéu ...E por aqui ninguém traz nada pequeno ao barEles todos começaram por maus caminhosE a garota atrás do balcão tem uma lágrima tatuadaUma para cada ano que ele está longe, ela dizUma beldade se esfarelando, ah Não há nada de errado com ela que não se conserte com cem dólaresE ela tem aquela tristeza cortante que só pioraCom a batida e a trovoada do Southern Pacific passandoE o relógio bate como uma torneira pingando Até que você esteja tão cheio de whisky, cerveja e gin que põe para fora tudo o que pode para quem quiser ouvir ...E eu já vi tudo isso, já vi tudo isso Pelas janelas amarelas do trem da tarde ...

Tradução: Ana Caetano & Sofia Caetano Avritzer

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Periódico cultural • Ano V • No 42 • Outubro de 2010 • Tiragem: 2000 exemplares • Distribuição gratuita • Belo Horizonte • MG • Brasil

Editoria e Direção Geral:Carla Marin e Bruno Golgher

EditoriasArtes Cênicas: Mônica M. Ribeiro

Arquitetura: Diogo CarvalhoCinema: Ana Lúcia Andrade

Cultura e Literatura Judaicas: Lyslei NascimentoDireito e Cultura: Diana Gebrim

Economia da Cultura: Ana Flávia MachadoGestão Cultural: Eleonora Santa RosaLiteratura: Rogério Barbosa da Silva

Urbanidade: Wellington Cançado

ColunasPoesia: Ana Caetano

Música: Marcelo Dolabela

Colaboração (esta edição):Bárbara Gigonzac • Clarice de Assis Libânio

Gabriel Carneiro • João Antonio de PaulaJosé Lutzenberger • Paola Rettore • Raquel Camargo

Design: Jumbo

Jornalista Responsável: Vinícius LacerdaTiragem: 2000 exemplaresImpressão: Gráfica Fumarc

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Letras é uma publicação da ONG Instituto Cidades Criativas:Rua Antônio de Albuquerque, 781 - Savassi

Belo Horizonte, MG - CEP 30112-010

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Poucos sabem, mas devido à necessidade, Eduardo Chatiba descobriu há alguns anos

a cura do medo. Também é pequeno o número dos que sabem que, por medo das

conseqüências, Eduardo Chatiba não tornou pública a sua descoberta.

- E se na ausência do medo cada indivíduo sair por aí fazendo o que lhe vier à cabeça? E se

faltar cabeça?

Hoje Eduardo Chatiba acordou com uma ideia na cabeça.

Tomou uma pequena dose.

A descoberta da necessidade

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A absurda poda anual

José Lutzenberger

Todos os anos, no inverno, repete-se, na maioria de nossas cidades, um fenômeno desconhecido em outras paragens. Há vá rias décadas fixou-se entre nós uma inex-plicável tradição que consiste na mutilação pura e simples de nossas árvores urbanas, tanto nas ruas como nos jardins. Muitas vezes no campo, junto às casas de fazendas ou de colonos, pode ver-se o mesmo desca-labro. A esta mutilação é dado o nome de “poda”. O tratamento geralmente é aplicado aos cinamomos, jacarandás e plátanos, às vezes aos ligustros e extremosas, raras vezes com outras espécies como umbús, paineiras ou guapuruvús. Os malstratos são tais que muitas vezes as árvores pouco a pouco vão

se acabando. No caso do cinamomo, ouve-se dizer que a árvore é de curta vida, mas nin-guém se dá conta que tal fato se deve justa-mente às repetidas e contínuas mutilações. Um cinamomo não mutilado certamente viverá centenas de anos.

Em nosso meio é difícil de se ver uma ár-vore de rua em bom estado, desenvolvida segundo suas próprias leis. Quase todas são doentes, com tocos e troncos mortos ou par-cialmente apodrecidos, impedindo assim a cicatrização e recuperação das mesmas.Uma vez que estão todas fracas e consumidas por dentro, tornam-se presa fácil para insetos, como no caso das cochonilhas do jacarandá. A reação comum é, então, cortar os galhos atingidos para eliminar os insetos, consti-

tuindo-se assim nova poda, agora com fins curativos, geralmente um choque que pou-cas árvores superam.

Se aceitarmos o argumento muitas vezes apresentado, de que é necessário defender os fios elétricos do contato com as árvores, para evitar curtos-circuitos, ou evitar acúmulo de umidade junto às casas, é surpreendente que mesmo em ruas onde não há energia elétri-ca a violência da agressão seja a mesma. Por exemplo, na Rua Eng. Álvaro Pereira em Porto Alegre, uma linda árvore que se encontrava na beira de um precipício, em local de rara be-leza panorâmica, longe de fios e habitações, foi tão brutalmente mutilada, cortando-se galhos de até 20cm de diâmetro, rasgando-se lascas profundas no tronco, que é verdadeiro

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milagre sobrevivência da mesma planta até os dias de hoje, apesar do visível definhamen-to que apresenta.

Outra justificativa que se encontra, pro-posta por “técnicos responsáveis”, é que se trata de “poda de recuperação”, argumento que vai às raias do absurdo, como a propo-sição de se mutilar criancinhas para que cresçam melhor. Iludem-se com os brotos fortes e viçosos que surgem na Primavera após o corte, esquecendo as tremendas feridas que ficam e constituem janela de infecção para toda a sorte de bactérias e fungos, além de possível abrigo para inse-tos e animais maiores, que se encarregarão de continuar o processo de destruição.

Devemos compreender que, em princí-pio, árvore alguma necessita de poda. Se elas fossem tão necessárias como se quer fazer crer, os bosques e florestas nativas já há muito teriam desaparecido. Quanto mais livremente uma árvore consegue se desenvolver, tanto mais tempo viverá, por ser mais sã e bela. A poda sã faz sentido na fruticultura ou viticultura, onde, segundo esquemas racionais e bem definidos, se faz “amputações” com instrumentos adequa-dos, como o podão, cortando-se, em pon-tos pré-estabelecidos, galhos de pequeno diâmetro, sempre sendo tomadas precau-ções adequadas. A finalidade desta poda é educar a árvore de maneira a propiciar uma forma que facilite a insolação em toda a pe-riferia e interior, a colheita e a frutificação. Este tipo de poda constitui toda uma ciência, de certo modo pouco complexa.

Em árvores decorativas ou de sombra a poda sã teria sentido quando se quisesse educar ou moldar a árvore para formas artificiais, o que na maioria dos casos, termina com figuras de mau gosto. Por que não apreciar a árvore como a Natureza a idealizou? Nos de-mais casos, a poda se constitui em medida de emergência, nunca de rotina.

Quando constatada realmente a necessida-de de se remover galhos ou troncos impor-tantes de uma árvore adulta, para defender um fio elétrico ou uma construção, ocasiona-da pela falta de educação do crescimento ou uma construção nova, este trabalho deverá ser feito dentro de uma técnica especial, a “dendrocirurgia”. Galhos e troncos serão re-tirados de tal maneira que a cicatrização nolocal de corte seja rápida e eficaz, possi-bilitando a recuperação da árvore tal qual paciente após operação. Assim feito, após algum tempo,será difícil identificar o local onde foi feita a remoção, e a árvore seguirá vivendo como se nada houvesse ocorrido.

Para se realizar este tipo de trabalho, é ne-cessário que se compreenda como cresce uma árvore. Isto é muito fácil, mas exige um pouco de observação, algo raro no mundo de hoje. Se o público houvesse observado de perto nossas árvores urbanas, há muito teriam sido tomadas medidas para evitar a destruição sistemática que sofrem.

O esquema de crescimento de uma árvore é fundamentalmente diferente daquele de um animal superior. Enquanto um mamí-fero, por exemplo, cresce interna e exter-namente como um todo, com manutenção da estrutura total, a árvore cresce como uma colônia de corais na superfície de suas estruturas originais. Os troncos e galhos se engrossam e se alargam, surgem sempre novas folhas quando morrem as velhas. As-sim como no coral, onde o esqueleto calcário é uma estrutura morta que serve de supor-te para os pólipos ainda vivos, o lenho do tronco da árvore é também uma estrutura morta, mas que funciona como condutor de seiva bruta, enquanto intacto, isolado do mundo exterior e das intempéries pela casca viva que o recobre.

De maneira muito simplificada, pode-se dizer que o tronco está constituído do lenho reco-berto externamente pela casca. Entre a casca

e o lenho tem-se o câmbio, tecido de cresci-mento que aumenta em diâmetro o tronco. é este o tecido que forma os anéis visíveis em um corte do tronco, os quais podem ser usa-dos para determinar a idade da árvore.

Quando cortamos um tronco, é somente a li-nha fina do câmbio que possibilita reconsti-tuição de tecidos novos. O erro mais comum quando se retiram os galhos é deixar um toco protuberante. Este toco, constituído de tecidos mortos depois que o câmbio deixa de atuar, quando não há brotação nova, aca-ba sempre apodrecendo. Assim é impedida a cicatrização, como uma amputação de membro animal onde não se retira a ponta do osso, propiciando entrada de agentes infecciosos. Para possibilitar a cicatrização, é necessário retirar o galho até sua origem, emparelhando-se o local para evitar lascas. A superfície de corte confunde-se então com a superfície do tronco, devendo ser protegi-da contra o apodrecimento, como acontece com qualquer pedaço de madeira exposto ao tempo. Para tanto, utiliza-se uma cama-da de substância protetora. Existem ceras especiais para este fim, mas que, infeliz-mente, não se encontram no mercado local, devendo-se então recorrer à pintura com tintas sintéticas de toda a parte exposta.

Com o tempo surgirá um anel de tecido ci-catrizante, a partir do câmbio circunjacente, que irá engrossando até cobrir toda a superfí-cie de corte. Assim evita-se o surgimento dos conhecidos buracos nos troncos, que sempre vão se aprofundando até a morte da árvore. Para corrigir erros cometidos em podas mal orientadas, ou acidentes causados por intem-péries, há outras técnicas, como a obturação com cimento ou outros materiais inertes.

Faça agora você também a sua parte. Observe as árvores com mais atenção na sua vizinhan-ça, aprenda com suas próprias observações. Não mutile desnecessariamente as poucas árvores ainda remanescentes nas cidades.

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Do belo ao sublime Diogo Ribeiro Carvalho

Edmund Burke (1729-1797) foi um filósofo e político anglo-irlandês, e teve fundamental importância na construção da categoria do sublime na estética, especialmente para o desenvolvimento da Crítica da faculdade do juízo de Immanuel Kant (1724-1804). Seu trabalho seminal foi Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, de 17571. O objetivo da investigação de Burke era descobrir se havia princípios segundo os quais a imaginação é afetada, e que fossem comuns a todos os homens, tão fundamentados e tão seguros que pudessem prover os meios para sobre eles se raciocinar à exaustão.

Burke define imaginação como uma espé-cie de faculdade criativa própria do espírito humano, seja reproduzindo à sua vontade as imagens das coisas na ordem e da ma-neira que foram recebidas pelos sentidos, seja combinando-as de um modo novo e de acordo com uma ordem diferente. Ela se relaciona com tudo o que denominamos engenho, fantasia, invenção e outros termos semelhantes.

Contudo, o autor alerta que essa capacidade da imaginação é incapaz de produzir algo inteiramente novo; ela poderia apenas va-riar a disposição das idéias que recebem os sentidos, compartilhando a opinião de John Locke, em Ensaio acerca do entendimento humano, de 1690.

Burke desenvolve o argumento de que o ser humano sente uma alegria e uma sa-tisfação inatas muito maiores em encontrar semelhanças do que em procurar diferenças quando postas em frente a objetos distintos. Ao estabelecer similitudes produziríamos novas imagens, associaríamos e ampliaría-mos nossa reserva de idéias; ao passo que, pela determinação de discriminações, não alimentaríamos em absoluto a imaginação, pois a tarefa em si é mais rigorosa e ma-çante, e o prazer que dela obtemos possui uma natureza um tanto negativa e indireta. Por conseguinte, afirma que os homens são mais naturalmente inclinados à crença do que à incredulidade. Se o prazer na seme-lhança é aquele que mais encanta a imagi-nação, todos os homens seriam mais ou me-nos iguais nesse sentindo, no que concerne o alcance de seu conhecimento das coisas representadas ou comparadas. O princípio desse conhecimento é, portanto, extrema-mente circunstancial, uma vez que depende da experiência e da observação, e não da força ou da deficiência de uma capacidade inata. O autor afirma que é essa diferença no conhecimento que advém do que nós

chamamos, mesmo sem muita precisão, de diferença de gosto.

Esse raciocínio nos parece fundamental para entender o mecanismo da relação entre ma-téria e imaginação. Burke insiste que os fun-damentos do julgamento estético estão nas próprias coisas, em suas propriedades. Se o princípio do gosto é o mesmo para todos os homens, não há diferença nem quanto à forma como são afetados nem quanto às origens da impressão. Todavia, no que diz respeito ao grau, existiria uma diferença que provém de duas causas essencialmente: de uma sensibilidade inata maior ou de uma observação mais atenta e prolongada do objeto. Mais adiante na história, essa aten-ção de que fala Burke será o ponto central de toda a teoria da memória de Henri Bergson (1859-1941).

Edmund Burke, apoiando-se em bases filo-sóficas sólidas, estabelece distinções funda-mentais entre as paixões: a dor e o prazer. A cada um desses sentimentos correspondem dois modos: o da positividade (dor positiva e prazer positivo) em oposição ao da negativi-dade (dor negativa e prazer negativo)2. Ao belo corresponderá o prazer positivo; ao su-blime, a dor negativa. Entretanto, a simetria neste cruzamento não implica igualdade dos respectivos valores.

