Letras Coloniais e historiografia literária Hansen

download Letras Coloniais e historiografia literária Hansen

of 26

Transcript of Letras Coloniais e historiografia literária Hansen

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    Letras coloniais e historiografia literariaJoao Adolfo HansenDLCV- FFLCH- USP

    o que yOU Ihes dizer aqui nao e novo, pois retorno coisas que ja fiz, falei e escrevisabre as letras luso-brasileiras dos seculos XVI, XVII e XVIII e a historiografia Iiteraria,Muitas dessas coisas aprendi com 0 trabalho e a amizade generosa de Luiz Costa Lima,Leon Kossovitch e Alcir Pecora. Falando muito genericamente, sabemos que, desde asgregos ate a segunda rnetade do seculo XVIII, 0 discurso da historia foi urn repertorio detopicas epiditicas cuja verdade de magistra vitae era reescrita interminavelmente como acombinat6ria de urn comentario verossimil. As apropriacoes cristas dessa historia epiditicaderam-lhe sentido providencialista, incluindo a hist6ria como uma figura do tempo definidocomo ente criado, efeito e signo da unica Causa e Coisa absolutamente autentica, Deus. 0esquecimento dessa historia providencialista se tomou natural a partir da segunda metadedo seculo XVIII, quando 0 tempo se tornou apenas quantitativo ou contingente e, perdendosua qualidade substancial ouparticipativa anterior, foi subordinado a historia, como dizKant em sua Antropologia, como objeto de urn calculo apenas humane que passou aorientar seu sentido como evolucao, consciencia e progresso. Assim, as hist6rias escritas noseculo XIX pressupoem 0 continuo evolutivo e a classificacao dedutiva de epocas, perfodose estilos artisticos por meio de unidades sucessivas e irreversiveis que avancam de maneiraou cumulativa ou dialetica, como acontece em nossas historias da arte e historias literarias,como Idade Media, Renascimento, Maneirismo, Barraco, Neoclassicismo etc.

    Leon Kossovitch demonstrou em urn ensaio publicado recentemente pelo Museudo Louvre que nessas hist6rias a descontinuidade tern 0 papel fundamental de delimitacaodos periodos e dos estilos artisticos que se sucedem no tempo posto kantianamente comoseu a priori. A descontinuidade assegura a positividade da existencia das unidadesestanques e irreversiveis aplicadas como taxonomia ou classificacao dedutiva. A pr6priadescontinuidade e , contudo, como que transparente e nao pens ada, pois e aplicada como sefosse exterior a pr6pria historia como nocao simplesmente instrumental. Segundo essaconcepcao do idealismo alemao, que ate agora e mantida na maioria dos estudos hist6ricos

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    2

    brasileiros de artes e letras, os estilos artisticos sao invariantes dedutivas que se realizamem ocorrencias positivas ou obras particulares que os exemplificam. Assim, em suasucessao, eles evoluem sem que a propria descontinuidade que os delimita seja pensada.Como Kossovitch demonstra, a descontinuidade e , em todos os casos, 0 principio dealternancia que garante 0 retorno sucessivo de urn estilo depois do outro, como ocorreexemplarmente na oposicao de classico/barroco de Heinrich Wolfflin ou na oposicao devontades expressivas ligadas a abstracao e a empatia de Worringer. Como demonstraKossovitch, essa oposicao dos estilos ou das vontades nao considera as diferencashistoricas, pois e justamente a historicidade que impede oretorno das formas estilisticas.

    Esse mesmo a pr ior i da descontinuidade aplicado nas historias literarias e da artecaudatarias da historiografia evolucionista ou teleo16gica do seculo XIX se encontra comoneokantismo em uma historia muitissimo influente que as destroi, a historia arqueologicada loucura ou a historia genea16gica da verdad de Michel Foucault, que funda os discursosnao mais sobre 0 continuo, mas sobre a propria descontinuidade. Como sabemos, Foucaultelimina as positividades e tambem as idealidades, sejam elas subjetivas, factuais ouestilisticas, da historiografia do continuo e da consciencia, Com a eliminacao, somosremetidos a urn fundo inacessivel, uma nao-origem como en-arkhe ou nao-principio, cujaeficacia decorre justamente de que, como fundo, e suposta como invisivel, indizivel eimpensavel. Corn Foucault- e continuo falando com Kossovitch- a descontinuidade eestabelecida por condicoes de possibilidade forrnalmente puras, que sao as da linguagemem sua definicao estruturalista como estrutura que se pensa a si mesma nos homens. Umahistoria de tipo neokantiano como a de Foucault, demonstra Kossovitch, nao pode traduzir-se senao como hist6ria de obras arqueologicamente puras que exclui 0 impuro, ou seja, osdominios contingentes das obras e de suas praticas produtivas e consurnidoras, onde umamultiplicidade intotalizavel de escolhas taticas e vias artisticas em que coexistemtemporalidades heterogeneas aparece executada sem nenhuma consideracao por condicoespuras. Quando se trata de categorias puras, tanto em Foucault como nas historiasteleologicas, a reducao classificat6ria dos periodos hist6ricos e seus estilos artisticos seimpoe a p ri or i, como no caso da oposicao de cldssico e barroco corrente nas historiasliterarias brasileiras que se ocupam das letras coloniais.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    3

    Outras possibilidades de historia, que pressupoem sua radical impureza contingente,sao propostas por Kossovitch. Elas pass am ao lade do continuo evolutivo do seculo XIX etambem da descontinuidade nao-explicitada de Foucault, pensando 0 tempo e 0 espaco deurn modo que aproxima a operacao das operacces de Nietzsche, Freud e Marx, que nao 0pressup5em kantianamente como a priori, nem fundam a diferenca num fundo impensavel,mas remetem a historicidade da hist6ria a materialidade contingente dos processosprodutivos, cuja consideracao evita 0 anacronismo, a teleologia, a unidade psicol6gica dosujeito,o nacionalisrno e a descontinuidade meramente instrumental.

    Em 1984, tentei fazer algo semelhante, pensando os discursos coloniais comopraticas contingentes. Como tinha ficado chato ser moderno e eu nao queria ser eterno,decidi estudar uma arte que para mim era ate entao uma referencia vaga, "0 Barroco" dosmanuais de literatura. Resolvi estudar a poesia atribuida ao baiano Gregorio de Matos eGuerra, que viveu em Salvador entre 1682 e 1695. Li a critic a existente sobre ela e, comome pareceu anacronica, psicologista e evolucionista, fiz a hipotese de reconstituir suaprimeira legibilidade normativa. Depois de ler varias vezes os 7 volumes da edicao deJames Amado e os codices da Biblioteca Nacional para c1assificar seus temas, examinei arelacao diacronica dos poemas com as versoes latinas da doutrina aristotelica do comico edas paixoes da alma, principalmente a satira de Horacio e Juvenal, e a poesia medieval deescarnio e maldizer portuguesa editada no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, de1517. Descobri que varies poemas eram feitos como variacoes de urn subgenero aristotelicodo cornice, 0 ridiculo, por isso imitavam principalmente a satira de HoracioMuitos outrosemulavam a satira de Juvenal, fazendo-se como variacao de outro subgenero comico, arnaledicencia. Sincronicamente, cruzei os poemas com preceptivas retoricas italianas,espanholas e portuguesas dos seculos XVII e XVIII, como os tratados de Matteo Peregrini,Sforza Pallavicino, Emanuele Tesauro, Baltasar Gracian, Francisco Leitao Ferreira etc.,principalmente 0 capitulo XII, "Tratatto del Ridicoli", de II Cannocchiale Aristotelico, deTesauro; tambem os cruzei com tratados teologico-pollticos catolicos dos seculos XVI eXVII, como os de Possevino, Bellarmino, Jeronimo Osorio, De Soto, Francisco Suarez eGiovanni Botero; com livros de emblemas, como os de A1ciato, Horapolo, Valeriano eRipa; com espelhos de principe etc. Para levantar informacoes sobre a Bahia seiscentista, liatas e cartas da Camara de Salvador escritas entre 1650 e 1750; as denuncias da visitacao