O autor categoriza o sublime como tudo que seja de alguma forma capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja em alguma instância terrível ou relacionado a objetos terríveis. Ou ainda, tudo que atua de um modo análogo ao terror constituiria uma fonte do sublime, produzindo a mais forte emoção de que o espírito seria capaz.

O sublime contém dentro de si uma condição que o Belo convencional reprime; que seria aquilo que é incerto, indizível, não natural, não presente, não físico, o grotesco. Enten-demos então que o assombro é o efeito do sublime em seu mais alto grau, sendo os efeitos secundários os sentimentos de admi-ração, reverência e respeito. Burke disserta sobre a diferença entre clareza e obscurida-de com relação às paixões, afirmando que, na verdade, uma grande clareza das coisas pouco contribui para incitar as paixões, pois é de certo modo inimiga de todo e qualquer entusiasmo. Uma coisa é tornar clara uma idéia e outra é torná-la impressionante para a imaginação; o sublime nesse sentido não permitiria a delicadeza, e trabalharia funda-mentalmente com o choque, a agressão, o brutal nas acepções mais viscerais possíveis. O filósofo entende que para tornar algo ex-tremamente terrível, a obscuridade parece

ser necessária. Quando temos conhecimen-to pleno de toda a extensão de um perigo, quando conseguimos que nossos olhos a ele se acostumem, boa parte da apreensão de-saparece. Por esse motivo, conclui que é pos-sível suscitar emoções mais fortes a partir de palavras do que de imagens, uma vez que a complexidade, nebulosidade e pluralidade de interpretações que podem vir da palavra são inexprimíveis3. As palavras se mostram muito mais sugestivas que imitativas ou representativas (como as imagens), e a de-finição de limites enfraquece o seu poder. A sinestesia, portanto, ocupa o lugar da distin-ção entre os órgãos sensíveis e de tem papel importante na recepção estética.

Anthony Vidler4 entende esse lado obscuro por “uncanny”, “unhomely”, ou, em portu-guês, algo “estranhamente familiar”. O un-canny coloca em primeiro plano o corpo e o sujeito em relação à experiência vivida da arquitetura e da cidade, por esta razão, tal tema, segundo o autor, permitiria examinar as origens, o significado e o impacto da frag-mentação para o indivíduo, um ponto que tem sido discutido especialmente a partir da década de 1960.

O uncanny tem sua origem nos contos de E.T.A. Hoffmann (1776-1822) e Edgar Alan Poe (1809-1849), cujos temas prediletos recaíam justamente no contraste entre am-bientes seguros e bem familiares e o pavor de sua invasão por presenças alheias (“alien pre-sence”), que levariam a uma sensação de in-segurança, ansiedade. O ensaio de Sigmund Freud (1856-1939) Das Unheimilich, ou The Uncanny, de 1919, por uma análise cuidadosa do conto de Hoffmann, The Sandman (1814), evidencia que o caráter do não-familiar é mais que o sentimento de não-pertencimen-to é, pois, a propensão do familiar de se vol-tar para o indivíduo e, de repente, tornar-se algo desfamiliarizado, irreal, como que num sonho. Nesta fantástica narrativa, o artifício psicológico utilizado para criar sensações de estranhamento no leitor foi deixá-lo na in-certeza da natureza dos personagens, se são humanos ou autômatas, e da natureza dos acontecimentos, se são reais ou fruto da ima-ginação de uma criança. Esse estranhamento de que falamos lembra características da arte romântica do século XIX e possui relações com o medo da castração, da mutilação, o fenô-meno do duplo – o outro igual ou a dupla personalidade – e a constante recorrência da mesma coisa – repetição de mesmas fisio-nomias, ou traços de caráter, ou problemas quaisquer, de mesmos crimes, eventos, ou ainda de mesmos nomes por várias gerações consecutivas.

O uncanny, portanto, deve ser entendido

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como uma resposta significativa psicanalítica e estética frente o verdadeiro choque do moderno, “um trauma que, agravado pela impensada re-petição numa escala maior ainda durante a Se-gunda Guerra Mundial, ainda não foi exorcizado do imaginário contemporâneo”5. Esse trauma, ou essa inquietante estranheza, segundo Freud, é na realidade nada novo ou estranho, mas algo que é familiar e incrustado na mente humana e se tornou alienado à consciência por meio do pro-cesso de repressão. O uncanny é algo que deveria ter permanecido escondido e esquecido, mas que reaparece por meio de uma determinada situação ou condição; é uma ausência que se faz presente.

No contexto da arquitetura, o estranhamente fa-miliar é o retorno do corpo a um espaço que re-primiu a consciência de sua presença. O uncanny, entretanto, não é uma qualidade própria do espa-ço, nem pode ser provocado por uma conforma-ção espacial particular; na sua dimensão estética, Vidler argumenta, ele seria a representação de um estado de projeção mental que dissiparia os limi-tes entre o real e o irreal, de modo a provocar uma ambigüidade perturbante. Contudo, também não se trata de um simples revivalismo de espaços comuns românticos, ou sentimentos expressos apenas em estórias de horror e fantasmas. A sua exposição teórica feita por Freud, e depois por Heidegger, o coloca no cerne das categorias que podem ser adotadas para interpretar a moderni-dade e especialmente suas condições espaciais, arquitetônicas e urbanas.

O que podemos chamar de “architectural un-canny” relaciona-se à capacidade da arquitetura, especialmente a residencial, de suscitar angus-tiantes problemas de identidade do eu, do outro, do corpo e sua ausência. Esse conceito é neces-sariamente ambíguo, combinando aspectos da história ficcional, sua análise psicológica e suas manifestações culturais. Se edificações ou espaços são analisados por este viés, não é por possuírem propriedades estranhamente familiares, mas por atuarem, historicamente e culturalmente, en-quanto representações do estranhamento. Des-tarte, uma premissa importante neste estudo é a de que definitivamente não existe algo como uma “uncanny architecture”, mas sim arquiteturas que, de tempos em tempos e por diversos motivos, são investidas de qualidades sublimes.

Freud, ao relatar um episódio verídico seu em Genoa, evidencia uma “repetição involuntária”, quando toma diversos caminhos e coinciden-temente retornava sempre ao mesmo lugar de origem, que conseguia transformar uma calma cidade italiana em um lugar de “claustrofobia piranesiana”. Era como estar perdido na neblina em uma floresta de montanha, onde toda tenta-tiva de achar alguma marca ou caminho familiar sempre o leva ao lugar de onde saiu; ou como a experiência de estar perdido num quarto escuro e estranho, procurando a porta ou o interruptor que

acende a luz, mas que nunca os alcança por sem-pre esbarrar na mesma infinita peça de mobiliário.

A sensação de “uncanniness” se mostra como algo especialmente difícil de precisar. Não é nem um terror absoluto, nem uma leve ansiedade; parece ser mais fácil de descrever o uncanny pelo que não é do que por características que possam ser fundamentais para a sua constituição. Destarte, este conceito deve ser distinguido de horror e todos os sentimentos fortes relacionados a medo; ele não é exclusivamente associado com o parap-sicológico – o mágico, o alucinante, o místico, o sobrenatural não necessariamente implicam em “uncanniness”; nem está presente em tudo o que parece estranho, diferente, grotesco ou fantástico; é, dessa forma, o diretamente oposto à caricatura e ao distorcido, que por seu exagero, recusa-se a provocar medo. Compartilhando qualidades de todos os gêneros de medo, o uncanny revela sua não-especificidade, principalmente pela questão lingüística: pela etimologia inglesa da palavra, ela significa “beyond ken”, ou além do conhecimento, sendo “canny”, “possuir conhecimento ou habilida-de”. Com isso em mente, o psicólogo Ernest Jents-ch, autor de “On the Psychology of the Uncanny” de 1906, ponto de partida para as investigações de Freud, pelas distinções semânticas de heimlich (homely) e unheimlich (unhomely), atribui o sen-timento de “uncanniness” a uma forte inseguran-ça proveniente de uma falta de orientação, uma percepção de algo novo, estranho e hostil que invade o mundo ordinário, antigo e familiar.

Todavia, Freud relutou a aceitar a definição de Jentsch, considerando-a incompleta por entender que a palavra alemã unheimlich possuía várias acepções as quais poderiam ser úteis à sua plena compreensão. Estas serviriam então para clarificar as “operações” do uncanny enquanto um princípio sistemático, assim como situar firmemente seu domínio no doméstico e no “caseiro”; e por fim permitir sua decifração nas experiências individu-ais como produto inconsciente de um romance fa-miliar. Para tanto, o psicanalista deliberadamente aproximou a definição de unheimlich de seu aparente oposto, heimlich, podendo desta forma expor as perturbantes afiliações entre ambas e comprovar que uma é diretamente conseqüência da outra. A partir de uma série de dicionários do século XIX, principalmente a partir do Wörterbuch der Deutschen Sprache (1860) de Daniel Sanders (1819-1897), Freud analisou o significado de heimlich e como poderíamos comprovar pelas características de seu antônimo já explicitadas, é primeiramente definido como “pertencente ao lar ou à família”, “não estranho, familiar”, doméstico. O termo é associado à intimidade, ao confortável, a quietude, ou ainda ao “sentimento de paz e se-guridade de alguém quando dentro das quatro paredes de sua casa”. Entretanto, esse é apenas o sentido mais generalizado, ou difundido, da palavra, que também pode ser entendida como “escondido”, “algo mantido fora de vista para

que ninguém venha ter conhecimento dele”. De tal modo que a evolução do sentido de lar, para privado, para escondido, para secreto, e em última instância mágico, mostra-se natural se pensarmos que muito do que guardamos em nossas casas é tudo aquilo que não queremos que outros vejam; ou ainda, muito do que retemos em nossa própria mente, especialmente no inconsciente, nossos sentimentos e desejos mais íntimos, e, portanto pessoais, deve permanecer ali, fora do alcance de todos, seguro contra o mundo exterior.

Similarmente, os irmãos Grimm6, incansáveis cole-cionadores de folclore e mitos, definindo heimlich em seu Deutsches Wörterbuch (1877), traçaram a idéia de “homely”, ou confortável, aconchegante, a qual pertence à casa, ao lar, como um sentimen-to de seguridade e de estar livre do medo; mas que tende curiosamente a tomar o caminho semântico de seu aparente oposto, o “unhomely”. A explana-ção desenvolvida sugere algo retirado da vista de estranhos, algo escondido e secreto; heimlich, no sentido de conhecimento, pode também evocar o místico, o alegórico, o oculto, ou seja, obscuro e inacessível ao conhecimento.

A partir desse desdobramento do “homely” para o “unhomely”, Freud percebeu que heimlich é uma palavra cujo sentido se desenvolve em uma dire-ção de ambivalência, até que por fim coincide com o seu oposto, unheimlich. Por vários exemplos em Wörterbuch der Deutschen Sprache de Sanders percebe-se o senso de algo enterrado que subita-mente toma forma e reaparece, de tal forma que o unheimlich parece emergir por debaixo do heimli-ch, como se escapasse de um esconderijo desaper-cebido. Destarte, a idéia da aparição de algo que deveria ter permanecido encoberto ou escondido, que o filósofo Schelling7 (1775-1854) define em Philosophie der Mythologie (1835), é o ponto fun-damental para o psicanalista desenvolver a idéia de que o uncanny só poderia ser entendido pelo conceito da repressão, indo além da simples “in-certeza intelectual” de Jentsch.

Anthony Vidler expõe que desde o romantismo, a arquitetura possui uma ligação estreita com a idéia do estranhamente familiar, e que em um plano mais imediato, ela se tornou lugar de in-termináveis explorações de situações de assom-bração, duplicidade, mutilações e outros horrores na literatura e na arte. A estética e a psique ro-mânticas estavam abertas a uma tal força, apa-rentemente morta e enterrada, que a qualquer momento poderia se reapropriar de algo seguro e livre de superstições e retornar a um estado de in-quietante, como se esse sentimento não devesse ocorrer, mas sim ter permanecido esquecido nas profundezas da mente.

Uma das mais importantes representações do uncanny nas artes é exatamente a mutilação, o medo do desmembramento do corpo, ou o medo da castração. Foi comum na estética clássica,

principalmente pela escultura, a representação da perfeição do corpo como um todo pelas suas partes tomadas individualmente. A visão ro-mântica forçou a reconciliação entre a existência material dos fragmentos e sua metafísica organi-cista, preferindo tomar o fragmento como ele se apresenta na natureza e cultivá-lo como objeto de meditação, contemplação. A intrínseca condição de “incompletude” do fragmento coloca em che-que a relação entre homem e mundo natural, que se baseia na idéia da dominação humana sobre o meio. Quando Immanuel Kant (1724-1804) suge-re a existência de algo interior, porém distinto, ao conceito de beleza, o que chamou de sublime, a incerteza do domínio do sentimento na arte se torna claro, abrindo o caminho ao desconhecido pela inversão e interposição das categorias esté-ticas do belo e do sublime, ou seja, para a certeza de que ignoramos muito do que nós somos e do que nosso universo é; não dominamos nada que não seja algo de nossa própria criação.

Tais investigações, além de propiciarem possi-bilidades de revisão das teorias estéticas, abrem uma série de caminhos no âmbito do espaço cons-truído para repensar a natureza da casa e do lar; a dicotomia entre a necessidade de afirmação/construção da(s) identidade(s) do eu e a serializa-ção da produção de moradias; até questões mais gerais sociológicas que dizem respeito a estranha-mentos sociais e individuais nas grandes cidades; e a alienação e seu contrário, a alteridade, ou o reconhecimento do outro.

Referências1 A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful teve, em 1759, sua segun-da edição lançada, com a reafirmação de seus conceitos básicos e o acréscimo de novos exemplos e considera-ções, em resposta às críticas publicadas, além de uma Introdução ao gosto e uma seção inteira (Poder). É provável que tal introdução tenha sido decorrente ao ensaio de David Hume, On Taste, publicado apenas dois meses antes do Enquiry.2 Ver apresentação de Enid Dobránszky, da edição brasileira. BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Campinas: Papirus: Editora da Unicamp, 1993.3 Ver uma série de exemplos em nas páginas 65-71 deste livro de Burke.4 Anthony Vidler é professor e diretor da faculdade de arquitetura da Cooper Union, em Nova York.5 Ver VIDLER, Anthony. The architectural uncanny: essays in the modern unhomely. Cambridge: The MIT Press, 1992. p.9.6 Jakob Ludwig Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Karl Grimm (1786-1859). Seu dicionário etimológico, um dos mais importantes na língua alemã, foi iniciado em 1838 e quando o projeto foi finalizado em 1861, ele já continha 32 volumes e mais de 350.000 palavras.7 Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling foi um dos representantes do Idealismo alemão, assim como Fi-chte e Hegel.

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O tango e o tango dos Rashevski

Lyslei Nascimento

Walter Benjamin em “Experiência e po-breza”,1 afirma que em nossos livros, nos provérbios e nas histórias, no momento da morte haveria a revelação de um tesouro, o valor da experiência. Esta, transmitida de forma benevolente ou ameaçadora, seria comunicada aos jovens, com a autoridade da velhice. No entanto, Benjamin pergunta:

Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histó-rias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão du-ráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventu-de invocando a experiência?2

Essa série de questões, marcadas pelo con-texto do fim da Primeira Guerra, reflete a condição dos combatentes que haviam voltado dos campos de batalha silenciosos e pobres em experiências comunicáveis. Des-moralizadora, a experiência das trincheiras e da fome pôs em cena o “frágil e minúsculo corpo humano”. Suge, daí uma nova forma de miséria a partir do monstruoso desen-volvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. Em O tango dos Rashevski, de Sam Garbarski e Philippe Blasband, 2003,3

a narrativa se estrutura a partir, também, da morte e da experiência da Shoah, não comunicável, após a Segunda Guerra, vivida por Rosa, a matriarca da família Rasheviski. Sobrevivente ao Holocausto, Rosa retorna, como os soldados de Benjamin, alheia às experiências comunicáveis do judaísmo.

Inspirado na história das famílias do diretor e roteirista, o alemão Sam Garbarski e o ro-teirista iraniano Philippe Blasband, o filme coloca em cena uma família judaica belga que, até a morte da matriarca, não tem plena consciência de certa tradição cultural e religiosa judaica. A família percebe, de re-pente, que nada sabe sobre suas tradições, mas uma dança, um ritmo, uma música os une indelevelmente. Apesar de partilhar de um refinado humor, que poderíamos chamar de judaico; do amor por Rosa e do tango, que extraordinariamente tem o po-

der de unir todos, a família não consegue concordar em quase nada. A partir da morte de Rosa, é que a família começa a perceber que as tradições da religião da qual eles nada sabem, só poderia ter sido transmitida pela matriarca que não o fez após sobreviver ao Holocausto.

Ramón Pelinski, em Escritos sobre Tango: en el Río de la Plata y en la diáspora, publicação que contém as conferências apresentadas no I Congresso Internacional de Tango ocorrido em Buenos Aires, em março, faz uma análise do processo de exportação do gênero e pon-tua as circunstâncias históricas da dissemi-nação do tango diaspórico, dando particular ênfase na Europa. Segundo Pelinski, “al tan-go le gusta irse de gira a otros puertos para regresar a su oasis rioplatense...”, e continua: “el nomadismo es un rasgo fundacional del tango, habitado por una pulsión migratoria que, dadas las circunstancias económicas o políticas en que emigrantes y exiliados están forzados a emprender la diáspora, es más bien una expulsión”.4 Meu propósito, nesta comunicação, não é refazer esse per-curso, mas tratar, mesmo que singelamente, do tango como metáfora. Apontar de que forma ele migra, não só com os emigrantes, que deixam a Argentina e desembarcam em Paris na década de 1910, o que também aconteceu, mas como um signo de leveza e resistência após a Shoah.

Em O tango dos Rasheviski, as vidas de Isa-belle, Nina e Khadijah, em suas diferenças – de credo, cultura e geração – revelam fron-teiras quase intransponíveis, mas, também, as estratégias de aproximação, mesmo em situações nada propícias. A morte de Rosa deixa entrever fios invisíveis que farão com que o destino dessas mulheres sejam fiados e desfiados sobre o que poderia ser visto como um tecido ou um tablado em que, parceiros na dança da vida, os personagens irão se envolver, se enlaçar e se mover.

Isabelle não é judia. Casada com Simon, um dos filhos de Rosa, vez por outra, em seu dis-curso, usa uma palavra em ídiche. Na Páscoa, com amor, cozinha os pratos típicos e discute com Tio Dolfo, o então parente mais velho, também sobrevivente, para que se cum-pram corretamente todos os ritos. Ele canta

fora de hora, não espera pelas perguntas das crianças no ritual, começa a comer antes de todo mundo. Essa mulher não judia e não religiosa tenta, estranhamente, manter a tradição na qual está inscrita por um casa-mento misto, mais do que a própria família judia. Com a morte de Rosa, pergunta ao marido como e onde ele quer ser enterrado. Ela sabe que por não ser judia, não poderá ser enterrada no cemitério judaico, mas ele sim. Essa absurda, mas legítima preocupa-ção acaba por fazer o casal discutir. Ele não quer falar sobre o próprio enterro, ela quer uma declaração de amor, ou seja, que ele diga que será enterrado onde ela for.

Nina é filha de Isabelle e neta, portanto, de Rosa. Ela discute com a família para dar um enterro religioso à avó. Assustada diante da situação em que ninguém sabe realmente o que fazer, ela empreende uma busca a um judaísmo que ela pensa ser original. Ela quer se casar com um judeu ortodoxo, que saiba hebraico, todos os ritos e todas as rezas. Ao enamorar-se por ela, Antoine, um amigo cristão da família, converte-se, faz circunci-são e tudo que o judaísmo exige. Um rabino, porém, o adverte de que ao se converter se tornaria “mais” judeu do que Nina, que é fi-lha de mãe não judia.

Khadijah é uma muçulmana moderna, ape-sar de ser próxima da religião da família. Ela trabalha num restaurante e namora às escondidas Rico, o outro neto de Rosa. Am-bos têm medo, devido à diferença religiosa e, por vezes política, de assumir o romance perante suas famílias. Numa discussão, ela joga no rosto do namorado: Você serviu no Exército de Israel, atirou em palestinos e quer casar comigo? Ele se desespera. Ela se arrepende e pede que ele bata nela, Rico tenta se fazer entender, revelando sua im-potência, levantando os braços. Assustada, Khadijah recua. A resposta de Rico é terrível e aprofunda as feridas: Não sou muçulma-no, não bato em mulher. Khadijah, profun-damente magoada, vira as costas e os dois terminam. A rua deserta e a chuva fina au-mentam a distância.

A referência ao tango aparece explícita no enterro de Rosa, antes, implicitamente, pontua e entretece-se na trilha incidental do

“A única coisa a fazeré tocar um tango argentino.”

Manoel Bandeira

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filme. Após a família resolver que faria um enterro judaico, um dos filhos discursa diante do esquife. Tiveram uma infância difícil; afinal, o pai havia deixado Rosa com os dois filhos e emigrado para Israel. Mais tarde saberemos que ela abandona a religião e ele torna-se rabino. Essas diferenças de posicionamento religioso após a Shoah os separa-rão para sempre. Apesar disso, Rosa cria os filhos sem o pai com amor e alegria. O filho afirma que a mãe era cheia de vida, que fazia festas de ani-versário surpresa mesmo não sendo aniversário de ninguém. Foi ela que dos 5 aos 6 anos ensinou os dois filhos, Simon e Davi, a dançar tango. Se souberem dançar tango, afirmava, nada de ruim acontecerá com vocês. O relato do filho é emo-cionado. Ao lado do irmão, Davi dá testemunho dessa leveza, ou desse peso. Afinal, viver fora do conforto da tradição, sem repetir os ritos, muitas vezes, desconhecendo seu real significado, tam-bém pode ser um peso a carregar-se. No abrigo da religião, pode ser mais fácil aceitar o destino, o mal que sobrevém, a morte. Na vida de Rosa, descrente da religião, sobrevivente do Holocausto, a religião não teve mais lugar. No entanto, para os filhos, o tango religa a família à vida.

Jorge Luis Borges no poema “O tango” pergunta “Onde estarará (repito) a malandragem / que fun-dou em viela empoeirada / de terra ou em perdi-dos povoados / uma seita da faca e da coragem?” Mais adiante, arremata “Essa rajada, o tango, dia-brura, / os anos fatigados desafia; / feito de pó e tempo, o homem dura / muito menos que a leve melodia, / que só é tempo.”5 A diabrura, aponta-da por Borges, indica o resquício de um passado “irreal, mas ocorrido”, feito de festa, de coragem, de mortos que se perderam, mas que vivem por meio da dança.6

José Judkovski e Julio Nudler, em El tango, uma história com judíos,7 e Tango judío: del ghetto a la milonga,8 marcam, em agosto de 1889, com a chegada, ao porto de Buenos Aires, do Wesser, a participação judaica na história do tango. Desse navio desembarcaram 824 judeus que, oriundos da Rússia, buscavam escapar da violência e da miséria que sobre eles exerceram governos des-póticos a partir de 1881.9 As letras do tango, seus músicos e, principalmente, suas histórias de vida, que mesclam a alteridade dos imigrantes com a vida nas orillas de Buenos Aires, revelam esse in-trincado fio de letra e música.

No filme, as histórias das mulheres e o tango pa-

recem tecer uma outra trama, a da resistência e da tolerância. Entre encontros e desencontros, Isabelle, após um tango tocado ao piano pelo filho, recebe de Simon sua declaração de amor desejada: onde ela for, ele irá também, onde quer que ela seja enterrada, ele também quer ser en-terrado, como na declaração bíblica de fidelidade de Ruth a Noemi. Nina apaixona-se por Antoine, que se converteu ao judaísmo, ensina-o a dançar tango e parte com ele para Israel. Lá, o casal é re-cebido pelo avô, agora um velho rabino. Khadijah e Rico se reaproximam. Tio Dolfo promove o en-tendimento entre a família judía e a muçulmana. O casamento dos dois é uma festa de cores, sons, cheiros. A noiva está belíssima e o noivo radiante.

Maria José de Queiroz afirma, no ensaio, “‘Voulez--vous tanguer?’: o tango argentino ”, 10 que essa dança de enlace foge à tirania de riscos e dese-nhos preestabelecidos e adquire autonomia nos movimentos. Assim, o espaço fechado em que se move o casal de dançarinos, com gestos e passos, se alarga, a partir de uma linha aleatória, inven-tada e reinventada numa coreografia original, própria do par. Os passos do tango, as figuras, exibem outra perspectiva, a que Carlos Veja, em “La coreografia del tango argentino”,11 chamou de “variedade na unidade”:

Constitui-se cada figura de uma combinação de passos que a mulher reelabora, ao revés, após o movimento do parceiro. Numa recriação inova-dora, o par pode traçar uma série de variações, desdobrando-as, indefinidamente, ad libitum.12

Antes dessa reelaboração feminina, em suas ori-gens, o tango argentino tem na habanera e na mi-longa, seus ancestrais mais lembrados, ligados ao canto. O tango destinado à dança contrai, trans-forma o equilíbrio num espasmo. Para Queiroz, o tango, nas casas de fama duvidosa, tavernas e cabarés de má reputação, reelabora, com primo-res, a coreografia das origens. Renovada, após 20 anos, surge uma dança como numa “soma de todos os ritmos aprendidos e inventados pelos freqüentadores dos lupanares bonaerenses. Pouco a pouco, no entanto, o tango conquista a peque-na burguesia, tendo o seu apogeu, nas décadas de 1920-1930, com Carlos Gardel (1890/1881-1935).13 Desse modo, “sórdidas histórias de bor-del, de assassínios misteriosos, de perseguições e caçadas policiais, de amores suburbanos, de vin-ganças, ciladas e ódios”, foram substituídas pela moralidade, a boa usança; expurgaram-se, assim,

as letras obscenas, ensinaram-lhe casticismo, pu-dicamente, para que se permitisse a sua entrada nos lares honrados.14

No filme, o tango migra para a Europa, na vida dos Rasheviski, como um exercício de resistência. No estranho mundo pós Segunda Guerra, diante da realidade dolorosa e dos horrores dos campos de extermínio, quem sobreviver deve ter o passo sincopado, apesar de, de vez quando, sobrevir, as memórias dolorosas, como um espasmo. Deve, ainda, manter a leveza, na medida em que, nas discussões mais acirradas, com lados aparente-mente irreconciliáveis, permitir o enlace.