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    4

    de 1618 do Santo Oficio da Inquisicao; a correspondencia entre 0 rei e 0 governadorAntonio Luis Goncalves da Camara Coutinho; ordens-regias, bandos e pragmaticas detratamentos e trajes etc. Fiz os cruzamentos para constituir homologias que me permitisseminventar e sistematizar regularidades ou estruturas repetidas na diversidade dasrepresentacoes produzidas em varias circunstancias. Em todos os discursos que examinei,encontrei a mimese aristotelica, a definicao escolastica da pessoa, a teologia-politicacat6lica, a t6pica da "razao de Estado", a etica crista e urn fortissimo sentidoprovidencialista da hist6ria. Para fazer os cruzamentos, foi fundamental a arqueologia deFoucault e os procedimentos de desnaturalizacao e rarefacao que propoe em L 'ordre dudiscours. Com a operacao de cruzamento, foi possivel propor que a satira seiscentista seapropria de normas sociais representadas nos discursos formais das instituicoes portuguesasenos discursos informais da populacao colonial. Ela isola as normas da sua funcaoinstitucional de regulacao pratica e as estiliza ficcionalmente como metaforas de principiosteo16gico-politicos da politica iberica contra-reformista. Por exemplo, cita discursos doSenado da Camara de Salvador, do Tribunal da Relacao, da administracao de governadores,de ordens-regias, de pragmatic as de tratarnento e trajes, do Santo Oficio da Inquisicao etc.-e tambem discursos da murmuracao popularcontemporanea sobre eventos, neg6cios,grupos e individuos locais, como a corrupcao de governadores, escandalos conventuais,simoni a e mancebia de padres, contrabando de farinhas, falta de moeda, aumento. deimpostos, confusoes hierarquicas, insubordinacao de escravos, praticas sexuais contranaturam, precos monopolistas dos generos alimenticios, crise da lavoura acucareira etc. Asatira deforma esse referendal quando inventa tipos viciosos, que vitupera, aplicandomodelos da retoricae da etica aristotelicas imitados na poesia latina e medieval; ao mesmotempo, cita 0 sentido escolastico, legal e ortodoxo das normas, elogiando-o como correcaomoral e prudencia politica. Como resultado, foi posslvel propor que as imagens dessapoesia nao sao realistas, como a critica brasileira ainda afirma, pois a satira e inventadaretoricamente: nao imita a empiria nem reflete nenhuma infraestrutura, mas encontra arealidade de seu tempo como pratica discursiva tambem real, que aplica t6picas,verossimilhancas e decoros partilhados assimetricamente por sujeitos de enunciacao,destinatarios textuais e publicos empfricos, Para falar com Chartier, ela figura a.compatibilidade entre as interpretacees feitas pelos personagens satlricos em ate e os atos

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    5

    de interpretacao das recepcoes empiricas diferenciadas, que conferem valor e sentido arepresentacao I.Assim, quando cruzei a satira com as denuncias que se seguiram a visita doSanto Ofieio da Inquisicao a Bahia no inicio do seculo XVII e alguns manuaisinquisitoriais, como 0 de Eymerich e Pefia, 0Manual dos Inquisidores, alem do Malleusmalefiearum e mais instrurnentos do terror catolico, foi posslvel constituir modelos epreceitos seiscentistas de uma tecnologia catolica de controle do corpo e producao da almae, com e1es, propor que 0 discurso ficcional da satira e homo logo das praticas inquisitoriaisde denuncia e confissao, Tanto as satiras quanta as demmcias se fundamentam no DireitoCanonico, encenando publicamente para urn destinatario textual e publicos empfricosdiferenciados a presenca da luz natural da Graca inata nas instituicoes portuguesas. Paraisso, mobilizam distincoes como legal, legitimo, eterno, natural, positivo, puro, impuro,catolico, herege,gentio, metaforizando-as por meio das tecnicas retoricas de umaracionalidade nao-psicologica, a do conceito engenhoso ou agudeza, em que a defesa dahierarquia e nuclear.

    Fiz 0 trabalho sobre Gregorio tentando passar ao lado da critica brasileira que defineos estilos das representacoes coloniais dos seculos XVI, XVII e XVIII por meio dasunidades cronologicas fechadas e irreversiveis de que falei, "Classicismo", "Barroco","Neoclassicismo". Quando estudei as ruinas do seculo XVII nos arquivos, ficou evidentepelo menos para mim queessas unidades sao dedutivas e aprioristicas, ou seja, idealistas.Quando fiz 0 trabalho, usei a categoria "Barroco", coisa que hoje acho totalmentedesnecessaria, pois so produz equivocos de interpretacao, No caso da tradicao colonialGregorio de Matos, seu uso unifica todos os estilos de poemas particulares de variesgeneros como exemplos ou ilustracoes de caracteristicas da essencia classificatoria, naoconsiderando que, no tempo assim etiquetado, coexistem multiplas temporalidadesheterogeneas de modelos artisticos que sao imitados diferencialmente pelo suposto autordos poemas segundo preceitos, tecnicas, formas, estilos e finalidades serncorrespondencia com as categorias evolucionistas e psicologistas pressupostas naclassificacao, Desde 0 seculo XIX, a critica que se ocupa da poesia atribuida a Gregorio ede outros discursos coloniais - penso por exemplo em Anchieta, Nobrega, BentoTeixeira, Vieira, Manuel Botelho de Oliveira, Claudio Manuel da Costa, Basilio da GamaI.Chartier, Roger. "George Dandin, ou le social en representation't.In Annales.Litterature et histoire. Paris,Armand Colin,Mars-Avril1994, p.283, 4ge. Annee- no. 2.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    6

    etc.- costuma ignorar e eliminar sistematicamente suas categorias, substituindo-as poroutras, que universalizam valores interessados do presente dos interpretes. As categoriasescolasticas que compoem a pessoalidade "eu-tu" no processo de interlocucao dosdiscursos sao ignoradas e substituidas por categorias liberais e psicol6gicas dasubjetividade burguesa; a orientacao metafisica, religiosa e providencialista do sentido dahistoria, que e propria da politica cat61ica portuguesa em luta contra a heresiamaquiavelica e luterana, e eliminada e substituida por concepcoes evolutivas, iluministase liberais, formativas, progressistas e nacionalistas; a regulacao ret6rica dos preceitosartisticos e das formas, alem da interpretacao teologico-politica da sua significacao e doseu sentido, sao apagadas, propondo-se em seu lugar categorias esteticas exteriores,como a expressao da psicologia dos autores, a oposicao "forma/conteudo", 0 realismodocumental, a antecipacao protonacionalista do Estado nacional brasileiro, Alem disso, 0uso naturalizado da nocao de "Barroco' para classificar essa poesia e totalizar seu tempogeneraliza transistoricamente as definicoes liberais, as vezes marxistas, das nocoes de"autor", "obra" e "publico".

    Assim, para lhes falar do meu trabalho sobre essa ruina arruinada, as letrascoloniais dos seculos XVI,XVII e XVIII produzidas no Estado do Brasil e Estado doMaranhao e Grao-Para, repito que e urn trabalho arqueol6gico condicionado pelo seu lugarinstitucional, a universidade neoliberal que conhecem. Ele passa ao lade da historiografialiteraria fundamentada nas categorias do continuo evolucionista do seculo XIX, como disse,e tenta inventar, de modo verossimil, a estrutura, a funcao, a comunicacao e valores dessasletras em seu presente colonial. Para isso, pressupoe os condicionamentos materiais einstitucionais da sua producao na circunstancia colonial, como 0 exclusivo metropolitano, 0escravismo e 0 catolicismo contra-reformista; a ayao de agencias culturais, como aCompanhia de Jesus, responsavel pela educacao colegial e universitaria dos letradoscoloniais; a situacao profissional e a posicao hierarquica dos letrados cooptados nas redesclientelistas locais; os estere6tipos ibericos da "limpeza de sangue"; as censuras do SantoOficio da Inquisicao e da Coroa etc.

    o trabalho tambem se ocupa de c6digos bibliograficos, como a manuscritura. 0conceito de "publicacao" do tempo dessas letras e mais extenso que 0 nosso: 0manuscrito,que circula sendo copiado em versoes produtoras de variantes, tambem e publicacao,

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    7

    diversamente de hoje, quando entendemos pelo termo apenas 0 texto impresso. Grandeparte das letras coloniais foram inicialmente publicadas como manuscritos, tornando-se"obras'' somente quando oralizadas em circunstancias cerimoniais e polemicas'. Em suatese de doutorado sobre os codices gregorianos, Marcello Moreira demonstrou que aoralidade produzia variantes que novamente eram copiadas em manuscritos segundo amovencia discursiva de que Paul Zumthor fala em seus estudos da poesia medieval.Baseado em evidencias da existencia local de uma cultura de escribas que faziam capias depoemas, Moreira critica a filologia de Lachmann e Bedier, demonstrando que seuspressupostos romanticos acerca da autoria e da arte - originalidade, autenticidade, "primeiraintencao autoral", restituicao de texto etc. - nao dao conta dos modos contemporaneos dainvencao, circulacao, consumo e valoracao dessa poesia. Alem disso, quando os poemaspassaram a ser editados na forma do livro impresso, principalmente a partir do seculo XIX,a primeira ordenacao que tern nos manuscritos quase sempre foi eliminada ou alterada.Moreira demonstra que, nos codices, os poemas sao dispostos segundo uma hierarquia dosgeneros que forma urn conjunto polilogico, intertextual, com remissoes e citacoes internasque evidenciam os modos contemporaneos de produzir, consumir e valorar a poesia. 0conjunto e evidentemente destruido quando poernas sao selecionados e publicados na formaimpressa das antologias, como a de Varnhagen e as do seculo XX. Tambern se destroi apontuacao retorica deles, indicativa de pausas intensivas da actio deles na oralidade, que esubstituida pela pontuacao gramatical impessoal e logica, indicativa de funcoes sintaticas'.