Em maio de 1947, cinco anos após a deportação e o assassinato dos pais, Paul Celan publica o poema fundamental “Tangoyk mortii”, Tango da morte, ou, “Todesfuge”, Fuga da morte, como foi publica-do na Alemanha em 1952. John Felstiner recorda em Paul Celan, poeta, sobreviviente, judío15 que o poema teria surgido após uma leitura de Celan so-bre judeus tocando melodias em campos nazistas. Para Julio Nudler, é possível que Celan tenha lido El campo de exterminio de Lublin, de Konstantin Simonov, publicado em agosto de 1944, pelos so-viéticos. Nudler relembra, ainda, que há referên-cias, em El libro negro: los crimenes nazis contra el pueblo judío16, que, no campo de concentração de Janowska, perto de Chernowitz, um tenente da SS ordenava aos violinistas judeus tocar o chamado “Tango da morte” para acompanhar as marchas, as torturas, a escavação de tumbas e as execuções. Antes da liquidação desse campo, os SS mataram toda a orquestra. Segundo Felstiner, esse tango foi baseado no maior sucesso, antes da guera, do argentino Eduardo Bianco, que foi tocado por este diante de Hitler e Goebbels, em 1939. Felstiner afiança que também em Auschwitz a orquestra interpretava tangos e que em outros campos os prisioneiros chamavam genericamente “Tango da morte” a qualquer música que se executava quan-do os alemães levavam um grupo de judeus para assassiná-los.

Ao ensinar o tango aos filhos, o ato de Rosa vai muito além do que substituir o judaísmo por uma dança que poderia ser considerada exótica no con-texto belga dos anos 1990, pretendia ensiná-los a fugir da tirania da religião, dos costumes, afinal, dos “riscos e desenhos preestabelecidos”, a fim de conseguirem autonomia nos movimentos que a vida exige e, também, evocar, como num libelo, a sobrevivência aos campos. Por isso, a partir de

sua morte, há lugar para o retorno à religião; a celebração da multiplicidade de uma casamento misto, mesmo entre povos que inúmeras vezes é visto e se vê como inimigos; para a renovação de um voto de amor, antes que a um voto religioso em que, muitas vezes, os rituais se tornam repeti-ções vazias. Na coreografia do tango e da vida, os parceiros devem aprender a “variedade na unida-de” e a “união na variedade”, permitir a diferença, fazer dela um passo de dança, formando, assim, uma “soma de ritmos aprendidos e inventados” e, sobretudo, dar testemunho da vida.

Referências1 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Wal-ter Benjamin. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, Volume 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Edito-ra Brasiliense, 1993, p. 113-119.2 BENJAMIN, p. 114.3 O tango dos Rashevski (Le Tango des Rashevski). Gênero: Romance. Duração: 1h40min. Direção: Sam Garbarski. Roteiro: Philippe Blasband e Sam Garbarski, 2003.4 Citado por SABORIDO, Augustina Tula. Tango, baile nuestro y global. Revista Ñ, 3 ago. 2010. Dis-ponível em http://www.revistaenie.clarin.com/notas/2010/08/03/-02206628.htm. Acesso em: 8/8/2010.5 BORGES, Jorge Luis. O tango. Trad. José Lino Grü-newald. In: GRÜNEWALD, José Lino. Carlos Gardel: lun-fardo e tango. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 2-5.6 GRÜNEWALD, p. 5.7 JUDKOVSKI, José. El tango, uma história com judíos. Buenos Aires: Fundación IWO, 1998.8 NUDLER, Julio. Tango judío: del ghetto a la milonga. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998.9 JUDKOVSKI, p. 15.10 QUEIROZ, Maria José de. “Voulez-vous tanguer?” O tango argentino. In: A América sem nome. Rio de Ja-neiro: Agir, 1997, p.183-191.11 VEGA, Carlos. La coreografia del tango. Prensa. Bue-nos Aires, junho, 1954.12 QUEIROZ, p. 186.13 QUEIROZ, p. 187.14 QUEIROZ, p. 189-190.15 FELSTINER, John. Paul Celan, poeta, sobreviviente, judío. London: Yale University Press, 1995.16 El libro negro: los crimenes nazis contra el pueblo judío. Nova Iorque, 1946.

Lyslei Nascimento é Professora de Literatura na Universi-dade Federal de Minas Gerais. [email protected].

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Os monstros do cinema. Ou seriamda história?

Gabriel Carneiro

Atualmente, parece que as bestas existem nos filmes com um único propósito: arre-cadar dinheiro através de uma diversão fantástica – é só tomar como exemplo as 20 maiores bilheterias no mundo, segundo o site Box Office Mojo, em que apenas dois filmes desta lista, “Titanic” (1997), em 2º, e “Procurando Nemo” (2003), em 20º, não teriam algum monstro.

Diferentemente de outras eras, que cer-tamente pavimentaram o caminho e in-fluenciaram George Lucas na criação de sua epopéia espacial “Star Wars”, os monstros pareciam estar nos filmes justamente como uma reflexão do contexto sócio-político--econômico da época em que foram feitos, ao menos quando havia um boom dessa produção. Se o cinema fantástico começou com Georges Méliès, logo que o cinema-tógrafo foi inventado, com filmes como “Viagem à Lua” (1902), foi só em meados de 1910 – e nas duas posteriores décadas – que o bestiário invadiu de forma mais mas-siva o cinema, precisamente na Alemanha.

Em época da 1ª Guerra Mundial (1914-18) e da República de Weimar (1919-33), quando o país passou por enorme inflação, desemprego, perda de autoridade e sofreu horrores, o cinema expressionista ganhou espaço. Se antes havia a serie de seis filmes “Homunculus” (1916), depois o cinema ale-mão passou a contar com “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), “O Golem” (1920), “Nosfe-ratu” (1922) e “O Gabinete das Figuras de Cera” (1924), só para ficar em alguns títulos. Não parece à toa que esses filmes fantásti-cos fossem tão sombrios e desesperançados, diante das condições do país.

O mesmo se deu nos EUA que logo se tor-nou o principal país produtor de monstros cinematográficos. Nos anos de 1920, alguns

filmes de bestas horripilantes começaram a aparecer com mais frequência, muitos deles estrelados pelo ator Lon Chaney. Mas foi nos anos 1930 que eles se consolidaram e con-quistaram o mundo. Com o crack da Bolsa e a subsequente Depressão, uma onda de mons-tros assolou os cinemas, quase como uma resposta macabra aos tempos difíceis (de-semprego, inflação, fome etc.). Filmes como “Drácula” (1931), “Frankenstein” (1931), “Zumbi Branco” (1932) e “A Múmia” (1932), quase todos com diversas continuações, pro-duzidos pela Universal, ocuparam o imaginá-rio sobrenatural da população. Diante da de-silusão da grande massa que não conseguia encontrar respostas às preces ou mesmo ao que de fato havia ocorrido para que estives-sem naquela miséria, o cinema parece ter procurado contrabalançar, respondendo com os mistérios do imaginário – monstros, em geral, que não continham muitas explicações lógicas para existirem.

Tal onda perdurou até o final da 2ª Guerra Mundial, com a proeminência do produtor Val Lewton, da RKO, em filmes como “San-gue de Pantera” (1942) e “O Túmulo Vazio” (1945). Mas as coisas começaram a mudar na década de 1950, quando a Guerra Fria e suas ramificações foram absorvidas pelo cinema fantástico. Em 1950, “Destino à Lua” foi lançado e resultou no boom da ficção científica, sua era de ouro.

Nessa seara, havia dois principais tipos de bestas: os alienígenas e os monstros atômi-cos. Os primeiros, protagonistas de filmes como “O Monstro do Ártico” (1951), “Veio do Espaço” (1953), “Guerra dos Mundos” (1953), “Vampiros de Almas” (1956), “Ame-aça Espacial” (1956) e “A Vinte Milhões de Milhas da Terra” (1957), entre outros, eram os seres que vinham de outro planeta e, de certa forma, ameaçavam a estabilidade do planeta Terra – mais especificamente, dos EUA. Os segundos marcaram a época, des-

tacando-se “O Mundo em Perigo” (1954), “O Fim do Mundo” (1955), “O Incrível Homem que Encolheu” (1957), “O Monstro Atômi-co” (1957) e “O Mais Perigoso dos Homens” (1960), entre outros – os monstros que deri-vavam da radiação atômica.

Todos esses monstros resultavam de algo maior, da Guerra Fria. Em tempos conturba-dos, de conflitos indiretos entre capitalistas e socialistas, capitaneados pelos EUA e pela URSS, a tensão era muito grande, especial-mente por conta de uma tecnologia recen-temente inventada, a bomba nuclear, domi-nada por ambas as nações. O mundo já havia visto a catástrofe que a arma poderia causar, quando derrubada nas cidades japonesas Hi-roshima e Nagasaki, em 1945, findando a 2ª Guerra. Tal tecnologia evoluiria e, em 1952, já havia aumentado sua potência em quase mil vezes, com a bomba H, de hidrogênio.

O acirramento da Guerra Fria criou uma paranóia na população. Sabia-se que havia uma guerra, sem confrontos diretos, mas o desenlace era uma incógnita. O governo continuava utilizando a lógica do medo para criar um pandemônio nos primeiros anos de conflito. Isso explica, por exemplo, o macar-thismo e a propagação do american way of life. Havia também o medo não só da amea-ça comunista, mas também do aumento de armas nucleares. A tecnologia e a ciência, que antes eram benfeitoras da humanidade, passaram a ser potenciais inimigas – pode-riam ser usadas para destruir o mundo.

Foi nesse contexto que alienígenas passa-ram a representar a “ameaça vermelha”, comunista. Seres estranhos a nós, vindos de um lugar desconhecido, que podiam subju-gar a humanidade. Não à toa, um ser pací-fico, como Klaatu, de “O Dia em que a Terra Parou” (1951), foi recebido a tiros.

Entretanto, os mais escabrosos monstros já

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Do direito à

hipocrisia

Bárbara Gigonzac

Conheço uma nonagenária que come todo e qualquer tipo de caça, usa peles, diamantes, é simpatizante do adultério, ama intrigas, já fez aborto, sustenta que o homem é o chefe do lar, bebe bem e ofereceu o primeiro cigarro a cada um de seus quinze netos.

Politicamente incorreto? Já que o politicamente correto expandiu-se para todo e qualquer comportamento humano, do afetivo ao sexual, do gastronômico ao educacional, do profissio-nal ao ecológico, podemos sim considerar tais padrões como incorretos, politicamente falando. A verdade é que a opção político-partidária é o que menos interessa: é da vida política que o termo trata.

Como a velha máxima moral de que temos que agir como se legislador universal fossemos, o politicamente correto deve portar-se tal qual candidato, ao longo do dia, todos os dias da semana, todos os dias do ano, para o resto de sua pequena vida “sob holofotes”.

A mesma senhora, minha singular avó, faz coleta seletiva de lixo desde os anos 70, cumprimen-ta sua diarista aos beijos, recolhe farelo de pão para os passarinhos, faz doações regulares à Cruz Vermelha, acredita no poder da amamentação e não compra qualquer industrializado da China.

Politicamente correto? Diria que sim.

Alguns diriam tratar-se de hipocrisia. Talvez porque a hipocrisia seja o termo apropriado para tratar quem pratica atos contraditórios, numa mesma esfera comportamental (ou não, para a patrulha da moral radical). Ser ecologicamente correto ao reciclar papel e não sê-lo ao usar peles, por exemplo.

Não sei quem inventou o tormento do ser politicamente correto. Talvez seja o atavismo social da nossa geração. Ou uma nova seleção natural. Não podemos ter todos os vícios, senão mor-remos (cedo). Não podemos ter todos os defeitos, senão não teremos amigos (e morremos). Também não podemos ser isentos de vícios, senão surtamos (e morremos). Nem isentos de defeitos, senão nos tornamos anjos de candura no céu ou ontologicamente chatos em estado de pureza absoluta.

Então vamos aprendendo a selecionar os defeitos e vícios necessários. E, por outro lado, sele-cionar as qualidades e sanidades preferidas. E nos tornamos hipócritas para uns, humanos para outros. Sobreviventes, sempre.

E como adoramos julgar, e fomos educados para comparar (irmãos, primos e colegas de pré, durante e depois), nos tornamos o baluarte da correção dos nossos próprios prós. E defensores férreos dos porquês dos nossos próprios contras. Nada mais humano, nada mais hipócrita, nada mais proveniente da nossa necessidade de sobrevivência.

É justo, justíssimo, o sagrado direito à hipocrisia. O sagrado direito às escolhas. O sagrado direito ao julgamento dos outros. Como nada mais sagrado do que o sagrado direito ao mudar de opinião! E como não posso ter todos os defeitos, posso cambiá-los tempos em tempos (obede-cendo a regra do equilibrar os pequenos pecados): é como trocar o carro a gasolina com banco de pano por um carro a etanol com banco de couro. Nada mais exemplificativo.

A vantagem de ser um eterno “substituidor” de defeitos é que nos inteiramos e interagimos com modas e denuncismos do momento. Se esta semana, o Fantástico (ou a Veja), escolher como grande vilão do corpo humano o tomate, posso substituí-lo pelo pepino, cujas proprie-dades anticancerígenas foram finalmente reveladas e que antes eu abominava graças a sua propalada potência indigesta. E faço o mesmo trocando o chope pela cerveja. E a cerveja pelo chope. O vinho branco pelo tinto. O tinto pelo rosé. O rosé pelo espumante. O espumante pela água de cana e por fim, tudo pela água benta. Assim, passamos a vida experimentando tudo. E sendo profundamente hipócritas e condizentes com nossas escolhas momentâneas.

Certo que há o desconforto de nunca ter a certeza absoluta do que será sempre certo e do que será sempre errado. Mas temos todos, a noção empírica (ou religiosa) do que é mais certo e do que é totalmente errado. E nos expiamos. Em todo o resto, nós, os hipócritas, vamos transitando muito bem.

E há, junto com o sagrado direito ao mudar de opinião conforme o próprio estômago, a própria vida, a própria cultura, o próprio meio e os próprios desejos, o sagrado, o intangível direito de ser respeitado. Mesmo que desrespeitemos os outros em pensamento. Afinal, quem nunca se viu julgando alguém por tomar coca-cola? Quem nunca tomou coca-cola para supostamente curar uma ressaca? Quem nunca desentupiu a pia com coca-cola? E quem nunca teve ressaca? Correto?

Enquanto não tomarmos consciência do quão “bobagentos” podemos ser, e quão neuróticos nos tornar, se não admitirmos que temos o nosso direito ao politicamente incorreto (ou ao di-reito aos nossos defeitinhos morais equilibrados com nossas não menos prazerosas vanglórias), sentiremos culpa até pelo nosso café preto de todo dia e perderemos a discussão filosófica pro-funda sobre a nobreza do uso da madeira de demolição em nossas salas.

Bárbara Gigonzac é advogada e cronista nos fins de semana.Editorial Direito e Cultura: Diana Gebrim é advogada e gestora cultural, sócia da Diversidade Consultoria e da DGC Advocacia.

estavam aqui e, por uma má condução da ciência, naquele momento desacreditada, poderiam vir à tona, quer fossem animais pré-históricos acordados por uma bomba atômica, como “O Monstro do Mar” (1953) – filme que deu origem ao japonês “Godzilla” (1954); homens transformados em animais, como “A Mosca da Cabeça Branca” (1958); artrópodes que receberam dosagem exces-siva de radiação ou de alguma fórmula cien-tífica, como em “O Começo do Fim” (1957) e “Tarântula” (1955); ou homens que foram afetados por uma experiência que falhou ou feita contra sua vontade, como em “Experi-ência Diabólica” (1953).

A partir dos anos 1960, esses monstros fo-ram sendo superados por outros, mas sem-pre encarados como algo menor, até que, na década de 1970, foram catapultados para a glória, com “Tubarão” (1975) e “Guerra nas Estrelas” (1977). Esses filmes pareciam responder muito mais ao contexto cinema-tográfico da época do que ao sócio-político--ecônomico.

A desesperança e o cepticismo da época em que vivemos resgataram os filmes apocalíp-ticos e os monstros adquiriram novas con-cepções. Estudiosos e críticos têm apontado os filmes da década de 2000 como mais um movimento em torno desse tipo de análise – um reflexo de 11 de setembro de 2001 e dos atentados terroristas.

O bestiário também parece contar com “monstros” estranhamente palpáveis, como o frio assassino de “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), lembrando-nos que bestas humanas, não só as de caráter fantástico, sempre foram produzidas pelo chamado mundo civilizado.

Gabriel Carneiro é jornalista e pesquisador. Escreve nos sites Revista Zingu! (www.revistazingu.net) e Cinequanon (www.cinqueanon.art.br), e na Re-vista de CINEMA.

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Número 42 • Outubro de 2010

Improvisação na dança: uma ideia

Paola Rettore

Várias rupturas, influências e momentos do século XX provocam e criam solo fértil para a improvisação na dança. Princípios como: a ausência de narrativa; qualquer movimento pode ser material para a dança; a inserção do acaso na realização das obras; a observa-ção do movimento cotidiano; a ausência de um coreógrafo; o não à hierarquia (interna-mente na relação entre os atuantes de um trabalho e da dança em si em relação a ou-tros campos de conhecimento e em relação às outras artes: cria-se uma independência da música, por exemplo); a consequente busca de um consenso; e a ideia de que qualquer um pode dançar, foram propostas levadas ao extremo pela Nova Dança.

O desejo de colocar a dança como campo de conhecimento, com suas particularidades e questões próprias, leva cada vez mais core-ógrafos e bailarinos a desenvolverem suas teorias aliadas a uma prática específica de pesquisa e investigação, perguntas e respos-tas que nascem do próprio campo artístico da dança.

A improvisação na dança promove um discur-so político e coloca o dançarino em contato com o presente deixando-o, antes de tudo, muito atento, por ser um modo de composi-ção vivo, fazendo parte de um todo, interfe-rindo e sendo afetado pelo mundo. Cada vez mais estruturada nos dias de hoje, considera--se a improvisação uma técnica experimental de dança e um modo de composição.

A improvisação na dança percorre o cami-nho da escuta interna e externa, e se con-clui na decisão que o corpo desenha ou na observação daquilo que se foca. A percepção é sinestésica. O improvisador é mais um na paisagem, compondo, atuando no tempo

em relação a algum outro estímulo, absor-vendo sinestesicamente, sendo o tempo a incógnita predileta.

O improvisador através de uma prática de improvisação experimenta e simultanea-mente elabora um glossário, desenvolvendo seu próprio conteúdo, seu motivo, no sen-tido de saber o que o move. A coreógrafa Dudude Herrmann comenta: “o improvisa-dor deve ter assunto para esse corpo.” Deve estar pronto para uma busca e uma troca incessantes, fazer-se presente e estar in-serido com seus conteúdos no mundo. No mesmo sentido, Lisa Nelson, uma das mais importantes figuras na improvisação em dança na contemporaneidade, afirma que no momento da improvisação “eu construo as coisas de acordo com minha percepção.”

Lisa Nelson elabora, para trabalhar com seus alunos, o que ela chama de sistema tunning scores, ainda em experimentação e que fornece instrumentos ao dançarino para que ele dê sentido ao movimento, expondo suas opiniões sobre espaço, tempo, ação e desejo, para lhe permitir situar-se em uma estrutura improvisacional. São elementos do Tunning scores: a atenção, a memória e a imaginação. O foco da atenção é perceber como nossos corpos tomam decisões para nós. Trabalhar com a improvisação significa tomar decisões, ter escolhas, e ao mesmo tempo ser avassalado e cortado por aquilo que não se domina. O improvisador deve manter uma atenção no seu próprio inte-resse, com o que ele se sintoniza. A atenção viabiliza essa escuta interna e externa, e possibilita a escolha, tomar decisões, agir. Lisa Nelson enfatiza que a atenção exerci-tada permite estabelecer uma direção para as coisas: improvisar “é não trabalhar instin-tivamente. A atenção é um movimento que me motiva a fazer alguma coisa, é minha

atenção que me conecta com a ação.”

O improvisador precisa exercitar sua memó-ria, arquivando novas coisas e acessando-a para resolver situações que a composição no instante provoca no improvisador. A imagi-nação passa a ser uma prática do improvi-sador. Improvisar promove um estado e per-tence ao campo da imaginação; é uma ideia. A imagem se compõe um pouco como escu-ta e sintonia das habilidades acima citadas e com a construção de expectativas e pos-sibilidades do que poderá vir a ser. A tarefa do improvisador é ir descobrindo como ele compõe de dentro da obra, como ele atua, na recepção de elementos e na devolução ou reação própria. O improvisador refina e agu-ça seus sentidos, provocando um corpo sutil e atuante, repleto de texturas e sensações.

Para a improvisação acontecer ela se apóia em uma estrutura, e o improvisador deve percebê-la como uma malha, uma teia, um andaime de prédio em construção. A própria estrutura é que permite ao improvisador agir, por ser vazada e arejada.

Mas como se dá o estudo da improvisação? O aprendizado se dá no próprio exercício da im-provisação, sendo essencialmente experimen-tação. O improvisador vai se instrumentalizan-do: usando da memória, refinando a atenção, abrindo as escutas e tomando decisões.

A improvisação acontece na ação e no ima-ginário do artista e do espectador, em uma composição em constante aparecer e desa-parecer. Enquanto o improvisador compõe, o espectador pode se deliciar com sua edi-ção própria com o simples piscar de olhos, editando, fazendo cortes, focando, e produ-zindo “black-outs” individuais. A improvisa-ção como fim em si mesma é, portanto, um modo de composição no instante.

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João Antonio de Paula

Desde que surgiu, no final do século XII e início do século XIII, a Universidade vem se afirmando como das mais decisivas institui-ções da modernidade. Seu próprio nascimen-to tem expressivo significado ao representar uma ruptura com as modalidades de escolas então existentes subordinadas ou ao rei, ou aos bispos ou aos mosteiros. Nascidas das ini-ciativas de professores e de alunos, as univer-sidades foram um desafio aos poderes consti-tuídos, desafio esse que se tornou ainda mais contundente na segunda metade do século XIII, no contexto do confronto entre a Facul-dade de Artes e a Faculdade de Teologia, da Universidade de Paris, quanto à legitimidade da liberdade de pensamento, para além dos condicionamentos teológicos. Em seu livro Raízes da Modernidade, o padre Henrique de Lima Vaz diz ser esse momento, a afirmação da liberdade de pensamento a partir da rei-vindicação da Faculdade de Artes da Univer-sidade de Paris, um dos momentos fundantes da modernidade. (VAZ, 2003)

Nascida de um movimento de afirmação da centralidade de alunos e professores no pro-cesso educativo, afirmada pela vitória da li-berdade de pensamento, a Universidade terá no século XVIII, pelos influxos da Revolução Francesa, um terceiro momento constitutivo representado pela imposição da dimensão republicana, laica e multifuncional da insti-tuição universitária. Logo em seguida, com a Universidade de Berlim, em 1810, agregou-se uma outra decisiva dimensão à vida universi-tária, que é a efetiva inclusão das atividades de pesquisa como essenciais à configuração da universidade, que, para se conformar in-teiramente, incorporou ainda uma última dimensão, a extensão universitária.

Foi em 1871, inicialmente na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e depois em Oxford, que surgiram as primeiras ações de extensão universitária voltadas, inicialmente, para o oferecimento de cursos de atualização e aperfeiçoamento para trabalhadores e ou-tros segmentos populares. Registre-se que esses cursos não buscavam suprir carências de formação profissional senão que voltavam-se para temas históricos, literários, filosóficos e

científicos de interesse geral. A experiência pioneira inglesa espalhou-se para o continen-te europeu e para os Estados Unidos, que, no início do século XX, adicionaram às atividades de extensão o “atendimento às demandas específicas do setor produtivo”, mediante um exitoso programa de assistência técnica às atividades agrícolas.

No Brasil, as atividades de extensão estão inscritas entre os objetivos da Universidade desde 1931, quando da primeira legislação específica para as universidades brasileiras.

Trata-se, nesse sentido, de reconhecer diversas dimensões e compromissos da Universidade para além da produção de conhecimento e da formação de capacita-ção técnica, científica e profissional, que também são atributos da Universidade a preservação e difusão do patrimônio cultu-ral da humanidade, de seus valores éticos fundamentais, bem como é sua também indeclinável responsabilidade contribuir para o pleno desenvolvimento social como justiça, liberdade e solidariedade.

É, sobretudo, no referente a este último compromisso que destacam-se as ativida-des de extensão universitária. No caso da UFMG, hoje, elas englobam além de um conjunto de programas, projetos, cursos e eventos voltados para a avaliação e acom-panhamento de políticas públicas e para a prestação de serviços demandados pela so-ciedade, ações sistemáticas nos campos da produção cultural, da divulgação científica e da preservação ambiental e busca de desen-volvimento sustentável.

A UFMG, por meio de seus espaços e equi-pamentos tanto no Campus da Pampulha, quanto no Conservatório, quanto no Centro Cultural, é responsável por uma diversifica-da e qualificada programação cultural. Em sua Rede de Museus e Espaços da Ciência e Cultura, reúne em Belo Horizonte, Diaman-tina, Montes Claros e Tiradentes, acervos artísticos, históricos, bibliográficos e muse-ológicos que tanto são indispensáveis para a plena realização dos seus programas de ensino e da pesquisa, quanto estão abertos ao público em geral, contribuindo para o de-

senvolvimento tanto local, quanto regional, seja pela atração do chamado turismo cul-tural e ecológico, seja por seu decisivo papel na montagem de redes de instituições (bi-bliotecas, museus, galerias, teatros, arqui-vos, jardins botânicos, estações ecológicas, etc.) essenciais à uma sociedade que se quer da informação e do conhecimento.

Com efeito, são as atividades chamadas de ex-tensão que permitem o contato, a interação, direta e imediata do conhecimento produzido na Universidade com sua efetiva e legítima destinatária, a sociedade, a qual caberá vali-dar, criticar, transformar o que a Universidade produz, provocando modificações nos modos de fazer, nas metodologias, nos curricula, nas temáticas nos objetivos da Universidade pela ação desse decisivo compartilhamento entre Universidade e sociedade possibilitado pela extensão universitária.

A extensão universitária é, enfim, um dos lo-cus privilegiados da realização dos melhores desígnios da Universidade tal como Celso Fur-tado a caracterizou, e que queremos honrar:

“A Universidade é, certamente, uma das invenções mais maravilhosas surgidas em qualquer cultura. Ela cristaliza a percepção de que o conhecimento pode ser utilizado para iluminar, disciplinar e ampliar o po-der, sendo, portanto, ela mesma, uma for-ma superior de poder capaz de tomar cons-ciência de sua responsabilidade social”. (...) “Em realidade, é nessa combinação do trabalho produtor de conhecimento com o de transformação desse conhecimento em instrumento de ação posto a serviço da so-ciedade que se encontra o traço específico da instituição universitária”. (FURTADO, 1984, pp. 55-56)

BibliografiaFURTADO, Celso. Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise. 2ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Raízes da Modernidade. São Paulo, Edições Loyola, 2002.