    Esse trabalho e complementado pelo exame dos codigos linguisticos que modelam einterpretarn as representacoes. Os codigos Iinguisticos sao retorico-poeticos e teologico-

    2 A respeito de c6digos bibliograficos, e uti! lembrar os trabalhos de Chartier, Roger. Publishing Drama inEarly Modern Europe. The Panizzi Lectures 1998. London, The Bristish Library, 1999; Diaz, Jose Simon. "EI problema de los impresos literarios perdidos del Siglo de Oro". Edad de Oro, 2. Madrid, UniversidadAut6noma de Madrid, 1983; Madrid, Love, Harold. The Culture and Commerce of Texts. Scribal Publicationin Seventeenth Century England. University of Massachussetts Press, 1998; Mckenzie, D.F. Bibliography andthe Sociology of Texts. London, The British Library, 1986; Hebrard, Jean."Des ecritures exemplaires: lart dumaitre ecrivain en France entre XVle et XVIIle siecles". Melanges de rEcole Francoise de Rome, 107,2,1995; Mcgann, Jerome J. The Textual Condition. Princeton University Press, 1991; Zumthor, Paul."Intertextualite et mouvance". Litterature, 41, 1981; Essai de poetique medievale. Paris, Seuil, 1972; A Letra ea Voz. A "Literatura" Medieval. Sao Paulo, Companhia das Letras, 1993.3 A tese dedoutorado de Marcello Moreira - Critica Textualis in Caelum Revocata? Prolegomenos para umaEdiciio Crltica do Corpus Poetico Colonial Seiscentista e Setecentista atribuido a Gregorio de Matos Guerra.Mimeo. Silo Paulo, Area de Literatura Brasileira- DLCV-FFLCH-USP, marco de 2001- e fundamental para 0estudo da manuscritura colonial.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    8

    politicos. No caso deles, a arqueologia e dupla: diacronicamente, relaciona as letrascoloniais com sistemas de representacao anteriores que elas imitam e transformam. Falandomuito genericamente, esses sistemas sao 0 que podemos chamar "0 bloco greco-latino", asvarias ret6ricas gregas e Iatinas e suas diversas versoes patristicas, bizantinas, escolasticas eneoescolasticas, bern como as letras antigas, a poesia e a prosa de diversos generos,Sincronicamente, a arqueologia relaciona as letras coloniais com 0 campo semantico geralda cultura de seu presente" e para 1SS0 tambem examina documentos de nao-ficcao, comodisse, com 0 fim de estabelecer homologias estruturais e funcionais que possam especificarsua historicidade de modo plausivel,

    Hoje, depois que varias genealogias e arqueologias do passado demonstraramque a hist6ria literaria rornantica e hege1iana da tradicao iluminista nao e mais umaevidencia, as redefinicoes do estatuto da historiografia literaria se acompanham da critica itgeneralizacao transist6rica das categorias nacionalistas do continuo teleologico do seculoXIX e aos processos neoliberais de desistoricizacao do presente. As redefinicoes enfrentamurna questao decisiva: a do tipo de historia que se val fazer com as letras coloniais,supondo-se que ainda haja algum interesse em faze-lao Como sabem, nos cursosuniversitarios de Letras essas representacoes nao sao mais estudadas ou tern lugar mais quesecundario de disciplina optativa, pois os modelos evolutivos, formativos e nacionalistasde interpretacao as definem a priori como etapa superada da hist6ria do pais . Segundo aopiniao de muitos colegas de Letras, 0 estudo delas provavelmente deve usar carbono 14 equem se dedica a ele demonstra a alienacao de urn antiquario que coleciona fosseis. Mas,como provavelmente a USP nao e 0 mundo, pode-se perguntar: a historia delas deve seruma historia normativa de sua hipotetica primeira legibilidade nonnativa cujo

    4 "The historian seeks to locate and interpret the artifact temporally in a field where two lines intersect. Oneline isvertical, or diachronic, by which he establishes the relation of a text or a system of thought topreviousexpression in the same branch of cultural activitytpaintings.politicas .etc.). The other is horizontal, orsynchronic; by it he assesses the relation of the content of the intellectual object to what is appearing in otherbranches or aspects of a culture at the same time".( "0 historiador busca localizar e interpretartemporalmente 0 artefato num campo em que duas linhas se interceptam. Urn linha e vertical, ou diacronica,pela qual 0 historiador estabelece a relacao de urn texto ou de urn sistema de pensamento com a expressaoprevia no mesmo ramo de atividade cultural (pintura, politica etc.). A outra e horizontal, ou sincronica; por elao historiador estabelece a relacao do conteudo do objeto intelectual com 0 que aparece em outros ramos ouaspectos da cultura no mesmo tempo". Cf. Carl Schorske. Fin-de-steele Vienna.Politics and Culture, NewYork, Cambridge University Press, 1979,p . .xXI-XXII cit. por Roger Chartier, "Histoire intellectuelle ethistoire des mentalites . In Au bord de la falaise. L' histoire entre certitudes et inquietude. Paris,Bibliotheque Albin Michel, 1998, p.59.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    9

    conhecimento permitiria excluir significacoes nao-previstas na invencao delas? No nossocaso brasileiro, essa hist6ria nao deixa de ser pertinente, pois a prime ira normatividadedelas, que e normatividade teologico-politica e retorico-poetica, foi sistematicamenteeliminada e substituida, desde 0 seculo XIX, por categorias psicol6gicas e documentalistasdo continuo iluminista. Ou essa hist6ria deve ser descritiva? Uma hist6ria descritiva,lembra Hans Ulrich Gumbrecht, deveria ser uma historia de todas as leituras possiveis deurn texto determinado, tratando-se de reconstituir as condicoes tecnicas, materiais einstitucionais em que varias significacoes foram geradas par leitores cujas disposicoesreceptivas possuiam diferentes mediacoes hist6ricas e sociais.

    Tentando dar conta dessas questoes que para mim implicam principalmente aquestao te6rica e politica dos usos do passado aqui-agora, 0 trabalho de que lhes falopressupoe a articulacao temporal de passado! presente como a correlacao ' proposta porMichel de Certeau em seu estudo sobre Surin e a mistica francesa do seculo XVII. Acorrelacao e urn dispositivo de encenacao de duas estruturas verossimeis de acaodiscursiva, 0presente da enunciacao da pesquisa feita como trabalho parcial que pressupoea divisao intelectual do trabalho condicionada pelo lugar institucional onde se realiza, aarea de Literatura Brasileira da USP. A outra estrutura e a do passado da enunciacao eenunciados das representacoes coloniais. Por meio da correlacao, e possivel, como disse,constituir a estrutura, a funcao, a comunicacao e valores normativos que elas tinham emseu tempo. Ou seja, constituir os modelos de seus varios generos, estabelecendo a relacaodeles com as referencias simb6licas anteriores e contemporaneas que e1es transformam emsituacoes de comunicacao cerimonial e polemics, institucional e informal, segundo variesmeios, como a oralidade, evidenciada na manuscritura de folhas avulsas ou, como MarcelloMoreira demonstrou que foi costume na Bahia dos seculos XVII e XVIII, encademadas emcademos grossos que formam c6dices como os que hoje estao depositados na BibliotecaNacional. SimuItaneamente, a correlacao possibilita examinar a cadeia heterogenea de suasrecepcoes hist6ricas desde os primeiros romanticos do seculo XIX, como 0 conego JanuarioBarbosa, ja no final dos anos 1820, 0 grupo de Goncalves de Magalhaes na revista Niter6i,em 1836, ou 0 Instituto Hist6rico e Geografico Brasileiro, a partir de 1838. Aqui, eu diriaque e razoavelmente simples reconstituir descritivamente as cadeias dessas apropriacoes5 Cf. De Certeau, Miche l . L' absent de l' histoire. P aris , Ma rn e , R e pe re s , 1 97 6, p ag .S .

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    10

    para evidenciar a particularidade interessada das interpretacoes romanticas, deterministas,modemistas, concretistas, p6s-ut6picas etc. que foram e sao feitas dessas letras, nos termosde Hobsbawm, como invencao de tradicoes nacionais e nacionalistas. Mas a reconstituicaodas pr6prias leituras coloniais das letras coloniais e quase sempre lacunar: Alem de seremmaterialmente limitadas pelo vazio dos arquivos brasileiros, as pr6prias evidenciascoloniais de leitores e de leituras coloniais de diferentes mediacoes sociais sao muito raras,o que faz com que a hist6ria descritiva delas tambern seja bastante rarefeita. Supondo ararefacao das informacoes sobre as apropriacoes ernpiricas e os usos provaveis dessas letrasna condicao colonial, acredito que e pertinente reconstituir a primeira legibilidadenormativa que aparece formalizada no contrato enunciativo dos discursos, lembrando que ejustamente essa normatividade que foi - e continua sendo - eliminada nas hist6rias literariasbrasileiras enos cursos de literatura da escola secundaria e da Universidade.

    Obviamente, a leitura coincide com 0 tempo da enunciacao do texto, pois 0 leitorocupa imaginariamente 0 lugar do destinatario, refazendo os atos da enunciacao para leradequadamente com certa verossirnilhanca. No caso das letras coloniais, a particularizacaodas normas aplicadas pelos sujeitos de enunciacao para constituir 0 destinatario comopersonagem do processo de interlocucao das representacoes permite descrever osprocedimentos tecnicos aplicados pelos autores quando invent am e ordenam os atossimbolicos do "eu" e do "tu" figurados nelas em estilos diversos. No ate da invencao dodiscurso, os autores coloniais se apropriam do referencial colonial- por "referencial",significo discursos, nao 0 referente deles. Como disse, os discursos formais das instituicoesportuguesas, como os de ordens-regias e bandos da Coroa, os das ordens religiosas, dascamaras municipais, da Inquisicao, dos tribunais, de casas de alfandega etc.- e discursosinformais da populacao, legiveis diretamente em papeis que os reproduzem ouindiretamente nas entrelinhas de docurnentos oficiais. Os autores coloniais apropriam-se doreferencial e 0 transformam, citam, estilizam e parodiam. Para faze-lo, eles imitamdeterminada auctoritas retorico-poetica, 0 auctor de urn genero, suas topicas e seu estiloespecificos. Dou urn exemplo com Vieira. Nos colegios da Companhia de Jesus no Estadodo Brasil e Estado do Maranhao e Grao-Para, 0 grande auctor prescrito como objeto deemulacoes na oratoria sacra e Cicero. Neles, oradores como Eusebio de Matos e Vieiraaprenderam a imitar 0 estilo circular e amplo de Cicero, em que 0 periodo comeca por

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    11

    subordinacao e avanca por meio de pr6tases ascendentes e ap6doses descendentes queacurnulam varies membros e incisos. Sabemos que, desde a segunda metade do seculoXVI, 0 estilo circular ja havia sido criticado e substituido em muitos lugares pela oratiosoluta, a oracao absoluta ou 0 periodo simples caracterizado pela brevidade, ausencia deconectivos e transicoes, quase sem omamentacao, tambem chamado de seco e cortado,est6ico e lac6nico, de Seneca e Tacite, propostos como modeLos da prosa por Justo Lipsio.Na segunda metade do seculo XVI, Cicero conheceu nova onda de imitacao com osramistas - os adeptos de La Ramee, que havia atribuido a invencao it dialetica, propondourna ret6rica restrita aos tropos e figuras da elocucao A imitacao de Cicero permaneceu naCompanhia de Jesus, como vemos no tratado de ret6rica de Cipriano Soares, usado pelosjesuitas ate sua expulsao por Pombal no seculo XVIII principalmente na educacao dosoradores sacros, que deviam aprender com Cicero as tecnicas do estilo grande que usa 0periodo circular e 0 periodo composto. Ao lade das imitacoes de Cicero, a imitacao deSeneca e Tacito, valorizando a brevi dade, comecou para valer no inicio do seculo XVII,principalmente por causa da revalorizacao generalizada do estilo hurnilde que, desde Roma,vinha sendo chamado de atico, Mas Cicero, no Orator, nao desconhece a possibilidade deusar os estilos breves em generos como a correspondencia familiar, em que 0 sutil, 0humilde e 0 gracioso sao prescritos. Depois de tratar do sublime, diz: " (...) outros saosutis,engenhosos, que ensinam tudo e 0 fazem mais clara que magnificamente e, agudos elimados, tern urn estilo conciso"(Orator,V,20).

    Falo dessas possibilidades de usos de estilos diferentes pelos mesmos autoresporque e fundamentallembrar que, em artes doutrinadas retoricamente, nao existe a nocaounfvoca de clareza do cartesianismo e da literatura pos-iluminista, mas c1arezas relacionais,diferenciais, caracterizadas por graus distintos de fechamento semantico da elocucao,aplicadas pelos autores coloniais conforme a variedade dos estilos dos generos em quecompoem, Uma grande estudiosa das letras espanholas do seculo XVII, Luisa LopezGrigera, demonstrou que 0 tratado Ecclesiastica Rhetorica, de Frei Luis de Granada,considerado 0 Cicero espanhol, pres creve os dois estilos, a composicao simples,correspondente ao que Justo Lipsio propos no seculo XVI como imitacao de Tacite eSeneca, e a composicao dupla ou composta, que imita Cicero", Encontramos essa dupla

    6 Cf. Grigera, Luisa Lopez. Texto lido no Boston Quevedo Symposium, outubro de 1980, pigs. 6-9.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    12

    possibilidade tambem em tratadistas italianos, espanhois e portugueses do conceitoengenhoso que circularam no Estado do Brasil e no Estado do Maranhao e Grao Para, comoEmanuele Tesauro, Baltasar Gracian e Francisco Leitao Ferreira, quando tratam da prosa dosermao e da historia ou dos varios generos poeticos. Frei Luis de Granada diz que acomposicao simples nao esta sujeita a lei dos numeros; nao tern periodos rnuito extensos e eusada no trato familiar. Sobre a composicao dupla ou cornposta, diz: "A composicao dupla,afastando-se dessa simplicidade, usa oracoes torcidas e extensas. Cujas partes e rnembros epreciso explicar, para que, conhecidas, se conheca facilmente 0 todo que resulta delas.Assim como na mao consideramos a mao mesma como urn todo, logo 0 dedo comomembro dela, e enfim os artelhos do dedo ...assim advertimos partes semelhantes da oracao.Porque sao como artelhos as Comas, que em grego se chamam commata, e em latim caesaou incisa. AMm desses hi uns como membros, que os gregos chamam de Cola e os latinoscom 0 mesmo nome de membra. Rei assirn mesrno Periodos, que os latinos chamamalgumas vezes de Ambito, outras Compreensao, outras Circunscricao, os quais constam demuitos membros"(V,XVI). Assim, quando urn autor como Vieira compce urn sermao, imitaem Cicero a clareza elocutiva e tambem a sintaxe ou dispositio do periodo, prevendo que acolocacao das palavras no periodo circular e no periodo composto pressup5e 0 numerus,termo correspondente a altemancia de silabas longas e breves no latim', No seculo XVII; osestilos ciceronianos e tacitistas continuam emparelhados, mas adaptam-se aos processos doconceito engenhoso tipico da racionalidade de corte do absolutismo monarquico. Nessesprocessos, a perspicuitas ou clareza e substituida programaticamente pela obscuridade dasmetaforas dos "estilos cultos" que emulam, principalmente, a poesia de Gongora e deautores neotericos latinos e alexandrinos. Na prosa, tanto num ciceroniano como Vieiracomo num tacitista como Gracian, as definicoes que La Ramee faz da inventio e daelocutio dos discursos, propondo a inventio como objeto da dialetica e a elocutio comoobjeto da retorica, estao na base do conceito engenhoso que entao se chama ornato

    7 Como a longa dura 0 tempo de 2 breves, e possivel compor varias especies de pes metricos e ritmosadequados ao genero e as topicas tratadas nele. No casu das Iinguas vulgares, como 0 toscano ou 0 espanhol, aideia de numerus continuou sendo aplicada, mas geralmente se identificando a silaba tonica da palavra delingua vulgar com a sflaba longa latina e, as subtonicas e Monas, com as breves. Frei Luis de Granada dacomo exemplo manton, propondo que 0 espondeu, pe de 2 silabas longas, e apropriado para produzir efeitode lentidao; outro exemplo que da e a do jambo, como em leon. A breve que comeca 0 termo e a longa que 0term ina produzem uma diversidade agradavel, diz 0 Frei, porque a palavra comeca com ligeireza e term inacom vigor. Por isso, diz, 0jambo e urn pe muito born para as satiras.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    13

    dialetico e que hoje se classifica wolfflinianamente ou neokantianamente como "Barroco".Tambem Ovidio, Petrarca e Camoes sao imitadissimos na lirica amorosa, assim comoHoracio, Juvenal e cantigas de maldizer e de escarnio na satira etc. Os autores coloniais saopolitecnicos, sendo capacitados a imitar os estilos de varias autoridades de generosdiversos. A critica brasileira que ignora completamente a retorica e tern sabre ela umaopiniao positivista estereotipada costuma propor pseudo-problemas, como 0 de saber comofoi possivel que urn autor como Gregorio de Matos, que demonstra uncao religiosa eelevacao na poesia re1igiosa, tenha composto satiras tao obscenas e pornograficas, Paracompo-las, 0 poeta aplicou diferentes preceitos tecnicos, anonimos e coletivizados comoconvencoes simbolicas do todo social objetivo de seu tempo, podemos dizer. 0 poeta eradoente, tarado, pessimista e ressentido, afirma a critica, acrescentando que sua poesiarefletea crise da infraestrutura do modo de producao colonial. Assim, acredito que aconstituicao das categorias e condicionamentos dessas letras no seu presente extinto enecessaria para tomar posicao aqui-agora.