João Antonio de Paula é Pró-Reitor de Extensão da UFMG.

A extensão universitária

e a sociedade contemporânea

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Número 42 • Outubro de 2010

Literatura online não é uma mera questão de suporte

Raquel Camargo

Há quem pense que todo o mudo muda com a internet. De fato, mudanças acontecem, não há como negar, porém falta-nos algu-mas vezes o pé no chão ao avaliarmos os impactos das tecnologias digitais na cultura e sobre tudo o que chamamos de novidade na rede.

Experimentações são feitas em inúmeras áreas do saber desde muito antes de serem pensados os computadores, entretanto te-mos a sensação de estarmos agora entrando em um período em que tudo é inédito. A no-vidade por que passamos hoje, no fundo, é a chance de ter todas as manifestações poten-cializadas por causa da internet. Obras cole-tivas já eram feitas antes de qualquer rede social online existir. A diferença era as pos-sibilidades de alcance dos participantes. Um escritor não reconhecido poderia publicar independentemente seu trabalho, se dispu-sesse de recursos para investir, e certamente teria o seu público. O que muda hoje, com toda certeza, é a facilidade com que isso pode ser feito. Os conceitos são os mesmos, o que altera é a força que eles recebem ao serem aplicados ao contexto cibercultural.

Estando online, qualquer conteúdo pode ser pulverizado com facilidade ímpar. En-quanto um indivíduo sofreria para distribuir cópias físicas de sua produção, uma a uma, possivelmente para pessoas que talvez nem fossem especificamente parte de seu públi-co, na web temos a chance de uma vez só deixar um material disponível para o acesso de qualquer pessoa, sendo que essa pode compartilhá-lo, e assim criar uma corrente de divulgação espontânea.

O motor disso tudo é a base social. A situa-ção que perdurava era feita por uma multi-dão que estava em um pano secundário e, de repente, todo esse aglomerado ganhou poder de voz ativa, de decidir o que e como consumir cultura, entre tantas outras coisas. Consequentemente, esse público “ciber--ativo” passou a ser parte de um coro que ecoa, sem deixar espaço para hierarquias e distribuição de personagens/ protagonistas.

Nesse ambiente, em que todos podem criar/ recriar, impõe-se a dinâmica do colaborati-vismo, do ativismo em torno do comparti-lhamento de informações e de conhecimen-to – caminha-se para a inevitável quebra de paradigmas da “velha” indústria cultural.

Essa pluralização de vozes que nos chega traz consigo também perturbações novas, proble-mas novos que se colocam nos debates sobre conhecimento e cultura. Com tantas novas mídias, novas tecnologias e velhas formas de pensar, enfrentamos um momento em que se faz necessário refletir os conceitos que nos orientaram até pelo menos as duas últimas décadas. McLuhan já avisava há décadas que o “meio é a mensagem”, e trazendo a citação para o contexto atual podemos ver quão deli-cada é a interferência do meio na transmissão de alguma produção.

Vamos a um pontual exemplo. Hoje é normal vermos mídias e redes sociais se misturando para um fim em comum, para a publicação, criação e/ou adaptação de uma obra literá-ria. Dia desses a editora de audiolivros BBC Audiobook America se juntou à Neil Gaiman para uma proposta ousada que a uniria ao microblog Twitter - conhecido por permi-tir mensagens de até 140 caracteres, com áudio. O autor dos quadrinhos “Sandman” iniciou um projeto com a editora BBCAA em que propunha a criação de uma obra com pretensão colaborativa através do mi-croblog. Gaiman foi chamado pela editora para iniciar a história com uma mensagem publicada pelo Twitter, que deveria ser con-tinuado por qualquer outra pessoa.

Vejamos abaixo o registro do início dessa história colaborativa feita através do Twitter para que, no fim da produção, fosse trans-formada em um “livro para ser ouvido”.

Figura 1- Início de audiolivro da BBCAAFonte: http://www.bleedingcool.com/2009/10/14/neil-gaiman-starts-new--twitter-novel-or-twovel/>

Logo após a postagem, poucos minutos depois, mensagens de usuários do Twitter de todas as partes do mundo começaram a ser enviadas. Para a identificação de que o texto publicado fazia referência ao projeto da editora, usava-se a hashtag #bbcawdio (uma palavra-chave) e o nome da editora seguido com o arroba (fato que forçava os participantes a subtrair alguns dos - já mí-seros - caracteres dos 140 oferecidos pelo sistema). Dos vários textos enviados por

usuários do Twitter, uma opção era escolhi-da pela equipe da editora, e assim sucessi-vamente, formando um ciclo de escolhas davam sequencia ao pontapé inicial lançado pela BBCAA, e a quase imediata enchurrada de sugestões acenavam para o próximo pas-so da narrativa.

A experiência em questão fez sucesso entre leitores, mídia e aqueles que passaram a ser também autores da obra que estava sendo elaborada. Inúmeras discussões poderiam ser geradas a partir desse caso, como a criação de uma obra sonora com gênese em textos escritos com limitações de caracteres. Outro debate despertado pelo exemplo envolve a questão da autoria: afinal, o audiolivro seria creditado a quem? A Neil Gaiman e vários ar-robas ou ao Twitter e Gaiman? Pelo menos a questão de distribuição de valores de venda foi resolvida parcialmente com a decisão de se distribuir o conteúdo gratuitamente.

Em dezembro de 2009, ano em que a his-tória se iniciou, cerca de dois meses após o início do projeto, a editora lançou através de seu blog o audiolivro “Hearts, Keys, and Pu-ppetry”1 com os seguintes créditos: By Neil Gaiman and the Twitterverse, Narrated by Katherine Kellgren.

A descrição da autoria resume (justamente ou não) o nome de mais de cem pessoas que escreveram mensagens que passaram a fa-zer parte do enredo e a levá-lo a caminhos imprevisíveis até então. O termo “twitter-verse” comprime inúmeros nomes de usuá-rios da rede que contribuíram e colaboraram para a criação do trabalho, contudo foi resu-mido em uma palavra genérica.

Discussões sobre autoria, recepção dos conte-údos, a própria criação das obras, a continu-ação da leitura hipertextual, a interação são deveras fundamentais para conseguirmos absorver e melhor desenvolver literatura na internet. Pensar no suporte não basta, pois, vazio, ele não é nada. Saber refletir a dinâ-mica que a web pressupõe é a chave para se fazer conteúdo de relevância, pois a idéia não necessita de conexão ou energia elétrica, isso é apenas uma questão de tecnologia.

Referências1 O audiolivro pode ser ouvido em http://www.bbcaudiobooksamerica.com/TradeHome/Blog/tabid/58/articleType/ArticleView/articleId/147/bbcawdioThe-Twitter-Audiobook-is-Here.aspx

Rogério Barbosa da Silva

Essa editoria traz à baila uma discussão sobre a literatura na rede, convidando a Jornalista, blogueira e mestranda em Estudos de Lin-guagens do CEFET-MG, Raquel Camargo. Com a sua experiência na blogosfera e em pesquisas sobre redes digitais, Raquel Camargo colo-ca-nos uma questão importante: as redes impulsionadas pelas trans-formações aceleradas das tecnologias digitais podem mudar o modo como produzimos e consumimos a literatura? A tecnologia não é mero fetiche, o suporte eletrônico não é tudo; porém quando são utilizados potencialmente como um desafio, algo novo se nos apresenta, e aí os conceitos precisam ser revistos.

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A febre morna

dos cânones

Marcelo Dolabela

Em arte, em época de crise, de recontextu-alização, de reposicionamento e de reno-vação, pululam cânones. Os 100, os 500, os 1000 melhores / maiores / fundamentais / imperdíveis / etc. E, assim, por diante.

Acadêmicos, populares, populistas, oportu-nistas e criteriosos. Cânone é cânone. Um retrovisor embaçado e quebrado que tenta ordenar o passado (isto é: “o até aqui”) para apontar, guiar e produzir um futuro (“o da-qui a pouco”) melhor.

Um cânone não é e nunca será um “paideu-ma”. É, sim, moral (pessoal e intransferível) e, quase sempre, com raras exceções, mora-lista. Pois, um “paideuma”, só para lembrar-mos o conceito de Ezra Pound, é a ordenação do passado que cada artista faz para mostrar as vozes vivas que habitam sua obra. Pound, com seu aforismo propositivo, vai além da importante proposta de Harold Bloom (an-gústia da influência), pois dá (obriga) o ar-tista a ser dono de sua própria história.

Com o declínio do CD, com a globalização da pirataria e com o surgimento de novas for-mas de distribuição, a música atravessa uma crise. Não uma crise de criatividade. Nunca tivemos acesso à tanta opção (qualitativa e quantitativamente) de música. A crise é de: o que produzir? Como embalar? Como e onde vende? Quanto lucrar?

Assim, os cânones surgem, se fazem presen-tes e produzem alguns dividendos.

No território da música popular, temos três formatos básicos de cânone: (1) do livro-lista-gem; (2) da coleção de discos; e (3) da coleção de discos acompanhada de plaquetes, revis-tas, pôsteres ou livros. Esta, com o claro ob-jetivo de ser vendida em bancas de revistas.

O jornal/editora Folha de São Paulo, nos últimos anos, produziu três cânones: (a) Coleção Folha clássicos do jazz, com 20 álbuns/livretos, organizada por Carlos Ca-lado; (b) Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova, com 19 álbuns/livretos, a cargo de Ruy Castro; e, ainda nas bancas, (c) Coleção Folha raízes da Música Popular Brasileira, 25 álbuns/livretos, também sob a coorde-nação de Carlos Calado. Três cânones bem realizados e importantes para quem quer revisitar ou iniciar estudo nos temas. De Castro e Calado, é desnecessário comentá-rio. Ruy, na Bossa Nossa, cinema, Carmen Miranda e Garrincha; e Calado, no jazz, rock, Tropicália e MPB, já mostraram co-nhecimento, competência e pertinência nos assuntos enfocados.

Para pensarmos um pouco como um cânone se estabelece e funciona, vamos desenhar uma planta-baixa da mais recente coleção Folha, para vermos se um cânone/coleção é um “amontoado” de nomes e músicas.

Onde nasceram: no Rio de Janeiro, 16 (64%); em Minas Gerais, 4 (16%); na Bahia (8%), 2, no Paraíba, Pernambuco e Rio Gran-de do Sul, um compositor (4% cada). O que reafirma a máxima de que a então capital do País (Rio de Janeiro) é a grande manjedoura de nossa música popular. Minas Gerais vem atrás, mas “exportou” para a Cidade Maravi-lhosa seus filhos. Esses dados contestam a tese de Mário de Andrade, de que a base da nossa música popular está na região cafeeira da região do Rio Paranaíba (MG – RJ – SP).

Data de nascimento: primeira década do século XX e década de 1910, 9 composito-res em cada (36% cada); década de 1920, (12%); quatro compositores nasceram no século XIX (16%). Dos 25 participantes, apenas o paulistano Paulo Vanzolini ainda está vivo. Estes números provam que a cha-mada Era de Ouro da Música Brasileira, sem dúvida, foram as décadas de 1940 e 1940, quando 18 dos mais importantes compo-sitores ranqueados tiveram o auge de suas atuações.

Quando à atuação, embora alguns composi-tores não tenham nascidos na cidade do Rio de Janeiro – Assis Valente e Dorival Caymmi (BA), Ary Barroso, Ataulfo Alves e Geraldo Pereira (MG), Luiz Gonzaga (PA) e Jackson do Pandeiro (PB), 22 tiveram atuação in-tensiva no Rio (88%). Apenas três concreti-zaram suas obras fora: Lupicínio Rodrigues (RS), Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini (SP). Mas uma vez, o Rio alçada como a capi-tal da nossa música. A explicação é simples, o governo federal (grande propulsor da cul-tura, principalmente, no Governo Vargas) e a mídia estavam sediados na capital (rádios e jornais).

Das 350 músicas da coleção, 287 (82%) apresentam letras e apenas 63 (28%) são apenas apresentadas instrumentalmente, embora algumas tenham ou fossem le-tradas tempos depois de sua composição, como é o caso de Carinhoso, de Pixinguinha, com letra posterior de João de Barro. Outros números incontestes. A música brasileira, a partir do período de reprodução fonográfica, se baseia essencialmente na canção, letrada e, quase sempre, amparada em um refrão e/ou estribilho.

As décadas de maior atuação são: 1950, 21 compositores atuando; 1930, 20; 1940, 19; 1960, 17; 1970, 12; 1980, 10; 1920 e 1990, 4

cada; 1900, 1910 e primeira década do século XXI, 3 cada; últimas décadas do século XIX, 6. Aqui, atuação não é auge. Vários composito-res morrem com idades avançadas, atuavam, mas já não produziam seu melhor.

Embora algumas gravadoras não empres-taram (cederam) seus catálogos (Philips / Universal, Som Livre e RCA / BMG), o que acarretou em ausências fundamentais, a co-leção foi baseada, quase que exclusivamen-te, no catálogo de duas grandes: Emi, 244; Sony Music, 112 fonogramas; a RGE cedeu 4; do instrumentista Henrique Cazes, 5; e da cantora Clara Sandroni, 1.

20 álbuns (80%) trouxeram as 14 faixas com-postas exclusivamente por seus titulares; os restantes 20%, isto é, cinco álbuns, os titu-lares, além de suas composições, estão apre-sentados com intérpretes de outros. O álbum de Jackson do Pandeiro traz apenas quatro composições de sua lavra (28%); o de Sílvio Caldas, sete (50%); o de Dolores Duran, 10 (71%); e o de Waldir Azevedo, 12 (85%).