    E muito discutivel que essas letras sejam "manifestacao literaria", como AntonioCandido e Jose Aderaldo Castello propoem, fundamentando 0 uso da expressao com a ideiade que colonialmente nao ha sistema coeso de "autor-obra-publico". Devemos concordarcom esses crtticos no que toea aos condicionamentos institucionais da producao cultural nacolonia; e tambem quando sua classificacao se ref ere a rarefacao dos processos decomunicacao e difusao dessas letras. Mas nao e 0 caso da propria definicao dos modosretoricos, poeticos e teologico-politicos ibericos de entender e definir "autor-obra-publico".Suas definicoes e funcoes sao totalmente sistemicos, como doutrinas retorico-poeticasinterpretadas escolasticamente que prescrevem a imitacao e a emulacao de autoridades dediversas duracoes, tambem prevendo diversos usos publicos para as letras. Sendo produtosde praticas fundamentadas na metafisica escolastica, as letras coloniais nao conhecem adivisao dos regimes discursivos posterior ao Iluminismo. Assim, os elementos do trioautor-obra-publico tern outra conceituacao, que sempre supoe a "politica catolica". Paracomecar, a poesia e a prosa nao sao produzidas como "literatura", nao sao definidas como"classicismo", "maneirisrno" ou "barroco", nao pressupoem a autonomia critica dos autorese a contemplacao estetica desinteressada de seus publicos. "Publico", no caso, e a totalidadedo "corpo mistico" figurada nas representacoes como "bern comum" do Estado. Incluido

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    14

    nessa totalidade, cada destinatario produzido pela representacao deve reconhecer suaposicao subordinada: a representacao reproduz aquilo que cada membro do corpo mistico je ie , prescrevendo, ao mesmo tempo, que ele deve ser, ou seja, persuadindo-o a permanecercomo 0 que ja e . 0 espaco publico figurado nas representacoes como totalidade mlstica de"bern comum'' e como urn teatro corporativista, onde se revela 0 proprio publico para 0destinatario particular como totalidade juridico-mistica de destinatarios' integrados emordens e estamentos subordinados. Justamente por isso, impoe-se a normatividade ret6rica,que pressupoe a repeticao de modelos. Quando os esquemas retoricos e os temas dediscursos contemporaneos encenados no discurso particular sao apropriados por publicosempiricos de diversas competencies, mas sempre publicos incluidos nas normashierarquicas do "bern comum" desse "corpo mistico", a recepcao modela-seprescritivamente, normativamente. Por outras palavras, os juizos da recepcao tambem saonormativos ou reprodutivos de regras: obedecem a padroes institucionais de ordenacao econsumo das representacoes, refazendo, na leitura, na audicao e na visao dasrepresentacoes, os procedimentos que foram aplicados pelos autores a sua invencao.

    Nesse tempo, 0 tipo capacitado intelectualmente a aplicar e interpretar tais artificios edoutrinado como discreto. A discricao e , antes de tudo, uma categoria intelectualcaracterizada nucleannente pelo juizo e pela prudencia, que tornam a acao politicamenteadequada as circunstancias, e pelo engenho, que lhe da forma aguda. Entre os autores doseculo XVII, discreto e 0 tipo que tern a "reta razao das coisas agiveis" (recta ratioagibiliumi da Escolastica, conhecendo a representacao conveniente para todas as ocasioesda sociedade de corte. Covarrubias, no Tesoro de la lengua castellana, define a "discricao"como a coisa dita ou feita com born senso ou juizo, e atribui ao discreto a capacidade de"discemir",isto e , a capacidade de separar uma coisa de outra para nao julgarconfusamente. Assim, e discreto quem "sabe distinguir uma coisa de outra": fazendo urnjuizo adequado delas, pondera as coisas e da a cada uma 0 seu lugar. Nesses termos,aproxima-se do que Baltasar Gracian considera 0 perfeito ouvintelleitor: 0 que sabedistinguir, dando a cada coisa a exata medida que the e devida. Tal ideia de discricaoassocia-se a algumas outras faculdades, sejam naturais (por exemplo, a de engenho natural,como inclinacao inata do temperamento), ou artificiais (por exemplo, as que decorrem do8 Merlin, Helene. Pub li c e t l it tf ra tu re e n France au XVI le s i e e l e . Paris, Belles Lettres, 1994, pags. 385-388.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    I'

    aprendizado da etiqueta ou da convivencia na corte e a boa companhia). 0 discreto naoapenas conhece as regras do comportamento ajuizado ou adequado, mas sabe a melhormaneira de aplica-las a ocasiao, por isso mesmo muitas vezes contraria a sua interpretacaoliteral ou usual. Desse modo, por vezes pode afetar, par conveniencia, ser 0 contrario dadiscricao, fingindo "vulgaridade". Eo que diz Lope de Vega, em seu texto Arte nuevo dehacer comedias en este tiempo (1608), e 0 que se pode ler em varias passagens da satiraatribuida a Gregorio de Matos.

    Na tipologia de corte do seculo XVII, 0 tipo intelectual oposto ao discreto e 0vulgar ou nescio. Define-se como tipo de gosto confuso, sem razao e sem juizo, de modoque se deixa levar pelo "tropel das vistas", como diz Vieira, isto e, exclusivarnente pelasaparencias sensiveis, sem considera-Ias ajuizadarnente pela razao ou de acordo com aocasiao. Nas letras do seculo XVII, e rotineira a afirmacao de que 0 vulgar e urn tipo quenao sabe 0 que. fala: "sem mais leis que as do gostolquando erra", afirma contra osCaramurus da Bahia uma satira da tradicao gregoriana. A discricao implica, assim, urna artedo fingimento das aparencias convenientes a ocasiao.

    Para usar aqui urna expressao de Hans Ulrich Gurnbrecht, esse fingimento e urndispositivo de producao de presenca, ou seja, urn dispositivo teologico-politico-retorico deproducao da Presenca divina nas instituicoes coloniais. Os grandes topicos seiscentistas do"sonho da vida" e do "teatro do mundo", correntes nas Ietras do seculo XVII, sao urna cenaalegorica que ficcionaliza a iluminacao generalizada do fingimento da ficcao peia Luzdivina. 0 corpo mistico e glorioso de Cristo e irrepresentavel ou so se presenta emfiguracoes alusivas, que 0 profetizam e confirmam como substancia espiritual participadanos objetos representados, sem confundir-se com eles. Como ideia de Deus, estaabsolutamente fora do tempo e, contudo, no tempo, participando dele com 0 arnor do seuato diretivo. Uma das principais finalidades das representacoes coloniais e justamenteencenar essa participacao de todos os tempos historicos na Presenca divina. Como ocorrena figuracao da gestualidade dramatica dos santos de Bernini nas igrejas de Roma ou nasigrejas da Bavaria, de Tunja, Puebla, Queretaro, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, arepresentacao encena 0momento da conformatio, a conformaciio, 0momenta da producaodo afeto no destinatario, Le Brun, em L 'expression des passions, as conferencias que fezem Versailles em 1668, afirrna que 0 fim da representacao e figurar os movimentos da alma

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    16

    atraves das atitudes dos corpos para que, venda as imagens pintadas e esculpidas, 0espectador exercite a imaginacao, produzindo em si mesmo a presenca de urn afeto cujaforma deve ser a mais semelhante possivel a forma do afeto representado no corpoesculpido ou pintado do santo", 0 momento representado como conformacdo e justamenteo do instante inefavel e mistico do contato com Cristo ou da recepcao da Graca, que osteologos chamam de conformacdo afetiva, sublinhando seu carater passional. Na esculturareligiosa das igrejas coloniais baianas e mineiras, as torsoes do corpo, ordenadodramaticamente como uma figura serpentinata pela qual os personagens representadosdispoem-se como urn S em torno de urn eixo imaginario que os atravessa da cabeca aos pes,sao realizadas segundo 0 calculo cenograficamente exato de urna acao aplicada comodeformacao que poe em cena urna paixao da alma. Ac ;ao , deformaciio, paixdo: a esculturareligiosa figura a conformatio, 0 momenta do contato do corpo do santo com 0 corpomistico de Cristo; as varias posicoes possiveis de dedos, maos, pernas, pes, olhos e bocacompoem, no proprio estilo, t6picos apaixonados e 0 lugar da sua observacao adequadapelo destinatario que recebe 0 efeito. A escultura preve a distancia exata; no espaco daigreja, 0 espectador empfrico deve ocupar a mesma posicao calculada no estilo da peca parao destinatario para ser persuadido da presenca da luz da Graca e ser edificado com ela, nelae por ela. As Ietras, poesia e prosa, hoje classificadas como "barroco", ordenam a forma demane ira equivalente a conformatio por meio das agudezas. E util lembrar que, nesse tempo,"afeto" diferia de "acao" e, como no poema de John Donne em que 0 personagem diz aDeus que nunca podera ser livre e casto a menos que Ele 0 estupre- never shall be free! Norever chaste, except you ravish mee- "estar apaixonado" significava deixar que outravontade agisse sobre 0 corpo, produzindo nele a presenca deformante de sua forca. Aqui,em chave platonico-agostiniana, tanto 0 discursivo quanta 0 pictorico e 0 plastico saofiguracoes da infusao mistica da LuzlO e, conforme 0 modele da Eucaristia, figuracoes daincorporacao da luz natural da Graca pelos corpos operados como dispositivos de producaoda Presenca , A teologia e politica: as representacoes intensificam a desqualificacao dacarne insubmissa it hierarquia, enquanto exaltam, em signos de posicao discreta, 0 corpoque se subordina, propondo que 0 sentido do teatro esta alem ou que so e autorizado9 Le Brun, Charles. Lexpression despassions &utres corifcrences.C orrespondance. Paris, Dedale Maisonneuve et Larose,1994.10. Careri,Giovanni. "EI Artista". In Villari, Rosario y otros. EI Hombr e Ba rr ac o. Madrid, AIianza Editorial, 1993,pag.335.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    17

    quando se representa politicamente como participacao hierarquizada do corpo individual nocorpo mistico da comunidade subordinada ao rei. Obviamente, porque nunca podeapresentar urn grau zero de si mesmo, 0 corpo e sempre urn objeto semiotico; arepresentacao dele segundo essa metafisica da Luz e homologa da figura do "corpomistico" definido nos tratados dos juristas contra-reformistas difundidos pela Companhiade Jesus em seus colegios e seminaries, como De legibus e Defensio fidei, de FranciscoSuarez, ou Della raggion di Stato, de Giovanni Botero.

    o corpo individual so e visivel e dizivel nas letras e artes coloniais quando suamemoria, sua vontade e sua inteligencia se integram e subordinam-se nos varios corpos deordens ou na hierarquia corporativa do "bern comum" do Estado. Nao ha nenhuma nocao desubjetividade psicologica, como e normalizada hoje, nas representacoes dessasubordinacao; por isso, a posicao do eu nessas praticas e imediatamente a de umasubordinacao da vontade, da memoria e do intelecto em formas do todo social objetivocomo livre-arbitrio que pode parecer paradoxal para a nossa experiencia iluminista, pois eliberdade definida como subordinacao, Subordinacao dos apetites individuais it unidadeestoica da tranquilidade da alma dada aver, ouvir e ler nos signos espetaculares da Luz;subordinacao da tranquilidade da alma it pacificacao dos apetites em relacao ao todo dada aver no espetaculo; por decorrencia, subordinacao da vontade, da memoria e do inte1ecto itpaz individual e coletiva, decorrente dasubordinacao das partes e do todo ao Ditado divinoda Igreja garantido pela Coroa portuguesa. Aqui, a intensa sensorialidade das metaforasevidencia justamente a Presenca que legitima a representacao, A sensorialidade e urndiagrama do senti do geral dessa integracao fomecido ao destinatario como criterioavaliativo do efeito. Em urn tempo, em urn lugar e em praticas nos quais nao ha "opinidopublica", mas populacao subordinada e, sempre, plebe que murmura contra os excessos doexclusivo monopolista, e urn destinatario composto como representacao que testemunha arepresentacao que Ihe e oferecida ou imposta.

    Buscadas it Etica a Nictimaco, as paix6es do corpo sao aplicadas ou racionalmenteconstruidas mesmo quando sao irracionais, tal como sua doutrina aparece em varies textosibericos, italianos e franceses do seculo XVII, como e 0 caso do tratado que 0 oratorianoJean-Francois Senault dedicou a Richelieu, em 1641, De I 'usage des passions. A mecanicadas paixoes e aplicada segundo preceitos retoricos e jurfdicos e 0 efeito resultante fixa 0

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    18

    arimo ern que uma a9ao deforma urn gesto produzindo urn afeto, como urn instantaneo quecongela 0 movimento selecionado pela memoria em elencos prefixados de gestos: Deglieffetti nascono gli affetti, como se dizia em Veneza no seculo XVII: dos efeitos nascem osafetos. Sendo construido como varias paixoes sucessivas ou simultaneas, a quecorrespondem caracteres permanentes e transitorios, 0 corpo aparece diver so a cadamomento, conforme 0 regime do artificio aplicado. Quando hi simultaneidade de paixces,imediatamente hi subordinacao delas e dos caracteres secundarios a urn carater oupaixaoprincipais. Me interessa referir, aqui, a estase, ou seja, a imagem que congela ern urninstantaneo a agitacao do corpo pela paixao, como nos santos das igrejas. No corpoefetuado se I e ou ve tambern a representacao do processo produtor do efeito, ou seja, apresenca de urn mecanismo optico que recicla as topicas do ut pictura poesis horaciano eque faz 0 destinatario discreto lembrar-se do elenco de acoes e da selecao feita pelo juizodo autor da representacao quando calculou as distancias adequadas para a observacao daimagem, 0 numero de vezes que deve ser vista e a maior ou menor clareza correspondenteao estilo aplicado. 0 mesmo mecanismo se acha nas letras de entao, poesia e prosa, comocalculo dos efeitos, As anarnorfoses da pintura correspondem as alegorias enigmatic as dapoesia e da pro sa. Em todos os casos, a representacao teatraliza a memoria de usosautorizados que a tornam tambern autorizada. Em todos os casos, as paixoes nunca saoexpressivas ou psicol6gicas, mas retoricas, decorrendo de uma racionalidade formalizadanuma tecnica objetiva e assimetricamente partilhada de produzir efeitos. Nao se trata nuncade exprimir conceitos, mas de teatraliza-Ios. 0 artificio mobiliza varies saberes, retorica,dialetica, logica, arte combinat6ria, etica, teologia, subordinando-os a nocao generalizadade ordo, ordem, ou ratio, razao, figurada nas representacoes da "politica catolica"portuguesa como presenca da Iuz natural da Graca inata nos negocios do Brasil e doMaranhao e Grao Para.

    o discreto ou dissimulado, tipo que aplica 0 artificio dos varies decoros dahierarquia, pode faze-lo porque e capacitado pelo engenho. 0 termo (do latim ingenium),tal como se utiliza no seculo XVII, esta associado a ideia de uma forca natural doentendimento que investiga, por meio da razao e do discurso, tudo 0 que e possivel alcancarnos diferentes generos de ciencias, disciplinas, artes liberais e mecanicas etc. Assim, 0engenho pode ser caracterizado como a faculdade intelectual que age corn perspicacia

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    19

    dialetica, isto e, estabelecendo relacoes profundas ou ocultas entre as coisas e osconceitos. Nao e especifico de urn tipo de saber apenas, mas penetra em todos os assuntos;primeiro, de modo analitico, separando e definindo os conceitos; depois, de modo sintetico,pois e tambem versdtil, capaz de representa-los de maneira unitaria e de fornecer imagensbreves ou metaforas do seu conjunto harmonico. Tambern e possivel definir 0 engenhocomo faculdade que funde a dialetica (entendida aristotelicamente como analise ou divisaoda invenciio e disposicdo, isto e , dos topicos e da ordenacao das partes do discurso ou docorpo pintado e esculpido) e a retorica (entendida restritivamente como conjunto dosornatos ou figuras da elocuciioi. Neste sentido, 0 engenho e , ao mesmo tempo, analitico esintetico, realizando a relacao mais adequada entre a ordem do discurso au das partes dapintura e da escultura e a sua ornamentacao. Assim, tambem, 0 engenho e a faculdade quepossibilita a conciliacao entre a utilidade da obra (aquilo que ela ensina, docere) eo que elapode produzir de prazer (aquilo que ela gera como efeito prazeroso no audit6rio, leitor ouespectador, delectare). Do ponto de vista das poeticas do seculo XVII iberico, 0mais altoproduto do engenho e a agudeza que se estabelece entre conceitos.

    Tambem chamada de conceito, conceito engenhoso, ornato dialetico, silogismoretorico, entimema, nos tratados italianos, espanh6is e portugueses que circulam no Estadodo Brasil e no Estado do Maranhao e Grao Para por meio da Companhia de Jesus e pelaacao de letrados da administracao portuguesa que estudaram ern Coimbra, Evora eSalamanca, a agudeza adotada pelos autores desse tempo e , simultaneamente, motivo depolemicas, pois discordam quanto aos graus, aos verossimeis e aos decoros da suaaplicacao, E 0 que ocorre nos ataques de Quevedo it poesia de Gongora; na satiragregoriana ao falar agongorado de mulatos e pseudo-fidalgos baianos; na diatribe doSermao da Sexagesima, de Vieira, contra os estilos cultos dos pregadores dominicanos. Aagudeza e produzida retoricamente pelo engenho, a faculdade intelectual da invencao,sendo urn padrao socialmente partilhado como distintivo dos "melhores'', os discretos.