No quesito “maior compositor”, alguns fo-ram além das 14 faixas de seus álbuns e tiveram canções/parcerias incluídas em ou-tros discos. Noel Rosa, 14 mais uma no ál-bum de Lamartine Babo; uma no de Bragui-nha; e cinco, no de Ismael Silva. O que perfaz 21 composições. Pixinguinha, 14 mais duas nos álbuns de Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo; e uma no de Braguinha. Total: 19. Ary Barroso, 14 mais 3, no álbum de Lamar-tine Babo; e 1, no de Sílvio Caldas. Total: 18. Wilson Batista, 14 mais 3, no álbum de Ataulfo Alves. Total: 17. Lamartine Babo, 14 mais uma nos álbuns de Ary Barroso e Bra-guinha. Braguinha, 14 mais duas no álbum de Pixinguinha. Total de ambos: 16. Alguém pode argumentar que Noel Rosa lidera, pois sua obra já está em domínio público. Mas se revisitarmos outros cânones da MPB, essa liderança se confirma.

Ausência em cânone é palavra proscrita. Mas, não há como não citar algumas: Cus-tódio Mesquita e Wilson Batista (as maiores de todas), Alcir Pires Vermelho, Antônio Maria & Fernando Lobo, Benedito Lacerda, Bide & Marçal, Capiba, Evaldo Gouveia & Jair Amorim, Haroldo Barbosa & Luiz Reis, Hei-tor dos Prazeres, Manezinho Araújo, Pedro Caetano, Synval Silva, Valzinho, Vicente Ce-lestino e Zequinha de Abreu. De intérpretes, pelo já dito anteriormente, a não cessão de fonogramas, as principais ausências: Caeta-no Veloso, Chico Buarque, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil e Orlando Silva. E a mais curiosa, de João Gilberto, que produziu seus melhores álbuns na EMI-Odeon, a principal fornecedora da coleção.

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Mapeamento cultural: política pública e convivência social

Clarice de Assis Libânio

Há muitos anos venho batendo na mesma tecla, por onde quer que eu vá: a importân-cia do mapeamento e do diagnóstico cultu-ral para o (re) conhecimento de nós mesmos e daqueles com os quais convivemos em nossa comunidade, cidade, estado, país...

Na maioria dos lugares, todos concordam com essa premissa: “sim, de fato, há que se realizar pesquisas, há que se fazer diagnós-ticos da cultura local, isso é prioridade!” Mas no fim, nada acontece, não há verba, não foi possível, não há quem faça, enfim, cada dia uma coisa diferente faz com que continue-mos nos mesmos lugares.

E se você, leitor, não tem também certeza dessa necessidade, queria somente per-guntar:

Você sabe quantos artistas existem atu-almente em atividade em Belo Horizonte (ou aí, na cidade onde você mora)? Onde se apresentam? Qual é sua formação? Há quanto tempo estão em atividade e quais suas principais demandas?

Saberia dizer quantas peças foram produzi-das no estado de Minas Gerais no ano passa-do? Quantos livros publicados? Quantos CD’s lançados?

Você sabe quais e quantos são os equipa-mentos culturais da cidade e do Estado?

Onde se localizam? A quantas pessoas aten-dem? Quais são suas carências e necessida-des de reestruturação?

Você sabe quais são as áreas da cidade em que há carência de espaços e atividades culturais? E saberia dizer qual é o perfil do público consumidor de cultura na cidade?

Tem alguma idéia de que tipo de espetácu-los o público gostaria de ver? E porque não freqüenta determinados tipos de eventos artísticos?

Você tem noção dos motivos pelos quais eventos gratuitos de qualidade muitas vezes ficam às moscas, mesmo quando realizados de maneira descentralizada, nos bairros e centros culturais?

Se você respondeu não a todas ou à maioria destas perguntas, não se sinta desinforma-do ou por fora do que acontece na sua cida-de e no seu estado. Possivelmente nem você e nem ninguém sabe. E o mais incrível, nem mesmo o poder público - responsável pela proposição e condução da política cultural - saberia responder com um mínimo de certe-za a essas indagações.

De fato, a falta de informações a respeito da área cultural é uma das principais sur-presas que se tem ao consultar gestores públicos, secretarias, bibliotecas, bancos de dados, entidades de representação artística e outros interessados no tema.

Nem mesmo os tão famosos mecanismos de busca pela web são capazes de desco-brir onde estão informações desta ordem, que possam servir de fonte de consulta e subsídio para o planejamento de ações dos diversos setores da sociedade.

A falta de informação na área cultural é uma questão grave em diversas instâncias. São poucos os dados disponíveis em nível nacio-nal, pouquíssimos os existentes em âmbito estadual e praticamente nulos os produ-zidos nas esferas municipais. Mesmo no contexto da Capital mineira, onde se espera deveria haver um registro mais elaborado destas informações, nem mesmo aí é possí-vel apurar dados atualizados e abrangentes sobre o cenário artístico-cultural da cidade.

Não se pode dizer que pesquisas não sejam realizadas. O tempo todo há estudantes elaborando monografias, dissertações e teses, há órgãos e entidades mapeando e cadastrando seu público-alvo, há produ-tores e agências interessadas em melhor conhecer o perfil do consumidor de cultura para direcionar ações e ampliar mercados. Entretanto, a diferença de metodologias, que não dialogam entre si, e a inexistência de divulgação destas informações, muitas vezes mantidas a quatro chaves junto a cada um dos responsáveis por sua elaboração - sem um local único que as congregue e per-mita acesso ao conhecimento - são fatores responsáveis pelo grande vazio com o qual se depara na busca desses dados.

Eleonora Santa Rosa

Uma das profissionais mais respeitáveis que já conheci, responsável, há anos, pela produção incansável de dados fundamentais para a compreensão da dinâmica cultural urbana de BH, Clarice Libânio desenvolve trabalho singular, precioso, por meio de sua ONG Favela é isso aí. Absolutamente consciente da importância de pesquisas e estatísticas confiáveis sobre o univer-so da produção cultural, seus estudos são contribuições únicas, na sua faixa de atuação, para a implantação de ações bem articuladas e consistentes, particularmente no âmbito do Poder Público.

O artigo aqui publicado aborda bem os problemas enfrentados nesse campo e a carência brutal de diagnósticos críveis, além das conseqüências advindas da ausência de políticas direcionadas para a construção de um sistema sólido de informações culturais.

Gestora cultural de primeira linha, Clarice põe a mão na massa e não corre do desafio, encara a árdua tarefa de garimpar dados e construir metodologias de planejamento participativo, crian-do, na prática, uma plataforma de informações riquíssima e de grande valia para Minas Gerais. Seu trabalho é um exemplo para o Brasil.

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O 1º (e único) Diagnóstico Cultural de Belo Horizonte foi elaborado em 1994, isto é, há mais de uma década. Já o Censo Cultural de Minas Gerais, datado do final da década de 1990, começou a ser atualizado por volta de 2005, mas problemas de ordem institucional e técnica impediram o sucesso da empreita-da. Ambas iniciativas de grande importância e fôlego, infelizmente não contaram com o necessário esforço, dotação orçamentária e agilidade, por parte do poder público, para serem constantemente atualizados.

Com tal situação, hoje tanto a Secretaria Estadual de Cultura de Minas Gerais quan-to a Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte contam com cadastros de equi-pamentos e bancos de dados defasados, além de pouco extensos, isto é, sem atingir de fato a maioria de sua área de atuação, e que, ademais, não tem seu acesso difundido e facilitado ao grande público.

Se nos dirigimos aos municípios do interior do estado, a situação é ainda mais grave. Poucas, pouquíssimas são as cidades que contam com algum tipo de banco de in-formações culturais que possam ser con-sultados por seus gestores e moradores. Isso sem falar naqueles vários casos em que, quando há tais dados, ninguém tem conhecimento de sua existência, por falta de divulgação ou de prática de um traba-lho embasado em pesquisas empíricas, restando então às tão caras informações o destino de alguma gaveta embolorada no bureau de algum burocrata.

Ao voltar os olhos para o restante do país, vemos que também são poucos os exem-plos de cidades ou estados que têm mais trabalhos produzidos nessa área: pesqui-sas acadêmicas, levantamentos e mape-amentos culturais, diagnósticos, enfim, escasseiam produtos e informações que poderiam estar à disposição da população para consulta e utilização.

Isso tudo dentro do contexto do Sistema Nacional de Cultura – SNC, que, inspirado pelo modelo de pacto federativo pratica-do no SUS (Sistema Único de Saúde) e no SUAS (Sistema Único de Assistência Social), por exemplo, pretende congregar estados e municípios na discussão e proposição de

uma política cultural inclusiva, tendo como base primordial um sistema de informações e indicadores culturais recolhidos nos muni-cípios e disponibilizados para a população e gestores, públicos e privados.

Apesar de já estar em pleno funcionamento, com as conferências municipais, estaduais e federal de cultura a todo vapor, o SNC ainda não conseguiu avançar na implementação do Sistema de Informações, ou seja, no ma-peamento e diagnóstico cultural de nosso país. O que há hoje, ainda, são as informa-ções disponibilizadas pelo IBGE, na MUNIC – módulo cultura, que, de fato, não permi-tem compreendermos as especificidades e características das práticas culturais, desse ou daquele município.

Em Minas há um projeto pioneiro no país, que propõe a implementação do Sistema de Informações Culturais, com definição de das regiões culturais do Estado e proposta de banco de dados on line para consulta pública. Esse projeto, iniciado na gestão da então Secretária de Estado da Cultura Eleo-nora Santa Rosa e coordenado por Sylvanna Pessoa, encontra-se em estado avançado de concepção, mas até agora não foi implanta-do e tem sido impedido de ser concretizado pelas inúmeras burocracias e limitações de recursos, em especial nesse ano de 2010, véspera de eleições.

Posso citar aqui algumas pesquisas que trazem reflexões sobre a questão cultural no Brasil. Além daquelas publicadas desde a década de 1990, tanto pelo Ministério da Cultura quanto, por exemplo, pela Fundação João Pinheiro - FJP, realço três pesquisas lan-çadas mais recentemente, que lançam luz a uma parte dessa lacuna por informações na área da cultura.

A primeira delas, embrião do chamado Sis-tema de Informações Culturais, foi elabo-rada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, e lançada no final de 2006, com dados das pesquisas econômicas de 2003. Traz informações da cultura como setor produtivo, além de indicar dados dos investimentos públicos e dos gastos das fa-mílias com bens culturais.

A segunda pesquisa, publicada em 2007

pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Apli-cadas – IPEA, traz dois volumes da Coleção Cadernos de Políticas Culturais, que avaliam a política cultural no Brasil no período 2002-2006, além de levantar informações sobre o acesso aos mecanismos de financiamento e seu impacto na geração de empregos.

Por fim, a terceira pesquisa, lançada em março de 2007, é da Fundação João Pinhei-ro, chamada “Experiências de Financia-mento à Cultura em Municípios de Minas Gerais: gastos públicos, aparato institucio-nal e mecanismos de incentivo”. Essa tem, comparativamente, a vantagem de trazer informações para o âmbito local, ainda que apresente dados desagregados apenas para os municípios mineiros com mais de 50 mil habitantes.

Apesar de já significarem um avanço na oferta de informações e dados, as três pes-quisas limitam-se, via de regra, a focar a cul-tura em seus aspectos econômicos, deixan-do de tocar, de fato, em aspectos acerca do perfil cultural da população, bem como do perfil das manifestações culturais do país.

Considerando esta falta de informações a respeito da área artístico-cultural, nas diversas esferas, resta fazer um questiona-mento de certa gravidade: como são elabo-radas então as políticas públicas de cultura nos municípios e estados? Como é possível planejar gastos, investimentos e prioridades sem saber a que público eles se destinam e a quem deveriam realmente beneficiar?

O grande risco é pensar que tais políticas ba-seiam-se em entendimentos e conhecimen-tos bem particulares, e que possam ser con-duzidas pelos gestores da cultura a sabor, principalmente, dos ventos e das pressões. Sim, pressões no sentido de que, de fato, apenas as entidades de classe organizadas, que tem interesses particulares a defender, conseguem ter um mínimo de organização, estruturação e informação sobre sua catego-ria artística, levando então ao poder público suas reivindicações e concepções de política desejável para o setor.

É importante frisar que não estou aqui de-fendendo uma tecnocracia em que os “da-dos” falariam por si só e seriam suficientes

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para desprezar a participação política, a organização e a mobilização das categorias artísticas. Ao contrário, o que questiono é se, de fato, as políticas culturais não deveriam ser conformadas e informadas um pouco mais a respeito da configuração e perfil des-tas mesmas categorias e de outras ainda não organizadas, de forma a que a reivindicação e a mobilização encontrassem eco na situa-ção diagnosticada.

Essas políticas não deveriam ser pensadas a partir do conhecimento de nós mesmos, como geradores de cultura, e daqueles que convivem conosco, mas são diferentes em sua forma de produzir e manifestar essa mesma cultura? Investimentos e proposi-ções não deveriam ser fundados em conhe-cimento da realidade cultural de cada cida-de, em seus aspectos visíveis, mas também nos pouco publicizados?

Nesse momento da discussão dois parênte-sis se fazem necessários. Em primeiro lugar, temos que comemorar quando encontra-mos municípios e estados no Brasil em que há alguma política cultural, ainda que fun-dada apenas nos atores sociais organizados e suas demandas. Isso porque o que se vê, de fato, é uma situação em que a questão cul-tural ou não é sequer considerada como ob-jeto de ação pública, caso da grande maioria dos municípios do interior, ou simplesmente limita-se à concessão de benefícios fiscais, via leis de incentivo, eximindo-se o gestor público de cuidar da cultura de seu território.

O segundo parêntesis diz respeito ao fato de que não apenas o poder público prescinde de informações sobre a área cultural para traçar suas prioridades. Também a iniciativa privada, os produtores, os próprios artistas e os consumidores, o público em geral, enfim, todos eles são prejudicados, em maior ou menor grau, pela falta de uma visão mais embasada do cenário cultural em que se inserem. Em Belo Horizonte, por exemplo, já ouvi relatos de produtores culturais que afir-mam que, ainda hoje, baseiam sua atuação naquele 1º Diagnóstico Cultural, de 1994, visto ser esta a única fonte de informação organizada disponível para consulta.

Retornando então ao tema, a falta de inves-timentos na produção de informação cultu-ral é também justificada por uma visão ain-da dominante, ainda que muitas vezes não explicitada, da cultura como diletantismo, área supérflua ou secundária no contexto das políticas públicas, num país em que a fome e as mazelas sociais estão longe de ser solucionadas.

Essa visão, via de regra, incorre, entre vários outros, em dois equívocos centrais: o primei-ro é a desconsideração da cultura como setor produtivo, que gera grande número de pos-tos de trabalho, movimentação de recursos e renda em todo o país.

O segundo equívoco corrente é aquele que desconsidera a cultura como caldo de signi-

ficação, em seu conceito antropológico mais amplo – cultura entendida então como as práticas adotadas pelas sociedades huma-nas para se organizar, se expressar e dar sentido a sua existência, como aquilo que, enfim, conforma a humanidade e diferencia homem e natureza.

Mas nem tudo são lamentos. A segunda metade da década de 2000 trouxe sim mui-tos avanços, ainda que não na velocidade e extensão desejáveis. Em âmbito federal, a já citada implantação do Sistema Nacional de Cultura, proposto pelo Ministério da Cultu-ra, que vem gradativamente incorporando estados e municípios e trazendo para as lo-calidades noções mínimas de planejamento cultural e demandas por levantamento de dados. No contexto do Estado de Minas, há ainda a esperança de se implantar o Sistema de Informações e a proposição de regiões culturais, com investimentos descentraliza-dos no interior do Estado.

De qualquer maneira, enquanto a prioriza-ção da produção de informação na área da cultura não vem da parte do Poder Público, o que nós, gestores culturais, pesquisadores, representantes de entidades do terceiro setor, empresários do meio artístico, comunidade e sociedade civil em geral podemos fazer?

Em minha opinião, colocar as mãos na mas-sa e produzirmos nós mesmo as informações que necessitamos. Em geral, quando chega-mos nesse ponto da discussão, o que ouço é: “não temos recursos para isso”; “pesquisas são caras e os municípios não conseguem arcar com elas.” Sei que isso é uma verdade, e que a falta de recursos é ainda mais grave quando o assunto é cultura.

Entretanto, se a falta de recursos é uma re-alidade, também é verdade que abundam profissionais, universidades, estudantes, or-ganizações da sociedade civil, enfim, muita mão-de-obra (com o perdão da expressão que é usada somente para o trabalho braçal, como se depreciasse o trabalho intelectual) qualificada para somar esforços e trabalhar na busca do (re) conhecimento e difusão da cultura local.

Isso é o que temos tentado manter com as pesquisas que realizamos na ong Favela é Isso Aí, desde o lançamento do Guia Cul-tural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte, em 2004, que aliás, deve-se mencionar, foi inspirado no Censo Cultural de Minas Gerais para sua realização. Adotando metodologias de planejamento, pesquisa e diagnóstico, de cunho mais participativo e com envolvi-mento dos moradores, temos conseguido, com pouco recurso, construir na prática informações fundamentais para as comuni-dades, subsidiando seu reconhecimento, a valorização de suas manifestações culturais e a atuação de gestores públicos, produtores e artistas locais.

Essa experiência, que traz dados não so-mente sobre os artistas, mas também sobre

entidades, equipamentos culturais e orga-nizações em atuação no território, pode ser facilmente replicada nas cidades do interior. Com tais informações em mãos, é possível constituir um ponto de partida para a políti-ca cultural local, pública ou privada, emba-sando o planejamento das ações e mesmo dando o substrato para uma construção posterior de um diagnóstico cultural mais detalhado e integrado a um Sistema de In-formações mais amplo.

A partir desse ponto mínimo, de cadastra-mento e mapeamento da cultura local, é fundamental também avançar na aplicação de questionários e pesquisas de público e consumo cultural, formando, aos poucos, bancos de dados consistentes e fundamen-tais para os diversos entes da federação.

Enfim, meu objetivo aqui, mais uma vez, é chamar a atenção para o tema, juntando-me às outras vozes que têm trabalhando nesse sentido nas últimas décadas, reforçando a necessidade de se implantar bancos de da-dos culturais nos municípios, independente de seu porte, e de garantir a realização do Sistema de Informações Culturais de Minas Gerais. Conhecer a totalidade das manifes-tações culturais de um povo tem uma série de possibilidades e vantagens que superam a mera listagem de nomes e endereços, que muitas vezes são os únicos produtos de pes-quisas extensas e caras.

Conhecer as manifestações culturais ocorren-tes em uma cidade, estado ou país, permite visualizar um panorama cultural mais amplo, que não se baseie apenas naquela parcela consagrada de artistas conhecidos pelas eli-tes e já estabelecidos no cenário local. Possi-bilita também uma visão da rede invisível da cultura, isto é, aqueles artistas e grupos que desenvolvem manifestações artísticas e não são conhecidos do grande público.

Para além dos benefícios econômicos, dos quais já se tem conhecimento um pouco mais claro, a elaboração dos diagnósticos culturais permite o conhecimento de nós e dos outros e a convivência com a diferença e com a semelhança, fundadas na cultura e não somente na desigualdade social. Permi-te e garante também o resgate da história e da memória daquele povo, registrando e incentivando as manifestações tradicionais e contemporâneas.

Isso sem falar, é claro, do registro e apoio à diversidade cultural local, fator esse que contribui em grande medida, segundo os estudos mais recentes da UNESCO, para o desenvolvimento humano como um todo.

O desafio está lançado. Resta a nós aceitá-lo.

Clarice de Assis Libânio é antropóloga, mestre em sociologia, autora do Guia Cultural de Vilas e Fave-las de Belo Horizonte e coordenadora-executiva da ong Favela é Isso Aí

Mapeamento cultural: política pública e convivência social(cont.)

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Capas:uma retrospectiva.

Imagens que fizeram ahistória do periódico cultural Letras

De 13 de Outubro a 14 de Novembro no Café com Letras

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Número 42 • Outubro de 2010

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Visita a André Malrauxem

Pierre Schaeffer

Visita a A. MalrauxQuarta-feira, 6 de maioLa Source, Roquebrune-Cap-Martin(perto de Monte Carlo)

Sobre o rádio, pouco. Ele insiste no interesse de uma arte que dispensa inteiramente a imagem. Passamos às questões mais gerais de estética. Ele prepara uma estética?

Para ser exato, não. Trata-se sobretudo de uma psicologia do artista.

Teoria do artistaÉ um homem particular ligado ao mundo do qual ele exprime um aspecto? Não. (1) O pintor é aquele que se interessa pela pintu-ra, o músico, pela música. Não é absoluta-mente o mundo que lhes interessa, mas os quadros ao pintor e o concerto ao músico. É esse o primeiro ponto. O artista tem origem na própria arte e não no mundo. (2) Entre os quadros e as obras, o artista tem predi-leções. Ele admira mestres. Entra em cena então o jogo duplo da admiração e da inve-ja, da emulação e da destruição. Esse amor é ao mesmo tempo ódio, e trata-se de destruir aquilo que se prefere, e de colocar-se a si próprio no lugar do que foi destruído.

Arte e belezaIsso não é uma ψ do artista. Não se trata aqui de beleza, mas somente de arte. Que é a arte? A arte é o que o homem faz da na-tureza, a substituição de deus pelo homem, seja que este divinize o objeto, seja que hu-manize os deuses.

Teoria do romanceNo interior do romance vê-se uma necessi-dade que é bem diferente da necessidade da vida. Ela se quer a necessidade da vida, na realidade é o autor que se substitui a deus. É assim que o pintor dispõe seu quadro, não como este é, mas como ele o faz. (Van Gogh vê uma cadeira e não é uma cadeira.)

BelezaA beleza é outra coisa. A arte e a beleza podem existir independentemente uma da outra. Picasso não é belo. Ou então nos li-xamos para o mundo e (…) no sentido em que essa palavra é aplicada a Tiziano. Que é a beleza? São as relações com um sublime pagão ou um sagrado cristão. Ideal platôni-co ou comunidade cristã. Mas aí é Sócrates ou São Tomás.

EstéticaCiência da beleza (Croce). Mas nada disso é satisfatório. Hegel e seus discípulos (Wölfflin e Heidegger) fazem dela uma teoria para justificar uma arte que admita o implicita-mente mau. A arte se justifica pelo tipo de

homem. O homem gótico.

Pintura do rostoNa Idade Média, no conforto perfeito do siste-ma cristão, o artista deve inventar o rosto em todos os seus detalhes. Após a esterilidade do pintor-indivíduo é necessário reencontrar em si o pintor-homem e redescobrir o rosto.

Teoria do relativoTudo isso é sem interesse. Explicar Hugo por uma fobia do olho não explica nada. Todo o tipo de gente tem a fobia do olho e não é Hugo. O interesse está no mistério da cria-ção. (Sempre a ideia do homem divinizandoo objeto, ou humanizando deus.)

A arte e o conhecimentoAs artes são portanto absolutamente her-méticas tanto entre si quanto em relação ao mundo, à vida, e os artistas são herméticos entre si e em relação aos homens?

Souriau resolve isso, explica que a arte é lugar de recurso supremo e meio de conhe-cimento.

Isso se resolve pela ação. (obscuro)

Filosofia da arte (o que eu faço)ϕ = tudo o que pode ocorrer ao espírito so-bre uma questão.

Artes da linguagemMalraux reserva um lugar inteiramente à parte para as artes que utilizam a lingua-gem, artes reversíveis, pois:

- são as mesmas palavras que servem à arte e à expressão das ideias;- são as palavras que são reutilizadas, enquanto as imagens do pintor não são utilizadas.

Faço notar que, num espaço de tempo maior, a linguagem dos objetos usuais, do estilo da época et cetera é utilizada de modo muito semelhante, como uma linguagem corrente, utilitária e recíproca.

Resta o fato, diz ele, de que há uma distin-ção claríssima a fazer para a linguagem.

(Observo que André Malraux coloca tanta ênfase no especificar e particularizar quanto eu no achar harmonias e universalizar.)

Estado da FrançaPassamos ao mais geral. O que o impressio-na não é a falta de vontade apontada por Petitjean, é a falta de uma possibilidade de agir quanto à França. Divisão irremediável dos franceses quanto a seu país e incapa-cidade de ver senão em comparação com o estrangeiro.

Na realidade, isso existe há cinquenta anos.

A França já não é uma grande nação há cin-quenta anos, fato camuflado pela guerra de quatorze.

(Há lugar aqui para a teoria relatada por Le-enhardt sobre o papel da América, país da próxima cultura, desempenhando em rela-ção à França o papel da França em relação à Itália da Renascença.)

MitosFaço notar que a França não é o país dos mi-tos, os membros de Jeune France, Petitjean à frente, não tinham nada de mais premente a fazer que procurar os seus.

André Malraux me responde definindo a França por São Luís. “Uma nação é uma missão.” (Bergson) A missão em Péguy e o mito da terra são falsos. As pessoas defen-dem cada uma seu enclave com um muro de tijolos. Só uma coisa tira os franceses dessa mediocridade: o sentimento de uma justa missão diante dos outros povos (foi isso que ele disse?)

Não posso reviver aqui uma conversação: extremamente brilhante, de uma rapidez ofegante, entrecortada de tiques nervosos de André Malraux, a mecha pendente e o olho sempre de esguelha, para um lado ou para o outro.

Esse espírito que parece sempre transformar o particular em universal e vice-versa por uma espécie de gênio da contradição. O que põe em xeque tudo o que se tem o hábito de dizer e conceber.

Em certo sentido, (…) que seria pedante se não se exprimisse através de tudo isso com tanta força e espontaneidade.

Restam sobretudo dois sentimentos: sinceri-dade extrema e orgulho extremo, nascido de uma vida que estaria à espreita e, ao mesmo tempo, acossada; à espreita de tudo o que pode haver de humano no mundo e acossa-da por uma dura busca metafísica que, de tudo e de todos, quer o poder com o orgu-lho de ser sempre o primeiro e saber tudo e experimentar tudo e ultrapassar tudo, e o avançar intrépido de quem detesta toda a fuga e escapatória, e irá sempre mais longe. O que se tornou nos jovens Henry Dhavernas e Armand Petitjean essa espécie de esnobis-mo (…) e a panelinha dos grandes craques. Mas ele, André Malraux, é um deles. Terrível.

Pierre Schaeffer, Diário, Caixa “J3: Fin 41 - 47 après E”, caderno “P 24, P 25, P 26: fin 1941 - 1945, Occupation”, fascículo “P 25: Pâques 42 - Pâques 43”, consultado na residência de Jacqueline Schaeffer. Excerto transcrito por Jacqueline Schaeffer com a colaboração de Carlos Palombini.