    Quero dizer, com isso, que as letras coloniais so podem ser consideradas"manifestacoes" quando sao apropriadas da perspectiva do canone literario nacional comoelementos excluidos (ou nao) da Bildung ou formacao, generalizando-se transistoricamenteas definicoes de "autor-obra-publico" da sociologia. Particularizo 0 que digo, lembrandoque em todos os casos a enunciacao das letras coloniais e inventada e ordenada

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    20

    retoricamente, aplicando topicas ou lugares-comuns na formalizacao dos caracteres epaixoes dos agentes do processo de interlocucao e na qualificacao dos temas do referenciaLOs lugares sao "questoes indefinidas", ou seja, argumentos genericos, que a memoria dosautores acha em elencos de autoridades no ate da invencao dos discursos. Devemos suporoutros modos, alguns realmente extraordinarios, de ordenacao da memoria, que no casodos autores coloniais e treinada pelos modelos das artes de memoria gregas e latinas, comoas estudadas por Frances Yates. Simultaneamente, quando acham os lugares adequados aodiscurso particular que inventam, eles os preenchem ou particularizam semanticamente pormeio de questoes definidas, ou seja, temas especfficos do seu referencial, os discursoscoloniais. 0 procedimento e generalizado nas letras de entao. Por exemplo, se comparamosa satira que circulou amplamente na oralidade e na manuscritura da Bahia, entre as duasdecadas finais do seculo XVII ate a Academia dos Esquecidos, de 1724, com outras satirasproduzidas em outros lugares, encontramos em Caviedes, que viveu em Lima no final doseculo XVII, ou em Sor Juana Ines de la Cruz, que viveu em Puebla na mesma epoca, asmesmas topicas epiditicas de vituperacao de vicios e viciosos, as mesmas virtudes definidasaristotelicamente como meio-termo prudente, os mesmos valores fidalgos da racionalidadede corte iberica, preenchidos por referencias distintas, especificas do Peru, do Mexico e doEstado do Brasil. Assim, modelada por lugares-comuns, a enunciacao e sempre umaintencionalidade nao-psicologica que nao se expressa, mas que apliea lugares. Ao mesmotempo que poe em cena t6picas ja figuradas por urn auetor- por exemplo, t6picas poeticas,como as platonicas da lirica de Petrarca e Camoes ou as imitadas diretamente dasMetamorfoses e das elegias er6ticas de Ovfdio, alem de temas recortados do referenciallocal, a enunciacao tambern teatraliza a hierarquia, construindo a representaeao do "eu"como tipo cuja situacao social corresponde a uma posicao hierarquica determinada.Dizendo doutro modo, a enunciacao repete ou aplica padroes sociais objetivos deordenacao discursiva do "eu" como tipo necessariamente subordinado ao "corpo mistico"do Imperio. Simultaneamente, 0 "tu" do destinatario discursivo tambem e figurado comoposicao hierarquica sem autonomia critica, no sentido liberal e marxista da formula"autonomia crftica". 0 destinatario sempre e testemunha, como disse, testemunha querecebe a representacao que the e dirigida reconhecendo nela sua propria situacao dedestinatario que testemunha sua posicao subordinada. Ao compor a enunciacao e os

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    21

    enunciados dos discursos, a iniciativa individual dos autores coloniais consiste,basicamente, em fazer uma variacao elocutiva dos preceitos do genero em que seespecializam, representando-a como apropriacao particular, verossimil e decorosa, dospreceitos da obra emulada e do referencial discursivo formal e informal citado, estilizado edeformado. Assim, se consideramos a particularidade do discurso feito como emulacao deautoridades anteriores e contemporaneas que compuseram obras do mesmo genero, epossivel descrever comparativamente a especificidade da iniciativa individual dos autorescoloniais como urn diferencial, ou seja, como urn uso particular da norma tecnica queregula 0 genero e que e seguida por todos os autores que 0 praticam. Por isso mesmo,tambem e possivel comparar iniciativas diversas do mesmo genero e hierarquizar seu valorartistico levando em conta os proprios criterios normativos de sua avaliacaocontemporanea: Vieira e mais apto e engenhoso no sermao que Eusebio de Matos ou FreiAntonio do Rosario ou 0 espanhol Paravicino ou 0 Italiano Cataneo; a poesia atribuida aGregorio de Matos e mais engenhosamente aguda que a de Manuel Botelho de Oliveiraque e mais engenhoso que a versalhada das academias do seculo XVIII etc. Mas a poesia deQuevedo, que eles imitam, suplanta a poesia de1es em valor artistico, so encontrandoalguma possibilidade de comparacao na poesia engenhosissima do portugues D. FranciscoManuel de Melo. Tais criterios avaliativos da qualidade artistica a s vezes sao fomecidosdiretamente no discurso, podendo ser imediatamente relacionados aos preceitos expostosnos tratados de retorica contemporaneos conhecidos pelos letrados quando estudantes noscolegios e na Universidade de Coimbra. E 0 caso dos tratados de Cipriano Soares, Frei Luisde Granada, Baltasar Gracian, Emanuele Tesauro, Sforza Pallavicino e varios outros.Quando isso nao ocorre, e possivel reconstituir os criterios avaliativos por meio de textospolemicos, ern que pelo menos duas posicoes entram em choque acerca do verdadeiro.dec oro do estilo. Caso da diatribe, no sermao da Sexagesima, contra os estilos cultos dospregadores dominicanos. Ou dos textos de Quevedo e seus contemporaneos, Lope de Vegae Jauregui, partidarios da unidade aristotelico-horaciana dos estilos, contra Gongora e seusimitadores, partidarios das retoricas gregas de Hermogenes, Aftonio, Longino, Demetrio deFalero e Dionisio de Halicarnasso, que comecaram a circular novamente no Ocidente apartir de fins do seculo XV propondo por exemplo a possibilidade de urn mesmo discursoter 25 estilos. Comparando 0 usc particular do genero com outros usos contemporaneos do

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    22

    mesmo, e possivel estabelecer a especificidade da iniciativa individual realizada comovariacao elocutiva da norma tecnica coletiva. Isso tambem e valido em discursos cujaenunciacao e auto-referencial, como a poesia lirica, rnemorias e cartas familiares: a formado "eu" nao e psicologica au romanticamente expressiva, como propoe a historiografialiteraria brasileira, porque antes de tudo e a forma da representaciio de uma posicaohierarquica definida juridicamente par preceitos do pacta de sujeicao do todo socialobjetivo do "corpo mistico do Estado".

    A topica do "corpo mistico" do Estado e fundamental nos discursos coloniais, desdeos textos de Nobrega, Anchieta, Luis da Gra e Fernao Cardim, no seculo XVI, ate as deTomas Antonio Gonzaga, na segunda metade do XVIII. A topica tambem comparece emtratados arquitetonicos que doutrinam modos de ordenar 0 espaco urbano como alegoria docorpa politico do Estado. Ou em livros de emblemas, que fornecem os modelos para asornamentos de igrejas e outros espacos hierarquicamente qualificados das cidades e vilascoloniais, como chafarizes, pracas, palacios de govemadores e casas da Camara. Duasreferencias principais se fundem na formula "corpo mistico": uma delas e teologica, 0"corpo de Cristo", ahostia consagrada pela Eucaristia, e, por extensao, a respublicachristiana, a republica crista au corpo mistico da Igreja Catolica, A outra referencia ejuridica, oriunda da teoria da corporatio, a corporacao romana, e da n09aO medieval deuniversitas, relacionando-se principalmente a doutrina politica da persona publica, nomedado por Santo Tomas de Aquino it n09aOjuridica de personajicta, "pessoa ficticia", oupersona repraesentata, "pessoa representada", Durante 0 Concilio de Trento (1543-1563),os juristas jesuitas e dominicanos juntaram a n09aO de respublica a de corpus mysticum,fundando com ambas a de corpo politico. No final do seculo XVI e no infcio do XVII, adoutrina suareziana do pactum subjectionis ou pacto de sujeicao do todo do reino como"corpo mistico" de vontades unificadas na subordinacao a urn so, 0 rei, fundamenta acentralizacao do poder monarquico portugues como "politica catolica", tambemdoutrinando 0 "bern comum" desse "corpo mistico" e as empresas coloniais economic as,militares e religiosas no Brasil, Maranhao, Africa e Asia. A doutrina que entao define 0estatuto juridico da pessoa em Portugal, no Estado do Brasil e no Estado do Maranhao eGrao Para pressupoe 0 conceito de "corpo mistico", sendo oposta ferozmente as teses deLutero e Maquiave1 sobre 0 poder politico. E ensinada nos cursos de Direito da

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    23

    Universidade de Coimbra e divulgada pelos jesuitas em seus colegios do Brasil e doMaranhao. Ela esta na base da educacao dos letrados coloniais e, a partir do final do seculoXVI, quando a Companhia de Jesus passa a definir toda representacao como theatrumsacrum, teatro sacro ou encenacao dos principios teologico-politicos do Estado, e1a e urndos principais fundamentos doutrinarios das representacoes,

    Segundo a tese da lex peccati, "lei do pecado", publicada por Martinho Lutero emWittenberg, em 1517, 0poder politico decorre diretamente de Deus, que envia os reis paraimpor ordem a anarquia dos homens corrompidos pelo pecado original. Por meio dosjesuitas, principalmente, a Igreja Catolica combate a tese reformada, decretando que Deuscertamente e origem do poder, como causa universalis ou causa universal da natureza e dahistoria, mas nao causa proxima ou direta do mesmo, pois ele decorre de urn pacto desujeicao. A principal autoridade canonic a que os juristas contra-reformistas citam parafundamentar a doutrina do pacto de sujeicao e 0 Comentdrio do Livro V da Metafisica, deArist6teles, feito por Santo Tomas de Aquino'". Ne1e, trata-se da unidade de integracao docorpo humano, demonstrando-se que a unidade do corpo pressupoe a integracao dapluralidade dos seus membros e a diversidade das suas funcoes como "ordem", A.integracao harmonica e instrumento para 0 principio superior que rege 0 corpo, a alma. Poranalogia, propoe Santo Tomas, 0 corpus hominis naturale, 0 corpo natural do homem assimdefinido, e termo de comparacao para outros objetos passiveis de serem pensados como"corpos". E 0 easo da sociedade, comparavel ao corpo humane segundo a proporcaocabeca: corpo :: rei: reino.

    Assim, a doutrina catolica do poder difundida pelas instituicoes portuguesas noEstado do Brasil e no Estado do Maranhao e Grao Para define a sociedade como urn"COrpOl1 de "membros", "partes", "ordens' e "funcoes"; analogamente, 0 rei e sua "cabeca"ou "razao suprema". Dirige-a racionalrnente, como a cabeca comanda 0 corpo, tendo porfinalidade 0 "bern comum", a conc6rdia e a paz do todo, As pessoas do reino, desde osescravos ate os principes da Casa Real, sao definidas como membros necessariamentesubordinados it cabeca reaL A subordinacao e sistematizada doutrinariamente no texto

    11Aquino, Santo Tomas. De regno II, 2. In Opera omnia. Roma, 1979,1. 42; Tratado de la ley. Tratado de fajusticia. Gobierno de los principes. 5 ed. Trad. y estudio introductivo por Carlos Ignacio Gonzalez, S.J.Mexico, Editorial Porrua, 1996, n. 301.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    24

    Defensio fidei (Defesa da Fe) (1613)12, do jurista e teologo jesufta Francisco Suarez. 0livro combate a tese do "direito divino" dos reis defendida contra 0 Papa pelo rei deInglaterra, James I, no texto Basilikon Doran, de 1580. Segundo Suarez, a subordinacao dasociedade ao rei nasce de urn pactum subjectionis, "pacto de sujeicao", especie de contratosocial pelo qual a comunidade, como um unico "corpo mistico" de vontades unificadas,abre mao de todo poder, alienando-o na pessoa simb6lica do rei- pessoa mistica (mystica),ficticia (jicta), ideal (idealis) ou representada (repraesentataJ- para dec1arar-se sudita (=submetida). No pacto de sujeicao, a pessoa mistica do rei e soberana. Detendo 0monopolioda violencia militar, judiciaria e fiscal, 0 rei confere os privilegios que hierarquizampessoas individuais, ordens e estarnentos do reino. 0 rei nao tern superior, pois nao hininguem que possa obriga-lo a nada: e legibus solutus, "absoluto de leis" (= "solto","absolvido" au "livre" do poder coercitivo ou imperativo das leis). Mas, como e reicat6lico, deve necessariamente seguir a forca indicativa da lei natural de Deus para que seugoverno seja legitimo. Doutra forma, torna-se rnaquiavelico ou tiranico, podendo serdestronado e mesmo morto pelos suditos, Diferentemente do mundo protestante,em que 0rei e sagrado porque reina por direito divino como enviado direto de Deus para impor aordem aos homens naturalmente inc1inados a anarquia pela lei do pecado original, emPortugal e suas col6nias a figura do rei e sagrada porque representa a soberania dacomunidade que se alienou dela. A sacralidade da soberania determina que a desigualdade enatural; logo, tambem implica que cada urn deve necessariamente contentar-se com a sorteque lhe cabe na hierarquia. Cada posicao social, pessoal e estamental, tern uma forma outuna representacao sempre adequadas a hierarquia que sempre devem ser dadas aver pormeio de signos exteriores que as constituem, mantern e confirmam como formassubordinadas ao todo comandado pelo rei. Assim, essas t6picas teol6gico-politicas saorecorrentes nas cartas de Nobrega, no teatro de Anchieta, nos tratados de cronistas comoGandavo e Gabriel Soares de Sousa, na poesia epica de Bento Teixeira, no seculo XVI; nos

    . textos de genero historico sobre as guerras holandesas, na poesia satirica e Iirica atribuida aGreg6rio de Matos, em toda a obra sermonistica, epistolografica e profetica de Vieira, no

    12 Suarez, Francisco, S.J. Dejensa de la Fe Catolica y Apostolica contra los Errores del Anglicanismo.Reproducci6n anastatica de la edicion prfncipe de Coimbra 1613. Version espanola por Jose Ramon EguillorMuniozguren, S.L Com uma Introducci6n General por el Ilmo. Sf. Dr. Don Francisco Alvarez Alvarez, Pbro.Madri, Instituto de Estudios Politicos- Secci6n de Te6logos Juristas, 1970,4 v.

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    25

    seculo XVII; enos textos das academias, como a Academia dos Esquecidos, no seculoXVIII. Ou na prosa narrativa, como a do Compendia Narrativo do Peregrina da America,de Nuno Marques Pereira. Por exemplo, nos sermoes belicos que pregou entre 1641 e 1652,durante as guerras da Restauracao, Vieira afirmava, como outros nacionalistas portugueses,que Portugal fazia uma "guerra justa" contra a Espanha, porque desde 1580, quando 0 reiFelipe II (Felipe I de Portugal) subira ao trono do pais, os Habsburgos espanhois tinhamreinado tiranicamente, sem que a populacao tivesse feito 0 pacto de sujeicao comeles.Evidenciando a longa duracao das formas de representacao do corpo dos suditos da politicacatolica ainda depois das reformas pornbalinas, na segunda metade do seculo XVIII, asmesmas topicas teologico-politicas aparecem na poesia elegiaca e epica de Claudio Manuelda Costa, na poesia encomiastica de Inacio de Alvarenga Peixoto, no Tratado de DireitoNatural e nas Cartas Chilenas, de Tomas Antonio Gonzaga, em 0Uraguai, de Basilio daGama, no Caramuru, de Santa Rita Durao, sendo tambem Iegiveis e visiveis no livro deemblemas, Principe Perfetto, imitaeao de urn livro de Solorzano Pereira publicado noseculo XVII, que em 1790 foi dedicado ao Principe, 0 futuro D. Joao VI

    Acho pertinente insistir: a forma da pessoalidade do "eu" da enunciacao e dodestinatario textual, alern das categorias que classificam as materias representadas, nao saocartesianas e iluministas, mas sempre representactio definida escolasticamente. Pelo termorepresentacdo podemos entender, no caso, a forma interposta nas letras como relacao deconceito e linguagem que torna suas significacoes convergentes ou deduti veis de urnprincipio de identidade, 0 conceito indetenninado de Deus, sempre articulado segundo aoposicao complementar de injinito/jinito. Na "politica catolica" iberica doutrinada esistematizada no Concilio de Trento, a identidade desse principio infinito e afirmada comoCausa Prime ira dos seres e eventos finitos da natureza e da historia, A doutrina afirma que,por serem criados, existem unidos it materia criada como analogos da substancia divina,participando nela par atribuicao e proporcao; simultaneamente, relacionam-se uns com osoutros pela semelhanca que os une como diferenca hierarquica de seres criados. Assim,identidade, analogia e semelhanca sao matrizes e articulacoes gerais das categoriasteologico-politicas e retorico-poeticas que figuram a natureza e a historia nas letrascoloniais. Acredito ser util considera-las, se ainda houver interesse na hist6ria da primeira

  • 5/5/2018 Letras Coloniais e historiografia liter ria Hansen

    26

    legibilidade normativa das representacoes coloniais. De todo modo, a discussao dos usosdessas representacoes no nosso presente nao poderia ignora-Ias,

    ***